8 de Março:

A origem revisitada do Dia Internacional da Mulher

Mulheres samurais

no Japão medieval

Quando Deus era mulher:

sociedades mais pacíficas e participativas

Aserá,

a esposa de Deus que foi apagada da História

sábado, 29 de outubro de 2022

A eleição da marmelada: comê-la ou não comê-la, eis a questão?

Findo esse suplício de pseudodebates, concluo que essa eleição foi a maior marmelada da história recente, como se diz popularmente. Sempre disseram que Bolsonaro e seu séquito não se conformariam com um resultado negativo nas urnas e alegariam fraude de algum tipo. O que não se esperava é que a oposição fosse cooperar tanto com essa narrativa. Agora, eles podem gritar parcialidade com razão.

Como disse a jornalista Paula Schmitt, a campanha do Lula é “a materialização do maior conluio corporatocrata já visto numa campanha política. A coisa é tão surreal que parece comédia. A elite toda está com Lula, em todos os níveis do Consenso Inc –o cartel não-oficial mas extremamente síncrono entre empresas, mídia, acadêmicos, especialistas, artistas e influencers...”

Faltou falar dos piores integrantes desse cartel: os juízes das Supremas cortes, STF, TSE, que de suprema mesmo só têm a parcialidade que resolveram escancarar nessa eleição. Primeiro, como disse um ex deles, Marco Aurélio Mello, o STF resolveu ressuscitar o Lula com base em argumentos de fazer corar pedra, tipo a competência do foro do julgamento do petista que não deveria ter sido em Curitiba, mas sim em Brasília. Como então permitiram que fosse em Curitiba e autorizaram a prisão do cara? Depois, a parcialidade do juiz Sérgio Moro, como se Lula não tivesse sido julgado por outros 8 juízes também. Todos parciais? E, se não houve corrupção, nos casos julgados pela Lava Jato, de onde os integrantes da operação tiraram os 25 bilhões que devolveram aos cofres públicos? Do próprio bolso? Me poupem.

Livraram a cara do Lula com o objetivo de recolocá-lo na presidência da República. Havia sim condições de ter feito o impeachment do Bolsonaro em função, por exemplo, de suas ações desastrosas na pandemia que não o transformaram em genocida (como qualquer um que conheça o significado do termo sabe) mas o colocaram, por negligência e irresponsabilidade, na posição de culpado por mortes que poderiam ter sido evitadas. Se em 2020, em função da pandemia, não havia condições para tal, em 2021 já havia sim, mas não quiseram fazê-lo porque interessava deixar o Bolsonaro aí sangrando (assim pensavam) para ser sparring do Lula. Sem Lula na jogada, abria-se a possibilidade de renovação política com gente capaz de aglutinar votos suficientes para vencer Bolsonaro. Essa história de que só Lula poderia vencer Bolsonaro faz parte das lorotas do cartel.

Como se não bastasse, resolveram travestir um dos personagens mais autoritários da História brasileira, oriundo do grande partido mais autoritário surgido desde a redemocratização, como paladino da democracia contra o fascismo do Bolsonaro. Logo Lula que, antes e durante seus governos, fez um tour por tantas ditaduras mundo afora, com quem negociou obras para os parças da Odebrecht, que até o Muammar al Gaddafi, pervertido genocida ditador da Líbia, por 42 anos, consta como doador de sua primeira campanha na delação de Antonio Palocci.

Lula com Kadafi durante encontro em Abuja, Nigéria, em novembro
 de 2006 Foto: Ricardo Stuckert
Tanto os escândalos de corrupção dos governos Lula quanto seus amores e negociatas com tiranos pelo mundo foram amplamente divulgados pela imprensa. Não obstante, o TSE, em especial seu presidente, o liberticida Alexandre de Moraes, resolveu não só proibir a veiculação dessas informações, sob a desculpa de combate a fake news, como inclusive, no último capítulo dessa infâmia, resolveu obrigar emissora a veicular a fake news de que Lula é inocente. O PT ficou tanto tempo no poder que crianças ou adolescentes daquele período (2003-2016) podem estar votando pela primeira vez agora. Como então, esses novos eleitores não podem saber do passado de um dos candidatos?

A própria ministra Carmen Lúcia se saiu com uma história de que “não se podia permitir a volta de censura sob qualquer argumento no Brasil”, mas muito excepcionalmente, até o dia 31, endossava a censura prévia de um documentário sobre a facada que vitimou Bolsonaro na campanha anterior e a desmonetização de canais pró Bolsonaro. E, ainda por cima, afirmou que era para não comprometer a lisura, higidez e a segurança do processo eleitoral e dos direitos do eleitor.

Então, você vai a um jogo de futebol para ver seu time jogar, o juiz e os bandeirinhas aparecem com o emblema do time adversário e só apontam faltas para o seu time, sem falar em anulações de gols e expulsões de jogadores só do seu time e você acredita na lisura dessa arbitragem? Meu time já saiu do campeonato na primeira rodada, mas um dia pode estar na final. E se calha de seu Alexandre e dona Carmen ainda estarem por aí e decidirem vir com sua “lisura” para cima da minha turma?

Imprensa pode ser parcial. Em grandes democracias, a mídia inclusive assume que está apoiando candidato(a) X ou Y. Melhor do que fingir uma imparcialidade que não tem. E o leitor ou a leitora é que decidem se dão crédito a determinadas empresas de comunicação ou não. Em democracias, não existe essa história de querer obrigar uma emissora a defender teses que ela de fato não endossa. Sério que, desde os idos dos anos 70 do século passado, não ouvia mais falar em censura prévia e esse tipo de imposição a veículos de comunicação. Isso é muito grave. Se a imprensa pode demonstrar parcialidade, juiz não pode não.

E não me venham com historinha de que, como o Bozo é o pior dos mundos, vale tudo para tirá-lo da presidência. Das besteiras que Bozo diz, falar em regular a mídia eu nunca ouvi. Seu Lula, por outro lado, não tira isso da cabeça e da boca. Com a “lisura” dos integrantes da suprema, fica mais fácil obter esse tipo de objetivo – esse sim - inquestionavelmente fascistoide.

Ainda, nessa eleição, me impressionou também o quanto a esquerda em geral está datada. Na campanha do Lula tudo tão surrado: os slogans, as musiquinhas, aquele papinho cínico e furado de esperança e amor, gente abrindo livro para formar L num país de analfabetos e semianalfabetos. Da cruza infernal das eternas viúvas do muro de Berlim com a esquerda identitária (uma degeneração dos muito justos movimentos sociais do passado), surgiu uma esquerda mais preocupada com o sofrimento da turma do elu/delu via erros de pronomes do que com os reais interesses das classes trabalhadoras. Não por menos são as classes trabalhadoras que vêm, cada vez mais, apoiando a extrema-direita em todo o mundo.

Por último, não sou eu que vou dizer em que os outros devem votar. Reconheço que nos colocaram numa situação de se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Entretanto, acho importante que, nessa quase escolha de Sofia, as pessoas votem sem ilusões. Ninguém aí está defendendo democracia coisa nenhuma, nem mesmo os que teriam obrigação de defendê-la. No caso do Lula, todo esse conluio elitista de empresas, mídia, acadêmicos, especialistas, artistas, influencers, políticos, juízes, etc. estão defendendo seus interesses, vide Marina e Simone Tebet, por exemplo, de olho em cargos num possível governo petista. Quem quiser engolir essa marmelada, portanto, que o faça consciente. Lembrando que ainda existe a possibilidade de simplesmente não comê-la.

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

A eleição dos buracos negros, do ponto de não retorno e da absorção da luz

Buraco Negro

Apelidei a atual eleição de 'buraco negro". Originário de um colapso gravitacional de estrelas, o buraco negro apresenta densidade infinita, campo gravitacional intenso, atrai todos os elementos que cruzam o seu horizonte, configurando um ponto de não retorno e absorvendo até a luz.

Nesta eleição temos dois buracos negros, atraindo e absorvendo os elementos políticos que cruzam seu horizonte. Sabíamos que num embate entre petistas e bolsonaristas a baixaria seria farta, mas eles conseguiram se superar.

Depois da história da maçonaria, do satanismo, do canibalismo, de um tal creme de leite, agora temos a homofobia sendo usada pela esquerda contra um guri conservador. Passaram uma imagem, supostamente tirada de um vídeo, onde também supostamente o tal guri aparece fazendo boqt num sujeito. A justificativa para a tal exposição é que o guri seria um gay hipócrita que combate os direitos homossexuais, por aí. Entretanto, ao que tudo indica, o vídeo é falso, o cara que aparece na foto, tirada do vídeo, é um ator pornô, e o guri é hétero. Aí a coisa fica bem feia porque estão imputando homossexualidade a alguém como difamação, a homossexualidade não sendo de natureza difamatória, né mesmo? Não estamos no Irã. Vários gays que conheço estão putos.

