8 de Março:

A origem revisitada do Dia Internacional da Mulher

Mulheres samurais

no Japão medieval

Quando Deus era mulher:

sociedades mais pacíficas e participativas

Aserá,

a esposa de Deus que foi apagada da História

Mostrando postagens com marcador censura e liberdade de expressão. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador censura e liberdade de expressão. Mostrar todas as postagens

sábado, 29 de outubro de 2022

A eleição da marmelada: comê-la ou não comê-la, eis a questão?

Findo esse suplício de pseudodebates, concluo que essa eleição foi a maior marmelada da história recente, como se diz popularmente. Sempre disseram que Bolsonaro e seu séquito não se conformariam com um resultado negativo nas urnas e alegariam fraude de algum tipo. O que não se esperava é que a oposição fosse cooperar tanto com essa narrativa. Agora, eles podem gritar parcialidade com razão.

Como disse a jornalista Paula Schmitt, a campanha do Lula é “a materialização do maior conluio corporatocrata já visto numa campanha política. A coisa é tão surreal que parece comédia. A elite toda está com Lula, em todos os níveis do Consenso Inc –o cartel não-oficial mas extremamente síncrono entre empresas, mídia, acadêmicos, especialistas, artistas e influencers...”

Faltou falar dos piores integrantes desse cartel: os juízes das Supremas cortes, STF, TSE, que de suprema mesmo só têm a parcialidade que resolveram escancarar nessa eleição. Primeiro, como disse um ex deles, Marco Aurélio Mello, o STF resolveu ressuscitar o Lula com base em argumentos de fazer corar pedra, tipo a competência do foro do julgamento do petista que não deveria ter sido em Curitiba, mas sim em Brasília. Como então permitiram que fosse em Curitiba e autorizaram a prisão do cara? Depois, a parcialidade do juiz Sérgio Moro, como se Lula não tivesse sido julgado por outros 8 juízes também. Todos parciais? E, se não houve corrupção, nos casos julgados pela Lava Jato, de onde os integrantes da operação tiraram os 25 bilhões que devolveram aos cofres públicos? Do próprio bolso? Me poupem.

Livraram a cara do Lula com o objetivo de recolocá-lo na presidência da República. Havia sim condições de ter feito o impeachment do Bolsonaro em função, por exemplo, de suas ações desastrosas na pandemia que não o transformaram em genocida (como qualquer um que conheça o significado do termo sabe) mas o colocaram, por negligência e irresponsabilidade, na posição de culpado por mortes que poderiam ter sido evitadas. Se em 2020, em função da pandemia, não havia condições para tal, em 2021 já havia sim, mas não quiseram fazê-lo porque interessava deixar o Bolsonaro aí sangrando (assim pensavam) para ser sparring do Lula. Sem Lula na jogada, abria-se a possibilidade de renovação política com gente capaz de aglutinar votos suficientes para vencer Bolsonaro. Essa história de que só Lula poderia vencer Bolsonaro faz parte das lorotas do cartel.

Como se não bastasse, resolveram travestir um dos personagens mais autoritários da História brasileira, oriundo do grande partido mais autoritário surgido desde a redemocratização, como paladino da democracia contra o fascismo do Bolsonaro. Logo Lula que, antes e durante seus governos, fez um tour por tantas ditaduras mundo afora, com quem negociou obras para os parças da Odebrecht, que até o Muammar al Gaddafi, pervertido genocida ditador da Líbia, por 42 anos, consta como doador de sua primeira campanha na delação de Antonio Palocci.

Lula com Kadafi durante encontro em Abuja, Nigéria, em novembro
 de 2006 Foto: Ricardo Stuckert
Tanto os escândalos de corrupção dos governos Lula quanto seus amores e negociatas com tiranos pelo mundo foram amplamente divulgados pela imprensa. Não obstante, o TSE, em especial seu presidente, o liberticida Alexandre de Moraes, resolveu não só proibir a veiculação dessas informações, sob a desculpa de combate a fake news, como inclusive, no último capítulo dessa infâmia, resolveu obrigar emissora a veicular a fake news de que Lula é inocente. O PT ficou tanto tempo no poder que crianças ou adolescentes daquele período (2003-2016) podem estar votando pela primeira vez agora. Como então, esses novos eleitores não podem saber do passado de um dos candidatos?

A própria ministra Carmen Lúcia se saiu com uma história de que “não se podia permitir a volta de censura sob qualquer argumento no Brasil”, mas muito excepcionalmente, até o dia 31, endossava a censura prévia de um documentário sobre a facada que vitimou Bolsonaro na campanha anterior e a desmonetização de canais pró Bolsonaro. E, ainda por cima, afirmou que era para não comprometer a lisura, higidez e a segurança do processo eleitoral e dos direitos do eleitor.

Então, você vai a um jogo de futebol para ver seu time jogar, o juiz e os bandeirinhas aparecem com o emblema do time adversário e só apontam faltas para o seu time, sem falar em anulações de gols e expulsões de jogadores só do seu time e você acredita na lisura dessa arbitragem? Meu time já saiu do campeonato na primeira rodada, mas um dia pode estar na final. E se calha de seu Alexandre e dona Carmen ainda estarem por aí e decidirem vir com sua “lisura” para cima da minha turma?

Imprensa pode ser parcial. Em grandes democracias, a mídia inclusive assume que está apoiando candidato(a) X ou Y. Melhor do que fingir uma imparcialidade que não tem. E o leitor ou a leitora é que decidem se dão crédito a determinadas empresas de comunicação ou não. Em democracias, não existe essa história de querer obrigar uma emissora a defender teses que ela de fato não endossa. Sério que, desde os idos dos anos 70 do século passado, não ouvia mais falar em censura prévia e esse tipo de imposição a veículos de comunicação. Isso é muito grave. Se a imprensa pode demonstrar parcialidade, juiz não pode não.

E não me venham com historinha de que, como o Bozo é o pior dos mundos, vale tudo para tirá-lo da presidência. Das besteiras que Bozo diz, falar em regular a mídia eu nunca ouvi. Seu Lula, por outro lado, não tira isso da cabeça e da boca. Com a “lisura” dos integrantes da suprema, fica mais fácil obter esse tipo de objetivo – esse sim - inquestionavelmente fascistoide.

Ainda, nessa eleição, me impressionou também o quanto a esquerda em geral está datada. Na campanha do Lula tudo tão surrado: os slogans, as musiquinhas, aquele papinho cínico e furado de esperança e amor, gente abrindo livro para formar L num país de analfabetos e semianalfabetos. Da cruza infernal das eternas viúvas do muro de Berlim com a esquerda identitária (uma degeneração dos muito justos movimentos sociais do passado), surgiu uma esquerda mais preocupada com o sofrimento da turma do elu/delu via erros de pronomes do que com os reais interesses das classes trabalhadoras. Não por menos são as classes trabalhadoras que vêm, cada vez mais, apoiando a extrema-direita em todo o mundo.

Por último, não sou eu que vou dizer em que os outros devem votar. Reconheço que nos colocaram numa situação de se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Entretanto, acho importante que, nessa quase escolha de Sofia, as pessoas votem sem ilusões. Ninguém aí está defendendo democracia coisa nenhuma, nem mesmo os que teriam obrigação de defendê-la. No caso do Lula, todo esse conluio elitista de empresas, mídia, acadêmicos, especialistas, artistas, influencers, políticos, juízes, etc. estão defendendo seus interesses, vide Marina e Simone Tebet, por exemplo, de olho em cargos num possível governo petista. Quem quiser engolir essa marmelada, portanto, que o faça consciente. Lembrando que ainda existe a possibilidade de simplesmente não comê-la.

terça-feira, 29 de março de 2022

Democracia em declínio no mundo com processos de autocratização inclusive no Brasil

O mais próximo da democracia que o Brasil chegou foi no governo Fernando Henrique Cardoso. No mais, o país nunca foi uma democracia plena porque tem uma corrupção endêmica como seu principal impeditivo, resultando em falsa separação entre os poderes, em juízes metidos até o pescoço no afã de soltar bandidos de colarinho branco. Também não existe participação popular efetiva e constante nas decisões políticas.

A luz no fim do túnel foi a Lava Jato que, pela primeira vez em nossa História, botou políticos e empresários corruptos, incluindo o santo da seita petista, São Lula, na cadeia. Mas o juiz símbolo da Lava Jato, Sérgio Moro, cometeu o erro crasso de se meter com Bolsonaro, não se sabe por vaidade ou ingenuidade ou mesmo por burrice, sendo traído pelo mesmo e virando vitrine dos petistas e seus cúmplices no aparelho cleptocrático atual. Hoje a cleptocracia recuperou boa parte de suas perdas, Lula processou Deltan Dallagnol e promete processar outros. Com Bolsonaro, nada democrático ou ético, o Brasil só continou descendo a ladeira. Com Lula, sedento do sangue dos que o puniram, a situação só deve piorar. 


O Brasil passa por um processo de "autocratização" e é considerado como um dos cinco países onde a democracia sofre os maiores abalos no mundo na última década. O alerta é do V-Dem Institute, da Suécia, um dos principais centros de pesquisa sobre o estado da democracia e que avalia centenas de dados de cada país por décadas. Segundo o estudo, a crise na democracia brasileira só não foi maior graças à atuação da Justiça, freando o presidente Jair Bolsonaro.

Para os pesquisadores do centro, o Brasil não é uma democracia liberal, já que vive desafios para garantir que todos os critérios de um estado de direito consolidado sejam atendidos. No ranking da entidade, o país aparece apenas como uma "democracia eleitoral".

A classificação sobre o índice de democracia nos países é liderada por Suécia, Dinamarca, Noruega, Costa Rica, Nova Zelândia, Estônia, Suíça, Finlândia, Alemanha, Irlanda, Bélgica e Portugal.

Na modesta 59ª posição, o Brasil perde para países como Gana, Bulgária, Senegal, Armênia, Romênia, Cabo Verde, África do Sul ou São Tomé e Príncipe.

O V-Dem Institute, que faz parte da Universidade de Gotemburgo, produz o maior conjunto global de dados sobre democracia, com mais de 30 milhões de pontos de dados para 202 países entre os anos de 1789 e 2021. Envolvendo mais de 3.700 acadêmicos e outros especialistas de outros países, o V-Dem mede centenas de diferentes atributos de democracia e, segundo seus representantes, permite novas maneiras de estudar a natureza, causas e consequências da democracia.

