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Mulheres samurais

no Japão medieval

Quando Deus era mulher:

sociedades mais pacíficas e participativas

Aserá,

a esposa de Deus que foi apagada da História

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Como a divisão sexual do trabalho limita a participação das mulheres em determinadas profissões


Como pensar a problemática de gênero nos grandes empreendimentos?

Quando um grande empreendimento se instala em um município é comum que a geração de emprego e renda seja apresentada como principal benefício para aquela população. Na teoria, espera-se que tais benefícios possam atingir tanto homens quanto mulheres, mas na prática os homens têm sido os principais beneficiários diretos, visto que os perfis profissionais demandados para a construção e operação dos empreendimentos são, em grande parte, em funções tradicionalmente masculinas: pedreiros, soldadores, mecânicos, carpinteiros, eletricistas, armadores e montadores, operadores de equipamentos, auxiliares, assistentes e ajudantes da construção civil e de processos industriais.

Ainda que não sejam impedidas diretamente de ter acesso a estas vagas, a ocupação de mulheres nesse espaços irá, frequentemente, esbarrar numa barreira social: os estereótipos de gênero que definem alguns trabalhos como femininos e outros como masculinos. Nesse sentido, é fundamental a compreensão de que as relações de gênero – que são ao mesmo tempo estruturantes e transversais à totalidade do campo social – são ativas também no trabalho e se exprimem através da divisão sexual do trabalho.

Ao contrário do que possa parecer ao senso comum, esta divisão não é natural e sim modulada histórica e socialmente. Ainda que suas modalidades concretas variem grandemente no tempo e no espaço, a divisão sexual do trabalho segue a linha de demarcação dos espaços masculinos e femininos.

Na prática, isso resulta numa distribuição diferencial de homens e mulheres no mercado de trabalho, com a ausência de um dos sexos em determinados espaços e a sobrerrepresentação de um dos sexos em outros. 

A divisão sexual do trabalho opera a partir de dois princípios organizadores: o princípio de separação, segundo o qual existem trabalhos de homens e trabalhos de mulheres; e o princípio de hierarquização – um trabalho de homem “vale” mais do que um trabalho de mulher. Assim, a divisão sexual do trabalho não irá definir, portanto, apenas o que se faz, mas também o salário e a qualificação de quem faz.

Estes princípios podem ser aplicados graças à ideologia naturalista que reduz o gênero ao sexo biológico, remetendo a um “destino natural da espécie”: as mulheres teriam mais habilidades para determinadas atividades, especialmente aquelas relacionadas à esfera reprodutiva; os homens teriam outro tipo de habilidades, sendo designados prioritariamente à esfera produtiva. É assim que a divisão sexual do trabalho traz o discurso de adequação de feminino e masculino, quando, na realidade, é um conjunto de modalidades diferenciadas de socialização que constrói papéis sociais e “qualidades femininas e masculinas” que sejam coerentes com as atribuições dadas a cada um.

Desde cedo, no âmbito familiar e na educação escolar, e depois mais tarde, na formação no trabalho, a socialização é, em geral, muito orientada pelos papéis tradicionais de gênero, construindo para as mulheres, por exemplo, competências relacionadas ao cuidado, em detrimento de outras habilidades associadas aos homens.

Assim surgem as definições de trabalho “leve” ou “delicado” como um trabalho de mulher, em oposição ao trabalho pesado, realizado por homens. Da mesma forma, são criados os discursos de maior adequação das mulheres ao trabalho doméstico, que resultam em uma divisão desigual deste trabalho entre os sexos.

Como consequência desse processo de socialização, muitas mulheres podem não se reconhecer em funções tradicionalmente masculinas. E, mesmo aquelas que se interessam por estas funções, e/ou possuam as habilidades necessárias para desempenhá-las, precisarão transpor as barreiras sociais dos estereótipos de gênero, expressas em práticas mais ou menos diretas que dificultam o acesso dessas mulheres a estas vagas (como exigências de formação específica ou experiência anterior, discriminações, desincentivo familiar etc.).

A oferta de qualificação para mulheres nessas áreas e a reserva de cotas para elas nas vagas geradas pelos grandes empreendimentos poderiam ser propostas para minimizar, em parte, essa dificuldade de acesso.

No entanto, para além deste tipo de proposta prática, é preciso que a abordagem de gênero seja discutida mais profundamente, como uma questão transversal aos processos de licenciamento e implantação desses empreendimentos.

Desconsiderar esta problemática não é apenas deixar de contribuir para a diminuição das desigualdades entre mulheres e homens no mercado de trabalho. É também reforçar as desigualdades sistemáticas que, de forma mais ampla, mantém estável todo um sistema de gênero onde os homens ocupam uma posição de dominação em relação às mulheres.

Fonte: Socioeconomia.org, por Livia Hoffmann

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Morre Luiz Carlos Maciel, o principal pensador da contracultura no Brasil



Aos 79 anos, morre Luiz Carlos Maciel, jornalista e pensador da contracultura

Principal ensaísta e pensador da contracultura no Brasil, o jornalista, diretor teatral e roteirista Luiz Carlos Maciel morreu na manhã deste sábado (9), aos 79 anos, no hospital Copa D'Or (Copacabana), no Rio de Janeiro, onde estava internado desde 26 de novembro com um quadro de infecção. Maciel sofria, nos últimos meses, com o agravamento da doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC). Segundo a filha do escritor, Lúcia, o boletim médico apontou falência múltipla dos órgãos. Até o momento, não há informações sobre o velório.

O ensaísmo de Maciel articulou a contracultura brasileira com escritores e agitadores internacionais, anti ou extra-acadêmicos, e contribuiu para torná-la mais consciente de si própria, ao informar sobre ideias insurgentes e movimentos de vanguarda dos anos 60 e 70. Seus textos no "Pasquim", "Flor do Mal", "Última Hora" e "Fairplay" influenciavam adeptos do desbunde, esquerdistas menos ortodoxos e jovens aflitos para "cair fora" e encontrar um novo estilo de vida.

O espírito contracultural se manifestou em Maciel ainda na faculdade de Filosofia, em Porto Alegre (RS), onde nasceu em 15 de março de 1938. Aproximou-se do existencialismo de Sartre e do teatro do absurdo, encenando "Esperando Godot", de Samuel Beckett, com Lineu Dias, Mário de Almeida, Paulo José e Paulo César Pereio, do Teatro de Equipe. Autor do ensaio "Sartre, Vida e Obra" (1967), Maciel destacaria a relevância do filósofo francês em sua transição para a vida adulta, por despertá-lo para a liberdade e a responsabilidade.

Confiante na profecia do amigo Glauber Rocha de que a Bahia lideraria uma revolução cultural, ele decidiu mudar-se para Salvador e assumir uma cadeira de professor da Escola de Teatro, em 1959. Na capital baiana, dirigiu uma montagem elogiada da peça cabralina "Morte e Vida Severina" e foi o protagonista do homoerótico "A Cruz na Praça" (1959), o curta desaparecido de Glauber, que lhe confiaria, perto de morrer, os originais da peça "Jango: Uma Tragedya".

Em 1960, com uma bolsa da Fundação Rockefeller, Maciel partiu para o Carnegie Institute of Technology, em Pittsburgh, nos Estados Unidos. O mergulho na vida americana enriqueceu o repertório de autores e tendências comportamentais da futura e legendária coluna "Underground" no semanário humorístico "Pasquim", do qual tornou-se um dos fundadores a convite do jornalista Tarso de Castro. Entre 1969 e 1972, Maciel era o recordista de cartas da redação, como reconheceu o cartunista Jaguar, e passou a ser chamado de "guru da contracultura", um epíteto aceito a contragosto e fortalecido depois do texto "Conselhos a mim mesmo", em que recomendava: "1. Escuta o canto do ser. Ele tem mais de mil vozes. Olha a dança do ser. Ela tem mais de mil passos".

Na "Underground", e também em artigos para a grande imprensa, Maciel apresentou o zen-budismo de Alan Watts, os testes com LSD do escritor americano Ken Kesey, Timothy Leary e os benefícios terapêuticos das experiências psicodélicas, os odiados Hell's Angels, "Eros e Civilização" de Herbert Marcuse, a ação política do poeta beat Allen Ginsberg e o Gay Liberation Front da Califórnia (em confronto com Ginsberg).