E o buraco negro à esquerda continua absorvendo a centro-esquerda e direita para uma tal frente democrática, como se estivéssemos na II Guerra Mundial e fosse necessário fazer aliança com o Stalin para vencer o Hitler. Isso quando estamos, na real, numa mera luta entre duas forças populistas autoritárias e picaretas que se digladiam para ver quem vai nos roubar as poupanças e o futuro simplesmente. Li artigo de um sujeito espinafrando o Lula de cabo a rabo, mas dizendo que votará nele para salvar a tal democracia. Nesse caso, o buraco negro à esquerda já chegou ao ponto de não retorno e absorveu até a luz circundante.

Por outro lado, o buraco negro à direita, já absorveu os lava-jatistas, como o Sérgio Moro, que se uniu a seu antigo algoz, Bozo, contra o lulopetismo. Como ele disse que deixou o governo do Bozo porque o dito o estava impedindo de combater a corrupção, com que cara fica agora nessa aliança e qual a sua real disposição de combater a corrupção no Senado? Estelionato eleitoral para todos os lados.
E os buracos negros estão absorvendo tanto tudo à sua volta que afetam até o campo gravitacional um do outro, tanto que já temos o vice do Zema (Novo), que apoia o Bozo, declarando voto no Lula e o vice do Rui Costa (PT-BA), que apoia o Paim naturalmente, que declarou voto no Bozo. Ler com calma. 

Melhor essa eleição acabar logo antes do país inteiro chegar no ponto de não retorno e desaparecer nos buracos negros e do mapa-múndi.

terça-feira, 30 de agosto de 2022

Mary Shelley: aniversário da criadora do clássico de terror e ficção Frankenstein, o Prometeu Moderno

Mary Shelley, a mãe do Dr. Frankenstein e sua criatura

Quem foi Mary Shelley?

A escritora Mary Shelley publicou seu romance mais famoso, Frankenstein, em 1818. Ela escreveu vários outros livros, incluindo Valperga (1823), O Último Homem (1826), o autobiográfico Lodore (1835) e Mathilde, publicado postumamente.

Vida pregressa

Shelley nasceu Mary Wollstonecraft Godwin em 30 de agosto de 1797, em Londres, Inglaterra. Ela era filha do filósofo e escritor político William Godwin e da famosa feminista Mary Wollstonecraft – autora de The Vindication of the Rights of Woman (1792). Infelizmente para Shelley, ela nunca conheceu a mãe, que morreu logo após seu nascimento. Seu pai William Godwin ficou encarregado de cuidar de Shelley e de sua meia-irmã mais velha Fanny Imlay, que era filha de Wollstonecraft com um soldado.

A dinâmica familiar logo mudou com o casamento de Godwin com Mary Jane Clairmont em 1801. Clairmont trouxe seus dois filhos para a união, e ela e Godwin mais tarde tiveram um filho juntos. Shelley nunca se deu bem com sua madrasta que não lhe deu educação formal, ao contrário de sua meia-irmã Jane (mais tarde Claire) que foi mandada para a escola.

Embora privada de educação formal, Mary fez bom uso da extensa biblioteca de seu pai. Muitas vezes podia ser encontrada lendo, às vezes junto ao túmulo da mãe. Ela também encontrou na escrita uma saída criativa dos problemas familiares. De acordo com The Life and Letters of Mary Wollstonecraft, Mary explicou que "Quando criança, eu escrevia; e meu passatempo favorito, durante as horas que me davam para recreação, era 'escrever histórias'".

Esposo

Em 1814, Mary começou um relacionamento com o poeta Percy Bysshe Shelley que era um aluno dedicado de seu pai. Ele ainda era casado com sua primeira esposa quando fugiu da Inglaterra com a adolescente Mary naquele mesmo ano. O casal estava acompanhado de Jane, meia-irmã de Mary. A fuga de Mary levou a uma ruptura com seu pai, que não falou com ela por algum tempo.

Escrevendo 'Frankenstein' e outras obras

Mary e Percy viajaram pela Europa por um tempo, apesar dos problemas financeiros e da perda de sua primeira filha em 1815. No verão seguinte, os Shelleys estavam na Suíça com Jane Clairmont, Lord Byron e John Polidori. O grupo se divertiu em um dia chuvoso lendo um livro de histórias de fantasmas. Lord Byron sugeriu que todos tentassem escrever sua própria história de terror. Foi nessa época que Mary Shelley começou a trabalhar no que se tornaria seu romance mais famoso,

Frankenstein, ou o Prometeu Moderno.

Mais tarde naquele ano, Mary sofreu a perda de sua meia-irmã Fanny, que cometeu suicídio. Outro suicídio, desta vez da esposa de Percy, ocorreu pouco tempo depois, permitindo que. Mary e Percy Shelley finalmente pudessem se casar em dezembro de 1816. Ela publicou um diário de viagem de sua fuga pela Europa, History of a Six Weeks' Tour (1817), enquanto continuava a trabalhar em seu conto de um dos monstros mais famosos da história da ficção literária. Em 1818, Frankenstein, ou o Prometeu Moderno estreou como um novo romance de um autor anônimo. Muitos pensaram que Percy Bysshe Shelley o havia escrito porque havia escrito a introdução. O livro provou ser um grande sucesso. Nesse mesmo ano, os Shelleys se mudaram para a Itália.

Embora Mary parecesse dedicada ao marido, não teve um casamento fácil: adultério e a morte de mais dois de seus filhos marcaram a união. Apenas um de seus filhos, nascido em 1819, Percy Florence, sobreviveu até a idade adulta. Em 1822, outra tragédia abalou a vida de Mary: seu marido se afogou quando estava navegando com um amigo no Golfo de Spezia.

Anos depois

Ficou viúva aos 24 anos, Shelley trabalhou duro para sustentar a si mesma e ao filho. Ela escreveu vários outros romances, incluindo Valperga e o conto de ficção científica The Last Man (1826). Ela também se dedicou a promover a poesia de seu marido e preservar seu lugar na história literária. Por vários anos, Shelley enfrentou alguma oposição do pai de seu falecido marido, que sempre desaprovou o estilo de vida boêmio do filho.

Morte

Shelley morreu de câncer no cérebro em 1º de fevereiro de 1851, aos 53 anos, em Londres, Inglaterra. Foi enterrada na Igreja de São Pedro em Bournemouth, com os restos cremados do coração de seu falecido marido.

Legado

Só cerca de um século depois de seu falecimento, um de seus romances, Mathilde, foi finalmente lançado na década de 1950. Seu legado mais duradouro, no entanto, continua sendo o conto clássico de Frankenstein. A luta entre o criador e sua criatura tem sido fonte inesgotável da cultura popular em séries e filmes, como na ótima série Penny Dreadful, e nos filmes desde 1931, com o clássico ator Boris Karllof até o último Eu, Frankenstein com Aaron Eckhart. Com informações de The Biography.com 

quinta-feira, 25 de agosto de 2022

Geneticista molecular contesta a ideia surreal de mulher como um mero sentimento dos dias atuais

Peter Boghossian entrevista geneticista molecular

Em espécie de debate, promovido pelo filósofo e pedagogo Peter Boghossian em Berkeley, Universidade da Califórnia, em 19/04/2022, uma geneticista molecular respondeu porque discorda veementemente que transfemininas sejam consideradas legalmente mulheres.

Peter Boghossian: Por que você discorda de que trans sejam tratadas legalmente como mulheres? 

Entrevistada: porque eu sou uma geneticista molecular. Ser do sexo feminino ou masculino é um processo de desenvolvimento, não há como retroceder nele. Você não pode mudar de sexo. Não pode fazer isso.

A verdade é que atualmente, nas prisões da Califórnia e em prisões de outras partes do país, mulheres estão sendo engravidadas por outras "mulheres". E não tem jeito, isso é contra a Organização das Nações Unidas... Depois da II Guerra Mundial, se não me engano a Corte de Haia (órgão judiciário da Organização das Nações Unidas (ONU) estabeleceu que prisioneiras não podem ser alocadas com prisioneiros porque elas são estupradas. E isso está acontecendo hoje.

Meu coração acelera quando vou ao vestiário da academia e encontro um cara lá colocando maquiagem e brincos de argola, algo que mulheres não fazem quando vão malhar. Nem mulheres batem umas nas outras até a morte. Homens fazem isso.