O instituto deixa claro que o Brasil está entre os países que mais sofreu um processo de erosão da democracia na última década, ao lado de Hungria, Índia, Polônia, Sérvia e Turquia. Na América Latina, o Brasil faz parte de um grupo que conta como El Salvador, Nicarágua e Venezuela.

A deterioração da democracia no país só não foi maior por conta da resistência do Supremo Tribunal Federal, diante da pressão de Bolsonaro para deslegitimar o sistema eleitoral.

Outra característica do Brasil é a "polarização tóxica" no sistema partidário e no debate político.
Por exemplo, a polarização no Brasil começou a aumentar em 2013 e atingiu níveis tóxicos com a vitória eleitoral do presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro em 2018. Desde que tomou posse, Bolsonaro se uniu aos manifestantes para pedir a intervenção militar na política brasileira e o fechamento do Congresso e da Suprema Corte", disse. "Além disso, ele promoveu uma militarização em larga escala de seu governo e a desconfiança do público no sistema de votação", denuncia o grupo.

 Erosão da democracia no mundo e um retorno ao ano de 1989

No restante do mundo, a situação é também considerada como preocupante. De acordo com o estudo, o nível de democracia desfrutado pelo cidadão global médio em 2021 caiu para os níveis de 1989.
Os últimos 30 anos de avanços democráticos estão agora erradicados. As ditaduras estão em alta e abrigam 70% da população mundial - 5,4 bilhões de pessoas", alertou.
A entidade estima que as democracias liberais atingiram o auge em 2012 com 42 países nesta qualificação. Mas, agora, estão nos níveis mais baixos em mais de 25 anos. Hoje, apenas 34 nações podem ser chamadas como democracias liberais abrigam apenas 13% da população mundial.
O declínio democrático é especialmente evidente na Ásia-Pacífico, Europa Oriental e Ásia Central, assim como em partes da América Latina e do Caribe", declarou.
Já as ditaduras estão em ascensão. O número de autocracias fechadas passou de 25 para 30 países, com 26% da população mundial

Mas é a autocracia eleitoral que é considerada como a situação mais comum, abrigando 44% da população mundial, ou seja, 3,4 bilhões de pessoas.

Clipping Brasil vive processo de "autocratização"; democracia recua 30 anos no mundo, por Jamil Chade, UOL, 21/03/2022,

quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Feliz 1984: o Ministério da Verdade começou no Brasil

As pessoas que compraram a história absurda de um Lula defensor da democracia contra o fascista do Bolsonaro que ameaçava o Estado democrático de direito - e não falo de petistas - meteram o país numa narrativa orwelliana.

Lembram do lema do partido Socing (socialismo inglês) “Guerra é Paz; Liberdade é Escravidão; Ignorância é Força”? Na obra-prima, "1984", sempre citada por sua brilhante análise do caráter autoritário, os paradoxos abundam: o Ministério do Amor combate o desejo e os amantes; o da Paz administra a Guerra; o da Fartura administra a Fome e o Ministério da Verdade se encarrega de censurar notícias e de criar mentiras a serviço do Partido.

Lula, um notório amigo íntimo de ditadores mundo a fora, e seu partido defensor da hegemonia, conceito que nunca rima com democracia, nunca poderiam ter sido travestidos de defensores de algo que abominam. Juntaram-se a um STF temeroso de ser impichado por um futuro governo Bolsonaro e que, em particular na pessoa de Alexandre de Moraes, vem prendendo gente sem o devido processo legal, sem que as pessoas saibam do que estão realmente sendo acusadas e sem que seus advogados tenham acesso aos processos, fora censurar a mídia e a rede social de bolsonaristas. Um festival de arbítrios de dar inveja aos generais da ditadura de 64. Me contraponho a essa nojeira citando Voltaire: “Posso não concordar com uma única palavra do que diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-la”.

Todavia, como uma sociedade idiotizada resolveu dar endosso à farsa de defensores da democracia dos lulopetistas, agora eles se sentem à vontade para estabelecer seu Ministério da Verdade a fim de censurar notícias e criar mentiras a serviço do Partido e em nome da democracia. 

O abjeto Renan Calheiros, aliado de Lula, já se saiu com seu projeto orwelliano autoritário chamado "Pacotão da Democracia" que visa amordaçá-la. E o governo - sim o governo - já aparece com a “Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia”, a "Secretaria de Políticas Digitais" e a "Assessoria Especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade".

Enquanto isso, o grupo Prerrogativas (advogados petistas) quer levar Bolsonaro à justiça para poder torná-lo inelegível. Sou favorável à igualdade de todos perante a lei, inclusive no referente aos picaretas: se Lula está solto e presidente, Bolsonaro tem que continuar livre e concorrente O fato é que - gostemos ou não dos bolsonaristas - eles foram os únicos, com seu aloprado Presidente, que configuraram real oposição ao sonho petista de se eternizar no poder para reescrever a História, acabar com a democracia e roubar até o osso dos cachorros.

No editorial do Estadão abaixo, o jornal detalha o projeto petista de criar sua polícia do pensamento e seu Ministério da Verdade. Parabéns aos envolvidos. 

𝐎 𝐦𝐨𝐧𝐨𝐩ó𝐥𝐢𝐨 𝐥𝐮𝐥𝐨𝐩𝐞𝐭𝐢𝐬𝐭𝐚 𝐝𝐚 𝐯𝐞𝐫𝐝𝐚𝐝𝐞
(Editorial Estadão,05/01/2023)

Levou apenas um par de dias para que o cacoete autoritário do governo lulopetista se manifestasse – revestido, é claro, e como sempre, das melhores intenções.

No dia 2 passado, ao tomar posse como ministro-chefe da AGU, Jorge Rodrigo Messias anunciou a criação de uma tal “Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia”, que tem entre suas competências “representar a União, judicial e extrajudicialmente, em demandas e procedimentos para resposta e enfrentamento à desinformação sobre políticas públicas”. Trata-se de perigosa formulação, pois nada impede, a não ser escrúpulos éticos, que o governo classifique como “desinformação” o que é mera opinião. Abre-se uma avenida para o constrangimento de críticos do governo, a título de impedir a disseminação de mentiras tendentes a prejudicar o funcionamento do Estado e, no limite, a democracia.
Tudo é ainda mais estupefaciente porque o próprio advogado-geral da União reconheceu que não há lei que defina o que é desinformação. Mesmo assim, Messias achou que era o caso de não apenas criar a Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia – como se já não houvesse o Ministério Público para fazê-lo –, mas também de tomar para a AGU a prerrogativa de definir o que é desinformação. Tomem nota: “Mentira voluntária, dolosa, com o objetivo claro de prejudicar a correta execução das políticas públicas com prejuízo à sociedade e com o objetivo de promover ataques deliberados aos membros dos Poderes com mentiras que efetivamente embaracem o exercício de suas funções públicas”. Tudo vago o suficiente para servir de base a qualquer coisa – bem ao gosto de governos arbitrários.

Em outra frente, o secretário de Comunicação Social da Presidência, deputado Paulo Pimenta, anunciou a criação da Secretaria de Políticas Digitais, uma estrutura que funcionará no Palácio do Planalto para “combater a desinformação e o discurso do ódio nas redes sociais”. Ora, não cabe a um governo determinar o que é desinformação, muito menos ter uma estrutura devotada a “combater” o que chama de “discurso de ódio” – nome genérico que os petistas certamente usarão, como já o fazem, para qualificar as críticas de opositores.

É claro que, como de hábito, os petistas prometem que tudo isso será precedido de “amplo debate”, mas já se sabe com quem – a patota de sempre. Se é para valer, essa polícia do pensamento deve começar enquadrando o próprio secretário Paulo Pimenta, que é um adepto da lunática teoria segundo a qual o atentado a faca sofrido por Jair Bolsonaro foi uma armação – uma clássica fake news.

Por sua vez, o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, anunciou em seu discurso de posse a criação da Assessoria Especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade. Nada menos. Não há razão para duvidar da boa intenção do ministro, um jurista respeitável e com reconhecido histórico de defesa dos direitos humanos, mas causa apreensão que um governo pretenda estabelecer a “verdade” e a “memória” de um país, pois é exatamente assim que regimes autoritários se consolidam.
Não se sabe o que mais virá por aí, mas apenas esses exemplos bastam para concluir que o lulopetismo parece empenhado em reescrever a história, na qual se destacam os muitos crimes cometidos durante os governos de Lula e de Dilma Rousseff, e em determinar como o novo governo petista será descrito agora e no futuro, criminalizando opiniões contrárias.

Decerto movido pelo rancor de quem se julga injustiçado, o PT arreganha os dentes, sem qualquer gesto de distensão nem, muito menos, de conciliação. Pelo contrário: conforme já era esperado, os petistas, nem bem Lula esquentou a cadeira presidencial, põem em prática sua conhecida estratégia de demonizar os opositores e de reivindicar o monopólio absoluto da verdade. Para o presidente e sua turma, convictos de que encarnam o “povo” em toda a sua “diversidade”, só é válida a opinião de quem reconhece Lula como o redentor dos pobres. Considerem-se avisados: aos que não aceitarem o credo petista, resta a danação. 

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Contracultura brasileira: o desbunde que desafiou a esquerda e os militares


 Gal Costa, Os Mutantes, Jards Macalé, Gilberto Gil (com Torquato Neto), Novos Baianos, Caetano Veloso, Jorge Mautner, Luiz Melodia, Rogério Duprat, Sérgio Sampaio, Tom Zé e Walter Franco 

A música Sangue Latino é de 73. Os Secos e Molhados existiram de 71 a 74 em sua formação original. Os Dzi Croquettes de 1972 a 1976. O musical Hair foi encenado de 69 a 71. Andróginos e libertários. Em pleno período do regime de exceção. Foram filhos da contracultura que os militares não reprimiram com a contundência que reprimiram a esquerda ortodoxa, mesmo porque a consideravam meio alienada, visão compartilhada pela esquerda da época. Segundo consta, foi a esquerda da luta armada que apelidou os contraculturais no Brasil de desbundados. A contracultura no BR foi o desbunde. 



