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Efeito prisma belicoso: arco-íris estoura cume de Arquidiocese de Maringá. |
No dia 06 de abril, comentei um dos assuntos da semana, a saber, a representação que ativistas LGBT fizeram contra o pastor Silas Malafaia, por suposta incitação à violência contra homossexuais, baseada em fala do mesmo sobre a presença de imagens de santos católicos na Parada do Orgulho LGBT de São Paulo de 2011
(Os paus e pedras do antidemocrático e discriminatório pastor Malafaia).
A fala fez parte do programa do pastor, Vitória em Cristo, exibido em julho de 2011, na TV Bandeirantes, e a transcrevo novamente: “Os caras na Parada Gay ridicularizaram símbolos da Igreja Católica, e ninguém fala nada. É para a Igreja Católica entrar de pau em cima desses caras, sabe? Baixar o porrete em cima pra esses caras aprender. É uma vergonha! Protestar, sabe? Pra poder anunciar, botar pra quebrar. Pagar em jornais notícia. Não querem dar? Paga aí vocês da Igreja Católica. Bota notícia pro povo saber. Isso é uma afronta, senhores.”
Comentei então que, pelo expresso, Malafaia não incitou violência física contra ninguém. Ele apenas exortou a Igreja Católica a criticar duramente os organizadores da Parada, pelo uso dos símbolos católicos na avenida, usando expressões idiomáticas como ênfase. Afirmei, então, que os ativistas LGBT, cansados de outros reais discursos homofóbicos do pastor, resolveram levar ao pé da letra a fala citada e, nesses termos, a utilizaram para "fundamentar" a representação contra ele.
Deixei claro que também reconheço Malafaia como homofóbico, considerando sua atuação contra os direitos civis LGBT. Até enumerei os direitos civis que ele nega a esse segmento da população. E disse ainda que era preciso, portanto, também apontá-lo como antidemocrático. Ponderei, contudo, que não se deveria pensar com o fígado e partir para o vale-tudo, como retaliação, porque assim acabava-se por passar a imagem do ativismo como a de gente extremista, que não consegue sequer distinguir uma expressão figurada de uma fala literal, municiando inclusive o adversário.
Depois distribuí a postagem nas redes sociais, como sempre faço, para divulgá-la, e passei a receber ataques de um gay irado aqui no próprio blog, no Facebook e em listas de discussão. Motivo: o simples fato de ter dito a verdade sobre a manipulação grosseira que fizeram da fala de Malafaia a fim de incriminá-lo (já que incitar a violência publicamente é crime).
De acordo com o militantã gay, eu teria escrito o que escrevi porque seria leviana (sic), defensora do Reinaldo Azevedo (pois o jornalista também denunciou a tramoia) e - pior - porque seria homofóbica, logo eu que defendo os direitos homossexuais há décadas. Aliás, foi o próprio, como informou online, quem providenciou para que o procurador recebesse o vídeo, do discurso do Malafaia, peça decisória para levar adiante a representação. Ao que tudo indica, como partícipe direto da armação, o militantã quis garantir na base do grito, a ferro e fogo, o que não pode garantir pela lógica.
Sua reação e a de outros de igual mentalidade me levaram a tentar, como segue, uma análise mais extensa dos descaminhos do atual movimento LGBT em suas estratégias crescentemente reativas e estéreis e cada vez menos justas e democráticas.
Será que agora querem criar sentidos distintos para o léxico de acordo com a orientação sexual do ouvinte!!??
Para dar uma dimensão ainda maior à armação de que foi vítima, em seu programa de 07 de abril, Malafaia, ao se defender das acusações dos ativistas LGBT, apresentou os termos em que a representação foi feita. Ele demonstrou, com base nos documentos do imbróglio em foco, que a frase "...baixar o porrete em cima pra esses caras aprender. É uma vergonha", foi transformada, no documento da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) contra ele, em "...baixar o porrete em cima pra esses caras aprender a vergonha."
