8 de Março:

A origem revisitada do Dia Internacional da Mulher

Mulheres samurais

no Japão medieval

Quando Deus era mulher:

sociedades mais pacíficas e participativas

Aserá,

a esposa de Deus que foi apagada da História

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terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

Livro "Mulheres Filósofas na História" para baixar gratuitamente

De Hipátia a Simone de Beauvoir
História da filosofia geralmente significa a história dos homens filósofos, situação que a academia respalda ao focar a atenção apenas neles. As mulheres não filosofam? Não existem filósofas? Filosofar é uma necessidade e uma capacidade humana, não um privilégio masculino.
Folheei pelo menos três enciclopédias filosóficas e, entre todos os nomes encontrados (exceto Hipátia ), não encontrei sequer vestígios do de filósofas. Não é que não houvesse mulheres que filosofassem. É que os filósofos preferiram esquecê-las, talvez depois de se apropriarem de suas ideias  (Umberto Eco)
O livro Mulheres Filósofas na História pretende dar conta da jornada histórica (da Antiguidade ao século XXI) de algumas pensadoras e suas contribuições. A maioria delas não teve as mesmas possibilidades econômicas e simbólicas que seus contemporâneos homens. Muitas foram ridicularizadas por setores masculinos cultos, ameaçadas, silenciadas e até torturadas.

A escritora Ingeborg Gleichauf apresenta quarenta e quatro pensadoras de diferentes origens, ambientes e disciplinas, em seus contextos sociopolíticos e filosóficos (índice abaixo). Isso mostra que, superando muitos obstáculos, elas sempre filosofaram, desenvolvendo seu pensamento paralelamente ao de filósofos reconhecidos e estudados.

Índice do livro:

Mulheres filósofas na antiguidade:

  • Crotone Theano
  • Aspasia
  • Diotima
  • Fintis
  • Perictione
  • Hypatia
Filósofas cristãs da Idade Média
  • Hildegard von Bingen
  • Mechthild von Magdeburg
  • Marguerite Porete
  • Catarina de Siena
  • Christine de Pizan
A era renascentista
  • Tullia d'Aragona
  • Isabel de Villena
  • Teresa de Ávila
  • Marie Le Jars de Gournay
Século XVII
  • Margaret Cavendish
  • Anne Finch Conway
  • Mary Astell
  • Juana Inés da Cruz
A Era da Iluminação
  • Gabrielle Émilie de Breteuil
  • Olympe de Gouges
  • Mary Wollstonecraft
  • Johanna Charlotte Unzer
  • Harriet Hardy Taylor-Mill
Romantismo
  • Bettine von Arnim
  • Karoline von Günderrode
  • Rahel Varnhagen
  • Germaine de Stael
O século 19 e o fim do século
  • Hedwig Dohm
  • Concepção Arenal
  • Helene Stocker
  • Leonore Kuhn
  • Helene von Druskowitz
  • Hedwig Bender
  • Harriet Martineau
  • Mary Whiton Calkins
Filosofia do século XX
  • Hedwing Conrad-Martius
  • Edith Stein
  • Simone Weil
  • Hannah Arendt
  • Simone de Beauvoir
  • Gertude Elizabeth Margaret Anscombe
  • Agnes Heller
  • Sarah Kofman
  • Martha C. Nussbaum
  • Maria Zambrano

Este livro oferece a possibilidade de completar uma história tantas vezes silenciada, uma história fragmentada da filosofia, sendo um excelente ponto de partida para pesquisas adicionais.

Para baixar Mulheres Filósofas na História em PDF, basta clicar aqui . Pode-se lê-lo on-line ou fazer o download gratuitamente para seu PC ou qualquer dispositivo móvel.

Tradução Míriam Martinho de Libro sobre Mujeres filósofas en la historia en PDF ¡Gratis!, Cultura Filosófica, 21/11/2019

Ver também A Presença das Mulheres na Filosofia (livros para baixar em português)

segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Socorro, seu Descartes, os contra-iluministas estão de volta


Estava lendo um texto sobre direita x esquerda de uma professora de filosofia (Direita ou gorgonzola,  Bruna Frascolla) onde a dita discorre sobre as semelhanças do populismo autoritário de esquerda e de direita em suas viagens alucinógenas.

Apesar do excesso de citações e ironias um pouco forçadas, estava até gostando do texto, principalmente quando a moça aponta, como eu mesma já pontuei, que ambas as visões atuais de esquerda e de direita são contra-iluministas, contra o racionalismo e a perspectiva científica de analisar o mundo. Não haveria "ideologia de gênero" sem a concomitante "identidade de gênero", né mesmo?

O "Penso, logo existo" do Descartes, em sua busca da verdade através da experimentação e dos fatos, foi substituído pelo "Sinto, logo existo" que hoje une esquerda e direita num romântico casamento de irracionalidade e bizarrices várias. Se eu sinto que sou um cachorro, uma gata, um dragão, um elfo ou um homem (eu que sou mulher), é o que vale. Se a maioria das pessoas não compra minha autopercepção, elas é que estão erradas. Se acho que a Terra é plana, que toda vacina faz mal, que existe mamadeira de piroca e restos de feto em garrafa de Pepsi, o que importa é que os meus frágeis argumentos e sentimentos não podem ser feridos e aferidos pela malvada realidade objetiva. Inclusive quero usar o poder de Estado para obrigar todo o mundo a concordar comigo, sob pena de cadeia e fogueira em praça pública para os novos hereges da Liberdade de Pensamento.


Então, retomando, estava até concordando com a fulana, quando ela me solta uma história de que "o patriarcado das feministas é tão ridículo quanto o globalismo", colocando ambos os termos no terreno da fantasia. Minha mãe, a mulher escreve textão e invoca Descartes num apelo de volta à racionalidade e à analise dos fatos, em vez do embalo alucinógeno das ideologias, e me sai com uma dessas?

Porque, pelamor, negar a existência do patriarcado é simplesmente como negar a existência do sol, a lei da gravidade ou as mudanças climáticas. Com exceção de alguns grupos étnicos, perdidos nos rincões do planeta, que vivem ainda em sociedades matriarcais, o patriarcado é hegemônico no mundo. Ninguém precisa ler livro feminista para sacar isso. É só abrir os olhos e ver. Quem controla o poder de Estado, com seu braços legislativo, executivo e judiciário, sem falar no braço armado? Os homens. Quem controla o poder econômico e financeiro, as grandes corporações que hoje dominam tudo? Os homens. Quem controla a ciência e a tecnologia? Os homens. Quem controla os meios de comunicação, as artes e a cultura em geral? Os homens. Isso sem falar que, em muitos países, as mulheres ainda sequer têm os direitos mais básicos de cidadania, são verdadeiras escravas. Então, como assim o patriarcado das feministas (das feministas?) é ridículo? O caso da filósofa (deve ser uma liberaleca, pelo visto) é o do peixe que não vê a água porque nela vive imerso.