E a geração que prevalece no país na década de 70 foi exatamente a do desbunde, a do "sexo, drogas e rock'n'roll", da "minha casa no campo, meus amigos, meus discos, meus livros e nada mais" e não a da esquerda que queria nos transformar num Cubão. Aliás, a matriz do movimento homossexual no Brasil e no mundo foi a contracultura, não a esquerda tradicional que era tão homofóbica e machista quanto os conservadores. Ainda hoje, vejo muito mais em comum entre eles do que sonham as vãs filosofias. 

Lembrei disso porque, desde que lançaram uma tese pra lá de discutível que afirma ter o regime militar instituído uma política de Estado contra pessoas homossexuais, volta e meia vem alguém me perguntar dos sofrimentos que passei por ser lésbica sob a ditadura. 

Então, vamos esclarecer, o período 64-84 se deu de fato sob um regime de exceção, mas não sob um regime totalitário. Nós não vivemos uma espécie de Gilead como no "O Conto da Aia," pra citar uma referência atual. Os agentes da repressão não estavam visíveis a cada esquina, não ficavam acompanhando as pessoas até o supermercado, não havia corpos de subversivos pendurados nos muros das cidades ou na frente das casas, não se executava gente a sangue frio em ruas de bairros de classe média. A abdução dos ditos subversivos se dava mais na surdina, na calada da noite ou em blitz pontuais durante o dia. Nós outros vivíamos uma aparente normalidade, com as pessoas levando suas vidas de forma não muito diferente da de hoje.


A juventude daquele período, no Brasil, gastava seu tempo tomando todas e transando muito, indo a teatros (onde se faziam críticas veladas ao regime), aos cinemas (ver Bergman, Pasolini, Fellini, Polansky, Woody Allen) e a Salvador (que virou a Meca dos desbundados). Também gastava seu tempo lendo livros, jornais (cheios de mensagens cifradas) e a imprensa alternativa, assistindo os festivais de música popular e as novelas na TV. Indo ainda a musicais e, no final da década, entre 78 e 79, acabando-se nas baladas dos dancing days.
++++++++

Enfim, esse era o meu cotidiano naquele período. Não sofri repressão da ditadura por ser lésbica. Da ditadura, sofri repressão como estudante, quando fui às ruas em 1977 participar das manifestações promovidas pela UNE que se rearticulava. Fui inclusive presa na tristemente célebre invasão da PUC pelas forças do famigerado coronel Erasmo Dias. Porque manifestação de rua não podia mesmo acontecer, ainda mais contra o governo. 

Como lésbica, a repressão que sofri foi da sociedade ultraconservadora da época, tão vigente aqui, sob um regime de exceção, quanto nos EUA, a democracia mais estável da História. Naquele período, a homossexualidade ainda era considerada doença ou crime (nos EUA, a homossexualidade só deixou de ser crime na década de 70), as pessoas homossexuais eram totalmente marginalizadas, como se fossem realmente criminosas, aparecendo na imprensa somente nas páginas policiais. Provavelmente a invasão que promovi, com outras ativistas, em 19 de agosto de 1983, no antológico Ferro's Bar de São Paulo, foi a primeira a inaugurar uma nova abordagem da imprensa sobre o assunto, com artigo da Folha de SP nos tratando de forma positiva. 

Em outras palavras, não vão comprando acriticamente qualquer tese que aparece. Busquem sobre a contracultura no Brasil no oráculo do Google. Há teses e livros sobre o tema que, sem dúvida, vão lhes ampliar o horizonte, abrir uma nova perspectiva sobre a realidade sócio-cultural daquele período paradoxalmente de repressão mas também de grandes mudanças políticas e comportamentais. Aqui uma dica: Contracultura – Alternative Arts and Social Transformation in Authoritarian Brazil, de autoria de Christopher Dunn. Liberdade cabeluda:  O  inusitado caráter político da contracultura brasileira

Por último, naqueles conturbados anos do regime militar e da Guerra Fria (com a bomba atômica pairando sobre nossas cabeças), nós vivemos a contracultura (considerada por muitos como a última grande utopia) e tínhamos aquela coisinha verde que, hoje, a gente procura à esquerda, à direita, no centro, em cima e embaixo, e não encontra. Nós tínhamos esperança. Ao contrário, atualmente, vivemos num clima distópico que parece sobretudo uma mistura do 1984 com O Conto da Aia mas também conta com pitadas do Admirável Mundo Novo e do Fahrenheit 451. Sinto muito!
 😓

quarta-feira, 8 de julho de 2020

Intelectuais lançam manifesto contra cultura do cancelamento da esquerda

Estudante queima faixa com "Liberdade de Expressão" na Universidade de Berkeley
onde a liberdade de expressão foi outrora tão defendida
Que bom ver, enfim, as pessoas se manifestando contra a censura dos guerreiros da justiça social, mais conhecidos como fascistas do bem ou membros da "woke culture", termo que poderia ser traduzido para o português como cultura da lacração. Se alguém tiver melhor tradução para o termo que me informe, please.

Mas, então, trata-se daquele pessoal chatíssimo, cheio de moralismo hipócrita, que, em nome do ofendidismo, faz tempestade em copo d'água por qualquer deslize de fala de qualquer pessoa e luta por criminalizar até o pensamento da população, no melhor estilo 1984. E o pior dessa história é que esse tipo de fascismo não emergiu por imposição de um estado ditatorial, mas sim da própria sociedade e pelas mãos de herdeiros dos paladinos da liberdade no passado, os integrantes de movimentos sociais.

Em nome do ofendidismo e da vitimologia, os outrora libertários movimentos sociais estão corroendo as estruturas do estado democrático de direito como nunca se viu antes. Liberdade de pensamento, de consciência, de expressão, de reunião e de associação estão indo pelo ralo com uma rapidez impressionante.

Na universidade de Berkely (CA/EUA) estudantes pedem liberdade de expressão em 1967 e queimam faixa onde se lê liberdade de expressão em 2017
A sociedade precisa parar de se deixar chantagear por essa gente fascista, travestida de justiceira social, parar de pedir desculpas por preconceitos reais ou imaginários, por qualquer deslize de fala. Ninguém morre por se sentir ofendido vez ou outra. Ninguém tem a obrigação de negar sua própria percepção da realidade para validar visões ou identidades dos outros. Discurso de ódio é só o que incita a violência seja contra quem for ou a perda de direitos civis seja de quem for. No mais, nem injúria é discurso de ódio, quanto mais questionar os dogmas desse bando de insanos que querem apenas impor seu pensamento único e estúpido a todo mundo.

Abaixo texto sobre o manifesto que vários intelectuais subscreveram contra a a cultura do cancelamento da esquerda.
"Woke culture" é literalmente cultura do despertar, onde supostamente
 as pessoas se manteriam alertas todo o tempo contra as discriminações várias
Intelectuais lançam manifesto contra cultura do cancelamento na esquerda

WASHINGTON - Mais de 150 escritores, acadêmicos e intelectuais — incluindo Noam Chomsky, Salman Rushdie, Gloria Steinem, Margaret Atwood e Martin Amis, entre outros — assinaram uma carta aberta denunciando uma crescente “intolerância” por parte do ativismo progressista dos Estados Unidos contra ideias divergentes. Na opinião do grupo, isso está afetando ambientes acadêmicos e culturais, por meio de denúncia e boicote, “punição desproporcional” e uma consequente “aversão ao risco” que empobrece o debate público. “Devemos preservar a possibilidade de discordar de boa fé, sem consequências profissionais terríveis”, destacam.

O texto, publicado nesta terça-feira na revista “Harper’s”, com o título “Uma carta sobre justiça e debate aberto”, aplaude os protestos pela justiça racial e social, por maior igualdade e inclusão, mas alerta que esse “ajuste necessário de contas” também intensificou “um novo conjunto de atitudes morais e compromissos políticos que tendem a enfraquecer nossas normas de debate aberto e tolerância de diferenças em favor da conformidade ideológica”. “As forças do iliberalismo estão ganhando força no mundo e têm um poderoso aliado em Donald Trump, que representa uma ameaça real à democracia, mas não se pode permitir que a resistência imponha seu próprio estilo de dogma e coerção”, afirmam os autores.

Entre os signatários também estão os escritores George Packer, John Banville, J.K. Rowling e Malcolm Gladwell, entre outros, além de acadêmicos importantes como Francis Fukuyama, Michael Ignatieff e Mark Lilla.

Manifestantes atacam estátua do ex-presidente americano Andrew Jackson Foto: Tom Brenner / Reuters
Manifestantes atacam estátua do ex-presidente americano Andrew Jackson
Foto: Tom Brenner / Reuters
O grupo aborda uma crescente controvérsia nos Estados Unidos: se o novo limiar de tolerância zero a desigualdades como racismo, sexismo ou homofobia também estaria alimentando alguns excessos que buscam silenciar qualquer dissidência. É uma tendência que os críticos costumam chamar de “cultura do cancelamento”, em referência ao banimento e à denúncia de criadores ou professores por qualquer desvio da norma; ou de “woke culture” (do inglês, despertar), que se refere a uma atitude de alerta permanente.
A livre troca de informações e ideias, a força vital de uma sociedade liberal, está se tornando cada vez mais limitada. Enquanto esperávamos isso na direita radical, a atitude de censura está também se expandindo em nossa cultura”, diz a carta, que não menciona recentes controvérsias específicas com nomes e sobrenomes, mas descreve situações. “Os líderes institucionais, em uma atitude de pânico e controle de risco, estão aplicando punições duras e desproporcionais em vez de correções ponderadas. Editores são demitidos por publicar materiais controversos; livros são removidos por suposta inautenticidade, jornalistas são impedidos de escrever sobre certos assuntos; professores são investigados por citarem obras literárias durante aulas”, descreve o texto, entre outros exemplos.
Um dos casos controversos recentes foi a demissão de James Bennet, editor do “New York Times” no início deste mês, após a polêmica gerada pela publicação de um artigo de opinião do senador republicano Tom Cotton, no qual o político pedia uma resposta militar aos protestos desencadeados pela morte de George Floyd. A torrente de críticas dentro e fora da redação levou Bennet a pedir demissão e desculpas. Ele admitiu que o texto não deveria ter sido publicado e que não havia sido editado com rigor suficiente.