Depois, na carta do procurador federal ao outro procurador que agora se ocupa do assunto, a mesma frase virou "...o pastor Silas Malafaia promove explicitamente a violência em face de homossexuais ao afirmar que é preciso baixar o porrete em cima para os caras aprender a ter vergonha."
Por fim, no documento do Procurador Regional dos Direitos do Cidadão (SP), Jefferson Aparecido Dias, atualmente encarregado da representação, a conclusão foi a seguinte:
"As gírias 'entrar de pau' e 'baixar o porrete' têm claro conteúdo homofóbico por incitar a violência contra os homossexuais, desrespeitando seus direitos fundamentais baseados na dignidade da pessoa humana." Não creio que Malafaia tenha forjado os documentos que apresentou na televisão (o vídeo pode ser visto na íntegra
aqui), portanto, considero-os como verídicos e a partir deles teço agora outros comentários.
Antes da defesa de Malafaia em seu programa, apresentando essas provas documentais, eu já havia constatado, como escrevi, que ele falara em sentido figurado ao usar as expressões "entrar de pau" e "baixar o porrete". Com a visualização dos documentos ficou mais claro ainda que, nos dois primeiros, foi transcrita uma das frases ditas pelo pastor, pinçada de seu contexto original e com o final editado para enfatizar a suposta incitação a violência. E, no último documento, embora conste uma maior parte do parágrafo, berço da frase isolada, o procurador atribuiu às expressões idiomáticas "entrar de pau" e "baixar o porrete" claro conteúdo homofóbico, o que é um absurdo linguístico.
Essas expressões, mesmo destacadas do contexto, como são correntes em nosso idioma, já foram dicionarizadas há séculos, ou seja, seu sentido é de consenso da comunidade linguística do português brasileiro, e seu significado é "criticar duramente". Não existe outro, a não ser, dependendo do contexto, "falar mal" de alguém ou de algo.
No caso, Malafaia não precisa recorrer a Chico Buarque de Holanda para dizer que falou metaforicamente ao empregar essas expressões. Basta recorrer a um bom dicionário de expressões idiomáticas, utilizá-lo em sua defesa, e deixar os ridículos, que inventaram esse besteirol, discutir com o pai dos burros. Ainda que os dicionários também estejam sobre o ataque da patrulha politicamente correta, como veremos adiante, sua autoridade como registro dos termos da língua permanece indiscutível entre os racionais. Ou será que agora querem também criar sentidos distintos para o léxico de acordo com a orientação sexual do ouvinte!!??
Experimentando do próprio veneno
Pelo acima exposto, não resta dúvida de que Malafaia foi vítima de uma manobra com o provável intuito de tentar tirá-lo do ar por causa de sua oposição ao PLC 122, projeto contra a homofobia, a ser novamente debatido em breve (já está previsto, para maio, debate de "alto nível" entre ele e Toni Reis, o vitalício presidente da ABGLT). E a essa manobra se seguiu uma campanha mais extensa contra o pastor via abaixo-assinado reivindicando que a AVON parasse de comercializar seus livros.
Se ao menos se tratasse de pedido de retirada de títulos específicos sobre "homossexualismo", como dizem os evangélicos, daquele tipo esquizofrênico do "amo o pecador, mas não o pecado", ainda podia ser, mas reivindicar que a empresa deixe de distribuir qualquer livro de Malafaia, por ele ser homofóbico, é outra extrapolação do ativismo LGBT que não deixa nada a dever a seus adversários evangélicos.
A razão dessa última empreitada do ativismo gay teria sido o lançamento, pela editora do pastor, Central Gospel, do livro A Estratégia - O plano dos homossexuais para transformar a sociedade, o delírio paranóico de um reverendo americano, chamado Louis P. Sheldon, que vê nos movimentos pelos direitos civis homossexuais uma estratégia para erradicar a estrutura moral da sociedade e promover relações promíscuas (sic). Acontece que o tal livro sequer consta do catálogo da AVON. Então decidiram inaugurar o boicote preventivo ou realmente acham possível - democraticamente falando - reivindicar que obras de um determinado autor saiam de circulação devido a ele ser malquisto por algum grupo?