Conclusão, a situação que vivemos hoje é dramática porque mesmos os liberais (os principais herdeiros do Iluminismo), que pensam pairar acima da psicodelia argumentativa da esquerda e da direita, vivem cuspindo no prato que Descartes lhes ofereceu. Também desprezam os fatos, acreditam na pseudociência da psicobiologia evolutiva (sic), em determinismo biológico, numa suposta naturalidade dos estereótipos de gênero, em identidade de gênero e, agora, ficamos sabendo, também que o patriarcado não existe (li ainda uma outra igualmente afirmando que a heterossexualidade obrigatória é invenção de feminista radical). Valei-nos nossa senhora das desamparadas da idade da razão, que esse mundo virou um hospício!!

segunda-feira, 21 de maio de 2018

Westworld impacta ao simular samurais de Akira Kurosawa no 5º episódio da segunda temporada

Atriz japonesa Rinko Kikuchi como a gueixa Akave
Nosso patrício Rodrigo Santoro acertou quando disse que o quinto episódio da segunda temporada de Westworld, Akane No Mai, seria o melhor da temporada. Homenagearam o grande diretor japonês Akira Kurosawa, resgatando o Japão feudal e seus samurais e ninjas, no Shogun World, com produção caprichada e a linda atriz japonesa Rinko Kikuchi fazendo uma gueixa que é uma espécie de alter ego da protagonista Maeve. Botaram até o samurai dos samurais, o Musashi, na história, que, por sua vez, vira alter ego do Hector (personagem do Rodrigo Santoro). É que - ficamos sabendo - os criadores das narrativas dos androides repetem as histórias nos diferentes mundos do parque.

Mais violento do que o parque do faroeste, o Shogun World esbanja sangue e pedaços decepados pra lá e pra cá, em cenas de muita ação, mas os dois pontos altos do episódio são a dança que a gueixa Akane (Rinko Kikuchi) faz para o Shogun ou xogum em português (chefe militar e senhor feudal) e as questões existenciais dos androides em seu processo de tomada de consciência. As falas da Maeve, a ex-cafetina, com a gueixa Akane, em torno do amor das duas respectivamente por suas filha e protegida, foram pura emoção.



Música da cena da dança:C.R.E.A.M. - Ramin Djawadi,
Gravada originalmente por Wu-Tang Clan

A saga das duas androides Dolores e Maeve por poder, amor e liberdade
O episódio deixa claro também a consolidação da saga das duas androides que tomam consciência de sua condição e se rebelam contra o domínio humano:

Dolores que, quando programada, era a boazinha de plantão, vive agora com o desejo de vingança e poder. Sabe-se superior aos humanos e quer dominar os parques e o mundo fora deles. Nesse processo vem se abrutalhando e exigindo o mesmo dos que a seguem.

Maeve que, quando programada, era a cafetina do bordel de Westworld, hoje é movida pelo desejo de amor e liberdade. Busca a filha nos mundos dos parques e, a cada episódio, se torna mais consciente de suas capacidades e poder. A atriz Thandie Newton está dando show na pele da Maeve.

O episódio do Shogun World, recriando o Japão feudal, com atores japoneses, falado em japonês, mostra que, tanto na produção quanto no roteiro, Westworld ganha de outras séries em sofisticação visual e de conteúdo. A manada, acostumada com os clichês das outras séries e suas obviedades, não entende o que vê e acha chato.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Curtas de animação para aprender filosofia, sociologia e política

De Platão a Foucault: 136 curtas de animação para aprender tudo sobre filosofia, sociologia e política

A empresa especializada em educação online Macat produziu uma série de animações curtas sobre as principais teorias de grande pensadores da humanidade. Ao todo, são 136 vídeos com duração de aproximadamente três minutos cada. Todos eles foram disponibilizados gratuitamente no canal da instituição no Youtube. Os temas abordados são bastante amplos, contemplando desde filosofia clássica, com os pensamentos de Platão e Aristóteles, até a filosofia moderna, de Foucault e Judith Butler.

Além deles, as animações abordam também os principais pensamentos de Charles Darwin, em “A Origem das Espécies”; Sun Tzu, “Arte da Guerra”; Aristóteles, “Política”; Henry David Thoreaus, “A Desobediência Civil”; Sigmund Freud, “A Interpretação dos Sonhos”; Virgina Woolf, “Um Teto Todo Seu”; Max Weber, “A Política como Vocação”; Thomas Hobbes, “Leviatã”; Immanuel Kant, “Crítica da Razão Pura”; Friedrich Hegel, “Fenomenologia do Espírito”; Levy Strauss, “Antropologia Estrutural”; Karl Marx, “O Capital”; Friedrich Nietzsche, “Para Além do Bem e do Mal”; Hannah Arendt “A condição Humana”; Simone de Beauvoir, “O Segundo Sexo”; entre outros.

Os vídeos estão disponíveis apenas em inglês, no entanto é possível utilizar o serviço de legendas automáticas do Youtube, que pode ser ativada no canto inferior direito da tela de reprodução.

Exemplo:


Fonte: Revista Bula, Web Stuff, por Jéssica Chiareli

quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Curso de extensão da USP sobre Judith Butler e Michel Foucault

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Judith Butler e Michel Foucault
A Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, por meio do Departamento de Antropologia Social, ofereceu, no segundo semestre deste ano, um curso de extensão, denominado Poder e Performatividade Pública: introdução a Judith Butler e Michel Foucault, que aborda conceitos-chave da teoria de ambos os autores bem como suas correlações. Quem administrou as aulas foi a professora Jacqueline Moraes Teixeira (ver ps vídeos abaixo), e os textos do curso podem ser acessados no google drive clicando aqui.
Jacqueline Moraes Teixeira

Considerando a importância que esses dois autores têm nas discussões sobre gênero, em particular, Judith Butler, recentemente alcunhada, por grupos conservadores, de criadora da "ideologia de gênero", vale a audiência desse curso e a leitura de seus textos. 