Ligado à mesma discussão, em 10 de junho, a Poetry Foundation anunciou a demissão de dois de seus líderes após uma carta de protesto de 30 autores que consideraram brando o seu comunicado denunciando a violência policial. Também foi demitida a presidente do Círculo Nacional de Críticos de Livros, e cinco outros membros se demitiram, em meio a uma briga nas redes sociais em relação à sua declaração pública contra o racismo. Ainda, um analista eleitoral, David Shor, foi demitido da plataforma Civis Analytics após a polêmica que surgiu por ter tuitado u estudo acadêmico de um professor de Princeton que alertou sobre os efeitos perversos de protestos violentos. Segundo a “New York Magazine”, alguns funcionários da empresa consideraram que o tuíte de Shor “colocava sua segurança em risco”.

O debate sobre onde termina a tolerância zero ao abuso e onde começa o apagamento da discrepância também se estende à revisão de estátuas e monumentos nacionais. Donald Trump, que adotou a guerra cultural como um de seus argumentos de campanha, se concentrou nessa questão em um longo discurso na noite de sexta-feira passada, na véspera de 4 de julho. “Nas nossas escolas, nossas redações, mesmo em nossos conselhos de administração, há um novo fascismo de extrema-esquerda que exige lealdade absoluta. Se você não fala a língua deles, pratica seus rituais, recita seus mantras e segue seus mandamentos, você será censurado, perseguido e punido”, disse o republicano.

Na carta, os intelectuais descrevem o presidente como uma “ameaça à democracia”, mas alertam: “a restrição do debate, seja por um governo repressivo ou por uma sociedade intolerante, prejudica invariavelmente aqueles que não têm poder e torna todos menos capazes de participação democrática”.”O caminho para derrotar as más idéias é a exposição, a argumentação e a persuasão, não tentando silenciá-las ou querendo expulsá-las. Como escritores, precisamos de uma cultura que nos deixe espaço para experimentação, risco e até erros. Devemos preservar a possibilidade de discordar de boa fé sem terríveis conseqüências profissionais”, concluem.

O texto também é assinado por Jeffrey Eugenides, Anne Applebaum, David Brooks, Enrique Krauze e Sean Wilentz, entre outros nomes.

Clipping Chomsky, Atwood e outros intelectuais lançam manifesto contra cultura do cancelamento na esquerda, O Globo, 07/07/2020

terça-feira, 16 de abril de 2019

Danos à reputação deve ser reparados com indenização não cadeia



Brasil: Pena de Prisão Contra Comediante Inibe a Liberdade de Expressão Brasil deveria descriminalizar os delitos contra a honra

A condenação à prisão de um comediante por ofender uma deputada pode ferir a liberdade de expressão, disse hoje a Human Rights Watch.

Em 10 de abril, uma juiza federal sentenciou Danilo Gentili, um comediante conservador, a 6 meses e 28 dias de prisão em regime semiaberto por um vídeo postado por ele nas redes sociais, há três anos. No vídeo, ele rasga a notificação que recebeu da Câmara dos Deputados pedindo-lhe para deletar tweets ofensivos sobre a deputada do Partido dos Trabalhadores (PT) Maria do Rosário, coloca os pedaços rasgados na cueca, os tira e os envia de volta, fazendo comentários obscenos contra ela.

“Ninguém deveria ser preso por ter dito algo ofensivo, independentemente de quão repugnantes sejam suas declarações e atitudes”, disse Maria Laura Canineu, diretora do escritório da Human Rights Watch no Brasil. “Ao invés disso, aqueles que desejarem procurar a justiça por danos a sua reputação, deveriam fazê-lo por meio de uma reparação de caráter civil”.

O juiz federal considerou que o vídeo inclui “conteúdo altamente ofensivo e reprovável, deixando muito clara a sua intenção de ofender” a parlamentar. Gentili permanece livre enquanto recorre à sentença.

Leis que estabelecem sanções penais contra a injúria, a difamação e a calúnia são incompatíveis com a obrigação internacional de proteger a liberdade de expressão, disse a Human Rights Watch.

O Código Penal brasileiro inclui o crime de injúria, que penaliza ofensas à “dignidade ou decoro” de uma pessoa; o crime de difamação, definido como um ato ofensivo à reputação de uma pessoa; e o crime de calúnia, definido como imputar falsamente a alguém a prática de um crime. Gentili foi condenado por injúria.

O Brasil deveria suprimir esses três crimes do seu código penal. A pessoa que se considerar ofendida deveria buscar indenização por meio de processos civis, e ninguém deveria ser preso pelo que diz.

O relator especial da ONU sobre a promoção e proteção do direito à liberdade de opinião declarou em 2000 que a prisão nunca deveria ser aplicada como punição por difamação e recomendou que os Estados revogassem suas leis penais de difamação e se baseassem nas normas sobre difamação dos códigos civis. O relator especial enfatizou que os Estados devem tomar cuidado especial para garantir que as leis de difamação, civis ou criminais, “reflitam o princípio de que as figuras públicas são obrigadas a tolerar um grau maior de crítica do que os cidadãos privados”.

Fonte: Humans Rights Watch, 13/04/2019

Os Princípios sobre Liberdade de Expressão, adotados pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 2000, afirmam que a proteção da reputação dos funcionários públicos deve ser garantida apenas por sanções civis, e não criminais.

N.E. E, depois dessa história lastimável da condenação à prisão do Danilo Gentili por dizer escrotices, surgiu a história mais escabrosa ainda da censura à revista virtual Crusoé, de parte do Ministro Alexandre de Moraes conluiado com o ministro Dias Toffoli. Também com base na história da ofensa, desta vez feita ao STF, Alexandre de Moraes censurou matéria da revista que falava do possível envolvimento de Tofolli em mais um dos propinodutos da Odebrecht. Fora a censura à matéria, os redatores foram multados em R$100.000,00 por supostamente não terem acatado a ordem do ministro de imediato. Além disso, Alexandre de Moraes mandou fazer busca e apreensão na casa de pessoas que supostamente ofenderam o STF. Trata-se de de um absurdo autoritário incompatível com o estado democrático de direito. Agora, a Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge mandou arquivar o inquérito arbitrário, aberto pelos Ministros Alexandre de Moraes e Dias Toffoli, e todas suas consequências. Por último, Alexandre de Moraes indeferiu "integralmente" o arquivamento de Dodge em um despacho de hoje à tarde. E o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) afirmou que ele e outros senadores vão pedir o impeachment do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, e do ministro Alexandre de Moraes. Uma zona que mostra claramente como o fantasma do autoritarismo volta ao Brasil, sob a desculpa do ofendidismo. A manutenção da liberdade de expressão é fundamental para a democracia. Temos que garanti-la a qualquer preço.

Atualização: Alexandre de Moraes recua e derruba censura a revista e site 

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

“Direito negativo” e “direito positivo” como base da democracia americana



Fernão Lara Mesquita resume muito bem, em artigo no Esatadão, como funciona a democracia americana, baseada nos direitos negativos e positivos, no federalismo, na representação distrital pura e no recall ou retomada de mandatos. Destaco as definições didáticas dos chamados direitos de primeira, segunda e terceira geração (os negativos e os positivos), mas o artigo todo vale a leitura.

Direitos de primeira geração: “Direito negativo” é o de não ser submetido à ação coercitiva de outra pessoa ou do governo. Eles o têm por um direito natural, também dito de primeira geração. Fixa os círculos do espaço individual que as pessoas naturalmente sabem que não devem invadir: o do corpo, o do lar, o dos pertences, o da propriedade. 

Direitos de segunda geração: Decorrem dos primeiros como desdobramentos civis e políticos, ditos de segunda geração, o direito à vida, à liberdade de expressão, à liberdade religiosa, à legítima defesa, ao habeas corpus, a um julgamento justo, etc.

Direitos de terceira geração: Já os “direitos positivos”, ditos de terceira geração, são os que requerem a ação de uma terceira pessoa para serem exercidos por quem vai desfrutá-los. Enquanto um “direito negativo” proíbe alguém ou o governo de agir contra o seu beneficiário, um “direito positivo” obriga outras pessoas ou o governo a agirem em benefício do seu detentor. Incluem-se nesse departamento os direitos sociais e culturais, tais como à comida, à habitação, à educação, a um emprego, à saúde, à seguridade social, ao acesso à internet ou o que mais se quiser incluir na lista, que, no Brasil, por exemplo, é infindável.

A chave da moderna democracia americana
Trata-se da distinção que eles fazem entre ‘direito negativo’ e ‘direito positivo’

A chave para o entendimento do sistema institucional americano é a distinção que eles fazem entre “direito negativo” e “direito positivo”.

“Direito negativo” é o de não ser submetido à ação coercitiva de outra pessoa ou do governo. Eles o têm por um direito natural, também dito de primeira geração. Nasce com e pertence a todas as pessoas, e está garantido enquanto ninguém agir para violá-lo. A common law, o direito baseado na tradição que foi comum a toda a Europa, mas só sobreviveu na Inglaterra depois do advento do absolutismo monárquico que o nosso “direito romano” foi inventado para sustentar, fixa os círculos do espaço individual que as pessoas naturalmente sabem que não devem invadir: o do corpo, o do lar, o dos pertences, o da propriedade. Essa é a base do “direito negativo”. E desses círculos decorrem os seus desdobramentos civis e políticos, ditos de segunda geração, o direito à vida, à liberdade de expressão, à liberdade religiosa, à legítima defesa, ao habeas corpus, a um julgamento justo, etc.

Já os “direitos positivos”, ditos de terceira geração, são os que requerem a ação de uma terceira pessoa para serem exercidos por quem vai desfrutá-los. Enquanto um “direito negativo” proíbe alguém ou o governo de agir contra o seu beneficiário, um “direito positivo” obriga outras pessoas ou o governo a agirem em benefício do seu detentor. Incluem-se nesse departamento os direitos sociais e culturais, tais como à comida, à habitação, à educação, a um emprego, à saúde, à seguridade social, ao acesso à internet ou o que mais se quiser incluir na lista, que, no Brasil, por exemplo, é infindável.