É tão triste que as mulheres tenham internalizado a misoginia a tal ponto que o conforto dos homens tenha precedência sobre a segurança das mulheres. Há uma razão para mulheres não estarem numa prisão masculina: porque homens batem uns nos outros até a morte. Mulheres não fazem isso.

Peter BoghossianHaveria alguma coisa que lhe faria mudar seu ponto de vista? Alguma coisa que escutou dos outros entrevistados a faria mudar alguma coisa em sua oposição à ideia de trans serem consideradas legalmente mulheres? Tudo bem dizer que não. Só estou tentando entender.

Entrevistada: Ah, eu refleti bem sobre isso.

Peter Boghossian: Tem certeza?

Entrevistada: Tanta quanto sobre essa mão aqui em frente ao meu rosto ser minha e não sua. Absolutamente. 

terça-feira, 19 de julho de 2022

Dzi Croquettes: os libertários bailarinos dos anos 70 entre a força do macho e a graça da fêmea


1. “Nem homem. Nem mulher. Gente."

Livres e libertários, vestidos com purpurina, saias e cílios postiços, um conjunto de forças masculinas entrava no palco em pleno regime de ditadura militar no Brasil. Dzi Croquettes, grupo de teatro que surgiu na década de 70, no Rio de Janeiro, montava espetáculos musicais com uma enorme dose de ousadia, humor e irreverência.

O grupo foi resgatado recentemente pelo documentário Dzi Croquettes (ver abaixo), realizado por Raphael Alvarez e Tatiana Issa, em 2009, e pelo livro “A Palavra Mágica: a vida cotidiana do Dzi Croquettes”, de Rosemary Lobert, lançado em 2010 (publicação de sua dissertação de mestrado em antropologia social, 1979). Apesar de inúmeras apresentações no Rio de Janeiro, São Paulo e Paris, os únicos registros encontrados para a elaboração do filme foram de uma TV pública alemã e algumas cenas de entrevistas da rede Globo, no Brasil. A iniciativa de levantar a pesquisa e a recuperação desse material salva o grupo do esquecimento e denota a grande importância que os Dzi Croquettes tiveram para a arte, o teatro e a vida de toda uma geração.

Dzi Croquettes eram “As Internacionais”. Treze homens fortes, másculos e peludos entravam no palco com figurinos glamourosos: saias, sapatos altos, maquiagem carregada e corpos quase nus. Eram eles: Lennie Dale, Wagner Ribeiro de Souza, Cláudio Gaya, Cláudio Tovar, Ciro Barcelos, Reginaldo de Poli, Bayard Tonelli, Rogério de Poli, Paulo Bacellar, Benedictus Lacerda, Carlinhos Machado, Eloy Simões e Roberto de Rodriguez. Em poucos anos, foram responsáveis por uma revolução de comportamento, libertando-se de valores morais com relação à masculinidade e feminilidade, em um momento político em que “toda nudez era castigada”.

Eram homens vestidos de mulher, mas ninguém queria ser mulher” diz o cantor Ney Matogrosso em seu depoimento, presente no documentário. A questão era justamente essa: jogar com uma sexualidade dúbia fugindo de qualquer tipo de classificação. “Qual é essa mania de classificar?”, dizia um dos integrantes.

Criou-se então uma confusão de estereótipos sexuais confundindo inclusive a própria ditadura que não conseguia detectar onde estava exatamente a ameaça do grupo, além dos corpos nus. Negando os rótulos e assumindo a multiplicidade de caracteres, eles mesmos diziam:
Os Dzi Croquettes não são representantes do gay-power, nem dos andróginos, nem dos homens, nem das mulheres, nem dos brancos, nem dos pretos, mas de todos. Porque ou a gente representa todos ou não representa nada.”
Em 1973 Dzi Croquettes é censurado, mas depois de 30 dias é liberado por falta de argumentos consistentes, com a condição imposta de cobrirem seus corpos. Vale lembrar a tradição do carnaval brasileiro onde, durante os dias de festa, muitos homens se vestem de mulher. O grupo assim era político na maneira de ser e criticava as instituições nas entrelinhas da comédia musical.

Os espetáculos misturavam jazz, musicais da Broadway, cabaré, samba, teatro de revista, macumba, bossa-nova, improvisação, num exercício de pura antropofagia, evocando o manifesto de Oswald de Andrade: “Só a antropofagia nos une.” Devorando todas as culturas e falando várias línguas, os Dzi Croquettes alcançavam todo o tipo de público e levando ao extremo a própria noção de espetáculo.

 

2. Breve história do grupo

Com o espetáculo “Gente Computada Igual a Você”, de 1972, o grupo fez enorme sucesso no Rio de Janeiro e em São Paulo. Apresentando números cantados e dançados assim como monólogos e paródias, os Dzi abusavam da ironia e do duplo sentido. Os textos eram de autoria de Wagner Ribeiro e o preparo técnico do grupo ficava por conta de Lennie Dale, coreógrafo norte-americano naturalizado brasileiro. Eles se auto-denominavam “as internacionais” pela multiplicidade de línguas que compunham o espetáculo: português, inglês e francês eram as mais utilizadas. E o humor escrachado permeava todas elas num exercício de extrema liberdade de linguagem teatral.

Foi criado ainda todo um vocabulário “croquette”, com algumas palavras tão utilizadas que chegaram a entrar para dicionário da língua portuguesa como, por exemplo, “tiete”. O nome Dzi Croquettes foi também escolhido pela via do humor. Inspirado no grupo americano The Cockettes, fez-se uma alusão aos croquetes que eles estavam comendo no momento e a sonoridade do artigo the (zê - dzi). Dzi Croquettes. Afinal, como os croquetes, diziam, somos todos feitos de carne.

Essencialmente coletivo, o processo de criação dos Dzi Croquettes era do Teatro de Grupo, em sua versão mais radical. Além de atuarem juntos e acreditarem na mesma concepção estética e ideológica de linguagem, os Dzi Croquettes viviam juntos, como uma família, estabelecendo funções e papeis para cada membro: pai, mãe, filhas, tias, governanta, camareira, enfim; fazendo da própria vida um teatro e do teatro a vida. Em casa ou no palco, o que os Dzi Croquettes estavam propondo era uma forma de vida.

Pouco depois de censurados no Brasil, os Dzi Croquettes decidem embarcar para a Europa apenas com o dinheiro dos espetáculos e quase duas toneladas de cenário e figurinos. Uma sessão especial em Paris feita para Lisa Minelli e seus convidados lotou o teatro e eles alcançaram sucesso e reconhecimento. A atriz, tida como a madrinha do grupo, não esconde a grande admiração: “Eles se expressavam com todo o corpo e nós sentíamos essa energia em volta deles. Como se tivesse fumaça.”

 
Josephine Baker            

A cantora e bailarina Josephine Baker, que na ocasião estava entre os convidados de Liza Minelli, havia dito ao diretor do Teatro Bobino que quando ela morresse gostaria que os Dzi Croquettes fossem os próximos a se apresentar. O que de fato aconteceu quando, depois de uma semana de apresentações, em abril de 1975, Josephine Baker falece e o diretor, atendendo ao seu ultimo pedido, chama os Dzi Croquettes para ocupar o palco. Com o sucesso novamente e a presença de convidados ilustres na platéia como Jeane Moreau, Mick Jagger, Maurice Bejart, entre outros, o grupo alcança fama na Europa, mas decidem voltar para o Brasil em seguida.

No entanto, no inicio dos 80, com o aparecimento da Aids, o grupo perdeu quatro integrantes, sendo que na sequência três morreram assassinados e um de aneurisma. Dos treze restaram cinco: Ciro Barcellos - ator; Benedictus Lacerda - guia turístico; Rogério de Poly - ator; Bayard Tonelli - ator, diretor de arte e coreógrafo; e Cláudio Tovar - ator, cenógrafo e figurinista.

  

3. Contaminações e influências

Os figurinos incorporavam o lixo com glamour internacional. Feitos com restos de carnaval, roupas encontradas, collants desfiados, lantejoulas, meias de futebol, vestidos e fraques, a composição do vestuário era uma mistura de tons, cores e texturas onde o lixo virava luxo. Na cena em que eles dançavam “Assim Falou Zaratustra”, de Strauss, por exemplo, tecidos esvoaçantes ganhavam movimento como asas de Loïe Fuller, como se fossem mariposas voando pelo palco. O humor estava presente em todo momento, seja na escolha das músicas, na combinação de movimentos ou nos textos.