Arqueologia do Saber/ Michel Foucault


As Palavras e as Coisas/ Michel Foucault 
Corpo e Dispositivo da Segurança em Michel Foucault  
Governamentalidade e Dispositivo do Poder Pastoral pt.1  
Governamentalidade e Dispositivo do Poder Pastoral pt.2  
História da Sexualidade / Michel Foucault pt.1  
História da Sexualidade / Michel Foucault pt.2  
Problemas de Gênero 1/ Judith Butler 
Problemas de Gênero 2/ Judith Butler  
Relatar a si mesmo / Judith Butler  
Vidas precárias 1 / Judith Butler  
Vidas precárias 2 / Judith Butler  
Performatividade e Teoria da Assembleia / Judith Butler

terça-feira, 4 de abril de 2017

A Presença das Mulheres na Filosofia

"Quantas filósofas conhecemos? Quantas filósofas brasileiras conhecemos?
Não adianta falarmos que não existe mais machismo na filosofia,  nem conservadorismo,
se não encontramos, na prática, a presença das mulheres nestes setores"
Procurando sobre o tema "mulher e filosofia'", encontrei a entrevista abaixo com a professora e pesquisadora Juliana Pacheco, feita pela escritora Monica Marques para o site da revista Capitu, bem como o texto "As Mulheres entram na filosofia" (clique no link para baixar) da professora de filosofia Maria Luísa Ribeiro Ferreira da Universidade de Lisboa. Assim como nas ciências, em particular nas exatas, a contribuição das mulheres na filosofia sempre foi subestimada e invibilizada. Resgatar essa contribuição é, portanto, também de grande importância. E, falando nisso, retifico a declaração da Juliana Pacheco de que a mundialmente famosa filósofa Martha Nussbaum tem um único livro traduzido para o português. De fato, já são 4 os livros: Sem fins Lucrativos, Fronteiras da Justiça, A fragilidade da bondade e Educação e Justiça Social. Seguem as capas.





Também é possível baixar os dois livros da Juliana Pacheco, clicando nos seguintes links:  Filósofas: A Presença das Mulheres na Filosofia e Mulher e Filosofia: As Relações de Gênero no Pensamento Filosófico. Boa leitura!

Filósofas — Invisibilidade e Luta

Falar de mulher e filosofia ainda é algo que gera uma estranheza, pouca aceitabilidade e credibilidade. O que existe é a falta de reconhecimento dos trabalhos produzidos pelas mulheres

Quando pensamos em filosofia, quase espontaneamente vem à mente a clássica imagem de homens velhos e sábios. Também é assim na política. Muito dificilmente a imagem de uma mulher se refere a ela enquanto agente político ou intelectual. Da mesma forma como se apagou a resistência dos negros frente ao racismo, apagou-se da história a maioria das mulheres que, contrariando as privações a que eram (e ainda são) submetidas, produziram conhecimento e agiram politicamente.

O que devemos perguntar é: mas será que não existiram mesmo? Quem são e a quem interessa esse apagamento e ocultação?

A professora e pesquisadora Juliana Pacheco organizou dois livros a fim de desmistificar o pensamento filosófico como atividade essencialmente masculina. O mais recente, lançado no fim de 2016, Filósofas: A Presença das Mulheres na Filosofia, e um de 2015, Mulher e Filosofia: As Relações de Gênero no Pensamento Filosófico, com prefácio da filósofa Marcia Tiburi, ambos disponíveis em pdf no site da Editora Fi. Conversamos com ela sobre o legado das mulheres para história da filosofia, a apropriação do conhecimento produzido por mulheres (sem creditá-las, obviamente), a percepção da mulher na filosofia ontem e hoje, e mais!

Juliana nasceu em 1986, no Rio Grande do Sul, na cidade de Porto Alegre, onde leciona Filosofia, na rede privada, para o ensino médio, Educação para Jovens e Adultos (EJA) e educação infantil. Realiza pesquisas sobre as mulheres na história da filosofia, desde 2009, buscando resgatar a presença e importância das mesmas no campo filosófico. Em 2015 organizou o primeiro evento da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio Grande do Sul (RS) sobre as mulheres na filosofia, o qual resultou no Mulher e Filosofia. Em 2017 seus dois principais projetos são a organização de um terceiro livro, Filósofas Latino-Americanas, e um trabalho ligado à filosofia para crianças.

Como nasceu o Filósofas e o que a motivou a organizá-lo?

A ideia deste livro nasceu na época em que eu ainda cursava a graduação em filosofia, na PUC/RS, no ano de 2009. Logo que entrei no curso foi notória a presença predominante da figura masculina, tanto em relação aos colegas como aos professores, e principalmente aos conteúdos aplicados em aula. Ou seja, eram mencionados e trabalhados apenas conceitos e teorias de filósofos homens.

Devido a essa “ausência” feminina, comecei a pesquisar sobre as mulheres dentro da filosofia e descobri a existência de muitas filósofas; e que, por vários fatores, elas foram ocultadas da história da filosofia. Era impressionante ver o espanto e surpresa de colegas quando eu comentava sobre a existência de filósofas desde a Antiguidade, pois acreditavam no que sempre ouviram falar: que a filosofia foi “construída” pelos homens. Foi percebendo a importância e emergência desta questão que surgiu a motivação para a criação e organização do livro, o qual, além de trazer a presença dessas mulheres filósofas, busca de certa forma reparar e até mesmo fazer justiça com as pensadoras que contribuíram para a história do pensamento filosófico. Dessa forma, procura-se evidenciar a presença de filósofas mulheres, mostrando que a filosofia não é apenas tecida por mãos masculinas, e que a “faculdade do pensar” não se restringe aos homens.

Qual o legado das filósofas para a história da filosofia?

As filósofas contribuíram bastante para a história da filosofia, principalmente em relação ao aspecto existencial, mostrando que qualquer ser humano é capaz de filosofar e que sua condição não está determinada por aspectos biológicos e/ou naturais. Digo isso no sentido de que as mulheres precisaram questionar, refletir e romper com a condição existencial imposta a elas. Elas tiveram um trabalho dobrado e difícil, de se autoanalisar e lutar pelo direito de “pensar”. Partindo das filósofas mais antigas, podemos mencionar Aspásia de Mileto, que possuía a arte do bem falar, tendo sido ela a ensinar retórica a Sócrates — como consta no diálogo Menêxeno, escrito por Platão. Isso muda toda aquela tradição em que a oratória era algo desenvolvido e aperfeiçoado pelos homens.

Já na Idade Média, podemos mencionar Christine de Pizan, uma filósofa e poetisa que tratou de diversos assuntos, tendo como marca principal a defesa das mulheres. Enfatizou a questão do acesso à educação para as mulheres, dizendo que se fosse dado a elas o mesmo ensinamento que os homens recebiam, não haveria essa diferença entre os sexos. Isso mostra uma visão social e política a frente de seu tempo. Na modernidade, a filósofa Olímpia de Gouges também se dedicou às questões dos direitos das mulheres e dos desfavorecidos. Ela criou a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã para rebater a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, buscando promover uma sociedade igualitária.

Quando a mulher se destaca em alguma descoberta ou estudo, há sempre uma justificativa, de modo a afirmar que a sua capacidade se deve ao ensinamento, orientação e/ou parceria com algum homem

Na contemporaneidade, a filósofa Simone de Beauvoir também contribuiu bastante com as questões sobre a emancipação e os direitos das mulheres. Sua famosa frase “não se nasce mulher, torna-se” ganhou muita repercussão, principalmente entre as feministas, pois mostra a raiz do problema da existência feminina, que é a questão da condição estabelecida pela sociedade. Ou seja, na medida em que se nasce “mulher”, a criança já começa a ser moldada conforme as regras femininas de comportamento, vestimenta, gostos, hábitos etc.

