sexta-feira, 16 de maio de 2014

Machado de Assis "adaptado" ou a ligeira impressão de que os idiotas já tomaram posse da terra que herdaram

Machado de Assis vilipendiado
Uma professora chamada Patrícia Secco resolveu escrever uma edição "facilitada" de Machado de Assis porque - em sua opinião  - os jovens não entendem de cinco a seis palavras por frase do que ele escrevia. Uma das primeiras vítimas da professorinha será O Alienista, um conto do grande escritor de cerca de vinte e duas páginas (se não me falha a memória). Em outras palavras, o processo de analfetização anda tão grande que a molecada não consegue ler 22 páginas. E também desconhece um outro livro chamado dicionário, ou também "pai dos burros", onde as pessoas podem descobrir o significado de palavras desconhecidas. E não vai ser a professorinha facilitadora que vai indicar o dicionário porque - de repente - nele tem um monte de palavras que os alunos também não entendem, né?

Como se não bastasse, as obras adaptadas da senhora Patrícia Secco foram financiadas via captação de dinheiro pela lei de incentivo do Ministério da Cultura e serão distribuídas gratuitamente pelo Instituto Brasil Leitor em junho próximo. Em outras palavras, incentivo público para bancar algo desnecessário que alimenta o baixo nível já existente em profusão no ensino brasileiro.

Há quem reduza toda a história à mera questão de opção: quem quiser ler a obra adaptada que leia; quem quiser ler a original que vá à luta. Até parece que um romance ou um conto são apenas o registro de uma historinha e não o registro de um estilo literário e do estilo do próprio escritor. Machado de Assis não é considerado o maior escritor brasileiro por escrever historinhas mas sim por toda sua virtuose literária. O pessoalzinho da leitura adaptada vai continuar desconhecendo o grande escritor e duvido que se anime a conhecê-lo realmente depois.

Abaixo, texto do jornalista Sandro Vaia sobre "mais essa" do Brasil da era PT (quanto mais medíocre melhor).  

Flaubert e os miasmas

“Os olhos de ambos erravam por sobre os montões de pedra das construções, sobre a água repugnante do canal, onde flutuava um molho de palha, sobre a chaminé de uma fábrica, que se erguia um horizonte; os esgotos exalavam miasmas”.

Este é um trecho de “Bouvard e Pecuchet”, o último romance de Gustave Flaubert, onde ele satiriza a vida de dois medíocres pequenos burgueses franceses que abandonam a sua vida de pequenos funcionários urbanos e saem em busca da prática da idiotia rural, como a definiu Karl Marx em um de seus escritos.

Ao mesmo tempo em que “os esgotos exalavam miasmas”, Milan Kundera, o escritor tcheco, achava que Flaubert sustentava toda a sua obra no tema da idiotia e da tolice, o que sustentava a tese de que os idiotas herdariam a terra.

Kundera, citado no blog Contramaré, de Aguinaldo Munhoz, dizia que "a descoberta flaubertiana é mais importante para o futuro da humanidade que as ideias mais perturbadoras de Marx ou de Freud". Pois podemos imaginar o futuro do mundo — prossegue Kundera — sem a luta de classes ou sem a psicanálise, mas não a invasão irresistível das ideias feitas, estandardizadas, pasteurizadas, que, "inscritas nos computadores, propagadas pela mídia, ameaçam tornar-se em breve uma força que esmagará todo o pensamento original e individual e sufocará assim a própria essência da cultura européia dos Tempos Modernos.

Nem Kundera e muito menos Flaubert poderiam imaginar que essa onda se tornasse tão avassaladora e se multiplicasse numa velocidade tão inimaginável com a democratização do acesso às redes sociais e que “a invasão irresistível das ideias feitas” pudesse ser tão demolidora e provocasse efeitos tão danosos em tão curto espaço de tempo histórico.

A ideia de uma professora chamada Patrícia Secco de escrever uma edição “facilitada” de Machado de Assis para que ele seja entendido por todo mundo (quem lembra da “Edição Maravilhosa”, uma revista que reduzia clássicos da literatura a histórias em quadrinhos, para mentes infantis? ), é uma versão daquele miasma que exala do esgoto de Bouvard e Pecuchet ou um sinal do zeitgeist — o espírito do tempo — ou as duas coisas juntas?

A campanha que demoniza a expressão “meritocracia” como uma maquiavélica armadilha neoliberal e não como uma forma de reconhecimento de uma capacidade especial digna de recompensa de uma pessoa que se destaque, por esforço próprio, em qualquer área de atuação, não é um sintoma de que os idiotas estão herdando a terra numa velocidade assustadora?

O miasma do esgoto não exala apenas das fontes convencionais — a corrupção política, o desrespeito à democracia, a agressão aos direitos das minorias, a desastrosa administração pública — ele sai também das mentes de quem se esperava produção de conhecimento, e não a sua destruição sistemática.

Sandro Vaia é jornalista. Foi repórter, redator e editor do Jornal da Tarde, diretor de Redação da revista Afinal, diretor de Informação da Agência Estado e diretor de Redação de “O Estado de S.Paulo”. É autor do livro “A Ilha Roubada”, (editora Barcarolla) sobre a blogueira cubana Yoani Sanchez e "Armênio Guedes, Sereno Guerreito da Liberdade"(editora Barcarolla). E.mail: svaia@uol.com.br

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