A rigidez técnica e o preparo físico, exigido por Lennie Dale, no entanto, fazia do grupo bailarinos profissionais. O trabalho de corpo com base em aulas de jazz e sapateado – ritmos adotados pelos musicais da Broadway – possibilitava a execução de movimentos limpos e precisos, o que dava contraponto ao excesso de liberdade corporal e textual. Visível, por exemplo, no bolero “Dois pra lá dois pra cá”, na voz de Elis Regina, dançado com rigor técnico e atrevimento.

No rosto, a maquiagem criava um disfarce. Eram como máscaras que ocultam e revelam ao mesmo tempo. Onde é possível ver sem ser visto. Um mural cênico composto de objetos e símbolos astronômicos, plataformas móveis e intensos focos de luz compunham uma capa de excessos. O olhar não abarcava o conjunto e o movimento era acelerado. No entanto tudo funcionava. Em acúmulos, desvios ou dribles de risos, moviam certezas na convicção de seus passos.

A devoração de elementos estrangeiros em fusão com a cultura brasileira presente também no Tropicalismo e nas idéias do Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade tem a sua máxima expressão com Dzi Croquettes.

Pela contracultura e experimentalismos de vanguarda, o grupo levou ao extremo as tentativas de superar as dicotomias arte/vida, arte/antiarte, fazendo do teatro, afinal, um projeto de vida. Nas palavras de Lennie Dale: “Life is a cabaret”.

Dzi Croquettes existiu entre 1972 e 1976 e exerceu influência em inúmeros artistas como Secos & Molhados, Ney Matogrosso, Frenéticas, entre muitos outros. Nota-se também a importância que tiveram no âmbito teatral, influenciando grupos como o Teatro Vivencial, de Recife, e toda uma corrente que leva adiante os conceitos de teatro de grupo e criação coletiva. Também o gênero pastelão, caricatura, deboche e comédia de costumes, travestismo e o movimento gay se apoiaram no vigor da presença do grupo. As contaminações disseminavam com velocidade em toda a arte dessa época.

Com a “força do macho e a graça da fêmea”, slogan da trupe, os Dzi Croquettes passaram como um vento forte balançando as estruturas. Um lugar onde nada é estático, onde os conceitos se misturam desorientando classificações. Intensos, magnéticos e ousados, deixam o recado:

Já que somos todos ignorantes, enlouqueçamos, pois.”

 

Raphael Alvarez e Tatiana Issa. Dzi Croquettes [Filme] Tria Produçoes. Brasil 2009.
 LOBERT, Rosemary. A palavra mágica: a vida cotidiana dos Dzi Croquettes, ed. Unicamp, Campinas: 2010
 Folha de São Paulo, 2.8.1973 in LOBERT, R., Op. Cit.. p.245

Clipping A força do macho e a graça da fêmea: Dzi Croquettes, por Lucila Vilela, Interartive, 02/2011


A força do macho e a graça da fêmea

Documentário sobre os Dzi Croquettes traz às novas gerações a trajetória do importante grupo teatral brasileiro

Treze homens em um palco. Maquiagens, muita dança, humor escrachado, pernas peludas à mostra pelo uso de vestidos curtos. "A força do macho e a graça da fêmea" era o mote que exemplificava a androginia característica. Isto era um pouco do que representavam os Dzi Croquettes, famoso grupo teatral que impactou o público na década de 70 (inserido no contexto do Ato Institucional nº 5, durante a Ditadura Militar brasileira, no auge da censura). A trajetória destes artistas está sendo contada no documentário Dzi Croquettes, dirigido por Tatiana Issa e Raphael Alvarez, que estreou nos cinemas nacionais em 16/07/2010 (ver abaixo).. Trazendo depoimentos de ex-integrantes e de diversos artistas (de Liza Minnelli a Ney Matogrosso), o longa-metragem busca recuperar estas tão importantes figuras da arte nacional, que infelizmente ficaram esquecidas no baú do passado.

Os Dzi Croquettes surgiram de um produtivo papo em uma mesa de bar, na qual estavam o dramaturgo e ator Wagner Ribeiro, Reginaldo de Poly e Bayard Tonelli.
Eles não sabiam bem como seria, mas tinham como base a ideia de uma coisa irreverente", conta Cláudio Tovar, que fez parte do grupo, em entrevista à Rolling Stone Brasil.
O projeto foi levado a Lennie Dale, nova-iorquino radicado no Brasil (considerado um gênio da dança), por seu aluno Ciro Barcelos, e imediatamente o coreógrafo se apaixonou pela ideia, encabeçando o grupo ao lado de Wagner. O ano do nascimento foi 1972. A partir daí, os Dzi Croquettes passaram a se valer da atuação, do humor e da dança para se expressar de forma livre em um contexto extremamente repressor.

Você possivelmente deve estar pensando: "Se o grupo é tão significativo, como nunca ouvi falar dele?" Pois é. Estes artistas entram na lista de nomes que ficaram esquecidos por não haver quase material registrado, muitas vezes por culpa da ditadura. A princípio, o grupo não foi barrado pelos militares durante o ensaio para a censura, realizado em 1973.
Como tínhamos essa variação no figurino, fizemos praticamente uma peça infantil. Era um bando de retardados, dançando como idiotas, vestidos de ursinhos", conta Tovar. "E eles não entenderam porra nenhuma, claro."
Porém, tempos depois, ao perceber do que tratavam os espetáculos, os generais proibiram definitivamente a exibição. Mas era tarde.
Já havíamos passado por duas boates e dois teatros. Já tínhamos feito a cabeça de milhares de pessoas, que viam naquilo uma possibilidade enorme de uma vida menos careta", explica o ex-integrante.
Pouco tempo depois, o espetáculo foi liberado e entrou em cartaz em São Paulo - posteriormente, com o dinheiro arrecadado, o grupo viajou para o exterior. Com humor e graça, os 13 atores e dançarinos (Lennie Dale, Wagner Ribeiro, Cláudio Tovar, Cláudio Gaia, Rogério de Poly e Reginaldo de Poly, Bayard Tonelli, Paulo Bacellar, Benedictus Lacerda, Carlos Machado, Eloy Simões, Roberto Rodrigues e Ciro Barcelos) davam, nas entrelinhas, verdadeiros safanões na sociedade e na realidade política do período.

Como forma de resgatar esse trecho de grande importância à cultura nacional, Tatiana Issa e Raphael Alvarez, amigos há 25 anos, suaram a camisa para conseguir coletar imagens e adquirir o maior número depoimentos para a elaboração de Dzi Croquettes.
Eu falava com todo mundo da minha geração: 'Isso na peça vem de Dzi Croquettes, aquilo também'. E ninguém nunca tinha ouvido falar deles", conta a diretora.
Sobretudo para Tatiana, o trabalho teve caráter pessoal, já que seu pai, Américo Issa, integrava a equipe técnica do espetáculo - e traçar a trajetória do grupo significava inevitavelmente trazer de volta parte da história de vida de Américo e cenas de sua própria infância.

O projeto começou a ser realizado em 2007, contando com os relatos dos integrantes remanescentes da formação original, bem como de artistas influenciados pelos Dzi - entre eles Liza Minnelli, que era a "madrinha" do grupo e amiga de Dale. Um dos grandes presentes do documentário são as cenas inéditas do espetáculo, gravadas pelo canal televisivo alemão MDR. As imagens foram resgatadas pela dupla de diretores após intensa procura, já que no Brasil não havia registros.
Não fazia sentido trabalhar nisso sem imagens de arquivo", diz Tatiana. "

 A TV alemã filmou e guardou.

 Descobrimos que esta fita existia e negociamos os direitos de exibição."
Segundo Tovar, as filmagens aconteceram durante o período de uma semana, enquanto a equipe estava em cartaz em Paris, e foi ao ar em um especial de fim de ano, em 1975.

Legado

Os Dzi Croquettes são vistos como exemplo de inovação nas artes teatrais. Com olhar muito a frente de seu tempo, uniam na dança, por exemplo, o jazz e o samba, numa representação consistente da antropofagia tão citada por Mário de Andrade, décadas antes. Quando o assunto era a forma com a qual se apresentavam no palco, um senso de liberdade surpreendente se fazia presente. Como se definiam, não eram homens ou mulheres, eram gente.

