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O primeiro a definir o termo "libertário" politicamente |
Quem disse que existe apenas uma definição exclusiva para o termo libertário?
Palavras não tem dono, e um mesmo termo pode comportar várias acepções. Em política, uma mesma
designação costuma abranger de fato inúmeras correntes de pensamento que têm - não
raro - apenas um único denominador
comum. Portanto, alguém afirmar que ser libertário é respeitar o princípio da
não-agressão (PNA) procede. Outros libertários de vertente pacifista haverão de
concordar pelo menos em termos.
Agora, o que não cabe, por uma questão de honestidade intelectual inclusive, é
querer reduzir o vocábulo “libertário” somente a defensor do tal PNA.
Pior dizer que essa é a versão “genuína e exclusiva” da palavra e até mesmo chamar
de sequestradores a seus verdadeiros
pais. Pra quem não lembra – ou não sabe – o termo libertário foi cunhado pelo
anarquista francês Joseph Déjacques, primeiramente em uma sua carta de 1857,
intitulada O Ser Humano, ao também anarquista
Pierre-Joseph Proudhon. Nela, Déjacques critica Proudhon veementemente por sua
posição contrária aos direitos das mulheres. Aliás, para quem considera não haver qualquer
relação entre o termo libertário e o feminismo, forçoso resgatar onde ele
aparece, dentro da carta de Déjacques. Aparece exatamente no parágrafo no qual
o autor afirma que, por sua posição
sexista, Proudhon podia ser anarquista moderado, liberal, mas não libertário.
Flogger of woman and absolute serf of man, Proudhon Magnan, you use your words for a lash. Like a slave-driver you seem delighted to disrobe your beautiful victims (on paper) and flagellate them with invectives. Moderate anarchist, liberal, but not libertarian, you want free exchange of cotton and candles and you seek to protect man against woman in the exchange of affectional human passion. You cry against the great barons of capital, and you would rebuild a proud barony of man on vassal-woman. Logician with misfit eyeglasses, you are unable to read the lessons of the present or the past; you can discern nothing that is elevated or at a distance or in the perspective of the future.
Posteriormente, Déjacques reafirmará a paternidade do termo ao publicar o jornal "Le Libertaire, Journal du Mouvement social" (O Libertário, Jornal do Movimento Social, de 1858 a 1861), em Nova York, onde havia se exilado após a revolução de Paris de 1848. Nesse jornal, ele publicou também, originalmente, sua utopia anarquista chamada Humanisfério (L'Humanisphère, Utopie anarchique). Mais tarde, outro teórico francês do anarquismo, Sébastian Faure (Dor Universal, Doze Provas da Inexistência de Deus), retoma o jornal O Libertário (1895-1914) e os termos “libertário”, “libertarismo” como alternativa aos equivalentes anarquista/anarquismo, já muito estigmatizados como sinônimos de “desordem”, “desordeiros” (devido a ações terroristas de alguns que se autodenominavam anarquistas).1.
Portanto, desde o berço e por sua longa trajetória a partir de então, a palavra
“libertário”, além das lutas sindicalistas, esteve associada também à luta das
mulheres, dos negros (Déjacques foi igualmente abolicionista), à liberdade
sexual, à liberdade individual, à ecologia (Walden,
Life in the Woods, Henry David Thoreau) e à educação para a liberdade. Após
os embates sangrentos com os autoritários dos pós-guerras, ela ressurge, nos
anos 60 do século passado, por meio dos movimentos da contracultura, da
revolução sexual, da política do corpo, do anti-estatismo, do anti-militarismo.
A contracultura é filha dileta do anarquismo pacifista (ver, como referência, Do
underground brotam flores do mal. Anarquismo e contracultura na imprensa
alternativa brasileira).
Assim sendo, não é possível afirmar à luz dos fatos e, aliás, dos dicionários e
inclusive do bom senso, que uma pessoa
racista, sexista, homofóbica possa, ao mesmo tempo, ser libertária. Não é
possível alguém se dizer libertário apenas porque proclama o Estado como
inimigo enquanto não se preocupa com as outras instâncias de concentração de
poder e de opressão dos indivíduos, como a religião, a família tradicional, a
escola, as corporações, etc. Libertários são radicais defensores da liberdade
em geral e não apenas da liberdade econômica, ademais tratada como panaceia
para todos os males do autoritarismo. É certo que todos os libertários são anti-estatistas e acham que a humanidade ganharia um bocado em aprender a se
autogerir sem essa entidade chamada Estado que, como a História nos mostra fartamente,
tem sido muito mais fonte de problemas do que de soluções. Mas daí a achar que,
numa utópica extinção do Estado, todas as outras formas de opressão
individual cairiam, como num efeito dominó, é muita ingenuidade (para ser
delicada).
Por fim, embora não goste de tratar quaisquer temas na base da dicotomia
esquerda-direita, pois só alimenta o fla-flu das sinapses relapsas, a bem da
verdade histórica, sinto-me obrigada a lembrar que o significado de libertário
está umbilicalmente associado à esquerda (o pai da criança era um
anarco-comunista). Bem como a
trajetória do termo ao longo dos séculos. Então, trata-se de uma atroz inversão dos
fatos afirmar que “a esquerda vem tentando sequestrar o movimento libertário
acrescentando ao Princípio da Não-Agressão sua típica agenda progressista”. Oras,
quem está tentando descaradamente sequestrar o movimento libertário e usurpando
sua história e protagonistas, pelo visto, é a direita conservadora (apesar de
não se assumir como tal). Daí o anti-historicismo de considerar como bizarrice
aquilo que sempre foi inerente à trajetória libertária.
Por último,
pessoalmente, acho que o posicionamento sobre o princípio da não-agressão, em relação a pessoas e
mesmo à propriedade privada (apesar de polêmica), e, naturalmente, a não-intervenção estatal na vida dos indivíduos e seus negócios pessoais e comerciais cabem na perspectiva de quem se denomina libertário.
O que definitivamente não cabe é a soberba de considerar a fidelidade ao princípio da não-agressão como exclusiva definição de libertário, numa redução
brutal do termo e à revelia de sua história tão rica exatamente por ser
múltipla.
1. Guérin,
Daniel. O Anarquismo, Da doutrina à ação. Editora Germinal, setembro de 1968.
Tradução de Manuel Pedroso. p. 11.
1 comentários:
Não gosto de muita coisa que diz esse Instituto Mises, menos ainda que use o nome com que me identifico de forma tão distorcida. Boa resposta.
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