O certo é que, com a armação do ativismo LGBT tirando sua frase totalmente fora de contexto para incriminá-lo, Malafaia experimentou do próprio veneno, pois se trata do mesmo tipo de "edição" que ele e outros pastores evangélicos fazem da Bíblia a fim de alicerçar o preconceito e a discriminação contra a população homossexual.
Editando o preconceito
Esses pastores pinçam trechos da Bíblia, onde há condenação a relacionamentos entre pessoas de mesmo sexo, retiram-nos de seu contexto histórico e os trazem para o século XXI, como se fosse possível para a humanidade de hoje, com algumas exceções, viver sob as regras de conduta impostas aos judeus de milênios atrás. E eles sabem disso, a bem da verdade, pois não adotam as demais prescrições, elencadas nesse conjunto de regras, já que acabariam até presos como criminosos se o fizessem (entre outras coisas, há trechos da Bíblia em defesa da escravidão e da submissão da mulher).
Como já comentei em outros textos sobre o tema dos preconceitos de alguns religiosos contra homossexuais, a Bíblia, e todo o livro religioso milenar, tem uma parte que é universal e atemporal, a que lida com as questões existenciais dos seres humanos de qualquer parte e época, onde se exorta o comprometimento contra os males do espírito ou da mente, entre outros, a ira, o orgulho, a inveja, a ganância e a preguiça.
Tem outra parte, contudo, que é historicamente datada, que fala das regras de conduta que foram impostas aos povos da época em que essas normas foram escritas, normas que obviamente não fazem mais sentido nem para a maioria dos judeus do século XXI. Os que buscam seguir a parte historicamente datada dos chamados livros sagrados das grandes religiões, os que leem seus textos literalmente, são os que já se convencionou chamar de fundamentalistas. É gente que não consegue entender piada, que toma ao pé da letra expressões idiomáticas.
À essa leitura literal dos textos bíblicos, muitos evangélicos que ostentam títulos de psicólogos igualmente incorporam visões sobre a homossexualidade, como doença, desvio, anormalidade, que os conselhos e associações de psiquiatria e psicologia não mais aceitam. Incorporam a visão antiga dos sexólogos que criaram o "homossexual" como uma espécie, um terceiro sexo, com características inerentemente distintas das demais pessoas, apesar de essa visão contradizer a ladainha evangélica da "prática homossexual" como vício tratável. Incorporam a visão do "homossexual" com características inerentemente negativas da mesma forma que eugenistas já atribuíram características específicas a judeus e negros. E, ironicamente, como muitos ativistas de direitos de grupos oprimidos atualmente o fazem, só que de forma positivada.
Nessa mistura de leituras literais de textos bíblicos com visões psicológicas defasadas, os evangélicos vivem também pregando a "cura" para o "homossexualismo" que seria não uma orientação sexual mas sim uma prática reversível como, por exemplo, deixar de fumar. Para manter sua retórica discriminatória, naturalmente é preciso negar o componente inato da homo(sexualidade) e afirmar a sexualidade humana como restrita à heterossexualidade institucional a ser purificada da mácula pecaminosa que o sexo carrega, na visão cristã, através do casamento para fins reprodutivos via família nuclear patriarcal.
Não por menos vivem igualmente pregando que os direitos homossexuais ameaçam a família, o que não deixa de ser engraçado, pois uma das bandeiras dos movimentos LGBT, em todo o mundo, é a legalização das famílias homossexuais. Se os LGBT querem que o Estado reconheça suas uniões como famílias, como podem ser acusados de querer destruir a instituição que estão referendando?
Em resumo, os conservadores religiosos, em particular os evangélicos, atacam os direitos de cidadania das pessoas homossexuais tanto pela via cultural como sociopolítica. No plano cultural, pregam que a homossexualidade é uma abominação aos olhos de Deus e uma doença psicológica para a qual eles têm a cura. No plano sociopolítico, trabalham contra os direitos civis das pessoas homossexuais através de seus tentáculos parlamentares, a chamada bancada evangélica, impedindo a união estável e o casamento civil LGBT bem como outros direitos correlatos.