Mais: o hipster segundo Norman Mailer, o Living Theatre, o romancista alemão Hermann Hesse, os Panteras Negras, Wilhelm Reich e a revolução sexual, Carlos Castaneda e os ensinamentos do bruxo Don Juan, as interpretações histórico-psicanalíticas de Norman O. Brown. Assimilou gírias dos desbundados e comentou as religiões orientais, o rock, o jazz, a antipsiquiatria, a anti-universidade, a liberação sexual, o feminismo de Yoko Ono, a maconha e o movimento hippie, além de fazer perfis de artistas como Bob Dylan, Jimi Hendrix, Richie Havens, Santana e —entrevistou-a no Rio, junto com Hélio Oiticica— Janis Joplin. Antecipou-se em décadas às campanhas nacionais contra políticas repressivas a usuários de drogas. Era uma florida revolução dentro da revolução cultural do Pasquim no jornalismo brasileiro.

Em oposição ao machismo confesso de outros membros do "Pasquim", ele simpatizava com os gays, os hippies, as feministas e os tropicalistas. Perto de embarcar para o exílio em Londres, em 1969, o compositor Caetano Veloso recebeu de Maciel a tarefa de enviar artigos para o semanário, uma colaboração bem-vinda para quebrar o gelo político em torno do grupo baiano. Gilberto Gil e Jorge Mautner também seriam acolhidos por suas páginas no período. No final de 1970, o Exército prendeu a equipe do humorístico e Maciel teve a grossa cabeleira cortada na Vila Militar.

Cabelos crescidos, ele deixou o "Pasquim" em 1972, pressionado pelo humorista Millôr Fernandes, inimigo e substituto de Tarso na chefia. Antes da despedida, estimulado por Sérgio Cabral, criou e editou o nanico "Flor do Mal", ao lado de Rogério Duarte, Torquato Mendonça e Tite de Lemos. Imerso de vez no jornalismo, comandou a edição brasileira da revista "Rolling Stone", outra experiência de vida curta, e colaborou com veículos como "Correio da Manhã", "Jornal do Brasil", "O Jornal", "Fatos e Fotos" e "Veja". Na Folha, a pedido de Tarso, escreveu para o caderno "Folhetim". Na "Ilustríssima", em 2015 e 2016, publicou seus últimos textos na imprensa.

NOVA CONSCIÊNCIA

Os ensaios contraculturais de Maciel saltaram dos jornais para duas coletâneas populares nos anos 70: "Nova Consciência" (1972) e "A Morte Organizada" (1975), complementados adiante pelo volume "Negócio Seguinte" (1978). A tensão entre cultura e contracultura, poder e antipoder, liberdade e repressão, atravessa o seu pensamento. "Nunca ninguém defendeu teses irracionalistas em estilo tão calmamente lógico", definiu Caetano Veloso.

No livro "Geração em Transe - Memórias do Tempo do Tropicalismo" (1996), ele repassou a convivência com os três artistas que julgava centrais na contracultura brasileira: Glauber, José Celso Martinez Corrêa e Caetano, independentes entre si mas sincronizados em 1967, quando o filme "Terra em Transe", a montagem de "O Rei da Vela" e a canção "Tropicália" traumatizaram as sensibilidades estéticas.

No ciclo contracultural, o ensaísta conviveu e guardava afinidades com uma lista plural de agitadores: Rogério Duarte, Gilberto Gil, Torquato Neto, Plínio Marcos, Jorge Mautner, José Agrippino de Paula, Leila Diniz, Othon Bastos, Antonio Bivar, Leon Hirszman, Helena Ignez, João Ubaldo Ribeiro, Waly Salomão, Jorge Salomão, Jards Macalé e a trupe dos Novos Baianos. Aprofundou, em tempos recentes, a amizade com o diretor Gerald Thomas.

Em suas memórias, Maciel apresenta um aspecto biográfico pouco conhecido: seu trabalho no Laboratório de Interpretação Crítica do Teatro Oficina, um passo para os atores chegarem ao estilo interpretativo de "O Rei da Vela", a peça de Oswald de Andrade que lhe fora indicada pelo diretor e crítico italiano Ruggero Jacobbi e que ele recomendou ao diretor Zé Celso. Em 1968, Maciel se afastou dos palcos, na sequência do duplo veto da censura à sua direção de "Barrela", de Plínio Marcos, no Teatro Jovem, e "As relações naturais", de Qorpo-Santo, no Teatro Glauce Rocha.

Dizia-se polímata ou homem sem especialização. Chegou a dirigir o longa "Society em Baby-Doll", em 1965. Nos anos 80, enraizou-se na atividade de roteirista na Rede Globo, integrando a equipe do "Globo Repórter" e, dentro do núcleo de Daniel Filho, de especiais como "João Gilberto Prado Pereira de Oliveira" (1980), "Baby Gal" (1983) e "Chico & Caetano" (1986). Ainda trabalharia como roteirista na Rede Record, nos anos 2000. Condensou essa experiência no livro "O Poder do Clímax - Fundamentos do Roteiro de Cinema e TV", reeditado este ano pela Ed. Giostri. Aos 77 anos, viu-se pela primeira vez desempregado. No ano passado, foi convidado para ser consultor da série "Os Dias Eram Assim", da Globo, escrita por Angela Chaves e Alessandra Poggi. "O Sol da Liberdade" (Ed. Vieira & Lent), sua última coletânea, revisitou a vanguarda do Tropicalismo, filósofos como Heráclito, Nietzsche e Heidegger, o escritor americano de ficção científica Philip K. Dick e o filme "Matrix" (1999).

Luiz Carlos Maciel, que dirige a peça "Boca Molhada de Paixão Calada", de Leilah Assunção, que estreia no Teatro Igreja.

Limitado pelo enfisema pulmonar, que se agravou este ano, Maciel sentava-se em posição de lótus, no gabinete, e passava os dias ouvindo Duke Ellington, o ídolo maior. Buscou em vão o raro LP "The Duke In São Paulo", um concerto gravado em 1968 no Teatro Municipal, jamais encontrado em seus garimpos no exterior. Sofreu com a perda de um pedaço de sua coleção de discos de jazz na última mudança de apartamento, mas pacificou-se ao lembrar de uma lição de Norman O. Brown: é preciso saber despedir-se para sempre. Nos últimos anos, publicava seus textos no Facebook e continuava a ler e discutir os mestres Heidegger, Sartre, Castaneda e Philip K. Dick.

Descontente com o impeachment de Dilma Rousseff e a ascensão da direita ao poder —com ela, a caretice, sua velha inimiga—, Maciel lamentou, em casa, duas semanas antes da internação hospitalar: "Conseguiram transformar o Brasil no país mais chato do mundo". Em seu último ensaio, "Memórias do Futuro" (inédito), pensado como introdução a um livro imaginário, o ensaísta defendeu um ponto de vista utópico: "A questão que nos confronta, hoje, é a necessidade de novas lembranças do futuro, de informação sobre nosso destino através de um processo semelhante ao que operou nos anos 60".

Filho de Logunedé, no Candomblé, Maciel aceitou os ensinamentos de Jesus e Buda, conheceu a Umbanda e o Santo Daime, absorveu o gnosticismo e preservou cautelas ateístas.

Ele deixa a viúva, Maria Cláudia, atriz, com quem estava casado desde 1976, os filhos Lúcia Maria e Roberto (do primeiro casamento com Yonne), quatro netos, 13 livros e oito gatos batizados com nomes de filósofos pré-socráticos. Arriscava-se à futurologia ao prever a manchete de sua morte: "Morre Luiz Carlos Maciel, o guru da contracultura".

Fonte: Folha de São Paulo, por Cláudio Leal, 09/12/2017

quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Curso de extensão da USP sobre Judith Butler e Michel Foucault

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Judith Butler e Michel Foucault
A Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, por meio do Departamento de Antropologia Social, ofereceu, no segundo semestre deste ano, um curso de extensão, denominado Poder e Performatividade Pública: introdução a Judith Butler e Michel Foucault, que aborda conceitos-chave da teoria de ambos os autores bem como suas correlações. Quem administrou as aulas foi a professora Jacqueline Moraes Teixeira (ver ps vídeos abaixo), e os textos do curso podem ser acessados no google drive clicando aqui.
Jacqueline Moraes Teixeira

Considerando a importância que esses dois autores têm nas discussões sobre gênero, em particular, Judith Butler, recentemente alcunhada, por grupos conservadores, de criadora da "ideologia de gênero", vale a audiência desse curso e a leitura de seus textos. 