Lá a Constituição da União, elaborada pelos “pais fundadores” iluministas, contempla exclusivamente os “direitos negativos”, o que, na medida em que ela subordina todas as outras leis, estabelece a prevalência destes sobre os “direitos positivos”. Diz, no preâmbulo, que todo o poder emana do povo, que o delega aos seus representantes eleitos por sufrágio universal e define nos seus sete artigos, pela ordem, o Congresso dos representantes do povo, a Presidência, o Judiciário, as relações entre os Estados e deles com a União e as regras para emendar a Constituição. As emendas da 1.ª à 8.ª garantem os já citados direitos de segunda geração que decorrem dos círculos de inviolabilidade do indivíduo. A 9.ª e a 10.ª (para encerrar a disputa de egos entre os convencionais de 1787, que queriam cada um enfiar um direito a mais) declaram que tudo o que não está formalmente proibido até ali “são direitos que pertencem ao povo ou aos Estados”. Todos os temas da alçada do “direito positivo” que recheiam de ponta a ponta a nossa Constituição federal lá ficam, portanto, restritos às Constituições estaduais e municipais.


E aí vem o pulo do gato.

Como todo “direito positivo” (artificialmente criado) implica uma violação do “direito negativo” (inato, natural) de não ser coagido a nada nem ter o que é seu apropriado pelos outros, eles só podem ser criados, nos países de common law, por contrato, isto é, se todas as partes envolvidas concordarem com isso numa votação. E como cada “direito positivo” tem um custo, o projeto que o propõe tem de incluir obrigatoriamente o seu esquema de financiamento: qual será a despesa, quem arcará com ela, como e quando ela será paga.

Ou seja, não existe a hipótese de se fazer caridade com dinheiro alheio. Quem se dispuser a tanto deve usar o seu próprio.

Correndo em paralelo com a diferenciação entre “direito negativo” e “direito positivo” está o princípio do federalismo, a mais forte garantia em países de dimensão continental e ampla diversidade de situações de que o sistema estará sempre voltado para servir ao indivíduo e jamais poderá acumular poder suficiente para voltar-se contra ele. Cada instância de governo - a municipal, a estadual e a federal - é definida em função do seu grau de proximidade do indivíduo e deve ser absolutamente soberana até o limite do alcance dele. Tudo o que diz respeito a uma única comunidade - a escolha do seu modelo de governo, policiamento local, saneamento, vias públicas, educação, saúde, proteção contra incêndios, normas de comércio, etc. - deve ser decidido e custeado por ela própria e mais ninguém, respeitadas as linhas básicas da Constituição. Só o que envolver mais de uma comunidade - estradas, transporte intermunicipal, circulação de bens, repressão ao crime, sistema penal, etc. - deve ficar a cargo dos governos estaduais. E somente o que não pode ser resolvido por um único governo estadual fica a cargo da União.

Acrescenta-se finalmente à fórmula um sistema preciso de representação dos eleitores em cada uma dessas instâncias de governo, o que se consegue com eleições distritais puras, em que cada distrito elege apenas um representante. Tudo começa pela eleição do conselho que vai dirigir cada escola pública entre os moradores de cada bairro do país. E daí vai subindo para os municípios, para os Estados, para a União. Sempre com cada representante, com base no endereço, sabendo exatamente quem é cada um dos seus eleitores. Sempre com cada representado guardando o poder de manter ou não o seu representante até o fim do mandato (recall ou retomada de mandatos), de obrigá-lo a tratar dos assuntos que ele indicar (leis de iniciativa popular), de impedi-lo de impor-lhe o que quer que seja (referendo das leis vindas de cima), de afastar juízes lenientes ou enviesados (com eleições periódicas de retenção ou substituição de juízes).

Com essas liberdade e flexibilidade, aos poucos o sistema foi evoluindo segundo a necessidade e a preferência de cada comunidade. O bairro vota - sim ou não - um melhoramento da escola a ser pago com um aumento temporário só do seu IPTU; a cidade, a contratação de mais policiais ou a construção de um novo hospital mediante um aumento temporário da taxa local de comércio; o Estado, uma nova estrada a ser paga pelos seus usuários mediante pedágio...

E fez-se a luz... sempre na medida e no preço exatamente desejados.

Fonte: O Estado de São Paulo, por Fernão Lara Mesquita, 26/02/2019

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Os 70 anos da Declaração dos Direitos Humanos

Eleanor Roosevelt
Declaração dos Direitos Humanos faz 70 anos
Confira a íntegra dos 30 artigos da declaração, documento mais traduzido do mundo e que foi elaborado por dois anos

Assinada há exatos 70 anos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos representa o reconhecimento de que os direitos básicos e as liberdades fundamentais são inerentes a todo ser humano e foi responsável por avanços na defesa desses direitos em diversas partes do mundo. 

Elaborada durante dois anos, numa época em que o mundo sentia os efeitos da Segunda Guerra Mundial e estava dividido entre países capitalistas e comunistas, foi pontuada por desacordos entre nações dos dois blocos até ser aprovada, em Paris, às 23h56 de 10 de dezembro de 1948. 

Com 30 artigos, a declaração é considerada o documento mais traduzido do mundo —para mais de 500 idiomas— e inspirou as constituições de vários Estados e democracias recentes.
Reunião em Paris da então recém-criada ONU que aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 10 de dezembro de 1948
Reunião em Paris da então recém-criada ONU que aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 10 de dezembro de 1948 - AFP
O texto condena a escravidão e a tortura, defende o asilo para indivíduos perseguidos e o direito à educação gratuita, à liberdade de reunião e à propriedade privada e proclama que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”, “sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação”.

Foi aprovado na 3ª Sessão da Assembleia Geral da ONU (Organização das Nações Unidas), que na época reunia 58 países. Entre os que 48 que votaram, houve unanimidade. 

União Soviética, Belarus, Ucrânia, Tchecoslováquia, Polônia, Iugoslávia, Arábia Saudita e África do Sul se abstiveram. Honduras e Iêmen não estavam presentes. 

A pedido do delegado polonês Julius Kitzsoctly, foram lidos todos os artigos. Silêncio significava consentimento da audiência. A leitura durou quatro horas.

A ex-primeira-dama dos EUA e então presidente da Comissão de Direitos Humanos, Anna Eleanor Roosevelt (1884-1962), atingiu o cargo de coordenadora da Declaração por votação direta, no começo dos trabalhos, em 1946, e teve papel decisivo na aprovação do documento.

Confira abaixo a íntegra do texto de introdução e os 30 artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos:


DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS


Adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (resolução 217 A III) em 10 de dezembro 1948.

Preâmbulo

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo,

Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da humanidade e que o advento de um mundo em que mulheres e homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do ser humano comum,

Considerando ser essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo império da lei, para que o ser humano não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão,

Considerando ser essencial promover o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações,

Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos fundamentais do ser humano, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos do homem e da mulher e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla,

Considerando que os Países-Membros se comprometeram a promover, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos e liberdades fundamentais do ser humano e a observância desses direitos e liberdades,

Considerando que uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da mais alta importância para o pleno cumprimento desse compromisso,

Agora portanto a Assembleia Geral proclama a presente Declaração Universal dos Direitos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade tendo sempre em mente esta Declaração, esforce-se, por meio do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universais e efetivos, tanto entre os povos dos próprios Países-Membros quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição.

​Artigo 1
Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.

Artigo 2
1. Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. 

2. Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania.

Artigo 3
Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.

Artigo 4
Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas.

Artigo 5
Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.

Artigo 6
Todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei.

Artigo 7
Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.

Artigo 8
Todo ser humano tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei.

Artigo 9
Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado.

Artigo 10
Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir seus direitos e deveres ou fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.

Artigo 11
1.Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa. 
2. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Também não será imposta pena mais forte de que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso.

Artigo 12
Ninguém será sujeito à interferência na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataque à sua honra e reputação. Todo ser humano tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques.

Artigo 13
1. Todo ser humano tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado. 
2. Todo ser humano tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio e a esse regressar.

Artigo 14
1. Todo ser humano, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros países. 
2. Esse direito não pode ser invocado em caso de perseguição legitimamente motivada por crimes de direito comum ou por atos contrários aos objetivos e princípios das Nações Unidas.

Artigo 15
1. Todo ser humano tem direito a uma nacionalidade. 
2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade.

Artigo 16
1. Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua dissolução. 
2. O casamento não será válido senão com o livre e pleno consentimento dos nubentes. 
3. A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado.

Artigo 17
1. Todo ser humano tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros. 
2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade.

Artigo 18
Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; esse direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença pelo ensino, pela prática, pelo culto em público ou em particular.

Artigo 19
Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.

Artigo 20
1. Todo ser humano tem direito à liberdade de reunião e associação pacífica. 
2. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação.

Artigo 21
1. Todo ser humano tem o direito de tomar parte no governo de seu país diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos. 
2. Todo ser humano tem igual direito de acesso ao serviço público do seu país. 
3. A vontade do povo será a base da autoridade do governo; essa vontade será expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto secreto ou processo equivalente que assegure a liberdade de voto.

Artigo 22
Todo ser humano, como membro da sociedade, tem direito à segurança social, à realização pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade.

Artigo 23
1. Todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego. 
2. Todo ser humano, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho. 
3. Todo ser humano que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social. 
4. Todo ser humano tem direito a organizar sindicatos e a neles ingressar para proteção de seus interesses.

Artigo 24
Todo ser humano tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho e a férias remuneradas periódicas.

Artigo 25
1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis e direito à segurança em caso de desemprego, doença invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle. 
2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social.

Artigo 26
1. Todo ser humano tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito. 
2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos do ser humano e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz. 
3. Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos.

Artigo 27
1. Todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios. 
2. Todo ser humano tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica literária ou artística da qual seja autor.

Artigo 28
Todo ser humano tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados.

Artigo 29
1. Todo ser humano tem deveres para com a comunidade, na qual o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível. 
2. No exercício de seus direitos e liberdades, todo ser humano estará sujeito apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática. 
3. Esses direitos e liberdades não podem, em hipótese alguma, ser exercidos contrariamente aos objetivos e princípios das Nações Unidas.

Artigo 30
Nenhuma disposição da presente Declaração poder ser interpretada como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades aqui estabelecidos.