Como disse sobre Malafaia em meu texto anterior, em pleno século XXI, esses pastores do diabo acham que um segmento da população deve ter deveres como os demais mas não pode ter direitos básicos, não pode ter cidadania.
O politicamente correto é o lado "evangélico" do ativismo LGBT
Razões, portanto, não faltam para pessoas homossexuais terem Malafaia e seus asseclas em péssima conta. Entretanto, a forma como se lida com essa gente faz muita diferença. Até ter sua fala retirada do contexto, por ativistas LGBT, para incriminá-lo, Malafaia não tinha nenhuma prova concreta de que os ativistas gays quisessem calar a boca dos religiosos por falarem o que pensam sobre "homossexualismo" ou de perseguí-los. A verdade é bem ao contrário: são os fundamentalistas cristãos que atacam os LGBT. Agora, contudo, ele tem, no mínimo, uma prova incontestável - diga-se de passagem - da má-fé da militância.
Idem para o boicote à AVON por comercializar livros do pastor. Campanhas de boicote, para serem bem-sucedidas, precisam ter foco preciso, no caso, um título específico contra os LGBT, não algo tão difuso quanto às obras todas do Malafaia por ele ser homofóbico. Nessa segunda abordagem, atenta-se contra a liberdade de expressão do autor que tem todo o direito de escrever, para seu público, sobre Deus e a Bíblia. Fora que, segundo consta, a AVON também comercializa livros de outros pastores e padres, o que, por coerência, obrigaria a uma reivindicação de que todos fossem banidos dos catálogos da empresa, algo obviamente inviável.
A verdade é que prevalece, no chamado ativismo LGBT, a perspectiva politicamente correta, uma degeneração das lutas por igualdade de direitos civis de grupos discriminados, lutas essas nascidas libertárias mas tornadas autoritárias, a partir do final dos anos 70, por uma espécie de mesclagem com ideias marxistas ou congêneres.
Nessa perspectiva, frequentemente os ativistas ultrapassam a linha do bom senso e avançam indubitavelmente contra a liberdade de expressão dos indivíduos que não se encaixam em sua visão de mundo (eu incluso). Desde anúncios comerciais, passando por programas e novelas de televisão, falas de artistas e celebridades em geral, obras literárias, até dicionários, todos são acusados indiscriminadamente de estarem ofendendo LGBT, mulheres, negros ou qualquer outra "minoria" menos evidente.
Isso sem falar nas políticas de cotas para negros, mulheres, entre outros, que, à guisa de reparação por discriminações passadas, estabelecem privilégios que acabam por criar novas desigualdades em vez de eliminar as já existentes (acabam de ser sancionadas as infames cotas raciais em universidades brasileiras).
Só para citar alguns dos últimos exemplos dessa perda de discernimento e de ridículo de parte de ativistas politicamente corretos: no exterior, a Divina Comédia, de Dante Alighieri, foi rotulada de homofóbica, antissemita e islamofóbica, e ameaçada de ostracismo; no começo deste mês, o Conselho Estadual dos Direitos do Negro (Cedine-RJ) resolveu ameaçar com multa comerciante carioca por vender bonecas negras mais barato do que brancas, em afronta à lei da oferta e da procura, e, no fim de fevereiro último, até o dicionário Houaiss foi vítima de ação do Ministério Público Federal sob alegação de que a obra contém referências ‘preconceituosas’ e ‘racistas’ contra ciganos. A Procuradoria disse à época que queria retirar de circulação exemplares do dicionário e exigia a supressão dos termos e o pagamento, pela editora Objetiva e Instituto Antônio Houaiss, de R$ 200 mil de indenização por dano moral coletivo.