Arqueologia do Saber/ Michel Foucault


As Palavras e as Coisas/ Michel Foucault 
Corpo e Dispositivo da Segurança em Michel Foucault  
Governamentalidade e Dispositivo do Poder Pastoral pt.1  
Governamentalidade e Dispositivo do Poder Pastoral pt.2  
História da Sexualidade / Michel Foucault pt.1  
História da Sexualidade / Michel Foucault pt.2  
Problemas de Gênero 1/ Judith Butler 
Problemas de Gênero 2/ Judith Butler  
Relatar a si mesmo / Judith Butler  
Vidas precárias 1 / Judith Butler  
Vidas precárias 2 / Judith Butler  
Performatividade e Teoria da Assembleia / Judith Butler

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Brasileira vence concurso por usar grafeno para fornecer água potável a residências


Brasileira vence concurso mundial por sua pesquisa com carbono


A vida de Nadia Ayad, recém-formada em engenharia de materiais pelo IME (Instituto Militar de Engenharia), mudou bastante em 2016. Além de se formar pela instituição, localizada no Rio de Janeiro, Nadia levou o primeiro lugar no desafio mundial da Sandvik sobre a utilização do grafeno, um material à base de carbono.

Era uma oportunidade de ouro. Com a chamada para o desafio, Nadia se debruçou sobre os estudos que existiam sobre a substância, encarada com entusiasmo pelos cientistas. Derivado do grafite, trata-se de um composto 200 vezes mais resistente que o aço e que ganhou título de melhor condutor térmico e elétrico do mundo. Coube à brasileira, que já possuía experiência em pesquisa, elaborar um projeto para utilizar o material em dispositivos de filtragem e sistemas de dessalinização. O projeto tem como base uma preocupação constante e justificada: como garantir que, no futuro, tenhamos acesso à água potável? Iniciativas como a elaborada pela brasileira podem sugerir um caminho.

Ciência no exterior, ciência no Brasil

Ainda que Nadia já tivesse um pezinho na área de pesquisa desde cedo, graças à carreira acadêmica dos pais de origem sudanesa, a experiência nas universidades onde estudou valeram muito. Depois de iniciar a formação em engenharia no IME, instituição de destaque no Brasil, conseguiu uma bolsa do Ciência Sem Fronteiras para estudar na Inglaterra.

Na Universidade de Manchester, onde passou um ano, teve contato com grandes nomes da área e com os campos de pesquisa pelos quais se interessava.
Na Inglaterra, pude ver onde está a pesquisa hoje. Eles tem muitos recursos e acesso a muitas facilidades para fazer acontecer”, sintetiza Nadia.
Essa experiência no Reino Unido fez com que tivesse acesso também a estágios, como o que realizou na Imperial College London. Por lá, ela pode trabalhar no desenvolvimento de um polímero que substituísse válvulas cardíacas. Era uma forma de entender, em termos mais gerais, a parte mecânica das células, e como os estímulos ao redor — como o aumento no fluxo de sangue, por exemplo — influenciavam o funcionamento do coração.

“Quero melhorar a ciência no Brasil”

Com o estágio na Imperial College na bagagem e uma formação forte em engenharia de materiais, Nadia resolveu, em vez de passar pelo mestrado, fazer diretamente o PhD no exterior, candidatando-se diretamente a universidades dos Estados Unidos e do Reino Unido. Na lista de instituições, estão nomes conhecidos, como o americano MIT (Massachussetts Institute of Technology) e a britânica Universidade de Cambridge.

Quero que, no futuro, as pessoas não precisem ir para fora para ter acesso à pesquisa de ponta

O projeto de Nadia Ayad para o PhD trata do uso de biomateriais para induzir as células-tronco a formar tecidos como os das cartilagens, por exemplo, em versão 3D. Nas universidades estrangeiras, a brasileira encontra mais oportunidades para o tema e também mais recursos.
Mas também vejo que há muitos aspectos positivos no Brasil. A experiência no exterior mostra que dá para aprender com o que se faz lá fora e, ao mesmo tempo, entender o que fazemos de bom aqui”, explica Nadia.
De olho na carreira acadêmica e focada nos potenciais usos de biomateriais dentro da medicina, Nadia pretende trazer mais discussões sobre o seu tema de análise ao Brasil, onde o campo de estudos dá os primeiros passos.
Quero que, no futuro, as pessoas não precisem ir para fora para ter acesso à pesquisa de ponta”.
Fonte: Estudar Fora.org, por Priscila Bellini, 28/12/2016

terça-feira, 21 de novembro de 2017

Radicalismo conservador envenena o Brasil

O discurso de ódio que está envenenando o Brasil
A caça às bruxas de grupos radicais contra artistas, professores, feministas e jornalistas se estende pelo país. Mas as pesquisas dizem que os brasileiros não são mais conservadores

Artistas e feministas fomentam a pedofilia. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o bilionário norte-americano George Soros patrocinam o comunismo. As escolas públicas, a universidade e a maioria dos meios de comunicação estão dominados por uma “patrulha ideológica” de inspiração bolivariana. Até o nazismo foi invenção da esquerda. Bem-vindos ao Brasil, segunda década do século XXI, um país onde um candidato a presidente que faz com que Donald Trump até pareça moderado tem 20% das intenções de voto.

No Brasil de hoje mensagens assim martelam diariamente as redes sociais e mobilizam exaltados como os que tentaram agredir em São Paulo a filósofa feminista Judith Butler, ao grito de “queimem a bruxa”. Neste país sacudido pela corrupção e a crise política, que começa a sair da depressão econômica, é perfeitamente possível que a polícia se apresente em um museu para apreender uma obra. Ou que o curador de uma exposição espere a chegada da PF para conduzi-lo a depor forçado ante uma comissão parlamentar que investiga os maus-tratos à infância.
“Isto era impensável até três anos atrás. Nem na ditadura aconteceu isto.”
Depois de uma vida dedicada a organizar exposições artísticas, Gaudêncio Fidelis, de 53 anos, se viu estigmatizado quase como um delinquente. Seu crime foi organizar em Porto Alegre a exposição QueerMuseu, na qual artistas conhecidos apresentaram obras que convidavam à reflexão sobre o sexo. Nas redes sociais se organizou tal alvoroço durante dias, com o argumento de que era uma apologia à pedofilia e à zoofilia, que o patrocinador, o Banco Santander, ante a ameaça de um boicote de clientes, decidiu fechá-la.
Não conheço outro caso no mundo de uma exposição destas dimensões que tenha sido encerrada”, diz Fidelis.
O calvário do curador da QueerMuseu não terminou com a suspensão da mostra. O senador Magno Malta (PR-ES), pastor evangélico conhecido por suas reações espalhafatosas e posições extremistas, decidiu convocá-lo para depor na CPI que investiga os abusos contra criança. Gaudêncio se recusou em um primeiro momento e entrou com um pedido de habeas corpus no STF que foi parcialmente deferido. Magno Malta emitiu então à Polícia Federal um mandado de condução coercitiva do curador. Gaudêncio se mostrou disposto a comparecer, embora entendesse que, mais que como testemunha, pretendiam levá-lo ao Senado como investigado. Ao mesmo tempo, entrou com um novo pedido de habeas corpus no Supremo para frear o mandado de conduçãocoercitiva. A solicitação foi indeferida na sexta-feira passada pelo ministro Alexandre de Moraes. Portanto, a qualquer momento Gaudêncio espera a chegada da PF para levá-lo à força para Brasília.
O senador Magno Malta recorre a expedientes típicos de terrorismo de Estado como meio de continuar criminalizando a produção artística e os artistas”, denuncia o curador.
Ele também tem palavras muito duras para Alexandre de Moraes, até há alguns meses ministro da Justiça do Governo Michel Temer, por lhe negar o último pedido de habeas corpus: 
A decisão do ministro consolida mais um ato autoritário de um estado de exceção que estamos vivendo e deve ser vista como um sinal de extrema gravidade”.
Fidelis lembra que o próprio Ministério Público de Porto Alegre certificou que a exposição não continha nenhum elemento que incitasse à pedofilia e que até recomendou sua reabertura.