Muitos sustentam que o chamado besteirol começou ali, com o roteiro de Wagner Ribeiro.
As coisas eram ditas com humor, mas dando porrada. Foi a maneira que encontramos de falar o que a gente queria", lembra Tovar. "Era um musical muito brasileiro."
E é exatamente com relação a essa brasilidade que o ato antropofágico se encaixa. Havia músicas norte-americanas, já que Lennie Dale vinha dos Estados Unidos e trazia na bagagem a carreira como bailarino de jazz, mas as apresentações eram compostas majoritariamente pelo som nacional, como o samba e gafieira.

Pegamos o musical americano, deglutimos e jogamos de novo como se fosse algo nosso", afirma o ex-integrante.

No que diz respeito à postura no palco, os Dzi Croquettes foram os precursores no tratamento da sexualidade de forma aberta. No figurino dos 13 integrantes, tapa-sexo, botas de salto seis e maquiagem forte eram o básico. O resto vinha por cima - trajes doados por grandes estrelas da época, como Leila Diniz, Liza e Elke Maravilha e sobras de fantasias de escolas de samba.
Tudo era muito assumido. A década de 70 foi uma época bastante liberada, foi com a aids depois que a coisa ficou feia", diz Tovar.
Não valia a pena segurar a onda de porra nenhuma. Ainda mais em um período de repressão como aquele. Iria ainda reprimir sua própria sexualidade?"
O diretor Raphael Alvarez completa:
O que eles queriam mostrar era que não importava a sexualidade de cada um, havia coisas mais importantes que isso."
De acordo com os diretores, a princípio, o projeto teve dificuldade em conseguir patrocínio, talvez por ainda existirem certos tabus.

Não sei se era por causa da chegada da aids no Brasil, do primeiro movimento gay, da ditadura", diz Raphael Alvarez. "Ou a gente parava ou fazia com a nossa grana."

Obstáculos ultrapassados com a parceria do Canal Brasil, o longa-metragem agora entrou em cartaz nos cinemas nacionais para que os curiosos pudessem conhecer mais desta parte importante da produção cultural brasileira.

Clipping "A Força Do Macho E A Graça Da Fêmea, Por Patrícia Colombo, Rolling Stones, 18/07/2010 

quinta-feira, 7 de abril de 2022

Capacitação em tecnologia para mulheres

Crédito: site do Laboratoria
Entidades como Laboratória e Letscode (Devel{Elas}} dão cursos gratuitos para corrigir desigualdade no setor, onde mulheres são apenas 23%; empresas como Itaú, iFood e Nubank dão empregos

Nos últimos dois anos, intensificou-se o número de cursos que capacitam profissionais nas diversas de tecnologia. Como forma de combater o déficit do segmento feminino, programas abriram caminho para que mulheres pudessem se recolocar no mercado de trabalho. Passadas as primeiras edições dessas iniciativas, contamos as histórias de duas mulheres que terminaram suas formações e buscaram a ponte com o primeiro emprego na área.

O mercado da tecnologia vem sendo movimentado por instituições como LaboratóriaProgramaria e Let’s Code que sozinhas ou em parceria com grandes empresas, como Oracle, TIM, Ifood, Nubank e Itaú, formam profissionais para atuar no mercado, muitas vezes, de forma gratuita. Além da capacitação técnica, programas como esses evidenciam o interesse do mercado em não só formar profissionais de tecnologia, como uma preocupação com a diversidade e inclusão, uma vez que há foco em grupos discriminados como mulheres e pessoas negras.

Segundo a Associação das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação e de Tecnologias Digitais (Brasscom), a projeção é de um déficit anual de 106 mil profissionais até 2025. Em relação ao sexo, um levantamento realizado pela plataforma de empregos Catho mostrou que a presença de mulheres na área é de 23,6%, sendo que mulheres são 52% da população brasileira.

Carolina Daniel buscou a área da tecnologia aos 29 anos. Enquanto cuidava da filha recém-nascida, ela fez cursos na área. Foto: Taba Benedicto/Estadão
Formação com salário e benefícios

O primeiro emprego de Carolina Daniel na área da tecnologia começou efetivamente há uma semana. Aos 29 anos e com a carreira voltada para a área de humanas, como arquiteta e atriz, a alternativa da tecnologia surgiu durante a pandemia, enquanto cuidava da filha recém-nascida.
Com um bebê de colo, eu me senti muito à mercê da maternidade, muito focada nela. Bebês crescem rápido e você pensa que não está fazendo nada com a sua vida, então comecei a ficar muito aflita com a minha carreira. Meu marido, que já era área de tecnologia, me indicou alguns cursos e eu resolvi fazer. Me senti intelectualmente estimulada, ainda que eu estivesse só pensando em mamadas e fraldas”, conta.
Depois de alguns cursos livres, ela encontrou a escola de desenvolvedores Let’s Code e participou de dois programas de formação e contratação. O modelo de trabalho deles é baseado em parceria com empresas: a escola ensina programação gratuitamente para alunos selecionados e a organização patrocinadora do programa contrata alguns formandos.

Ao longo de três meses, Carolina aprendeu uma formação básica em dados, além de soft skills necessárias para o mercado de trabalho. Durante o tempo de curso, ela e os outros 35 selecionados já foram contratados pelo Itaú e passaram a receber salário e benefícios, enquanto se formavam. Ao término da capacitação, e já tendo feito entrevistas com diversas áreas dentro do banco, ela foi designada ao cargo de engenheira de dados júnior.

Com pouco tempo de experiência, Carolina entende que o seu maior desafio daqui para frente é entender o seu momento de mercado, principalmente considerando a maternidade e a transição de carreira.
Eu vejo muita gente entrando na tecnologia com 20 anos. O meu chefe mesmo tem 29, a mesma idade que eu. Eu estou em um outro momento da vida. Eu tenho uma casa para administrar, nove gatos, um cachorro, uma filha e uma família. Estou fazendo um movimento muito agressivo de carreira, indo do 8 ao 80 em um ano. Então, vou ter que correr atrás. Ao mesmo tempo, eu sei que eu trago uma bagagem comigo que ninguém mais tem, de alguém que passou por vários momentos da vida”, conta.
Alternativa ao desemprego

O desemprego durante a pandemia foi o pontapé para Ana Beatriz Costa, de 28 anos, conseguir se profissionalizar na área de tecnologia. Graduada em recursos humanos, sua experiência profissional passava longe da área de exatas: trabalhou em loja, foi massoterapeuta e entrevistadora do Cadastro Único (plataforma em que famílias acessam benefícios sociais do Governo).
 
Ana Beatriz Costa, de 28 anos, se profissionalizou na área de tecnologia devido ao desemprego na pandemia. Foto: Autorretrato
Parada em casa, ela lembrou que gostava muito de mexer com a linguagem html quando era adolescente.
Eu passava horas no Tumblr (plataforma de blogging) brincando com html. Por que não transformar esse gosto em tecnologia em uma carreira?”, diz.
Ela estudou sozinha por conteúdos no Youtube e fez cursos livres de uma semana de duração, até que conheceu a Laboratória, edtech que forma mulheres para reduzir o déficit dessas profissionais na tecnologia. Depois de seis meses de curso, se formou e conseguiu uma vaga como analista de dados júnior no Banco Next.

Hoje, já no mercado, diz que o maior desafio é seguir estudando novos conceitos.
Como eu entrei em uma área nova, eu preciso entender os conceitos que eu uso. A Laboratória me deu o conceito, mas o foco é em autoaprendizagem, então eu comecei do zero”, conta.
Para quem quer entrar no mercado da tecnologia, o conselho de Ana Beatriz é acreditar que é possível.

Não é tão difícil quanto parece. Muitas empresas têm aberto vagas procurando profissionais que estão na transição de carreira. A área de tecnologia pode não ser fácil, mas é acessível. A gente consegue conteúdo com uma certa facilidade na internet”, aconselha.

Quem são os empregadores?

Agora  empresas de diferentes segmentos e portes têm desempenhado papel importante na contratação dos profissionais de tecnologia, como iFood, Creditas, Accenture e NuBank, com destaque para bancos e fintechs (tecnologia e inovação aplicadas na solução de serviços financeiros).

Para debater assuntos de Carreira e Empreendedorismo uma dica é o perfil "estadão carreira e empreendedorismo", no Telegram, pelo seguinte link ou digitando @gruposuacarreira na barra de pesquisa do aplicativo.