Fonte: Folha de São Paulo, 10/12/2018

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

A única coisa consistente no discurso de Olavo de Carvalho são os palavrões


Não concordo com tudo que diz Ruy Fausto, neste longo artigo, mas concordo no essencial sobre o personagem caricato mas perigoso que chega ao poder via Bolsonaro:
Olavo de Carvalho é antes de tudo um mitômano, e o seu discurso é um tecido de disparates, uma enxurrada de embustes. 
Olavo tempera os seus argumentos com dois molhos essenciais: abraços e palavrões —a baixaria mais chula por um lado e, por outro, sorrisos, tapinhas nas costas, conselhos e confissões, em tom de colóquio entre amigos. Esses ingredientes estão presentes em toda fala de Olavo. 
Olavo de Carvalho é um óbvio embusteiro, mas o Brasil parece adorar a espécie. Lula sempre foi também um óbvio embusteiro, mas tem devotos até hoje. De fato, o Brasil ficou dividido entre os devotos da seita do São Lula Presidiário e da seita do São Bozo Pistoleiro.

Agora os devotos do São Bozo Pistoleiro chegam ao poder com perspectiva nada democrática. E o famigerado projeto Escola Sem Partido é sua ponta de lança contra um dos princípios básicos da democracia: a liberdade de expressão. Que todos os democratas, sejam de direita ou de esquerda, unam-se contra mais essa ameaça autoritária à democracia brasileira.

Única coisa rigorosa no discurso de Olavo são os palavrões, diz Ruy Fausto
Autor questiona ideias do guru de Jair Bolsonaro e sua aplicação em propostas e ações do presidente eleito e sua equipe

As boas almas acham que tudo vai se normalizando no Brasil depois da eleição de Jair Bolsonaro. A ordem é pacificar, reduzir as diferenças ou fazer oposição... Construtiva. Afinal, seria preciso manter a cabeça fria. E se as coisas não se passassem exatamente assim?
[ x ]

Bolsonaro não era um candidato igual aos outros, aos que se apresentaram nas eleições de outubro ou em eleições anteriores, nem aos presidentes que se elegeram anteriormente. Exagero? “Complotismo”? Infelizmente, acho que não.

O vencedor do pleito de 28 de outubro não oculta o seu projeto, mesmo se afirma respeitar a Constituição, o que pode ser lido de muitas maneiras. Ele diz quais são as suas convicções e, com os seus partidários, da cúpula ou da base, age. Deixa claro que quer “desmontar o sistema”. E, em setores fundamentais, não deixa dúvida sobre o que isso significa.

As universidades e as escolas devem ser submetidas pela proposta da chamada Escola sem Partido. Houve também o episódio da intervenção nas universidades, que o STF pôs em xeque. Os jornais, já sabemos, devem se comportar bem, se quiserem ter “subsídios”. 

Nada de publicar notícias sobre uma funcionária do presidente eleito que é surpreendida pela reportagem muito longe do seu trabalho. E nada de notícias sobre o uso abusivo de uma mídia eletrônica pelo candidato e pelo seu partido, na realidade, a ponta emersa de um iceberg. Nada de escrever coisas incômodas ao presidente. Ou então: nenhuma publicidade oficial e entrada barrada às entrevistas coletivas do novo presidente. 

O Judiciário? Uma parte está com ele. A manifestação de cem procuradores e promotores em favor da famigerada Escola sem Partido é um sintoma da maior gravidade. Parte do Judiciário assume com entusiasmo um projeto liberticida. 

Há também o projeto de revogar a chamada “PEC da bengala”, o que permitiria a Bolsonaro nomear quatro ministros do Supremo... Uma deputada eleita diz que isso é necessário, já que por razões “ideológicas” (sic!) o STF tende a barrar as brilhantes iniciativas do presidente (Escola sem Partido, excludente de culpabilidade etc.). 

A parte do Judiciário que não estiver com o novo poder, cuidado: o filho deputado, o “menino”, não deixou por menos. Não é necessário um jipe nem um sargento para fechar o STF. Militares a pé, dos dois graus inferiores da hierarquia (com o perdão deles), poderão fazer o serviço. 

E a Câmara? Não sabemos. Claro que a maioria dos deputados e senadores não é flor de muito bom cheiro. Mas as duas instituições, estas, há que preservá-las. O futuro ministro da Economia quer “prensar” uma delas, e parece que o verbo “tratorar” andou também circulando. 

O Congresso aprova aumento dos subsídios dos membros do Judiciário, contrariando a vontade do novo presidente? Organiza-se um abaixo-assinado com mais de 1 milhão de assinaturas. Claro que somos contra esse aumento. Mas que uso fará o novo poder desse abaixo-assinado? Serviria de arma para uma batalha contra um Congresso demasiado indócil para o gosto do presidente? 

Eduardo Bolsonaro, deputado eleito por São Paulo, aquele mesmo do “soldado mais o cabo”, recidiva com nova entrevista. Dois pontos-chave: se precisar prender 100 mil, diz ele, a propósito da projetada criminalização dos movimentos sociais, prenderemos... Mais claro ainda: seu projeto é o de “proibir” o comunismo, como na Ucrânia, na Polônia e na Indonésia (!). O que significaria, está dito quase com todas as letras na entrevista, pôr fora da lei o PT, o PC do B, e o PSOL. Nada menos...

A verdade é que não só podemos dizer que há um perigo real de que evoluamos para uma forma atípica de ditadura. Sem exagero, acho que o processo que nos levaria por esse caminho já está em andamento.

Para entender quem é Bolsonaro, vale a pena se debruçar sobre sua relação estreita com Olavo de Carvalho. Olavo de Carvalho é um misto de mau filósofo, de iluminado e de ativista, um militante da mídia que é seguido por centenas de milhares de adeptos. 

Católico fundamentalista, ele andou falando bem de certos regimes, como o de Viktor Orbán, na Hungria. Nesse país, as “instituições” foram em geral conservadas. Vota-se, há câmaras legislativas e tribunais superiores e ordinários. Entretanto, é muito difícil dizer que a Hungria seja hoje uma democracia. 

Orbán assegurou uma maioria confortável no tribunal superior, por meio de nomeações devidamente controladas. Pôs a mão nas escolas e nas universidades. Graças ao controle dos jornais e de algumas medidas na organização das eleições, ele garante um domínio estável sobre o país e impõe práticas restritivas em matéria de costumes. A alternância se tornou quase impossível.

Se há risco de que esse modelo venha a ser implantado do Brasil, é preciso reunir forças, discutir o mais possível, e, “not least”, não se esquecer de desmontar o discurso do adversário. Esse trabalho é da maior importância.



É com essa perspectiva, que dedicarei o que segue a Olavo de Carvalho, em especial à entrevista que o mentor e ideólogo de Jair Bolsonaro deu, duas semanas atrás, à revista Carta Capital. 

Vou passar por cima de tudo o que a sua fala tem de simples besteirol ou de puro sofisma: a escola de Frankfurt pregaria a guerra cultural através da propaganda do incesto e, por isso, Fernando Haddad, adepto da Escola de Frankfurt defenderia o incesto; a reza de Magno Malta por ocasião do discurso da vitória de Bolsonaro não mereceria crítica porque, afinal, é uma reza e não um ato pornográfico (ele não discute o essencial: a ocasião da reza). Há, ainda, o procedimento que consiste em reduzir relações muito diversificadas, que existem —ou não existem— entre certos elementos, a predicações idênticas ou a identidades, do tipo: candidato do PT remete a PT, PT remete a Foro de São Paulo, Foro de São Paulo remete a Farc, Farc remete a droga, candidato do PT remete a droga... Etc. 

(Ver o discurso do futuro chanceler Ernesto Araújo. A postagem do diplomata em seu blog Metapolítica 17 é uma joia: “Haddad é o poste de Lula. Lula é o poste de Maduro, atual gestor do projeto bolivariano. Maduro é o poste de Chávez. Chávez era o poste do socialismo do século 21 de [Ernesto] Laclau. Laclau e todo o marxismo disfarçado de pós-marxismo é o poste do maoismo. O maoismo é o poste do inferno”. 

O ministro diz apreciar divisas como “Deus, Família e Pátria”. A dos integralistas brasileiros —versão nacional do fascismo— era “Deus, Pátria e Família”. Já o programa do futuro ministro da Educação, como dá a entender Antonio Prata em coluna na Folha, é mais propriamente o programa de um ministro da Propaganda). 

A Escola de Frankfurt visaria o domínio cultural? Falso —devemos responder—, isso seria aproximar “a revolução contra o capital” de Gramsci do discurso de Adorno, cético quanto à práxis (naquela conjuntura, pelo menos) e impregnado da dialética do capital. 

As metonímias sofísticas: uma referência menor de um autor ou de uma “escola” (Horkheimer falou uma vez do incesto, e falou sem pregar o incesto, “nota bene”) se transforma em bandeira da “escola” ou do autor. Olavo de Carvalho é antes de tudo um mitômano, e o seu discurso é um tecido de disparates, uma enxurrada de embustes.

Olavo tempera os seus argumentos com dois molhos essenciais: abraços e palavrões —a baixaria mais chula por um lado e, por outro, sorrisos, tapinhas nas costas, conselhos e confissões, em tom de colóquio entre amigos. Esses ingredientes estão presentes em toda fala de Olavo. 

Já me ocupei do Olavo filósofo (em “Caminhos da Esquerda”, Companhia das Letras, 2017, pp 47-53). O que o personagem diz sobre Epicuro é besteira, o que escreve sobre Hegel é banalíssimo e ainda por cima errado, o que diz sobre Marx é superficial e também não bate, o que escreve sobre Adorno é falso...

Na realidade, a única coisa rigorosa no discurso de Olavo de Carvalho são os palavrões. Os palavrões cumprem por si sós duas funções: violência e familiaridade. Em vez de se pavonear com pitorescos filósofos de extrema direita da Europa central, Olavo deveria bater à porta de alguma universidade séria da Europa ocidental ou dos EUA. 

Vejamos o que ele dizia sobre a Escola sem Partido. O entrevistador pergunta se convidar os alunos a filmar os professores para ver se eles propagam ou não “ideias subversivas” não representaria uma forma de censura à livre manifestação. Como faz com frequência, Olavo começa com um jogo de inversão, respondendo à pergunta mais ou menos do seguinte modo.

Censura? Quem censura não são aqueles que convidam os alunos a filmarem, mas são os professores que se recusam a ser filmados. Afinal, o ensino é uma atividade pública. Todos têm o direito de saber o que se passa na sala de aula. Por que os professores se recusam, por que não querem que todos tenham acesso ao conteúdo das suas aulas? Isso, sim, é censura. E se se empenham tanto na recusa é por uma das três razões seguintes. A comunicação pública de suas aulas revelaria: 1) que eles são comunistas; ou 2) que eles são incompetentes ; ou 3) que eles são pedófilos (sic, fim da referência).