Entre as pessoas chamadas à CPI do Senado também estão o diretor do Museu de Arte Moderna de São Paulo e o artista que protagonizou ali uma performance em que aparecia nu. Foi dias depois do fechamento do QueerMuseu e os grupos ultraconservadores voltaram a organizar um escândalo nas redes, difundindo as imagens de uma menina, que estava entre o público com sua mãe e que tocou no pé do artista. “Pedofilia”, bramaram de novo. O Ministério Público de São Paulo abriu um inquérito e o próprio prefeito da cidade, João Doria (PSDB), se uniu às vozes escandalizadas.

Se não há nenhum fato da atualidade que justifique esse tipo de campanha, os guardiões da moral remontam a muitos anos atrás. Assim aconteceu com Caetano Veloso, de quem se desenterrou um velho episódio para recordar que havia começado um relacionamento com a que depois foi sua esposa, Paula Lavigne, quando ela ainda era menor de idade. “#CaetanoPedofilo” se tornou trending topic. Mas neste caso a Justiça amparou o músico baiano e ordenou que parassem com os ataques.

A atividade de grupos radicais evangélicos e de sua poderosa bancada parlamentar (198 deputados e 4 senadores, segundo o registro do próprio Congresso) para desencadear esse tipo de campanha já vem de muito tempo. São provavelmente os mesmos que fizeram pichações recentes no Rio de Janeiro com o slogan “Bíblia sim, Constituição, não”. Mas o verdadeiramente novo é o aparecimento de um “conservadorismo laico”, como o define Pablo Ortellado, filósofo e professor de Gestão de Políticas Públicas da USP. Porque os principais instigadores da campanha contra o Queermuseu não tinham nada a ver com a religião. O protagonismo, como em muitos outros casos, foi assumido por aquele grupo na faixa dos 20 anos que durante as maciças mobilizações para pedir a destituição da presidenta Dilma Rousseff conseguiu deslumbrar boa parte do país.

Com sua desenvoltura juvenil e seu ar pop, os rapazes do Movimento Brasil Livre(MBL) pareciam representar a cara de um país novo que rejeitava a corrupção e defendia o liberalismo econômico. Da noite para o dia se transformaram em figuras nacionais. Em pouco mais de um ano seu rosto mudou por completo. O que se apresentava como um movimento de regeneração democrática é agora um potente maquinário que explora sua habilidade nas redes para difundir campanhas contra artistas, hostilizar jornalistas e professores apontados como de extrema esquerda ou defender a venda de armas. No intervalo de poucos dias o MBL busca um alvo novo e o repisa sem parar. O mais recente é o jornalista Guga Chacra, da TV Globo, agora também classificada de "extrema esquerda". O repórter é vítima de uma campanha por se atrever a desqualificar -em termos muito parecidos aos empregados pela maioria dos meios de comunicação de todo o mundo-, 20.000 ultradireitistas poloneses que há alguns dias se manifestaram na capital do pais exigindo uma “Europa branca e católica”.

Além de sua milícia de internautas, o MBL conta com alguns apoios de renome. Na política, os prefeitos de São Paulo, João Doria, e de Porto Alegre, Nelson Marchezan Jr., assim como o até há pouco ministro das Cidades, Bruno Araújo, os três do PSDB. No âmbito intelectual, filósofos que se consideram liberais, como Luiz Felipe Pondé. Entre os empresários, o dono da Riachuelo, Flávio Rocha, que se somou aos ataques contra os artistas com um artigo na Folha de S. Paulo no qual afirmava que esse tipo de exposição faz parte de um “plano urdido nas esferas mais sofisticadas do esquerdismo”. O objetivo seria conquistar a “hegemonia cultural como meio de chegar ao comunismo”, uma estratégia diante da qual “Lenin e companhia parecem um tanto ingênuos”, segundo escreveu Rocha em um artigo intitulado O comunista está nu.
Não é algo específico do Brasil”, observa o professor Pablo Ortellado. “Este tipo de guerras culturais está ocorrendo em todo o mundo, sobretudo nos EUA, embora aqui tenha cores próprias”.
 Um desses elementos peculiares é que parte desses grupos, como o MBL, se alimentou das mobilizações pelo impeachment e agora “aproveita os canais de comunicação então criados, sobretudo no Facebook”, explica Ortellado.
A mobilização pelo impeachment foi transversal à sociedade brasileira, só a esquerda ficou à margem. Mas agora, surfando nessa onda, criou-se um novo movimento conservador com um discurso antiestablishment e muito oportunista, porque nem eles mesmos acreditam em muitas das coisas que dizem”.
A pauta inicial, a luta contra a corrupção, foi abandonada “tendo em vista de que o atual governo é tão ou mais corrupto que o anterior”. Então se buscaram temas novos, desde a condenação do Estatuto do Desarmamento às campanhas morais, que estavam completamente ausentes no início de grupos como o MBL e que estão criando um clima envenenado no país.
É extremamente preocupante. Tenho 43 anos e nunca tinha vivido uma coisa assim”, confessa Ortellado. “Nem sequer no final da ditadura se produziu algo parecido. Naquele momento, o povo brasileiro estava unido.”
O estranho é que a intensidade desses escândalos está oferecendo uma imagem enganosa do que na realidade pensa o conjunto dos brasileiros. Porque, apesar desse ruído ensurdecedor, as pesquisas desmentem a impressão de que o país tenha sucumbido a uma onda de ultraconservadorismo. Um estudo do instituto Ideia Big Data, encomendado pelo Movimento Agora! e publicado pelo jornal Valor Econômico, revela que a maioria dos brasileiros, em cifras acima dos 60%, defendem os direitos humanos, inclusive para bandidos, o casamento gay com opção de adotar crianças e o aborto.
Em questões comportamentais, nada indica que os brasileiros tenham se tornado mais conservadores”, reafirma Mauro Paulino, diretor do Datafolha.
Os dados de seu instituto também são claros: os brasileiros que apoiam os direitos dos gays cresceram nos últimos quatro anos de 67% para 74%. Paulino explica que “sempre houve um setor da classe média em posições conservadoras” e que agora “se tornou mais barulhento”.

As pesquisas do Datafolha só detectaram um deslocamento para posições mais conservadoras em um aspecto: segurança. “Aí sim há uma tendência que se alimenta do medo crescente que se instalou em parte da sociedade”, afirma Paulino. Aos quase 60.000 assassinatos ao ano se somam 60% de pessoas que confessam viver em um território sob controle de alguma facção criminosa. Em quatro anos, os que defendem o direito à posse de armas cresceu de forma notória, de 30% a 43%. É esse medo o que impulsiona o sucesso de um candidato extremista como Jair Bolsonaro, que promete pulso firme sem contemplações contra a delinquência.

Causou muito impacto a revelação de que 60% dos potenciais eleitores de Bolsonaro têm menos de 34 anos, segundo os estudos do instituto de opinião. Apesar de que esse dado também deve ser ponderado: nessa mesma faixa etária, Lula continua sendo o preferido, inclusive com uma porcentagem maior (39%) do que a média da população (35%).
“Os jovens de classe média apoiam Bolsonaro, e os pobres, Lula”, conclui Paulino. Diante da imagem de um país muito ideologizado, a maioria dos eleitores se move na verdade “pelo pragmatismo, seja apoiando os que lhe prometem segurança ou em alguém no que acreditam que lhes vai garantir que não perderão direitos sociais”.
Apesar de tudo, a ofensiva ultraconservadora está conseguindo mudar o clima do país e alguns setores se dizem intimidados.
O profundo avanço do fundamentalismo está criando um Brasil completamente diferente”, afirma Gaudêncio Fidelis. “Muita gente está assustada e impressionada.”
Um clima muito carregado no qual, em um ano, os brasileiros deverão escolher novo presidente. O professor Ortellado teme que tudo piore “com uma campanha violenta em um país superpolarizado”.

Fonte: El País, Xosé Hermida, 19/11/2017

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Zumbi: Símbolo da Consciência Negra?

Hoje é feriado em algumas cidades brasileiras devido ao dia da Consciência Negra que tem o personagem Zumbi dos Palmares como referência heroica contra a escravidão dos negros. Entretanto, essa versão é aquela mistificada pelo atual movimento negro, como já abordei aqui em 13 de Maio: Dia da Vitória do Movimento Abolicionista no Brasil  Zumbi foi um resistente contra sua própria escravidão, mas não contra a escravidão em geral, sequer a de seus irmãos de cor. Pelo contrário, mantinha, em Palmares, escravos NEGROS. No texto abaixo, a historiadora Márcia Pinna Raspanti, do site História Hoje, desmistifica Zumbi porque "idealizar o passado só dificulta que compreendamos o presente."