Cursos de Programação

Laboratória: As inscrições para a 8ª edição do bootcamp de programação estão abertas até 15 de maio, pelo site. O curso é online e gratuito, mas, após a conclusão e a entrada no mercado de trabalho, as profissionais devem pagar uma parte do custo total do curso para financiar os estudos de outras mulheres. Os requisitos são: ser mulher, maior de 18 anos, viver no Brasil e ter cursado o Ensino Médio em escola pública ou particular com bolsa integral por critério de renda, além de ter disponibilidade para se conectar de segunda a sexta, no período da tarde.
Lets’ Code: A escola não é voltada apenas para mulheres, mas há processos focados na participação feminina e em maiores de 40 anos. Não há nenhum programa com inscrições abertas no momento, mas os interessados podem acompanhar novas aberturas no site do projeto.
Programaria: Com o slogan "empoderar mulheres através da tecnologia diminuindo o gap de gênero no mercado de trabalho, é isso que fazemos.", a programaria oferece curso on line de programação

Com informações de Mulheres se capacitam em tecnologia e trocam de profissão na pandemia, por Marina Dayrell, O Estado de S.Paulo, 26/ 03/2022 


terça-feira, 5 de abril de 2022

Luto na Literatura: Lygia Fagundes Telles partiu no domingo aos 98 anos

Lygia Fagundes Telles em retrato feito em seu apartamento na cidade de São Paulo, em abril de 2013
Lygia Fagundes Telles em retrato feito em seu apartamento na cidade de São Paulo, em abril de 2013 Foto: Eduardo Nicolau/Estadão

Lygia Fagundes Telles, a dama da literatura brasileira, morreu na manhã deste domingo, 3, aos 98 anos de idade. Com uma capacidade ímpar de se comunicar em público com o curioso das coisas literárias, deixou um vasto legado de obras, desde seu primeiro livro, Porão e Sobrado, publicado em 1938 e financiado pelo pai, até o mais recente, Um Coração Ardente, que já completa 10 anos de seu lançamento.

Livro que tornou Lygia conhecida nacionalmente
Tornou-se nacionalmente conhecida pelo público com seu primeiro romance, Ciranda de Pedra, lançado em 1954. E também pela crítica - Antonio Cândido, por exemplo, considerava essa obra o marco de sua maioridade como escritora.

Contos como Antes do Baile Verde (1970), Seminário dos Ratos (1977), A Estrutura da Bolha de Sabão (1978), A Disciplina do Amor (1980), Mistérios (1981), A Noite Escura e Mais Eu (1998), Invenção e Memória (2000) também são uma ótima sugestão àqueles que pretendem conhecer um pouco mais da escrita da autora.

A escritora considerava esta sua melhor obra (veja o vídeo)

Relembre a obra de Lygia Fagundes Telles abaixo:

Romances de Lygia Fagundes Telles
  • Ciranda de Pedra, 1954
  • Verão no Aquário, 1964
  • As Meninas, 1973
  • As Horas Nuas, 1989
As Meninas abordou temas tabu na década de 70,
como a tortura e a lesbianidade

Contos de Lygia Fagundes Telles
  • Porão e Sobrado, 1938
  • Praia Viva, 1944
  • O Cacto Vermelho, 1949
  • Histórias do Desencontro, 1958
  • Histórias Escolhidas, 1964
  • O Jardim Selvagem, 1965
  • Antes do Baile Verde, 1970
  • Seminário dos Ratos, 1977
  • Filhos Pródigos, 1978 (reeditado como A Estrutura da Bolha de Sabão, 1991)
  • A Disciplina do Amor, 1980
  • Mistérios, 1981
  • Venha Ver o Pôr do Sol e Outros Contos, 1987
  • A Noite Escura e Mais Eu, 1995
  • Oito Contos de Amor, 1996
  • Invenção e Memória, 2000
  • Durante Aquele Estranho Chá: Perdidos e Achados, 2002
  • Conspiração de Nuvens, 2007
  • Passaporte para a China: Crônicas de Viagem, 2011
  • O Segredo e Outras Histórias de Descoberta, 2012
  • Um Coração Ardente, 2012


Clipping Entre contos e romances, relembre a obra de Lygia Fagundes Telles, Estado de São Paulo, 03/04/2022

quinta-feira, 31 de março de 2022

Câmara retira exigência medieval de autorização do marido para que mulher faça laqueadura

Laqueadura obstrui as trompas e evita o encontro entre óvulos e espermatozoides (Foto: Editoria de Arte/O Globo) - Fonte: Revista Cenarium

Esposas também não precisarão dar aval para vasectomia. Proposta permite também que o  procedimento seja feito durante a cirurgia do parto. Texto segue para o Senado.

A Câmara dos Deputados aprovou nesta terça-feira (8), Dia das Mulheres, um projeto de lei que retira da legislação a exigência de consentimento do cônjuge para a esterilização voluntária. No caso de uma mulher casada, a legislação atual exige a autorização do marido para a realização de laqueadura tubária. O texto segue para o Senado.

Atualmente, a legislação determina que, se forem casados, tanto o homem quanto a mulher precisam do consentimento expresso do cônjuge para a esterilização. A proposta retira essa exigência, inclusive no caso do homem que quiser fazer vasectomia.

Outra mudança prevista no texto é a possibilidade de que a cirurgia de laqueadura seja feita durante o período do parto. Neste caso, a mulher deve fazer o pedido com pelo menos seis meses de antecedência em relação ao parto e devem ser observadas as "devidas condições médicas".

A legislação atual veda esse tipo de procedimento durante os períodos de parto ou aborto, "exceto nos casos de comprovada necessidade, por cesarianas sucessivas anteriores".

A proposta também reduz de 25 para 21 anos a idade mínima para a realização de esterilização voluntária, tanto para homens quanto para mulheres.

Atualmente, a legislação prevê o procedimento para homens e mulheres maiores de 25 anos ou, pelo menos, com dois filhos vivos. Contudo, segundo a relatora, "são frequentemente manifestadas também as dificuldades de pessoas maiores de 21 anos que já têm três filhos".

Prazo para método contraceptivo

A proposta também estabelece um prazo máximo para a disponibilização de qualquer método e técnica de contracepção.

Ao justificar a inclusão da proposta, a relatora da matéria, deputada Soraya Santos (PL-RJ), cita como exemplo a inserção do Dispositivo Intrauterino (DIU), cuja "dificuldade para o procedimento é marcante".
Assim, sinalizamos aos serviços de saúde que o prazo máximo para que sejam disponibilizados deve ser de trinta dias. Temos a certeza de que é possível a organização nesse sentido", escreveu.
Planejamento familiar

Os senadores aprovaram também nesta terça-feira (8) uma proposta que altera a lei do planejamento familiar e proíbe a recusa injustificada da oferta dos métodos e técnicas contraceptivos por parte dos serviços de saúde e das empresas de plano de saúde.

Pela proposta, que vai à Câmara, será punido com multa quem impedir ou dificultar, sem a devida justificativa, o acesso aos métodos de planejamento familiar.

O texto também exclui da lei do planejamento familiar trecho que prevê que, no casamento, o processo de esterilização depende do consentimento expresso de ambos os cônjuges.

Clipping Câmara retira exigência de autorização do marido para que mulher faça laqueadura, por Elisa Clavery, G1, 08/03/2022

terça-feira, 29 de março de 2022

Democracia em declínio no mundo com processos de autocratização inclusive no Brasil

O mais próximo da democracia que o Brasil chegou foi no governo Fernando Henrique Cardoso. No mais, o país nunca foi uma democracia plena porque tem uma corrupção endêmica como seu principal impeditivo, resultando em falsa separação entre os poderes, em juízes metidos até o pescoço no afã de soltar bandidos de colarinho branco. Também não existe participação popular efetiva e constante nas decisões políticas.

A luz no fim do túnel foi a Lava Jato que, pela primeira vez em nossa História, botou políticos e empresários corruptos, incluindo o santo da seita petista, São Lula, na cadeia. Mas o juiz símbolo da Lava Jato, Sérgio Moro, cometeu o erro crasso de se meter com Bolsonaro, não se sabe por vaidade ou ingenuidade ou mesmo por burrice, sendo traído pelo mesmo e virando vitrine dos petistas e seus cúmplices no aparelho cleptocrático atual. Hoje a cleptocracia recuperou boa parte de suas perdas, Lula processou Deltan Dallagnol e promete processar outros. Com Bolsonaro, nada democrático ou ético, o Brasil só continou descendo a ladeira. Com Lula, sedento do sangue dos que o puniram, a situação só deve piorar. 


O Brasil passa por um processo de "autocratização" e é considerado como um dos cinco países onde a democracia sofre os maiores abalos no mundo na última década. O alerta é do V-Dem Institute, da Suécia, um dos principais centros de pesquisa sobre o estado da democracia e que avalia centenas de dados de cada país por décadas. Segundo o estudo, a crise na democracia brasileira só não foi maior graças à atuação da Justiça, freando o presidente Jair Bolsonaro.