Para responder de maneira convincente e rigorosa a essa argumentação sofística, é preciso começar pelas raízes. O ponto de partida é a sociedade brasileira e sua característica principal: uma sociedade que está no ranking das dez mais desiguais do mundo.

Em sociedades desse tipo, como naquelas em que se tem alternativa ou cumuladamente um poder brutalmente opressivo (por exemplo a russa do início do século 20), a intelligentsia (isto é, a intelectualidade preocupada com as injustiças que reinam no seu país) assume uma atitude crítica para com esse estado de coisas.

Quando se trata de professores, o que ocorre? Pode ser que algum imprudente faça proselitismo, mas isso parece ser raro. O que ocorre é que, ao falar do país, numa aula de história, geografia ou economia, ele deixa transparecer que se situa mais entre os críticos do que entre os que dizem sim ao statu quo.

Isso significa tomar partido? Essa atitude se configura como proselitismo partidário? Nada disso. Os professores reagem como seres humanos e cidadãos do país, como seres dotados de inteligência, de informação e de generosidade. 

Ora, é essa situação que os partidários da chamada Escola sem Partido não toleram. Eles querem obrigar os professores a ocultar seus sentimentos, o que é na realidade impossível e teria o efeito de prejudicar o nível do ensino. 

É evidente que, se não houver um mínimo de investimento emocional com verniz valorativo, o ensino de disciplinas como a história se torna impossível. Observemos o essencial: essa situação não configura de forma alguma uma “escola com partido”. Nem a recusa do controle indica uma atitude qualquer de censura por parte dos professores, como pretendeu Olavo. 

Ela remete simplesmente à liberdade elementar de exercer o seu trabalho, no caso de professor, expondo o conteúdo da sua “matéria”, com o investimento normal afetivo-valorativo que essa atividade exige. Assim, do lado do professor (fora os casos aparentemente raros de proselitismo, usados no entanto como se fossem a regra), não há nem “escola com partido” nem “censura”. 

E do outro lado? O que significa o convite a registrar a fala e a imagem do mestre cada vez que o aluno supuser que aquele toma posição política ou partidária? Considero sempre a situação dominante, que é aquela em que o professor, se não assume bandeiras, não se dispõe, entretanto, a inibir completamente suas simpatias pessoais —que, na maioria dos casos, vão na direção das causas progressistas. 

Assim, a cada vez que o aluno se convencesse de que o professor não estivesse sendo “neutro”, ele se poria a filmá-lo e, de volta para casa, encaminharia tudo para o pai. Este remeteria o vídeo às autoridades competentes —diretor da escola, polícia ou Ministério Público. 

Desse lado, haveria censura, ou anticensura, como quer Olavo? Claro que existe censura. No sentido de que quando o pai do aluno instrui o seu filho a filmar o professor (a narrativa começa por aí) e este procede à filmagem no momento em que lhe parece conveniente, não se está defendendo um direito elementar, como no outro caso.

Trata-se de reprimir o que representa, no caso geral, um verniz de expressão das convicções de quem ensina. Essa repressão não é, por isso, reivindicação de liberdade, mas ato de censura. Também não se diga que, sendo o ensino uma atividade de interesse público, é normal que todas as aulas sejam acessíveis ao público. Há acessibilidade e acessibilidade.

Em muitas circunstâncias as aulas são públicas. Mas a publicidade se faz com vistas ao interesse teórico das aulas e à transmissão do saber. Isso é completamente diferente da gravação que visa o controle policial do professor.

Porém imaginemos que este tenha de fato ultrapassado os limites. Estou convencido de que isso não ocorre com frequência e que tampouco esse seja o maior problema da educação brasileira. Mas, se ocorrer, o mal que poderia haver nisso é certamente muito menor do que aquele que se produz ao introduzir um dispositivo repressivo que ninguém controla, nem o pai nem o filho. 

Desencadeia-se uma caça às bruxas que leva ao pior: no limite, ao fascismo. Os professores ficam com medo de dar aulas (o que já está acontecendo), temem a presença dos alunos, o que afeta não o professor partidário, mas o comum dos mestres, que não é sectário e, na maioria dos casos, é sério e responsável. 

Hoje já não se dá aula no Brasil sem um estresse terrível, derivado da ideia de que um aluno poderia denunciar o professor porque este lhe pareceu animado demais ao falar, por exemplo, da queda do czarismo ou da revolução de 1848. 

A atitude da dupla pai de aluno/aluno, que o pessoal da “nova ordem” quer impor ao país, é assim repressiva, uma atitude de censura, não de contracensura. 

Desse modo, não só não se pode inverter os sinais como pretende Olavo de Carvalho (a censura seria, na realidade, reivindicação de liberdade, e vice-versa) mas também não teríamos nem mesmo uma espécie de “empate”, como se as duas causas tivessem a mesma legitimidade. 

Na realidade, não existe simetria no caso, e o julgamento que se impõe intuitivamente é, de fato, o mais rigoroso. A disposição de filmar o professor para registrar eventuais transgressões à neutralidade é alimentada por um impulso político, o de dizer amém ao statu quo —impulso que pode e deve ser chamado de partidário, no sentido de que, mesmo se ele não vier de um único partido, e no caso talvez venha, brota de uma filosofia política bem definida, a que visa conservar a situação presente com as suas violências e injustiças. O que significa: a suposta Escola sem Partido é, na realidade, escola com partido. 

Mas, se dizemos que há partido aí, não deveríamos dizer que também há partido no lado de lá? Não: se não há simetria quanto a “censura”, também não há quanto a “partido”. A não simetria se conserva quando passamos de um termo ao outro. É que a democracia, que inclui o direito de ser fiel às suas ideias (desde que não se trate de ideias liberticidas), não é propriamente simétrica a um projeto antidemocrático. A democracia é a regra definida pela Constituição. A ruptura da democracia é a transgressão dos institutos da Constituição. 

Olavo, no entanto, continua o raciocínio, enveredando por um caminho insólito (que vai ser o que ele seguirá, em declaração posterior, em que se reafirma partidário da Escola sem Partido quanto ao conteúdo, mas adversário dela na denominação e na tática). Ele diz que não pede neutralidade absoluta. Isso não existe; todas as pessoas tomam posição (fim da referência).

Há aí uma virada, que na sua essência —se nesse registro a essência fosse o decisivo— seria considerável. De fato, o interessante nessa suíte é que, levada a sério, ela poderia servir como ponto de partida para desconstruir a fala inicial, e foi este novo argumento que serviu como ponto de partida para a minha contra-argumentação.

De fato, o reconhecimento de que não há neutralidade absoluta corrói (ou começa a corroer) o dispositivo de justificação da censura, porque abre os olhos para a possibilidade e a realidade de um envolvimento discreto com valores, que é aliás a regra em aula sem proselitismo.

Assim, Olavo como que introduz pelo menos parte do argumento do adversário, o que em princípio invalidaria o que ele disse no início. Só que Olavo o faz de tal maneira que se tem a impressão de que essa continuação não desmente o início, mas o confirma. Esse efeito se obtém simplesmente pela continuidade do seu discurso e pelo silêncio em torno da virada que nele se opera. 

Porém o prestidigitador segue, e a argumentação se completa —cereja no bolo— por uma afirmação que desarma o interlocutor. Depois de dizer que não quer neutralidade absoluta, porque ela não existe, ele acrescenta que não deseja censurar ninguém, pelo contrário, que ele quer que todas as opiniões se manifestem, quer o pluralismo. Nas condições atuais —ele explica—, quem pensa diferente não pode se manifestar (fim da referência). 

Nesse momento, o interlocutor vencido dirá aliviado, como num filme de Eisenstein com letreiros em inglês: “What a democrat!”. Ele quer o pluralismo, nada melhor, é isso mesmo que todos queremos, e os que dizem que ele é autocrata se enganam redondamente.

Só que... Essa cereja no bolo contradiz de novo a fala inicial (a censura aos professores impede o pluralismo), mesmo se ela é apresentada, ainda uma vez, como se não a desmentisse, mas a confirmasse. Ele não dá um pio sobre a dificuldade que existe aí: censura a professores contradiz a liberdade plural. 

O pretenso direito de filmar as aulas não terá certamente o suposto efeito democrático. Os que procederem às filmagens, como os que as ordenaram, continuarão visando denunciar os professores por proselitismo. Eles não adotarão a filosofia da transparência nem acreditarão nisso. E Olavo sabe disso. 

De resto, ele próprio não acredita nessa fábula que o faria passar por defensor de uma escola à sueca ou à finlandesa. Quanto à ideia de que ninguém pode abrir a boca numa discussão em aula, isso é falso —mesmo que seja verdade que é sempre mais fácil falar quando a maioria concorda consigo do que quando a maioria discorda. Enquanto Olavo finge que tira o corpo, para desarmar a crítica, a lei famigerada segue o seu curso. Ele sabe disso e vai falando.

O repórter pergunta a Olavo se se justifica o elogio que Bolsonaro fez do torturador Ustra. Olavo responde que Bolsonaro não defendeu a tortura, apenas disse que Ustra não era torturador. Isto é duvidoso, já que, na famosa votação do pedido de impeachment, Bolsonaro prestou homenagem a Ustra, referindo-se a ele como “o pavor de Dilma Rousseff”. O pavor de Dilma Rousseff? Mas se é pelo menos incerto que a recusa em imputar a prática da tortura a Ustra (ou a dúvida sobre essa imputação) tenha sido a justificação fornecida por Bolsonaro para elogiar o coronel, este é certamente o argumento de Olavo para justificar Bolsonaro.

Tentemos desenredar esse imbróglio. De que Ustra tenha sido torturador, não parece haver dúvida. Torturador e/ou chefe “omisso” diante da tortura (que, em matéria de violência, a responsabilidade direta e a indireta não são tão diferentes, foi afirmado pelo próprio Olavo ao discutir com um ex-guerrilheiro). O que não o impede de tentar eximir Ustra, insistindo no fato de que este foi condenado pelo STF só por omissão. 