ZUMBI: SÍMBOLO DA CONSCIÊNCIA NEGRA?

por Márcia Pinna Raspanti

Afinal, quem foi Zumbi dos Palmares? Na verdade, sabemos pouquíssimo sobre o líder do mais famoso quilombo do Brasil. Em novembro de 1695, Zumbi foi assassinado em uma emboscada, cerca de um ano após a destruição de Palmares pelo bandeirante Domingos Jorge Velho. Ao longo da História, criaram-se diferentes “biografias” a respeito desse homem, que passou de elemento perigoso a herói nacional.
É impossível escrever uma biografia de Zumbi, pois são muito poucos os traços que os coetâneos deixaram sobre o suposto homem que liderou bravamente o maior quilombo criado nas Américas durante a vigência da escravidão, o quilombo de Palmares”.
Assim começa o livro “Três vezes Zumbi“, de Jean Marcel de Carvalho França e Ricardo Alexandre Ferreira. Os autores nos mostram as diferentes versões do personagem que foram construídas ao longo da história: no período colonial, Palmares era visto como foco de instabilidade ao sistema vigente e Zumbi tinha pouca importância neste contexto; no século XIX, passou-se a enxergar o quilombo como um empecilho à civilização, e Zumbi era retratado como um bravo guerreiro, mas o verdadeiro “herói” era o bandeirante Domingos Jorge Velho, que teria libertado a sociedade deste mal.

No século XX, Zumbi passou a ser considerado o pioneiro nas lutas contra a desigualdade e a opressão, um mártir das minorias. O antropólogo Luis Mott chegou a levantar a hipótese de um Zumbi homossexual, fazendo dele um símbolo de todos aqueles que quebram as regras vigentes. Os autores mostram que nenhuma destas versões é mais ou menos verdadeira, ou seja, todas são fantasiosas, mas refletem um contexto histórico mais amplo.

Como pouco se sabe sobre ele, Zumbi é perfeito para encarnar nossos ideais e medos. Ontem, li uma artigo que falava sobre a suposta desconstrução da historiografia “de direita” da imagem de Zumbi dos Palmares. O fato de alguns historiadores destacarem que havia escravidão no quilombo – como era prática comum também na África – seria uma forma de manchar a imagem do herói da resistência negra e tornar a escravidão, aos nossos olhos, menos cruel. Sempre digo: cuidado com os anacronismos, mesmo os bem intencionados… É inegável, contudo, que alguns autores descobriram o nicho das versões politicamente “incorretas” e, infelizmente, vendem muitos livros ridicularizando a nossa História e seus personagens, distorcendo os fatos e criando sensacionalismo.

Ora, Zumbi não era e não poderia ter sido um líder em busca da libertação do negro. Mesmo porque não havia o conceito de um “negro”, uma identidade cultural que unisse todos os africanos. Eles vinham de etnias e regiões diferentes, muitos eram inimigos e trouxeram suas diferenças para as terras coloniais. É como falar do “europeu” ou do “branco”, como se isso bastasse para criar uma cultura homogênea. Ingleses, franceses, portugueses, espanhóis, holandeses e outros travavam lutas violentas entre si e não se viam como um “povo”. O mesmo se dava com os africanos.

Zumbi não queria acabar com a escravidão e nem libertar o “povo negro” da opressão do branco. Ele apenas lutava pela sua liberdade e do grupo que formou o quilombo. Havia, inclusive, laços de amizade entre os quilombolas e os comerciantes ou outros “brancos” com quem eles conviviam. Havia escravidão dentro do quilombo, havia regras de comportamento e castigos físicos para quem não as cumprisse.

Não podemos esperar de Zumbi atitudes de um homem do século XXI. Nos tempos coloniais, muitos ex-escravos juntavam uma determinada quantia em dinheiro e compravam…escravos! Chica da Silva é outra figura histórica que já sofreu muitos ataques por se comportar como uma mulher de seu tempo. Ela queria apenas ser aceita pela sociedade, livrar-se do preconceito e da miséria. É interessante notar que certas pessoas ficam “decepcionadas” com este comportamento.

Por outro lado, acho que é muito importante que paremos para refletir sobre a escravidão e os seus efeitos na sociedade brasileira. Escolher Zumbi dos Palmares como símbolo deste “Dia da Consciência Negra” não faz dele um herói contemporâneo, mas a sua história é um exemplo de como os escravos resistiram à opressão, cada um à sua maneira. Havia muitas formas de lidar com o cativeiro, nem todas heroicas, mas acredito que sempre sofridas. Também discordo da ideia de que desmistificar personagens históricos seja uma prática negativa: idealizar o passado só dificulta que compreendamos o presente.

Fonte:  História Hoje, 20/11/2014

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

O espantalho da "ideologia de gênero" e a passagem de Judith Butler pelo Brasil


Ideologia de gênero é um espantalho conservador, feito de tudo que os conservadores não gostam,  criado para espantar os pais das crianças quanto à educação sexual nas escolas e à educação igualitária para meninas e meninos. Ironicamente, os ideólogos de gênero são os próprios conservadores, pois são eles que educam as crianças a partir de estereótipos de gênero (modelitos rígidos e únicos de mulher e de homem). Gênero, como a autora do texto abaixo, Mariana Seifert Bazzo, identifica, é: 
"... a categoria analítica que surge a partir da década de 1960 (de fato já em meados da década de 1950), nos estudos de História, Sociologia, Psicologia Social, Direito, entre outros, como forma justamente de diferenciar o sexo biológico dos papéis sociais de homens e mulheres.
De forma geral, gênero é o termo que aponta o comportamento induzido nas crianças pela chamada educação diferenciada, como o nome já diz, educação que adestra meninas e meninos a partir da divisão arbitrária das características humanas em femininas e masculinas. Posteriormente, gênero se torna também parte do comportamento que as pessoas apresentam em sociedade a partir dos modelitos de mulher e de homem que aprenderam.

De forma específica, muita gente já teorizou sobre gênero, incluindo Judith Butler, mas o diferencial dela e dos teóricos queer, em relação à visão anterior, é que, para eles, não apenas gênero (o modelito de homem e de mulher criado por nossa sociedade) mas também o sexo passa a ser visto como construção social. E não se trata de sexo no sentido da visão que cada cultura ou a nossa própria cultura, através do tempo, teve e tem sobre sexo e sexualidade, mas sim sexo no sentido biológico do termo. Como coloca a autora do texto abaixo:
(Na teoria queer) critica-se a anterior diferenciação (sexo # gênero) e concebem-se ambos – sexo e gênero – como construções sociais, discursivas, históricas, alteráveis. Isto pôs em discussão a determinação biológica, genética e anatômica de homens e mulheres. 
Exatamente. Embora negue, com muito discurso pernóstico, Butler e os seus rejeitam sim a materialidade dimórfica da espécie humana. Fora que também, embora se apresente tão crítica da construção social de gênero, não quer abandoná-lo e chega a afirmar que não dá para se viver sem papeis de gênero (sic). No fim das contas, é paradoxalmente conservadora. Essa visão criou a mitologia que quer nos fazer acreditar na existência de mulheres do sexo masculino e homens do sexo feminino e que muito contribuiu para a criação do espantalho conservador da "ideologia de gênero". 

Encontrei o texto abaixo no site conservador Gazeta do Povo, da promotora de justiça Mariana Seifert Bazzo*, que resolvi reproduzir (editado para fins de atualização) porque foi a única abordagem conservadora minimamente honesta que li sobre a conturbada passagem de Butler pelo Brasil. Conturbada porque os conservadores agora deram para querer impedir exposições de arte e a presença de intelectuais em nosso país, um absurdo sem tamanho.


"Ideologia de Gênero'", ensino de gênero e violência contra mulheres e pessoas LGBT
A desigualdade de gênero é uma realidade, mas não é justificativa para atitudes que venham, com base em imposições ideológicas, a ferir direitos daqueles que sequer podem se defender

Com a notícia da vinda da filósofa norte-americana Judith Butler ao Brasil, para palestrar em evento no Sesc Pompeia (dias 7 e 9 de novembro), manifestações públicas de repúdio identificaram a Teoria Queer, criada por Butler, com (o que os conservadores chamam de) "ideologia de gênero" – combatida (por conservadores) nos planos nacionais, estaduais e municipais de educação no país. Essas manifestações partiram de grupos que colocam Butler como porta-voz de ideias que ferem direitos de crianças e adolescentes, fazendo alguns conceitos essenciais se perderem no meio do caminho, o que, não raramente, permite certa falta de senso crítico de quem opta por essa ou aquela posição. 