Poderia mencionar inúmeras filósofas e seus conceitos e contribuições, mas, de modo geral, percebemos que o maior legado das filósofas para a história da filosofia está centrado na área da filosofia política, pois elas tiveram que se libertar do privado e conquistar o público para serem notadas e ouvidas. Se essas questões e ações políticas não tivessem acontecidos, as mulheres ainda estariam presas no campo doméstico sem ter a chance de pensar sua existência, ou seja, sem tem a chance de fazer filosofia. Além dessa contribuição geral, há as contribuições mais específicas, como o conceito de “banalidade do mal”, da filósofa Hannah Arendt; o objetivismo de Ayn Rand; a junção de ativismo político com teoria filosófica da filósofa Iris Young; o “marxismo” de Rosa Luxemburgo, entre tantas outras.

Uma das questões levantadas no livro que mais me fascinaram é a apropriação de conhecimentos e ideias de mulheres pelos homens sem que, contudo, haja reconhecimento quanto a autoria. Gostaria que comentasse alguns exemplos dessas apropriações indevidas e falasse um pouco sobre isso.

As questões de apropriações indevidas decorrem da dificuldade em reconhecer a capacidade cognitiva das mulheres. Quando a mulher se destaca em alguma descoberta ou estudo, há sempre uma justificativa. Geralmente essas justificativas são feitas de modo a colocar a figura masculina sobre a feminina, no sentido de que a capacidade e habilidade de determinada mulher se deva ao ensinamento, orientação e/ou parceria com algum homem. Podemos pensar no caso da Simone de Beauvoir, a qual é colocada sempre como a parceira de Sartre, sem ser vista como produtora intelectual autônoma, inclusive muitos dizem que seus escritos estão embasados nos conceitos deste filósofo. Mas por que não pode ter sido o contrário? Por que muito da teoria existencialista de Sartre não pode estar embasada nas concepções de Simone? Afinal, eles eram parceiros intelectuais também, trocavam ideias, conhecimentos, faziam debates, dialogavam entre eles, e isso gerava influência — seja direta ou indireta — no momento de construírem seus conceitos e teorias.
A visão de que a mulher é naturalmente um ser medíocre, incapaz, submisso e inferior ao homem, percorre tanto os filósofos antigos como os contemporâneos, o que muda é a maneira como cada um deles aborda essa visão

Podemos pensar também o caso da filósofa Diotima de Mantinea, a professora de Sócrates. A presença de Diotima é encontrada no livro de Platão O Banquete. Nesta obra, Sócrates anuncia que todo seu conhecimento sobre a teoria do amor foi ensinado pela sua mestra Diotima de Mantinea. Contudo, ainda há muita resistência em se considerar que a grande figura da filosofia, Sócrates, tenha sido pupilo de uma mulher. Essa resistência é percebida no momento em que se coloca a existência desta filósofa em dúvida, pois a única informação que temos a respeito dela está nessa obra de Platão; dizem que ela pode ter sido somente uma personagem. Porém, não vemos com tanta insistência ou relevância a existência de Sócrates sendo colocada em dúvida, já que igualmente só sabemos da existência dele pelas obras de Platão. Sócrates continua sendo trabalhado e mencionado nos cursos, filmes são feitos sobre sua vida como filósofo; em relação a Diotima nada é feito, nem ao menos reconhecê-la como figura responsável pela genealogia do amor.

Outro exemplo importante a ser mencionado aqui é o filósofo René Descartes. Ninguém sequer imagina que esse influente filósofo obteve ajuda, estímulo, informações de mulheres no momento de aperfeiçoar seus conceitos e teorias. Para o fechamento do sistema cartesiano, as indagações e provocações dessas mulheres foram essenciais, pois fizeram com que Descartes se autoquestionasse, ou melhor, que problematizasse suas próprias afirmações e teses. Uma dessas mulheres a contribuir para a teoria cartesiana foi a Elisabeth de Boêmia, que trocou diversas cartas com esse filósofo, abordando medicina, metafísica, psicologia, entre outros temas.

No entanto, esses mesmos filósofos, segundo mostra o livro, têm opiniões bastante “interessantes” sobre as mulheres. Gostaria que você comentasse um pouco sobre a percepção dos filósofos acerca das mulheres ao longo do tempo.

Podemos dizer que, ao longo da história, os filósofos reforçaram e estabeleceram o papel das mulheres dentro da sociedade, colocando-as sempre numa posição de inferioridade e subordinação. A visão de que a mulher é naturalmente um ser medíocre, incapaz, submisso e inferior ao homem, percorre tanto os filósofos antigos como os contemporâneos, o que muda é a maneira como cada um deles aborda essa visão. Alguns foram mais diretos, outros mais sutis. Platão, quando utiliza no Timeu o mito da criação do homem, só reforça a ideia de que a mulher é um ser pecaminoso e indigno. Aristóteles ao constatar masculino e feminino como contrários, colocando o feminino como a privação do masculino, está reforçando a ideia de que a mulher deve se privar e se submeter a vontade de seu contrário, o homem. Kant, ao tratar da questão da menoridade intelectual, vai afirmar que, apesar de alguns homens pensarem de modo autônomo, as mulheres não possuem essa capacidade, ou seja, todas elas são menores intelectualmente, dependendo do pensamento e orientação de outros. Spinoza, ao falar da democracia em seu Tratado Político, exclui a participação das mulheres, apelando para questões biológicas e naturais. Rousseau atribui às mulheres apenas a função doméstica (mãe e esposa), justificando isso pela questão física, de que a mulher é menos forte que o homem, e pela questão da maternidade, que limita sua independência.
As mulheres na filosofia estão aí, querendo entrar, porém, pouquíssimas portas se abrem, causando a impressão de que apenas os homens gostam e podem fazer filosofia

São muitos os filósofos que descreveram negativamente as mulheres, mas gostaria de referenciar uma visão positiva, a de John Stuart Mill, um dos poucos filósofos não misóginos, que reconheceu a mulher como um ser capacitado intelectualmente. Em seu livro A Sujeição das Mulheres, esse filósofo tenta mostrar o equívoco de se considerar a mulher como portadora de uma natureza subalterna. Ele vai dizer que não se pode conhecer a capacidade das mulheres porque nunca houve a chance delas mostrarem. Assim, não há como afirmar que as funções exercidas por cada sexo em nossa sociedade estão adaptadas a sua natureza.

Gostaria de saber ainda se essas opiniões são presentes em certa medida em nossa sociedade e se afetam a autocompreensão das mulheres e a sua entrada no campo filosófico.

Infelizmente, essa visão misógina e machista permeia nossos dias atuais, sendo difícil, para nós mulheres, o reconhecimento não só no campo filosófico como nos demais setores da sociedade. A figura feminina ainda está ligada apenas ao emocional, sendo distanciada da racionalidade. Assim, falar de mulher e filosofia ainda é algo que gera uma estranheza e consequentemente pouca aceitabilidade e credibilidade. Não existem poucas mulheres interessadas por filosofia ou uma ausência de filósofas atualmente, o que existe é a falta de reconhecimento dos trabalhos dessas mulheres.