De todos os exemplos citados, absurdos sem exceção, o mais impressionante é o do dicionário. Essa gente é tão néscia que não sabe sequer para que serve um dicionário!? Dicionários são meros registros dos termos usados pela população, ou seja, termos consagrados, em suas distintas acepções, pelo uso dos falantes de uma determinada comunidade linguística.
Dicionários não são normativos, não prescrevem regras aos usuários do idioma, não registram termos pejorativos com a intenção de ofender seja a quem for mas simplesmente por que eles existem na língua portuguesa. São apenas arquivos-vivos de nosso idioma (de qualquer um). Me sinto inclusive ridícula dizendo tal coisa, tomada por vergonha alheia diante de tamanha boçalidade.
O pior desses ataques politicamente corretos ao bom senso e à cultura é que eles deixaram de ser realizados apenas pelas chamadas ONG, na base de polêmicas via imprensa, e vêm se alastrando por órgãos governamentais como, nos casos citados, o CEDINE e o Ministério Público Federal.
Em outras palavras, parte-se agora dos protestos, contra supostas ou reais falas ofensivas, a penalizações via multas e até criminalização com base em critérios dignos de constar da distopia
1984 de George Orwell. Ver, sobre o assunto, aliás, o ótimo texto
Senhor Procurador, leia o verbete “dicionário” da jornalista Elaine Brum. Cumpre alertar para o fato de que tais iniciativas abrem um provável leque de injustiças e arbitrariedades sem conta das quais ninguém está a salvo.
Naturalmente, pela abrangência dos ataques politicamente corretos, fica difícil manter a versão dos ativistas de que combatem apenas os discursos de ódio, presentes, por exemplo, nas falas de Malafaia e de outros pastores e conservadores, mas não a liberdade de expressão religiosa ou qualquer outra. Quando se atribuem ofensas a dicionários, afirma-se que expressões idiomáticas têm sentido diferente do dicionarizado para um grupo social em particular, quando se faz boicotes a empresas para que não publiquem livros de um determinado autor, independente do conteúdo das obras, podemos afirmar que, sem dúvida, não é contra discursos de ódio que se está lutando mas sim contra a memória da língua, contra as liberdades individuais e contra a democracia.
O politicamente correto tem a sanha autoritária de querer que a sociedade espelhe sua cartilha, buscando inclusive punir quem não o faz. A mesma sanha que, no caso dos evangélicos, quer tornar a Bíblia, de uma ótica conservadora, a constituição do Brasil.
Os rotos contra os rasgados contra a democracia
Pelo exposto, pode-se afirmar que tanto a maioria dos ativistas LGBT atuais quanto esses pastores evangélicos são farinhas do mesmo saco de gatos autoritários que incluí, entre outros, fundamentalistas religiosos, conservadores em geral, comunistas e socialistas e os politicamente corretos.
Embora falem em nome de uma população de fato estigmatizada e em clara desvantagem social se comparada ao restante da população, os ativistas LGBT do tipo politicamente correto atuam de forma muito parecida com a dos pastores evangélicos, vide a edição da fala de Malafaia, tirada de seu contexto original, não muito diferente da edição feita pelos conservadores de textos da Bíblia. Também ambos os grupos conflitantes buscam se valer do Estado não apenas para repercutir suas ideias mas igualmente para tentar impô-las ao conjunto da sociedade por meio de sanções e projetos de lei esdrúxulos.
Embora ambos os grupos invoquem o Estado de Direito, no que lhes convêm, seu desapreço pelos princípios democráticos é evidente. Os pastores evangélicos invocam a liberdade de expressão para sair veiculando sua mui discutível versão da Bíblia, mas não hesitam em atentar contra um dos princípios básicos da democracia, que é o da igualdade de todos perante a lei (isonomia), ao obstar os direitos civis dos homossexuais.
Também não respeitam outro princípio básico das democracias que é a separação entre assuntos religiosos e de Estado, criando projetos para distribuir Bíblias em escolas públicas e obrigar alunos dessas escolas a rezar em início de aula, atentando contra a liberdade de crença de crianças e adolescentes. Sem falar na realização de cultos até no Congresso Nacional. Essa gente age como se o Estado fosse a casa da mãe joana de Cristo.