As vítimas que sobreviveram contam como foi essa “omissão”. Ustra pôs, sim, a mão na massa e até mandou virem os filhos das vítimas para assistir ao espetáculo. Não há razão para duvidar desse tipo de testemunhas. Assim, não há problema a esse respeito, e, como vimos, o próprio Bolsonaro, prudente, parece evitar um desmentido direto da imputação.

A verdadeira questão é: pode-se elogiar um torturador? A qual nos leva à pergunta fundante ou fundamental: a tortura é admissível? Vê-se o sentido do passe de mágica de Olavo de Carvalho. Ao ser inquirido sobre o seu juízo a respeito do pronunciamento de Bolsonaro, ele substitui as perguntas pertinentes por uma pergunta que não tem interesse, porque a resposta é conhecida. 

Pois Olavo se arranja para dizer que seria essa pergunta desinteressante a que estaria na base da declaração de Bolsonaro. Pergunta a que este responderia afirmando que Ustra era inocente. De defensor de um torturador, Bolsonaro passa, assim, a desempenhar o papel de advogado de um inocente. 

Como isso foi possível (refazendo ainda uma vez o caminho)? Pela sub-repção das respostas pertinentes (é legítimo defender a tortura e os torturadores, ou então, é ilegítimo defender a tortura e os torturadores), através do método da substituição da pergunta. 

Uma vez posta a nova pergunta (Ustra torturou ou não torturou?), basta optar pela resposta que tem mais cara de generosa e respeitadora de direitos. Presunção de inocência, ou “in dubio pro reo”, o bom Bolsonaro teria declarado que não é verdade que Ustra torturou, defendendo assim um presumido inocente. Conclui-se que, longe de ser o ogro que se supõe —valha a velha sofística!—, Bolsonaro defende na realidade as boas causas e até os direitos do homem, Q.E.D. 

Olavo acha que houve tortura no Brasil, mas “pouca”. A ditadura militar não teria matado quase ninguém, e eu acrescentaria, nem —a frio— um bom número de prisioneiros de guerrilhas (nenhuma ética civil ou militar justifica, em quaisquer circunstâncias, a liquidação a frio de prisioneiros)? Quanto à exigência de que se exibissem “olhos furados”, “ossos partidos”, todo mundo sabe que os torturadores faziam questão de deixar um mínimo de marcas.

Na entrevista a Carta Capital, como também em seus livros, Olavo de Carvalho se declara adversário do fascismo. As pessoas não sabem o que é fascismo, diz. 

(A propósito: a tese de Olavo de que Hitler é de esquerda é pura charlatanice. Certo, o partido de Hitler, ou antes, aquele ao qual ele aderiu, se chamava Nacional Socialista, mas Hitler apreciava a hierarquia, detestava a igualdade, era inimigo mortal da Revolução Francesa e de toda a tradição socialista etc). 

Olavo acrescenta: eu até discuti com um fascista, o ideólogo fascista russo Aleksandr Dugin, amigo de Putin. Imaginem. Eu, que discuti com Dugin, sou chamado de fascista (fim da referência). 

Afinal, quem é Olavo, em termos políticos? Dados os limites de espaço, vou utilizar referências suficientes. Já falei da sua simpatia pelo regime de Viktor Orbán, na Hungria, e sobre o que representa esse regime. Um outro elemento essencial, um dado tão imediato que até o perdemos de vista, é o fato de que ele apoiou e apoia Bolsonaro. 

A declaração desse apoio pode ser encontrada no vídeo “Bolsonaro não é o verdadeiro candidato”. Nele, Olavo conta a história dos seus livros e termina declarando apoio ao capitão. Este não seria nem de direita nem de esquerda, já que é o único candidato que “não tem ideologia”, tem apenas opiniões (impostura evidente: o evangelho ideológico de extrema direita que o candidato pratica e prega é ideologia, sim, e muito mais perigosa do que qualquer grande ideologia, o liberalismo ou o socialismo democrático). 

Bolsonaro teria o mérito de ir contra todos os partidos (engano: apesar das aparências, isto não é mérito. Bolsonaro não está além dos partidos, está aquém deles; ele combate aquilo que, apesar de tudo, eles têm de positivo —o respeito à ordem democrática). 

Além do que, ele escaparia da dominação esquerdista (mitologia pesada: os partidos de esquerda não são de forma alguma dominantes e, bem ou mal, são os que defendem um mínimo de justiça social, coisa que o ideólogo detesta). 

Ao recomendar Bolsonaro, bom candidato, Olavo diz, entretanto, que preferia o caminho da formação de comitês de bairro (!). Vê-se que o filosofastro-ativista sonha com uma política de massa... Mas no meio dessa peça lírica, em que se alternam considerações teóricas ou pseudoteóricas com histórias pessoais da família ou de seus amigos, emerge o segredo. 

Ao falar do que precisa ser feito no Brasil, diz inocentemente: é preciso pôr na ilegalidade o PT (e, acrescentemos, também o PSOL e o PC do B, é claro), porque é um partido ligado a um centro internacional. Nada menos do que isso (conforme a fala do filho de Bolsonaro). A quantos eleitores Olavo quer negar o voto, 50 milhões? 

A justificativa é de que o PT depende de um centro que seria o Foro de São Paulo. Tolice. A internacional comunista morreu há muito tempo. O tal Foro de São Paulo teve uma importância muito relativa. Não foi nenhum verdadeiro centro e hoje deve vegetar. Atualmente, o PSL talvez tenha mais contatos internacionais do que qualquer dos partidos de esquerda. 

Se Bolsonaro e os seus querem tirar da legalidade os partidos da esquerda, não é por temor ao “comunismo”. O “comunismo”, a rigor, não existe mais. Na sua forma autêntica, a do marxismo ortodoxo, nunca existiu; na sua caricatura stalinista restam, é verdade, governos como os de Cuba, Coreia do Norte ou Venezuela, respectivamente um Estado burocrático opressivo, um totalitarismo sangrento e um populismo corrupto que não hesita em abrir fogo contra manifestantes. 

É contra eles que vai a campanha de Olavo contra o comunismo? Também (os inimigos de nossos inimigos não são nossos amigos), mas de modo acessório. O que ele chama de “comunistas” são sobretudo as diversas tendências da esquerda democrática no mundo (social-democracia, esquerdas trabalhistas, esquerda cristã etc.). E são estas que ele de fato combate.

O projeto político de pôr na ilegalidade todos os partidos de esquerda caracterizaria que tipo de política? Fascista? Mas Olavo não se declara inimigo dos fascistas? 

Houve até aqui duas ondas autocráticas de direita, a da primeira metade do século 20 e a das primeiras décadas do século 21. Nas duas levas, temos uma variedade de casos, desde exemplares muito virulentos a formações menos brutais. 

Na primeira onda, estas últimas foram dominantes, e uma delas levou a um genocídio de proporções gigantescas. Mas o nazismo foi contemporâneo de governos menos radicais, como o autocratismo português e mesmo o franquismo, passada a guerra civil. 

Na segunda leva, há também uma variedade de modelos, porém não domina até aqui a forma genocida —das variedades modernas, a mais homicida é o governo de Duterte, nas Filipinas. O modelo que hoje parece dominante é o de Orbán na Hungria, que vai se impondo na Polônia (uma das referências de Eduardo Bolsonaro), na República Tcheca e na Eslováquia. 

Como denominar essa nova onda, e em particular como chamar a figura que corresponderia eventualmente ao caso brasileiro? Para a forma típica do regime de Orbán e de outros análogos, há o neologismo “democratura”, que é interessante e talvez convenha para designar igualmente a nova onda em geral, do mesmo modo que “fascista” nomeava um caso particular mas também, com frequência, o conjunto da primeira leva. 

Mas continuemos: Olavo diz que não é fascista e que até já discutiu com fascistas. Será que esse fato se ajusta à minha leitura? Ou eu estaria forçando a barra? Pois tome-se o modelo: Viktor Orbán. O regime de Orbán e do seu partido, o Fidesz, tem como adversário um outro partido, pequeno e mais ou menos neutralizado pelo Fidesz, porém existente. 

Esse partido é o Jobbik. Apesar de uma tentativa de “desdemonização“ recente, esse partido é notoriamente racista e antissemita; ele tem a sua própria “guarda”, com um núcleo “viril”, é acusado de violências e de homicídios contra a população cigana e simpatiza com Dugin. Assim, Orbán é, à sua maneira, adversário dos fascistas. Estes encarnam demasiado —mais do que seria “necessário” hoje— a primeira onda e, por isso mesmo, na segunda, só podem ser marginais.

É com legitimidade idêntica à de Orbán que Olavo pode se declarar antifascista ou antinazista. É a oposição entre a forma moderna e a forma antiga do autocratismo. Os neofascistas contra os fascistas. Contudo, não é preciso ser nazista nem fascista à antiga para dar o apito inicial para muitos horrores (ver Duterte, nas Filipinas).

Dirão talvez que exagero: não é certo que a ameaça se efetive. De fato não é certo que ela se efetive por inteiro. Entretanto, é certo e provado que o projeto político de Bolsonaro e de seu mestre Olavo vai no sentido indicado, que não é o da democracia; e que o projeto já está sendo implementado.

Em resumo, não se deve dar ouvidos aos “cientistas políticos” que nos garantem que as “instituições brasileiras” são “sólidas”. Hoje, menos do que destruir as instituições, os inimigos da democracia as ocupam e as cristalizam em seu proveito.

Entretanto, ainda é possível evitar que a tragédia se consume. Não há outro caminho senão o de denunciar o verdadeiro caráter do poder que vai se instalando no Brasil e o de tentar pôr em xeque, no limite das nossas forças, as suas jogadas sucessivas. Para os próximos dias e as próximas semanas, a urgência absoluta é dar parada ao seu primeiro lance, a —ó, quão funesta— lei da Escola sem Partido. 

(Com agradecimentos a meu amigo Arthur Hussne Bernardo, uma das primeiras pessoas a se dar conta, no Brasil, dos laços estreitos que unem Bolsonaro e Olavo. Este ensaio tem dívidas para com um artigo de Arthur, “O Bolsonarismo É um Olavismo”, que sairá em breve). 

Ruy Fausto é professor emérito do Departamento de Filosofia da USP e autor de “Caminhos da Esquerda” (Companhia das Letras).

Fonte: Folha de São Paulo, 30 de novembro

Compartilhe

Twitter Delicious Facebook Digg Stumbleupon Favorites