E por que isso ocorre em pleno século XXI? Porque ainda vivemos — por incrível que pareça — numa sociedade patriarcal, que influencia e interfere no próprio desenvolvimento de quem faz filosofia, levando a acreditar na falsa ideia de que a capacidade racional é exclusividade masculina. Isto é um problema gravíssimo, pois leva ao conservadorismo e “aniquila” com um dos principais pontos da filosofia: a busca pelo conhecimento verdadeiro. Por isso, o que precisa ficar claro é que, mesmo as mulheres sendo relegadas, existiram e existem um número significativo de mulheres produzindo filosofia, e que as mesmas não são incapacitadas filosoficamente, mas rejeitadas e excluídas deste campo, sem haver o devido espaço e reconhecimento para suas produções e trabalhos.
Um colega verbalizou: A Tiburi é uma mulher inteligente, ela não sabe só sobre feminismo e mulheres”. Muitas coisas podemos tirar desta afirmação, principalmente o machismo e preconceito, tanto em relação a Tiburi quanto em relação ao que deve ser considerado filosófico ou não

Até pouco tempo se acreditava que na Idade Antiga não existiram filósofas, mas agora sabemos que elas foram ocultadas. Dessa forma, podemos pensar da mesma maneira a “entrada” hoje das mulheres na filosofia: elas estão aí, querendo entrar, porém, pouquíssimas portas se abrem, causando a impressão de que apenas os homens gostam e podem fazer filosofia.

Como é hoje a percepção sobre as mulheres na filosofia? Desde a entrada na faculdade, o tratamento dispensado por professores e colegas, até o respeito e interesse pela produção feminina etc.

Ainda encontramos muito preconceito e discriminação hoje no que diz respeito a percepção sobre as mulheres na filosofia. Não é fácil romper com anos de discursos machistas revestidos com falsas verdades. Porém, há uma pequena diferença, a qual costumo chamar de “era da sutileza”, pois, atualmente, a maioria dos acontecimentos preconceituosos e discriminatórios estão camuflados, ocorrendo de forma sutil, deixando dúvida se de fato é algo machista e/ou misógino.

Se antigamente a maioria dos filósofos buscou naturalizar a condição das mulheres, hoje em dia, ainda se carrega muito disso, e se busca naturalizar algumas atitudes machistas com um discurso não-intencional, que distorce os acontecimentos e argumentos. Para comprovar que isso ainda é algo presente, é só pensarmos e analisarmos os fatos, como o número de mulheres nos cursos de filosofia. É menor o número de professoras de filosofia lecionando nas escolas e nas universidades, assim como o número de alunas nos cursos de graduação. A ausência de professoras de filosofia, não se dá por haver poucas mulheres, mas por causa das instituições de educação, que acabam, de certa forma, dando preferência para os homens. Em relação as alunas, muitas mulheres se interessam por filosofia e outras áreas consideradas de “cunho masculino”, porém, a discriminação e desvalorização que elas sofrem conduzem-nas ao distanciamento, fazendo-as acreditar que essa é uma área em que a atuação masculina é mais válida.

Quando cursei filosofia na PUC/RS, tinha apenas uma professora mulher, sendo que ela só lecionava a disciplina de didática e estágio. Na pós-graduação, o corpo docente era formado somente por homens (e continua sendo). Por que esta professora mulher não ministrava disciplinas como filosofia moderna, metafísica ou tantas outras? Pensemos também na pergunta: Quantas filósofas conhecemos? Reduzindo a pergunta: Quantas filósofas brasileiras conhecemos? Isso só mostra que não adianta falarmos que não existe mais machismo na filosofia, nem conservadorismo, se não encontramos, na prática, a presença das mulheres nestes setores, se não vemos o reconhecimento de suas produções, se não trabalhamos suas teorias e conceitos nas salas de aula.

Destaco um episódio que aconteceu comigo na época da graduação, quando conversava com um colega sobre a filósofa Marcia Tiburi. Em certo momento esse colega verbalizou: “A Tiburi é uma mulher inteligente, assisti a um vídeo dela falando sobre Adorno e outros filósofos, ela conhece mesmo, não sabe só sobre feminismo e mulheres”. Muitas coisas podemos tirar desta afirmação, principalmente o machismo e preconceito, tanto em relação a Tiburi, quanto em relação ao que deve ser considerado filosófico ou não. Outro episódio que ajuda a elucidar essas sutilezas foi quando estava apresentando em um evento acadêmico uma comunicação sobre as mulheres na filosofia. Ao mencionar a visão positiva do filósofo John Stuart Mill sobre as mulheres, um dos estudantes de doutorado em filosofia comentou: “Stuart Mill só escreveu esse livro para ‘pegar’ mulher”. Esse comentário gerou muitos risos, mostrando o quanto, nós mulheres, ainda temos que enfrentar dentro deste espaço.

Quais filósofas atualmente se destacam no Brasil e no Mundo e quais suas principais contribuições?

Muitas mulheres, mesmo com as barreiras, estão aos poucos conquistando espaço e visibilidade. Posso sublinhar algumas, escondidas por esse Brasil. Uma delas é Marcia Tiburi, que vem ganhando destaque e sendo considerada a “filósofa pop”. Ela já escreveu diversos livros e seu trabalho está bastante voltado para a área da filosofia política e feminismo. Um dos seus livros que mais apareceram no ano passado e que considero de extrema importância para a atual situação política do Brasil é o Como Conversar com um Fascista. Neste livro ela trata de analfabetismo político, discurso de ódio, alienação, pensamento heterônomo, entre outros problemas. O que particularmente gosto no trabalho de Tiburi, é a forma como ela desenvolve suas ideias e conceitos com uma linguagem acessível, possibilitando que o conhecimento chegue para todas as pessoas.

Outra filósofa brasileira a se destacar é Marilena Chauí, que já tem mais de vinte livros publicados e que também é bastante envolvida com a filosofia política, adotando claramente a posição de esquerda, tendo fortes influências marxistas, envolvendo-se com a luta de classes e defendendo os direitos das minorias. Chauí, como Tiburi, é uma filósofa que expõe suas ideias e ideologias sem medo, com uma coragem que conduz à reflexão crítica, deixando enxergar além da obviedade.

Não posso deixar de mencionar a filósofa Djamila Ribeiro, que vem ganhando espaço ao desenvolver trabalhos sobre gênero, feminismo e racismo. Em 2015 escreveu o prefácio do livro Mulheres, Raça e Classe, da filósofa Angela Davis, que foi o primeiro a ser traduzido para o português.