Para os pesquisadores do centro, o Brasil não é uma democracia liberal, já que vive desafios para garantir que todos os critérios de um estado de direito consolidado sejam atendidos. No ranking da entidade, o país aparece apenas como uma "democracia eleitoral".

A classificação sobre o índice de democracia nos países é liderada por Suécia, Dinamarca, Noruega, Costa Rica, Nova Zelândia, Estônia, Suíça, Finlândia, Alemanha, Irlanda, Bélgica e Portugal.

Na modesta 59ª posição, o Brasil perde para países como Gana, Bulgária, Senegal, Armênia, Romênia, Cabo Verde, África do Sul ou São Tomé e Príncipe.

O V-Dem Institute, que faz parte da Universidade de Gotemburgo, produz o maior conjunto global de dados sobre democracia, com mais de 30 milhões de pontos de dados para 202 países entre os anos de 1789 e 2021. Envolvendo mais de 3.700 acadêmicos e outros especialistas de outros países, o V-Dem mede centenas de diferentes atributos de democracia e, segundo seus representantes, permite novas maneiras de estudar a natureza, causas e consequências da democracia.

O instituto deixa claro que o Brasil está entre os países que mais sofreu um processo de erosão da democracia na última década, ao lado de Hungria, Índia, Polônia, Sérvia e Turquia. Na América Latina, o Brasil faz parte de um grupo que conta como El Salvador, Nicarágua e Venezuela.

A deterioração da democracia no país só não foi maior por conta da resistência do Supremo Tribunal Federal, diante da pressão de Bolsonaro para deslegitimar o sistema eleitoral.

Outra característica do Brasil é a "polarização tóxica" no sistema partidário e no debate político.
Por exemplo, a polarização no Brasil começou a aumentar em 2013 e atingiu níveis tóxicos com a vitória eleitoral do presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro em 2018. Desde que tomou posse, Bolsonaro se uniu aos manifestantes para pedir a intervenção militar na política brasileira e o fechamento do Congresso e da Suprema Corte", disse. "Além disso, ele promoveu uma militarização em larga escala de seu governo e a desconfiança do público no sistema de votação", denuncia o grupo.

 Erosão da democracia no mundo e um retorno ao ano de 1989

No restante do mundo, a situação é também considerada como preocupante. De acordo com o estudo, o nível de democracia desfrutado pelo cidadão global médio em 2021 caiu para os níveis de 1989.
Os últimos 30 anos de avanços democráticos estão agora erradicados. As ditaduras estão em alta e abrigam 70% da população mundial - 5,4 bilhões de pessoas", alertou.
A entidade estima que as democracias liberais atingiram o auge em 2012 com 42 países nesta qualificação. Mas, agora, estão nos níveis mais baixos em mais de 25 anos. Hoje, apenas 34 nações podem ser chamadas como democracias liberais abrigam apenas 13% da população mundial.
O declínio democrático é especialmente evidente na Ásia-Pacífico, Europa Oriental e Ásia Central, assim como em partes da América Latina e do Caribe", declarou.
Já as ditaduras estão em ascensão. O número de autocracias fechadas passou de 25 para 30 países, com 26% da população mundial

Mas é a autocracia eleitoral que é considerada como a situação mais comum, abrigando 44% da população mundial, ou seja, 3,4 bilhões de pessoas.

Clipping Brasil vive processo de "autocratização"; democracia recua 30 anos no mundo, por Jamil Chade, UOL, 21/03/2022,

quinta-feira, 24 de março de 2022

Historiadora e psicanalista Elisabeth Roudinesco critica identitarismo e excesso de termos do atual debate público

A escritora Elisabeth Roudinesco, em Paris em 25 de março de 2017.
• Créditos: Eric Fougere - Corbis

Autora francesa lança 'Eu Soberano' e afirma que há uma efervescência de termos, como cisgênero, branquitude, interseccionalidade, que obscurecem a realidade.

Elisabeth Roudinesco
notabilizou-se como historiadora da psicanálise, autora de biografias sobre Sigmund Freud e Jacques Lacan e de um Dicionário da Psicanálise. Com Eu Soberano – Um Ensaio sobre as Derivas Identitárias, recém-lançado no Brasil (Zahar, 304 págs., R$ 74), ela faz sua intervenção no debate incandescente sobre a questão identitária. O livro é um libelo contra as “designações identitárias” que, segundo ela, reduzem o ser humano a uma experiência específica e tentam acabar com a natureza do que é distinto. A autoafirmação de si, escreve Roudinesco no prefácio do livro, leva à hipertrofia do eu, em que “cada um tenta ser si-mesmo como um rei, e não como um outro” e consolida tendências de isolamento. Em contraponto, diz ela, é preciso reforçar a existência de uma identidade universal, que é múltipla e inclui o estrangeiro. No livro, Roudinesco fala com admiração da obra de Gilberto Freyre, da mestiçagem e da existência de um “hibridismo barroco” no Brasil.

O ensaio é uma genealogia do que Roudinesco chama de “derivas identitárias” – a metamorfose de movimentos sociais que, no começo do século 20, buscavam a emancipação, o progresso e a transformação do mundo para melhor em movimentos de afirmação de identidade, que buscam exprimir indignação ou o desejo de visibilidade e reconhecimento. Para ilustrar os perigos dos sectarismos identitários, Roudinesco evoca sua participação em um colóquio sobre psicanálise em 2005 no Líbano, país com 17 comunidades religiosas, cada uma com sua legislação e jurisdições próprias, e habituado a viver em guerra. Ao ser questionada por um anfitrião se seria cristã ortodoxa, por causa do sobrenome, Roudinesco teve de responder que seu pai era judeu-romeno, sua mãe era de uma família protestante de origens alemãs, mas ela era ateia, sem ser anticlerical, e se identificava apenas como cidadã francesa. Tempos depois, um dos participantes do colóquio e o filho do anfitrião morreriam em atentados a bomba em Beirute. Apesar da crítica às “derivas identitárias”, Roudinesco enfatiza que o maior perigo é o ressurgimento do identitarismo de extrema-direita, ancorado numa tradição de racismo e antissemitismo com profundas raízes no Ocidente.

A seguir, trechos da entrevista de Roudinesco ao Estadão sobre o livro.

Palestra da psicanalista Elisabeth Roudinesco em auditório da PUC São Paulo, em 2010
Foto: Tiago Queiroz/Estadão
ESP: Seu ensaio começa com uma história pessoal no Líbano, em que a senhora fez questão de se identificar como francesa. Sua motivação para o livro tem a ver com a defesa dessa condição de cidadã de um país do Ocidente, tão questionado pelos movimentos identitários?

ER: Ao citar o que ocorreu no Líbano, quis mostrar que mesmo eu já fui confrontada por uma designação identitária. No Líbano, houve uma situação extravagante porque foi a primeira vez em que eu tive que afirmar que era francesa, não por uma questão de identidade, mas por cidadania. A motivação do livro, porém, foi a de dizer algumas coisas que precisam ser esclarecidas. Há muito tempo, eu queria escrever algo sobre o que está acontecendo no mundo intelectual, que é a substituição da busca da emancipação pela afirmação identitária. Essa transformação se apoia notadamente em pensadores franceses que eu conheci, sobretudo Michel Foucault e Jacques Derrida, e que contribuíram para ilustrar o pensamento crítico. A designação identitária, porém, tem algo fortemente criticável porque ela coloca o sujeito em apenas um território como se nós fizéssemos parte de uma raça, de um gênero, de uma religião. É um perigo porque embute a retração dos valores universais de cada sujeito. Eu não reivindico os valores do Ocidente, mas os valores universais.

ESP: Sua intenção foi então recuperar a obra desses grandes intelectuais franceses que estariam sendo reinterpretados de uma forma equivocada?

ER: Não é propriamente o desejo de recuperar, mas de refletir sobre a transformação da obra deles. A reivindicação identitária mostra o conjunto do Ocidente como imperialista e colonizador, mas esquece que houve lutas anticoloniais dentro dos países ocidentais. Jean-Paul Sartre, que foi de uma geração bem anterior a Foucault e Derrida, encarnou a luta contra o colonialismo francês, mas foi arrastado para a lama com a tese de que os anticolonialistas franceses não tinham o direito de ser anticolonialistas porque eram franceses, ocidentais, brancos. Isso me ofende, porque sempre fui anticolonialista e venho de uma família anticolonialista. Além desse ponto de partida, outra motivação para o ensaio é mostrar que houve passos para trás com várias dessas derivas identitárias. A questão do gênero foi revolucionária ao introduzir a noção de que ele é uma construção social e psíquica e não apenas uma diferença anatômica de sexo, mas houve uma guinada no sentido contrário quando se passou a negar o sexo em detrimento do gênero. Ambos, sexo e gênero, são necessários.