Primeiramente, é importante ressaltar que "ideologia de gênero" não se confunde com estudos ou ensino de gênero. De fato, a categoria analítica “gênero” surge a partir da década de 1960, nos estudos da História, Sociologia, Psicologia Social, Direito, entre outros, como forma justamente de diferenciar o sexo biológico daquilo que seriam os papéis sociais de homens e mulheres. A partir daí, fundamentalmente, começou a se revelar o que era ser homem e ser mulher na sociedade, em cada época da civilização, e como eram necessárias determinadas transformações sociais para que os dois tipos de sujeitos atingissem igualdade de direitos. 

A importância da categoria gênero a transformou em um termo utilizado por diversas legislações nacionais e internacionais, e isso muito anteriormente à discussão sobre os planos de educação no Brasil. Por exemplo, a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) prevê, em seu art. 8º, VIII e IX, a responsabilidade conjunta entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios na implementação de ações que tenham como diretrizes “programas educacionais com a perspectiva de gênero (...); o destaque, nos currículos escolares à equidade de gênero” (destaque nosso). 

A Teoria Queer, uma entre as diversas teorias sobre gênero hoje existentes, acabou por se projetar com a seguinte marca (explicada aqui de maneira absolutamente simplista): “o sexo como um efeito do gênero”, e não o contrário. Critica-se a anterior diferenciação e concebem-se ambos – sexo e gênero – como construções sociais, discursivas, históricas, alteráveis. Isto pôs em discussão a determinação biológica, genética e anatômica de homens e mulheres. Movimentos em todo o mundo entenderam que o uso dessa teoria, ou o que foi compreendido dela, pode vir a comprometer direitos de crianças, uma vez que a elas estaria sendo imposta, ideologicamente, a não diferenciação entre os sexos. 

A desigualdade de gênero é uma realidade. Os altos índices de violências contra mulheres e integrantes da comunidade LGBT são indiscutíveis, principalmente quando praticadas no âmbito doméstico e familiar, o que fortalece o papel da escola na prevenção desses crimes. Por esse motivo, legislações destinadas à proteção de direitos humanos obrigam a inclusão, nos currículos escolares, de temas de igualdade de gênero entre homens e mulheres e da não discriminação em virtude de orientação sexual ou identidade de gênero (comunidade LGBT). Isso não deve significar a imposição de uma "ideologia de gênero", supostamente baseada na complexa Teoria Queer, e a desconsideração do sexo biológico desde a certidão de nascimento de bebês. Também não deve provocar explicações incorretas a determinadas faixas etárias, gerando mal-estar psicológico em crianças. Finalmente, não é justificativa para atitudes – de pais, professores e outros profissionais que atuam na área da infância e juventude – que venham, com base em imposições ideológicas, a ferir direitos daqueles que ainda sequer podem se defender.

O debate deve ficar em aberto. A filósofa Judith Butler tem direito de proferir suas palestras em ambientes acadêmicos, sem censura ao seu pensamento. Pais, professores, médicos e outros profissionais da saúde, operadores do Direito, todos da sociedade devem estar atentos à boa resolução dessa equação: não inibir o ensino com a perspectiva de igualdade de gênero e respeito às diversidades de grupos minoritários e oprimidos, mas não permitir que determinados discursos sirvam como fundamento para violações de direitos fundamentais de crianças e adolescentes.

*Promotora de Justiça com atuação no Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Proteção aos Direitos Humanos Ministério Público do Paraná

Fonte: Gazeta do Povo,  02/11/2017

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Um país onde Alexandre Frota é modelo conservador merece estudo


Um país onde Alexandre Frota é modelo conservador merece estudo


É uma triste verdade: Henry David Thoreau (1817-1862) é cada vez mais o meu herói. A verdade é triste porque nunca fui um libertário. Mas o contexto determina o meu texto: como lidar com o fanatismo e a imbecilidade que esquerda e direita vomitam todos os dias?

Pela fuga. Pelo isolamento. Pela vida no bosque, onde os animais são mais civilizados do que a espécie humana em geral.

Nesta semana, em duas revistas diferentes ("The Economist" e "The Spectator"), contemplei o estado a que chegaram as universidades anglo-saxônicas, tomadas de assalto por meninos semiletrados que gostam de censurar as opiniões que consideram ofensivas.

O problema é que essas crianças têm uma saúde mental assaz frágil. Resultado: tudo é ofensivo para elas. Até a chuva que cai, imagino eu. Um mundo de silêncio seria o ideal —o silêncio de um cemitério, embora a palavra "cemitério", pela sua evocação da morte, possa ser um insulto desnecessário para quem acredita na eternidade da juventude. As minhas desculpas antecipadas.

A "The Economist", mais otimista, diz que o mundo não está perdido: nas universidades, sempre houve batalhas ideológicas contra ideias polêmicas. Certo. Mas a mesma revista informa que 20% dos estudantes universitários defendem a violência contra palestrantes controversos.

Mais: em Yale, 42% dos estudantes (e 71% dos estudantes conservadores) preferem não emitir opinião sobre política, raça, religião ou gênero.

Só a Universidade de Chicago se salva do dilúvio. Por quê? Porque decidiu aprovar uma declaração onde se recusa a proteger os estudantes de ideias ou opiniões que os mesmos considerem ofensivas. Para Chicago, não é permitido cancelar palestras ou criar "espaços seguros" para que as crianças se sintam, enfim, seguras.

Sem surpresa, não há praticamente incidentes na Universidade de Chicago, prova definitiva de que a covardia das universidades é a razão primeira para haver problemas.

Na "The Spectator", a escritora Lionel Shriver, uma progressista "old school", relembra outros números: 38% dos britânicos e 70% dos alemães defendem que o governo deve proibir discursos ofensivos para as minorias. A típica receita autoritária: por favor, Estado, exerce a tua censura para que eu não conviva com aquilo de que não gosto.

O Estado agradece —e cresce em autoridade e poder. Um clássico.

Tudo isso são loucuras esquerdistas? Seriam, sim, se uma certa direita não fosse igual.

Nas últimas semanas, tenho acompanhado as polêmicas "artísticas" brasileiras. Confesso que rio. Muito e alto. Um país onde Alexandre Frota é uma referência ideológica "conservadora" deveria ser caso de estudo internacional. 😂

Mas uma parte da direita brasileira também tem o seu interesse. Deixemos a questão da "pedofilia" para psiquiatras: não é preciso ter lido Freud para perceber que aqueles que veem "pedofilia" quando uma criança toca no braço de um artista pelado em pleno museu estão a falar mais dos seus fantasmas do que da realidade propriamente dita.

O que me impressionou foi ver essa direita a pedir mais Estado, mais intervenção do Estado, mais censura do Estado —e não, como seria de esperar, mais responsabilidade individual, ou familiar, na forma como se educam os menores.

Se isso é a direita, eu prefiro a esquerda. Entre a cópia e o original, eu sempre preferi o original.

Corrijo: eu não prefiro ninguém. Só o bosque, embora os meus amigos aconselhem prudência. Longe da civilização, eu não duraria 24 horas.

Talvez eles tenham razão. E eu, suspirando por ar limpo e alguma companhia, sinto uma estranha admiração pelos pensadores utópicos do século 19.

Com uma diferença: imagino uma comunidade de adultos, e não de autômatos, onde as pessoas discutem livremente; usam as palavras sem medo das patrulhas; educam os filhos sem mendigar o chicote do Estado; e até, Deus me livre, flertam com mulheres (ou homens) sem temerem acusações de machismo, assédio ou violência psicológica.

Seria uma espécie de reserva natural, digamos, onde se entra e de onde se sai voluntariamente —e longe desse berçário onde esquerdas e direitas gritam e fazem birra na mesma linguagem infantil.

Com sorte, as patrulhas acabariam por se destruir mutuamente —e nós, os sobreviventes, poderíamos sair da reserva e fazer o que mais interessa: começar de novo.

Fonte: Folha de São Paulo, 24/10/2017, por João Pereira Coutinho

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Em 2016, apenas 32% dos brasileiros diziam preferir a democracia a qualquer outra forma de governo


Abaixo explicado porque os brasileiros ou querem o Lula ou o Bolsonaro. Inclusive alguns, se não tiverem o Lula, ficam com Boçalnaro. Tanto faz, desde que seja um populista autoritário e machista que os espelhe.