Os ativistas LGBT politicamente corretos, por sua vez, frequentemente ultrapassam a tênue fronteira entre o combate cultural aos chamados discursos de ódio e a liberdade de expressão, atentando contra esta última, outro dos pilares da democracia, por meio de patrulhamento das mais diversas expressões culturais, buscando agora até incriminar pessoas sob falsas acusações. É notória sua incapacidade de conviver com a diversidade de opiniões e críticas até da própria comunidade a quem dizem representar.
Essa gente - ambos os acima citados - tem mentalidade de torcida organizada de clube de futebol, de gangue de rua, de tropa de choque, onde prevalece o antagonismo social, o "nós contra eles", a construção de muros em vez de pontes, a consagração do particular em detrimento do universal. Na verdade, ainda que opostos em termos de discurso, são grupos que se retroalimentam com seus respectivos fanatismos e intransigências. Para eles, relativizar as coisas significa abaixar a cabeça para o “inimigo”.
Um prisma adulterado
Uma das mais recentes polêmicas entre essas turmas, ativistas gays x conservadores religiosos, girou em torno da imagem escolhida para ilustrar os folhetos de divulgação da Parada LGBT de Maringá (PR), como se vê no início da postagem. Nela, uma luz incide sobre o lado direito do cume da Arquidiocese de Maringá e o explode do lado direito resultando em um arco-íris.
Se o uso de imagens de santos católicos na Parada de São Paulo já foi controverso, apesar do objetivo de fazer campanha pelo uso da camisinha (não esquecendo que a Igreja é contra a utilização de preservativos), o que dirá dessa imagem de um arco-íris explodindo o cume de uma arquidiocese!? Como explicar tal escolha infeliz, para dizer o mínimo?
O editor do site
Maringay, responsável pela peça,
declarou que não se teve intenção de ofender a Igreja, mas sim de representar
"uma Maringá que cresce, aceita e quer trazer todas as pessoas para ajudar a construir essa cidade, com todo respeito nas relações pessoais". A autora da peça, uma ilustradora e designer, chamada Elisa Riemer, declarou ter se inspirado na capa do famoso álbum de rock do Pink Floyd,
The dark side of the moon, onde um facho de luz incide sobre um dos lados de um triângulo que, como um prisma, o decompõe do outro lado em várias cores.
Acontece que, num efeito de prisma, como aliás, na capa do álbum, o facho de luz incide sobre um dos lados do objeto e simplesmente sai do outro todo colorido. Na imagem da ilustradora, o facho de luz explode o cume da imagem da arquidiocese deixando passar um arco-íris. Essa explosão não condiz com a dita intenção de transmitir uma mensagem de conciliação e respeito mútuo entre todos os habitantes de Maringá. Parece mesmo uma provocação.
E como tal foi sentida por católicos mais tradicionalistas, como o de um site chamado Apostolado Tradição em foco, onde, para se dar uma ideia a quantas anda o acirramento de ânimos nesta estúpida contenda, o editor afirma sobre o assunto, em postagem intitulada
Folder gay ridicularizando catedral de Maringá.
"- Que inveja tenho da Uganda, Irã, Mauritânia, Arábia Saudita, Sudão, Iêmen e mais 156 países em que homossexuais são executos à sangue frio!
Isso aí nem de longe é liberdade de expressão. Isso é desrespeito claro e aberto à nossa fé.
Estão se sentindo bem a vontade para acabar conosco em zombarias, isso porque ainda não houve uma oposição cerrada por parte de muitos de nós e da Igreja."
E termina pedindo para os leitores entrarem em contato com a Arquidiocese de Maringá a fim de solicitar que o departamento jurídico da instituição tome providências para processo e retratação pública dessa ofensa à Igreja de Cristo.