Agora, falando das filósofas que se destacam no mundo, começo citando Judith Butler, uma pensadora que veio para romper com os paradigmas sociais, desconstruindo a visão binária de gênero, procurando mostrar que os seres humanos devem ser livres na construção de sua identidade. Outra filósofa é Angela Davis, que continua em evidência até hoje. As obras dessa filósofa refletem e questionam como o racismo, o sexismo e o capitalismo criam uma sociedade opressora. Suas últimas produções têm se voltado ao sistema carcerário americano. Em seu livro As Prisões são Obsoletas?, mostra que o verdadeiro propósito das prisões não está em solucionar os problemas sociais, mas apenas em deslocá-los, fazendo com que as pessoas não pensem sobre os problemas da sociedade, principalmente os produzidos pelo racismo e pelo capitalismo. Outra filósofa conhecida mundialmente e que ainda tem apenas um livro traduzido para o português é Martha Nussbaum (N.E. não confere. Ela já tem 4 livros traduzidos no Brasil) Ela está entre os principais intelectuais que mais tem pensado e falado sobre a questão das humanidades. Seus trabalhos estão voltados à filosofia política, à educação, à economia, à ética, entre outros assuntos.

Fonte: Revista Capitu, por Monica Marques

segunda-feira, 6 de março de 2017

O sequestro do termo "gênero": uma perspectiva feminista do transgenerismo

Transgenerismo: de volta à medicalização do comportamento humano
Já havia escrito sobre transgenerismo aqui no blog, com o texto Que conservadores e "progressistas" me desculpem, mas não existe criança "trans", ainda não muito consciente das dimensões dessa nova onda. Hoje, melhor informada e mais preocupada, pretendo abordar, sempre que possível,  os vários aspectos que configuram essa moda regressiva. Para começar, traduzi e editei o texto abaixo, da ensaísta americana Terri M. Murray, também mestre em Teologia, com especialização em ética cristã, e doutora em Filosofia, que escreveu o livro "Thinking Straight About Being Gay: Why It Matters If We’re Born That Way," (algo como "Visão hétero sobre ser Gay: Por que importa se nascemos desse jeito?").

Ressalvo que, neste texto, quando a autora fala em "queer", refere-se à comunidade de lésbicas, gays, bissexuais e drags e não aos adeptos da teoria queer.  "Queer" é um termo pejorativo, em inglês, usado contra homossexuais e outros indivíduos sexualmente não normativos. Significa esquisito, estranho, anormal. Já em fins dos anos 80, contudo, ele passou a ser assumido pelos próprios discriminados como identidade política, principalmente no contexto do surgimento da AIDS. A partir da década de 90, sobretudo de 1991 em diante, passa a ser adotado pelos acadêmicos que forjaram a chamada Teoria Queer, entre outros, Teresa de Lauretis, Michael Warner, Judith Butler, Eve Kosofsky Sedgwick, Lee Edelman. 

Por fim, embora tenha alguma divergência com a autora, concordo no geral com sua abordagem que me trouxe inclusive um novo dado sobre o tema. Ela faz um histórico a respeito da mudança do conceito de gênero, da visão progressista, dos tempos dos movimentos pelos direitos civis (meados do século passado até o novo milênio), para a visão regressiva atual. Aponta como o movimento transgênero sequestrou a linguagem e imitou a  postura política dos movimentos libertários anteriores, com intenção, contudo, oposta a desses movimentos (cavalo de Troia de uma política sexual regressiva). Aponta também para o retorno da medicalização do comportamento humano, trazida no bojo do transgenerismo, em particular no que se refere ao possível futuro da biotecnologia como ferramenta para eliminar homossexuais ainda no útero. E termina proclamando a volta ao conceito de gênero anterior como a via para nos livrar do possível futuro distópico que se avizinha. Não é uma leitura rápida, mas para sorver como um bom vinho. Degustem!

Terri M. Murray
O sequestro do termo "gênero":
uma resposta feminista ao transgenerismo 

Gênero costumava ser um conceito legal. Feministas fodonas como Simone de Beauvoir o usaram para distinguir o que você tem no meio das pernas (sexo) do que tem entre  as orelhas (gênero). Você nasceu com o primeiro; o segundo lhe ensinaram. O que colocaram entre suas orelhas (mente) chegou ali via doutrinação cultural patriarcal.

Mas essa concepção libertadora sempre teve variados opositores. Quando as mulheres começaram a ocupar papéis considerados masculinos ou posições consideradas tradicionalmente masculinas, os agentes do patriarcado recorreram à “natureza” para reforçar o sistema. Apelar para a "natureza" funcionava (e funciona) porque a paisagem cultural estava tão saturada de estereótipos (e continua) que eles pareciam (parecem) realmente naturais. Nesse contexto, foi fácil criar uma teoria biologicamente determinista para explicar porque o patriarcado não seria uma questão política mas sim uma necessidade biológica. Sociobiologistas, como E.O. Wilson, insistiram que a persistência do patriarcado se deveria ao suposto fato de a cultura ser assentada nos genes 😲.

Nada de novo nessa abordagem. Freud já havia postulado que as raízes da cultura patriarcal emanavam do pênis e da vagina (principalmente do todo-poderoso pênis). Tradicionalistas cristãos sempre vincularam os arranjos sociais patriarcais às funções reprodutivas, como visto na “Criação”, limitando os papéis sociais das mulheres aos de mãe e esposa. A transgressão e a punição de Eva por "deus" reforçaram mais ainda a subserviência da mulher ao marido. E São Paulo acrescentou uma pitada da autoridade do Novo Testamento a essa receita, declarando que as mulheres “deveriam se submeter aos maridos” assim como ao "senhor". A sagrada instituição do casamento era uma invenção humana, mas continha as intenções de “deus”.

Algumas feministas teimosas se recusaram a concordar com essa naturalização do patriarcado e seu concomitante determinismo biológico, em vez disso apontando a dominação masculina como resultado das instituições sociais, culturais, teológicas, acadêmicas e econômicas de nosso mundo. Existencialistas como Beauvoir abominavam ideias que tentavam explicar o comportamento humano como determinado por alguma "essência" fixa. Tanto ela quanto seu companheiro de longa data, Jean-Paul Sartre, insistiam que o caráter dos indivíduos é formado em resposta às circunstâncias que vivenciam e através das escolhas que realizam. Somos jogados nesse mundo, in situ, com nossa capacidade de livre-arbítrio, e nossas escolhas precisam ser tomadas inclusive frente a situações imutáveis como a do sexo biológico com o qual nascemos. Mas como as pessoas reagem a essas situações depende de cada uma particularmente. Embora seja óbvio que apenas mulheres possam engravidar, as implicações dessa capacidade são indeterminadas, e a atual divisão sexual do trabalho é apenas uma possibilidade de arranjo social entre várias outras.