Aquela famosa frase que, segundo consta, o Churchill proferiu, em um de seus discursos, de que "a democracia é o pior dos regimes com exceção de todos os outros" não entra na cabeça dos brasileiros, apesar de todos os desastrosos períodos autoritários que já vivemos. Agora, querem outro.

O autoritarismo do brasileiro

A democracia tem recuado em todo o mundo nos últimos dez anos. O apoio à democracia também (na imagem, manifestante pede intervenção militar em São Paulo). O Brasil se destaca em ambas as tendências. Entender as razões é essencial para avaliar os riscos que nos assombram.

O recuo democrático no Brasil é detectado nos principais rankings globais. A Economist Intelligence Unit (EIU) avalia pluralismo eleitoral, participação e cultura políticas, liberdades civis e funcionamento do governo. Trata-se de uma medida objetiva de como a democracia é exercida.

O índice atribuído pela EIU ao Brasil caiu 6,5% (de 7,38 para 6,9) entre 2006 e 2016. A queda global foi de 1,8% (de 5,62 para 5,53). Na América Latina, 0,6% (de 6,37 para 6,33). Isso significa que o recuo nas práticas democráticas foi maior aqui que entre nossos vizinhos ou no mundo.

A queda no apoio à democracia no Brasil é ainda mais acentuada. O relatório anual Latinobarômetro, que avalia o sentimento democrático no continente, detectou que só na Guatemala a democracia é menos valorizada que no Brasil.
Apenas 32% dos brasileiros consideravam em 2016 a democracia preferível a qualquer outra forma de governo, ante uma média latino-americana de 54%. O recuo no indicador foi de 22 pontos percentuais em um ano (eram 54% em 2015) – e 18 pontos em 20 anos (50% em 1997).
Os resultados da pesquisa realizada em 38 países, divulgada há uma semana pelo Pew Research Center, corroboram esse sentimento:
– 67% dos brasileiros estão insatisfeitos com o funcionamento do regime democrático (índice próximo da mediana latino-americana);
– 27% apoiariam um “líder forte sem interferência parlamentar” (dez pontos acima da mediana latino-americana);
– 38% apoiariam o governo militar (oito pontos acima da mediana latino-americana), apoio ainda maior entre quem tem nível educacional mais baixo (45%);
– opções não-democráticas atraem 23% dos brasileiros, enquanto apenas 21% estão comprometidos com a democracia (dados compatíveis com o resto do continente).
Há, por fim, o crescimento nas pesquisas para a eleição presidencial de um candidato que não poupa elogios ao regime militar e chegou a elogiar um torturador na votação do impeachment. De acordo com a última sondagem do Datafolha, Jair Bolsonaro tem em torno de 16% das intenções de voto, em segundo lugar na preferência popular.

O apoio a Bolsonaro ainda está concentrado nas classes mais escolarizadas (nesse grupo, sobe para 24%) e de maior renda (para 29%). Seu discurso autoritário ainda não penetrou na população mais permeável a ele. Isso sugere que ainda tem amplo terreno para crescimento. (Bolsonaro, é importante destacar, não manifestou em nenhum momento intenção de ruptura na democracia).

As razões para a insatisfação do brasileiro com a democracia são evidentes. Dissemina-se, não sem razão, a percepção de que o Congresso é dominado por corruptos e de que as instituições têm sido incapazes de puni-los.

Decisões recentes do Parlamento e do Supremo Tribunal Federal (STF) só fazem aumentar essa percepção. Há a sensação de que a Operação Lava Jato sofreu um baque ao atingir poderosos como o senador Aécio Neves ou o presidente Michel Temer, ambos flagrados em conversas escandalosas com o delator e criminoso Joesley Batista. A saída autoritária se torna tentadora.

É possível argumentar que a população não compreende o funcionamento das instituições num Estado de Direito, nem a essência da democracia. Como argumentam os cientistas políticos Larry Bartels e Christopher Achen no livro Democracy for realists (sobre o qual escrevi aqui), a principal qualidade do regime democrático não é tomar sempre as melhores decisões – mas manter a paz interna, com o respeito às regras do jogo político.

É notável que, até o momento, as instituições brasileiras tenham funcionado dentro dessas regras, sem ruptura. Parlamento e STF tomaram diversas decisões criticáveis, boa parte movidas por interesses espúrios, outras sem nenhuma base legal. Mas todas foram legítimas do ponto de vista jurídico, pois quem as tomou tinha mandato ou posição institucional para isso.

A noção de que um líder autoritário ou militar tomaria decisões melhores não passa de um mito (para quem só conhece a palavra “mito” do uso distorcido na gíria das redes sociais, minha sugestão é olhar o significado no dicionário). A corrupção não é menor nas Forças Armadas, como revelou uma reportagem recente na revista Época. Se parecia menor no regime militar – e mesmo sobre isso há dúvida –, é por que a censura impedia a investigação e a publicação das informações na imprensa.

O crescente sentimento autoritário do brasileiro deve ser visto com preocupação. Um candidato como Bolsonaro tem o direito de ter a opinião que quiser sobre o regime militar ou sobre a história recente do Brasil. Se eleito, precisará governar dentro das regras democráticas.

Os resultados da democracia podem ser insatisfatórios, lentos ou decepcionantes. Ela é difícil como a vida. Mas não há mágica nem atalhos para qualquer mudança. A liberdade é sempre melhor que as alternativas – medo e terror para opiniões discordantes, tortura ou guerra civil. O apoio ao autoritarismo no Brasil (e na América Latina) é só mais uma prova de por que somos tão tacanhos e tão atrasados.

Fonte: G1, 23/10/2017, por Hélio Gurovitz

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Tropicália, 50 anos: um divisor de águas na cultura brasileira


TROPICÁLIA, 50 ANOS:
A História do Movimento que Marcou a Cultura Nacional

O movimento artístico que ficou conhecido como Tropicália completa 50 anos. A apresentação das músicas Alegria, Alegria e Domingo no Parque, em 21 de outubro, durante a final do III Festival Record em 1967, marcaram o início de uma série de experimentações que permitiriam uma nova forma de compreender a música brasileira. Essas inovações estéticas continuam nos discos seguintes dos músicos Gilberto Gil e Caetano Veloso e no LP coletivo Tropicália ou Panis Et Circencis, o disco manifesto lançados no ano seguinte às apresentações no Festival da Record.

O clima tropicalista contagiou o Brasil e a efervescência se estendeu até dezembro de 1968, quando Caetano e Gil foram presos e, meses depois, obrigados a se exilar do país. A ditadura militar (1964-1985) acabava de iniciar a fase mais dura com o decreto do AI-5. A repressão não deixou passar o trabalho dos tropicalistas que, naquele momento, tinham sua máxima expressão em um programa semanal exibido na TV Tupi, emissora extinta no ano de 1980.

O pesquisador Frederico Coelho, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio) e especialista em Tropicália, relembra o que foi o movimento e a obra:


TROPICÁLIA OU PANIS ET CIRCENCIS

Após a explosão das músicas Alegria, Alegria e Domingo no Parqueno Festival da Canção de 1967, diversos artistas se reuniram, capitaneados por Caetano Veloso e Gilberto Gil, para a concepção de Tropicália ou Panis Et Circencis, disco-manifesto coletivo gravado em São Paulo, no decorrer do mês de maio de 1968.

São 12 faixas de canções inéditas de Gil, Caetano, Torquato Neto, Capinan e Tom Zé. Marco da Música Popular Brasileira, o disco traz uma capa icônica que, apesar de provocar análises, não teve um conceito definido ao ser elaborada. A foto foi feita por Olivier Perroy, a convite do arranjador Rogério Duprat, e nela, como em uma foto de família, os tropicalistas se posicionam à frente de um vitral que fazia parte do jardim de inverno da casa do próprio fotógrafo, em São Paulo.


Paulo Roberto Pires – Professor, pesquisador, escritor. Organizador dos dois volumes de Torquatália sobre Torquato Neto.

Capa
Para a sessão de fotos que originou a capa, Rita Lee e Guilherme Araújo deram palpites sobre as roupas que todos usaram. O curto prazo para finalizar a o disco impediu que Nara Leão e Capinan fossem até a capital paulista para participar do registro, por isso, eles aparecem em retratos nas mãos de Caetano Veloso e Gilberto Gil, respectivamente.