Dado o caráter excessivo da primeira frase, posteriormente o editor a retirou da postagem e fez uma retratação:
"Reconhecendo que a frase inicial não era coerente ao modo sensato e cristão de expressar a indignação pela falta de respeito a um templo religioso, o editor pede desculpas publicamente e a retira do artigo. A frase foi escrita em um momento de muita indignação e não reflete o seu modo de pensar."
Uma olhada nos comentários sobre essa postagem do site católico e outros textos relativos a ela exemplifica bem o que procurei descrever neste meu texto. Embora o site não seja evangélico e sim católico comunga da ideia dos pastores de combater o "homossexualismo" e os direitos civis dos homossexuais. Por outro lado, no que diz respeito à imagem em pauta, o editor não mediu as palavras antes de expressar sua revolta contra o que parece de fato uma provocação gratuita contra sua fé.
No último capítulo dessa novela, o arcebispo de Maringá, dom Anuar Batisti perdoou o editor do Maringay, Luis Modesto, pela imagem provocadora, e disse que pretende criar até uma Pastoral da Diversidade pela igreja paranaense. Trégua em meio à guerra!? Parece que não, pois já se abriu outro foco de discórdia: o Pe. Marcelo Rossi declarou, na revista Quem, desta última semana de abril, que “Casamento entre homossexuais não é de Deus". E claro já provocou reações indignadas desta vez nas falanges LGBT.
Parece que também no hábito de criar factóides ambos os lados se igualam e vão acirrando os ânimos de seus devotos e atentando contra a democracia enquanto airadamente invocam os princípios democráticos naquilo que lhes interessa e os esqueçam naquilo que não lhes convêm.
Pessoalmente, não sei o que mais me espanta: se os textos medievais dos carolas de Cristo, a respeito de tudo mas em particular sobre "homossexualismo", ou se as tentativas politicamente corretas de atribuir a dicionários e expressões idiomáticas supostas ofensas a uns e outros. Como se diz popularmente, parece que bebem.
Por uma luz no fim do túnel dos intolerantes
Já está se tornando uma rotina para mim, em redes sociais e em sites e blogs, comentar que o Brasil está bem servido de autoritários de vários tipos mas falto de democratas e libertários. Não poderia deixar de reiterar essa minha preocupação neste texto ao finalizá-lo. O país está parecendo um campo minado com bombas autoritárias para todos os lados fazendo do simples transitar um ato de coragem pelo medo de pisar em falso.
Anda difícil viver assim. Apesar de não termos uma tradição de liberdade, no sentido institucional, pois nossos governos têm sido mais uma alternância de regimes autoritários do que de democráticos, no plano social paradoxalmente sempre cultivamos, talvez até por hipocrisia mesmo, as relações de tolerância sobretudo religiosa e racial. Hoje, contudo, estamos ameaçados de perder essa que é uma das nossas poucas qualidades em prol de um embate permanente entre grupos sociais radicalizados.
Em todos os segmentos da população, inclusive entre católicos e evangélicos, encontram-se pessoas dispostas a pensar com o cérebro e não com o fígado, dispostas a incluir em vez de excluir, conscientes de que a democracia exige respeito a todos os seus princípios que não podem ser usados simplesmente ao gosto do freguês. Gente que sabe que visões religiosas, de natureza privada, não podem ser empregadas para impedir qualquer segmento da população de ter direitos civis, de ter escolhas. Gente que também, por outro lado, não se melindra por qualquer coisa, não fica vendo pelo em casca de ovo, entende piada e saber rir de si mesma, essa condição fundamental para o cultivo da humildade que nos faz ser mais flexíveis e tolerantes a respeito de tudo. Bons tempos aqueles em que gay significava também "alegre"!!