Assim como as feministas de outrora, gays, lésbicas e bissexuais costumavam transgredir os estereótipos de gênero ensinados pela cultura patriarcal. A partir dos amplamente difundidos mitos de gênero heterossexistas, essas pessoas desviantes (queer) foram rotuladas de “sapatões”, “bichas”, "caminhoneiras", “viados” — nomes criados para estigmatizar qualquer indivíduo que se recusasse a agir e se vestir de acordo com os papéis de gênero sexistas e heterossexistas. Mas elas reagiram à intolerância dos criadores desses mitos, apropriando-se desses apelidos pejorativos e transformando-os em bandeiras de luta.
Dzi Croquettes
 Ao tornarem as normas de gênero uma forma de teatro, drag queens e kings mostraram que qualquer pessoa pode adotar e imitar os papéis de gênero independente de sua genitália particular, dessa forma expondo o fato de que o gênero não é algo natural, mas sim uma forma convencional de interpretação, como um figurino que se usa ou se tira (a la Judith Butler). Queers encarnaram o fracasso dos estereótipos de gênero em colar nas pessoas reais. Tudo isso era revolucionário porque desnudava a ficção conservadora de que todos os homens compartilham de uma personalidade heterossexual masculina diferente da das mulheres e vice-versa.
Na esteira das feministas, os queers começaram a apontar que somados aos mitos sociais sobre como meninos e meninas se sentem vem também a noção de que todas as pessoas são atraídas pelo sexo oposto. Boa parte da concepção de gênero é construída com base nos papéis heterossexuais e no heterossexismo. Os papéis sociais femininos e masculinos, culturalmente normativos (quer dizer, papéis de gênero), tornaram-se ritualizados como parte da cultura ocidental cristã que fetichiza e erotiza a diferença sexual.  Exagerar as diferenças entre mulheres e homens, mistificar o sexo oposto e tornar tabu os atos sexuais serve também para elevar a excitação de penetrar os mistérios do "outro" e transpor as barreiras que se opõe à realização sexual. Pressupor que a heterossexualidade é inata facilitou a bifurcação dos humanos em dois tipos opostos que se atraem mutuamente. Da mesma forma que as feministas rejeitaram a definição de “mulher” como ser oposto ao ideal masculino, os homossexuais se recusaram a ver a si mesmos como a versão defeituosa ou perturbada dos heterossexuais.

Tanto para as feministas quanto para os queers de fins do século passado, o natural havia sido reprimido pelo social. Ao mesmo tempo, porém, o "natural" também era produzido pelos pressupostos culturais e teológicos existentes. Ideias sobre gênero não são apenas resultado de observações empíricas; elas são as premissas das "pesquisas". Por isso, quando os indivíduos não se amoldam aos estereótipos de gênero, alegadamente estariam invertendo os papéis de gênero (supostamente fixos, reais) e não expondo-os como as ficções que de fato são. Se os indivíduos, quando observados, não se conformam realmente com as ideias sociais de gênero, então isso deveria valer como evidência de que as ideias sociais sobre gênero são furadas. Em vez disso, os papéis de gênero são pressupostos a priori, e as evidências em conflito com eles são interpretadas como sinais de "anormalidade" ou "desvio", não como uma indicação de que a pressuposta "norma" sempre foi falha. Há um problema de circularidade em toda a moldura conceitual onde as questões de gênero são "pesquisadas". O bestseller de John Gray "Homens são de Marte, Mulheres são de Vênus" é um bom exemplo dessa metodologia anticientífica.
O novo movimento transgênero não é uma extensão dos esforços anteriores para desconstruir a mitologia sexista e heterossexista. Não agrupa feministas e dissidentes de gênero numa frente solidária e unida em oposição à mitologia heterossexista e aos estereótipos sexuais. Ao contrário, divide e conquista o outrora poderoso movimento contracultural, sequestrando sua linguagem e imitando sua postura política para disfarçar intento oposto ao desse movimento. Embora numericamente reduzidos, os ativistas transgênero, promotores desse contra-ataque ao movimento contracultural, são figuras bem posicionadas no establisment e contam com apoio total da mídia na promoção de sua "causa" - outra coisa que os separa dos predecessores libertários dos anos 80 e 90.
Nos últimos anos, o termo "gênero" foi radicalmente redefinido por esse movimento reacionário que o tornou sinônimo de mero estado mental interior em oposição a seu significado original de "série de convenções (e restrições) sobre como mulheres e homens podem ser e o que podem fazer". Chrissie Daz está certa ao afirmar que alguma coisa fundamental se alterou na forma como o termo gênero passou a ser entendido no século XXI, com os novos ativistas transgênero representando uma grande mudança paradigmática em relação à concepção de gênero prevalente nos 40 anos anteriores. A princípio uma ideia empunhada pela esquerda liberal (social-democrata) contra as normas sociais sexistas e heterossexistas conservadoras, o termo "gênero" foi transformado numa arma do arsenal de uma política regressiva que não é somente sexista mas também homofóbica. 
O atual movimento transgênero reforça o mito de que homens e mulheres são espécies diferentes de seres humanos, não apenas reprodutiva mas mentalmente - com diferentes desejos, necessidades, atitudes e mentes distintas. Agora os porta-vozes do transgenerismo apoiam a naturalização conservadora tradicional de "masculinidade" e "feminilidade" como estados psicológicos inatos, intrínsecos ao ser humano desde o nascimento e provenientes de química cerebral ou de outras interações hormonais do corpo. A ideia progressista de que não há um jeito uniforme de meninas e meninos sentirem ou pensarem foi descartada. Em vez de lutar contra o rígido binarismo de gênero heterossexista (como sua retórica, aliás, sugere), os novos guerreiros transgênero assumem que seu inato senso de eu  ("identidade") é inerentemente "masculino" ou "feminino" antes de qualquer socialização. Aparentemente, julgam que a doutrinação cultural é insignificante. O termo "gênero" foi despolitizado, naturalizado e medicalizado de um só golpe.
Gênero agora é um conceito que aparenta fazer o tipo de trabalho político outrora associado ao movimento dos direitos civis. Na verdade, contudo, sua nova versão reverte a lógica que norteou os direitos civis no passado. Os ativistas dos direitos civis  apontavam que a discriminação baseada em diferenças biológicas como cor da pele ou sexo falhava em reconhecer a humanidade comum a todas as pessoas como agentes morais. Agrupar pessoas de acordo com traços físicos comuns negligencia o caráter e a individualidade das mesmas. Grupos humanos eram definidos por referência à cor de pele ou aos genitais, não por seu agenciamento humano, seu caráter ou comportamento. Assim as pessoas eram reduzidas a seus corpos (ou parte deles) enquanto seus atributos mais distintivos de intelecto e vontade (aspectos que deveriam fundamentar qualquer avaliação de caráter) eram negligenciados.