Contra-capa

A icônica capa de Tropicália ou Panis Et Circencis é uma das mais reconhecidas da MPB, mas na época do lançamento do disco-manifesto, a contracapa também passou por um trabalho minucioso, resultado da preocupação de Caetano Veloso e Torquato Neto. De acordo com Torquato, a contracapa de um álbum é uma forma de valorizar o trabalho apresentado pelo artista. “O disco será comentado e elogiado (naturalmente) faixa por faixa, música por música [...]. Com isso o público terá as informações que deseja, os cronistas idem e o artista, certamente, se sentirá melhor promovido”, afirmou, em coluna publicada em maio de 1967.

Sobre as faixas do disco, Torquato ressaltou, em entrevista à Rádio Cultura em 1968, que havia ali um trabalho único, que valorizava a diversidade cultural brasileira e regionalismos. "A gente não teria condição de ter feito, de estar fazendo um trabalho assim, se a gente não tivesse antes trabalhado com folclore, trabalhado com tudo. Eu acho que enfim, não estamos mais folclorizando o folclore", refletiu.

O texto da contracapa do álbum foi escrito por Caetano, com ajuda de Torquato, e é uma espécie de roteiro de um filme onde os personagens são os próprios tropicalistas. De acordo com Carlos Calado, autor de Tropicália: A história de uma revolução musical, o enredo continha doses de ironia e deboche que às vezes beiram o nonsense.

Entre as várias falas dos personagens, Torquato gozava os puristas, referindo-se ao refrão de ‘Geleia Geral’ (‘ será que o Câmara Cascudo vai pensar que nós estamos querendo dizer que bumba meu boi e iê-iê-iê são a mesma dança?’); Duprat dessacralizava o lado artístico da música (‘como receberão a notícia de que um disco é feito pra vender?’); e Caetano fazia piada com a canção de Vicente Celestino (‘vocês são contra ou a favor do transplante de coração materno?’).

A contracapa do disco tem também uma homenagem a João Gilberto, grande nome da Bossa Nova que era ídolo dos tropicalistas. Como paráfrase a um recado que o músico havia enviado a Caetano (“diga que vou ficar olhando pra ele”), o roteiro se encerra com o personagem chamado João falando “Diga que estou daqui olhando pra eles”.

A contracapa do Manifesto em forma de roteiro cinematográfico. 



Música (Compositores) Intérpretes 

Lado A

1) Miserere Nobis (Capinam, Gilberto Gil) Gil
2) Coração Materno (Vicente Celestino) Caetano
3) Panis et Circencis (Caetano Veloso, Gilberto Gil) Mutantes
4) Lindonéia (Caetano Veloso) Nara
5) Parque Industrial (Tom Zé) Gil, Caetano, Gal, Mutantes e Tom Zé
6) Geléia Geral (Gilberto Gil, Torquato Neto) Gil

Lado B

1) Baby (Caetano Veloso) Gal e Caetano
2) Três Caravelas (Las Tres Carabelas) (Algueró Jr., Moreau. Versão: João de Barro) Caetano e Gil
3) Enquanto Seu Lobo Não Vem (Caetano Veloso) Caetano, Gil e Rita Lee
4) Mamãe, Coragem (Caetano Veloso, Torquato Neto) Gal
5) Bat Macumba (Caetano Veloso, Gilberto Gil) Caetano, Gal, Gil e Mutantes
6) Hino ao Senhor do Bonfim (Artur de Sales, João Antônio Wanderley) Caetano, Gal, Gil e Mutantes

Fontes: Patricia Finotti, Agência Brasil, 21/10/2017

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

50 Anos de Tropicália

Reunião tropicalista. No alto, Caetano, Torquato Neto e Rita Lee; no meio, Tom Zé,
Glauber Rocha, Rogério Duprat e Gil - Arte de André Melo
Tropicália comemora 50 anos: relembre
Movimento rompeu os limites entre vanguarda e tradição, samba e iê-iê-iê, Brasil profundo e superficial

RIO - Quando Caetano Veloso apresentou “Alegria, alegria” e Gilberto Gil cantou “Domingo no parque” no III Festival de Música Popular Brasileira, estavam quebrados para sempre os limites entre vanguarda e tradição, entre samba e iê-iê-iê, entre o Brasil profundo e o superficial. Ainda não existia um nome para o que se viu ali, mas hoje sabemos que aquele festival — cuja grande final completa 50 anos no próximo dia 21 — é um dos principais marcos do nascimento da Tropicália.

Até ali, o cenário da música brasileira era assim:

1) Havia a vanguarda da bossa nova — percebida tanto no choque da gravação de João Gilberto para “Chega de saudade” quanto em sua aceitação internacional (o concerto do Carnegie Hall em 1962, o disco de Sinatra cantando Jobim em 1967, a experiência americana de Sérgio Mendes a partir de 1964).

2) Havia as tradições do samba de morro e da música nordestina, vistos como portadores das verdades de um Brasil profundo.

3) Havia a invasão anglosaxônica do rock, capitaneada pelos Beatles, aportando no Brasil pelos subúrbios como iê-iê-iê.

4) E havia jovens de classe média nos palcos dos festivais assumindo a canção como o território privilegiado para pensar seu tempo — um tempo de profundas transformações. Na política, a ditadura instaurada em 1964 e a polarização entre a esquerda e a direita. Nos costumes, a liberação sexual, os questionamentos à sociedade de consumo.

Aí veio aquela noite em 67. E, no ano seguinte, o álbum-manifesto “Tropicália ou panis et circensis” chegaria para explicar — ou para confundir, como escreveu Tom Zé anos e Chacrinha incorporou em seu programa de TV, que virou modelo da estética tropicalista, num jogo de espelhos típico do movimento.

Na capa do disco, além de Caetano, Gil e Tom Zé, estavam, em carne e osso, Gal Costa, Mutantes, Torquato Neto e Rogério Duprat. Representados em retratos, apareciam Nara Leão e Capinam. O álbum era um desfile alegórico e violento das cores e dores de um Brasil em convulsão: sofisticado e kitsch, litorâneo e interiorano. O painel incluía ainda o cantor Vicente Celestino (“Coração materno”) e o artista plástico Rubens Gerchman (sua tela “Lindoneia” inspirou a canção homônima), jornais populares e Mangueira, “Hino ao Senhor do Bonfim” e “aquela canção do Roberto”, Caribe e concretismo.

Os antecedentes do tropicalismo remontam a Oswald de Andrade (e ao “Rei da vela”, relido pelo Teatro Oficina), ao Cinema Novo, a Hélio Oiticica (sua obra “Tropicália” batizou o movimento), a João Gilberto. E as ondas que se espalharam a partir dele atingiram de volta não só a canção brasileira, mas o cinema, as artes visuais, o teatro — e até a moda e a publicidade. Mas, num país de ânimos quentes, marcado por tensões políticas agravadas pela repressão oficial, a repercussão não foi pacífica. Provocaram reações episódios como o discurso em que Caetano confrontou a plateia do Festival Internacional da Canção de 1968, o tom desafiador do espetáculo que eles montaram na Boate Sucata e a cena do programa “Divino maravilhoso” com Caetano cantando “Boas festas” enquanto apontava uma arma para a cabeça.

Por um lado, parte da esquerda via o grupo como alienado. Por outro, a direita se sentia ameaçada pelo que não entendia ali. Caetano e Gil acabaram na cadeia e, em seguida, no exílio. Para muitos, a aventura tropicalista terminava ali, sob a repressão. Mas os ecos dela se fazem presentes até hoje na música — de forma direta ou indireta — em exemplos como Nação Zumbi e BaianaSystem. Além disso, o pensamento sobre o Brasil hoje é em grande medida influenciado pela leitura que os tropicalistas estabeleceram então.

ARTIGOS E FRAGMENTOS

Essa história de rupturas e embates celebra 50 anos logo agora, quando o Brasil se vê novamente ameaçado pela censura às artes e rediscute questões que pareciam superadas. De olho na construção do futuro sem esquecer as lições do passado, o Segundo Caderno revê o movimento, em artigos e fragmentos, aos moldes das canções “Geleia geral”, “Miserere nobis” e “Tropicália”. Nas páginas seguintes, há tigres e leões soltos nos quintais, apesar das pessoas da sala de jantar, ocupadas em nascer e morrer.

Fonte: O Globo, por Leonardo Lichote, 15/10/2017


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