Sobretudo na luta pelos direitos civis das pessoas homossexuais, urge que as correntes moderadas e democráticas do ativismo e da comunidade LGBT se pronunciem de forma mais veemente contra os abusos das alas fanáticas e intolerantes. Estas não só não beneficiam a população LGBT em nada - suas estratégias têm sido marcadas pelo fracasso e a esterilidade - como prejudicam inclusive as outras demandas justas da pauta homossexual, acirrando a hostilidade da população contra os LGBT. O ativismo politicamente correto é "do contra", contra qualquer um, tornado inimigo por apenas discordar dele, e não a favor dos direitos homossexuais.
Basta ver que, enquanto o deputado Jean Wyllys lançava sua campanha a favor do casamento civil igualitário, sem grandes repercussões, a maioria dos ativistas estava mais preocupada em fazer armações contra Malafaia e em fazer boicote contra a AVON. Vale lembrar, aliás, que o parecer positivo do Supremo Tribunal Federal, sobre a união estável homossexual, só se deu porque ativistas mais à margem do movimento tomaram a iniciativa de pedir análise sobre a constitucionalidade do impedimento desse instituto civil para casais de mesmo sexo, tendo em vista o princípio da isonomia.
O ativismo oficial foi, por muitos anos, contra essa bandeira, por considerá-la uma demanda burguesa (sic), priorizando o polêmico projeto contra a homofobia, projeto sobre o qual nunca houve consenso sequer entre a militância LGBT. Falo do texto do projeto e não da necessidade - que reconheço - de tipificar a homofobia como o crime motivado pelo preconceito contra a homossexualidade real ou presumida da vítima.
A democracia dá direitos mas também impõe deveres e limites. Boicotar uma empresa por vender livros preconceituosos, contra qualquer segmento da população, é do jogo democrático numa sociedade capitalista onde o consumidor tem poder. Boicotar essa empresa por vender livros de simples temática religiosa, pelo autor dos mesmos ser considerado discriminatório, é avançar contra a liberdade de expressão e flertar com a censura, essa senhora que não gosta de sociedades democráticas.
Batalhar para que o Estado laico no Brasil passe a existir de fato, impondo limites aos que sonham com um governo teocrático, é luta das mais democráticas. Mas essa luta não é de mão única: não se pode querer também que o Estado interfira em assuntos religiosos, tentando censurar o que dizem os conservadores em púlpitos e em outros espaços específicos. Dentro do âmbito religioso, são os fiéis de cada fé que devem trabalhar para que as correntes liberais prevaleçam sobre as conservadoras,
como vêm acontecendo em todo o mundo , com base numa analogia com o princípio da isonomia civil, ou seja, todos são iguais aos olhos de Deus porque feitos à sua semelhança, por conseguinte, todos devem ser acolhidos em Igrejas, templos, sinagogas, centros, sem discriminação.
Isso não significa que não se possa entrar com representações contra discursos caluniosos que certos fundamentalistas ou quaisquer de seus devotos façam contra a população LGBT. A maioria desses conservadores costuma estabelecer ligações espúrias entre homossexualidade e pedofilia, acusando, portanto, a população homossexual de crime de estupro de vulnerável. Se é possível apelar para o Ministério Público Federal a fim de acionar editores de um dicionário - o cúmulo do absurdo - por suposto dano moral coletivo, como até agora os xiitas do politicamente correto não usaram dessa arma contra esses religiosos caluniadores? Como se explica sua opção por pedidos de retratação sob acusações falsas quando existem as verdadeiras?
Sempre há diferentes formas, diferentes caminhos para se alcançar um objetivo justo: pela via democrática, com base na ideia poderosa da igualdade perante a lei, que também se projeta sim sobre a igualdade real e está sedimentada no imaginário coletivo; ou pela via autoritária, querendo calar a boca de adversários na base da armação e da censura às falas e produções alheias devido a excesso de melindres e de temperamento irascível. A primeira soma; a segunda divide e diminui a todos.
Está mais do que na hora do ativismo LGBT fazer a escolha certa, retomar o caminho traçado por sua herança libertária e contribuir com a democracia em vez de tentar solapá-la. Só assim o respeito pela diversidade, em todos os sentidos, que tanto se prega da boca para fora, pode de fato se tornar uma realidade.