ESP: A senhora considera então que muitas dessas derivas identitárias estão promovendo retrocessos?

ER: Sim. A noção de “negritude”, por exemplo, passou a ser racializada. Quando Aimé Césaire (poeta de origem martinicana) dizia que era negro e permaneceria sempre negro, ele não afirmava isso do ponto de vista da raça, mas, sim, do sentido do pertencimento a uma história e a uma cultura. Todas essas derivas, além disso, são acompanhadas de uma linguagem obscura. Há uma efervescência de terminologias, como cisgênero, branquitude, interseccionalidade, que obscurecem a situação real. O excesso de jargões é sempre um mau sinal. Um pensador que inova, é claro, inventa conceitos, mas há um certo limite para criar neologismos. Nesse caso, nós chegamos a um ponto de exagero.

Pintura sem título de 2014 do artista americano Kerry James Marshall sobre negritude    Foto: Metropolitan Museum of Arts
ESP: Apesar dessa linguagem obscura, e mesmo sendo minoritários na opinião pública, como a senhora assinala em seu livro, os movimentos identitários ganharam as ruas e inflamaram o debate público, tanto à esquerda como à direita. Como tais movimentos ganharam essa dimensão?

ER: Eles são muito ativistas. Além disso, há uma midiatização desse fenômeno. Na França, ganharam também repercussão na sociedade por causa dos debates memoriais sobre a guerra da Argélia. Estamos enfim nos apoderando da verdade de nossa história para reconhecer os crimes cometidos pela colonização. Mas esses movimentos identitários permanecem minoritários e, na minha opinião, não têm futuro. Esse fenômeno não vai durar. As derivas identitárias são sintomas de um mundo que está em transformação. Por isso, são derivas. Não são coisas bem instaladas. Acredito que se trata de uma crise do pós-colonialismo, do pós-comunismo. É uma crise que tem aspectos positivos, viu? As derivas identitárias colocaram o problema das minorias. Mas, no combate da história, estão condenadas porque elas se tornaram punitivas com a cultura do cancelamento, o boicote aos espetáculos e, sobretudo, com a releitura das obras de arte.

ESP: A senhora relaciona a eclosão das angústias identitárias à ascensão de uma cultura do narcisismo. Essa cultura foi reforçada pelas redes sociais?

ER: Sim. Tomei a expressão “cultura do narcisismo” de empréstimo de Christopher Lasch (historiador americano) e de Adorno, da Escola de Frankfurt. Eles – e os psicanalistas também – notaram como o narcisismo tinha se tornado um fenômeno social muito importante no final do século 20. Nós substituímos Édipo por Narciso. Quando Freud começou com a psicanálise, vivíamos em uma sociedade de frustração, onde a liberdade sexual não existia. A partir dos anos 60, com a liberação sexual nas sociedades ocidentais, com o sujeito confrontado a ele mesmo e não mais às proibições do começo do século 20, percebeu-se que as pessoas passaram a ter outras patologias: as depressões e os narcisismos.

A pensadora Elisabeth Roudinesco, durante a programação do Fronteiras do Pensamento em Porto Alegre, no ano de 2016 Foto: Fronteiras do Pensamento
ESP: A senhora escreve que o coração de todo sistema identitário repousa numa espécie de vergonha de si mesmo. Pode explicar isso?

ER: A gente vê claramente essa vergonha de si próprio, que retorna sob uma vontade narcisista, em alguns movimentos identitários, como o dos indígenas da República (partido político francês que se descreve como antirracista, antissionista e antiimperalista). É muito visível em um livro de Houria Bouteldja (porta-voz do partido até 2020, que já foi acusada de antissemitismo e homofobia, entre outras controvérsias). Ela expressa vergonha por seus pais, imigrantes argelinos que foram assimilados na sociedade francesa. A vergonha de suas origens, que retorna sob a forma de um ódio ao outro, é uma indicação de necessidade de tratamento psíquico. Não se pode permanecer pelo resto da vida na identificação de uma posição de vítima. É preciso sair dessa posição vitimista em algum momento. Isso é válido também para o movimento Me Too.

ESP: A senhora diz no livro que o reducionismo identitário reconstrói tudo o que ele pretende combater. Por essa lógica, pode haver racismo contra brancos?

ER: O termo “racismo contra brancos” foi usado pela extrema-direita – aqui na França e em toda a parte – para atacar autênticos militantes antirracistas. Certamente, não estou de acordo com isso. Mas nós somos obrigados a refletir sobre o que é o racismo. Todas as sociedades conhecem o racismo em todos os sentidos da palavra. Se pensamos no racismo como o ódio e a vontade de exterminar o outro, sim, nesse sentido, há movimentos extremistas negros que são racistas antibranco, como há movimentos extremistas brancos, como a Ku Klux Klan, nos EUA, que são racistas antinegros. É preciso pensar o racismo como uma questão universal. Por exemplo, há ódio aos judeus em países onde não há judeus. Na Europa, há racismo contra negros em lugares onde não há negros. Então, eu sou favorável a lutar contra todas as formas de racismo, não importa de onde elas vêm, sabendo que a história do racismo foi, em primeiro lugar, a dominação dos negros pelos brancos – ou seja, a história da colonização contra os colonizados. Lutar contra o racismo e o antissemitismo não deve ser também o apanágio de quem é negro ou judeu. Não é preciso ser negro ou judeu para lutar contra o antissemitismo ou o racismo. Tem que haver a mobilização de todo mundo.
Cartaz de apoio ao movimento #MeToo, em Tóquio
Foto: REUTERS/Issei Kato - 28/04/2018
ESP: A senhora aponta também a emergência do identitarismo de extrema-direita, que brande a defesa do nacionalismo e ganhou grande força na França, com dois candidatos, Marine Le Pen e Éric Zemmour, com chances de chegar ao segundo turno das eleições presidenciais em abril. Como analisa esse fenômeno – em particular, a novidade política representada por Zemmour, um judeu de origem argelina?

ER: Estamos numa situação em que nós, na Europa e na França, acordamos velhos demônios. O verdadeiro perigo identitário é esse: a extrema-direita, os populismos, os nacionalismos – é isso que leva às guerras, como a da Ucrânia, porque Putin é de extrema-direita e quer ressuscitar uma Rússia imperial. Éric Zemmour encarna o pior do pior na França. Zemmour é adepto da teoria racista da “grande substituição” e diz defender os valores ditos judaico-cristãos da Europa contra as “invasões islâmicas”. Por trás do seu racismo contra os árabes há também antissemitismo porque todo racista é também antissemita. Análises já feitas mostram como Zemmour repete o discurso de Édouard Drummont (jornalista que protagonizou, durante o caso Dreyfus, alguns dos mais virulentos ataques aos judeus franceses). Zemmour, evidentemente, tem vergonha da judeidade. Ele tenta reabilitar a colaboração do regime de Vichy na França com o nazismo, com a mentira de que o Marechal Pétain salvou os judeus franceses. Até Marine Le Pen abandonou essa tese infame.

ESP: Outro citado no seu livro é Michel Houellebecq. Nos anos 70, a senhora fez trabalhos de crítica literária. Como analisa a obra dele?

ER: Houellebecq faz parte de uma corrente literária muito particular existente na França. Nós a chamamos de literatura de abjeção porque ela tem uma olhar sobre o mundo em que tudo é abjeto, os personagens cultivam a abjeção e um horror de tudo. É uma literatura que se origina da extrema-direita. As primeiras obras de Houellebecq eram muito interessantes porque havia uma espécie de crítica muito violenta da sociedade de consumo e da classe média. Mas, nos três últimos livros, a partir de Submissão, fiquei impressionada com o empobrecimento literário, uma redução da literatura a engajamentos ideológicos. Essa é a pior coisa que pode acontecer à literatura. Com um engajamento político muito forte, não se faz boa literatura – e isso vale também para a extrema-esquerda. Faz-se boa literatura quando se sabe trabalhar com a forma. Eu penso que Houellebecq é cada vez menos um bom escritor. Ele se tornou um ideólogo da extrema-direita, que está perdendo seu talento.

Clipping Elisabeth Roudinesco critica identitarismo e excesso de terminologias que pautam o debate público, por Guilherme Evelin, O Estado de S.Paulo, Aliás, 19 de março de 2022  

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