A "masculinidade" ou "feminilidade" da psique trans é tratada como uma condição
 inata semelhante à cor do cabelo ou à pigmentação da pele.
Os ativistas de gênero atuais não reivindicam ser tratados como indivíduos nem veem seu caráter como uma escolha. Eles enfatizam que pertencem a uma ‘minoria’ definida pela identidade de gênero ou por uma similar condição biológica que alegadamente teriam com outras pessoas. Enquanto os ativistas de direitos civis tornaram a biologia irrelevante, os ativistas dos direitos de gênero a colocaram num altar. A "masculinidade" ou "feminilidade" de sua psique é tratada como uma condição inata semelhante à cor do cabelo ou à pigmentação da pele. Assim sendo, como categoria de pessoas definidas por referência a uma suposta diferença biológica inata, eles não deveriam sofrer mais discriminação do que mulheres ou minorias étnicas. Entretanto, enquanto mulheres e minorias étnicas dos movimentos civis de meados do século XX estavam ansiosas por se desassociar das referências biológicas reducionistas de suas identidades, reivindicando não ser definidas a partir de sua genitália ou cor da pele, os ativistas transgênero de hoje reivindicam reconhecimento de sua alegada diferença "biológica", acreditando que o pertencimento a um grupo biológico particular os autoriza a ter direitos civis.

Adotar a narrativa biológica determinista da condição trans (uma psique de gênero inata) requer que primeiro aceitemos as premissas conservadoras sobre gênero. Como vimos acima, uma coisa que vem incrustada no conceito de gênero é a heterossexualidade obrigatória de mulheres e homens. Assim, se a ideologia de gênero heterossexista define "mulher" como par erótico do homem, as lésbicas tendem a não se identificar com a ‘feminilidade’ (papel de gênero feminino), já que não se sentem atraídas por homens nem desejam ser objeto da atenção sexual masculina. Da mesma forma, gays acharão difícil se encaixar na masculinidade heterossexual e suas correspondentes suposições eróticas.
Uma vez que o conceito de gênero binário vem sendo renaturalizado e recolocado como um dos dois possíveis estados psicológicos dos seres humanos, as pessoas de sexo feminino que se identificam com o que se convencionou chamar de masculino e seu correspondente objeto de desejo ficam com a única opção de "se tornar" do sexo masculino. Se elas desejam "agir como homens", sendo biologicamente mulheres, é porque estão doentes (disfóricas). O mesmo para as pessoas de sexo masculino que sentem forte afinidade com os papéis normativos de gênero feminino e sua correspondente orientação sexual. Não por menos pessoas homossexuais andam tão confusas diante desse contexto.
Médicos especialistas em transgêneros identificam a disforia (insatisfação) de gênero como uma condição psicossexual anormal. Mas, se a disforia é realmente um efeito ou sintoma do mal-entendido da sociedade a respeito da bioquímica sexual natural, então a doença não é intrínseca ao paciente; ela  resulta do relacionamento entre o paciente e a cultura circundante. De fato, tanto o eugenista liberal Nicholas Agar quanto os bioeticistas cristãos Michael J. Reiss e Roger Straughan interpretam "doença" como um conceito socialmente construído ou “de certo modo, um relacionamento entre a pessoa e a sociedade”.
Os ativistas queer do passado, porém, argumentavam que é a natureza do próprio relacionamento - não a natureza do "paciente" - que faz o mesmo se sentir infeliz. Hoje, todavia, o desconforto social com a diferença foi reconceituado como uma anormalidade psicossexual da constituição do paciente. O "cérebro desordenado" do sujeito é visto como a causa de uma inaceitável interação do indivíduo com as organizações sociais. Como consequência política dessa concepção, desvia-se o foco da crítica das instituições sociais necessitadas de reforma para a reforma do indivíduo supostamente anormal. Ele precisa ser reformulado para se encaixar nas instituições.
Para citar um exemplo de como isso funciona na prática, basta considerar a situação das pessoas homossexuais no Irã. O Irã é uma teocracia sexista, intolerante e homofóbica, onde as leis fundamentalistas religiosas impõe um estrito status quo heteronormativo. A solução estatal para a homossexualidade nesse país se resume a duas possibilidades: (1) punir ou executar quem a pratica abertamente, ou (2) "encorajar" homossexuais a transicionar, cirurgicamente, para o sexo "correto" de modo que a pessoa se encaixe na norma heterossexual, a única norma que o Irã tolera. Consequentemente, o Irã tem o segundo maior número de cirurgias de redesignação sexual do mundo, perdendo apenas para a Tailândia. Tal fato se assemelha ao clareamento químico da pele das pessoas negras para torná-las mais aceitáveis numa sociedade racista, quando o que deveria ser feito é atacar o racismo. Trata-se de uma política regressiva. Em vez de rejeitar ou desconstruir o binarismo heteronormativo, a indústria médica está facilitando a "desconstrução" literal do indivíduo transgênero - literalmente desconstruindo seu próprio corpo -  de modo que ele se refaça na imagem heterossexista desejada. Isso é violência mascarada de compaixão.
Esse tipo de prática não é muito diferente da "medicina" de estilo soviético do início dos anos 70, quando o estado soviético usava de violência física somente como último recurso ao lidar com os dissidentes que começavam a pressionar por mais liberdade política. Investigações psiquiátricas e diagnósticos de doença mental (esquizofrenia geralmente) se tornaram o instrumento preferido para possibilitar o encarceramento dos dissidentes em hospitais psiquiátricos. À luz do relacionamento político conturbado entre o movimento pelos direitos homossexuais e as instituições políticas vigentes, a atual tendência de tratamento transgênero pode ser melhor analisada com base no argumento de Michel Foucault de que toda as categorias de desordens psicológicas são expressões de relacionamentos de poder na sociedade. De forma simplificada, Foucault vê a loucura não como própria do indivíduo mas sim como uma definição social desejada pela sociedade para o segmento não-conformista de sua população.

O "reconhecimento" clínico e médico aparentemente progressista e compassivo do "paciente" transgênero está na realidade reforçando o binarismo heteronormativo que por muito tempo causou sofrimento e alienação para uma grande variedade de pessoas homossexuais. Não precisamos nos opor a que adultos bem informados consintam em transicionar cirurgicamente para um corpo com o qual se sintam mais à vontade. Entretanto, progressistas não deveriam correr para abraçar esta opção acriticamente ou como a solução principal para os que sofrem com a chamada disforia de gênero.

Editado de comentários do facebook: cons e trans, farinhas do mesmo saco
Simplesmente não há como testar se a infelicidade de alguns com seu corpo é um subproduto da doutrinação dogmática de gênero ou uma condição inata, já que todas as culturas tem doutrinação de gênero, embora das formas as mais variadas. Não há um grupo de controle contra o qual se possa comparar indivíduos doutrinados pelos estereótipos de gênero. Mas a reivindicação dos transativistas de que algumas pessoas do sexo feminino são inerentemente "masculinas" enquanto outras de sexo masculino são inerentemente "femininas" assume o que precisa provar: a saber, que o gênero é natural e intrínseco à feitura psicossexual dos indivíduos em vez de uma série de ficções culturalmente em circulação que as pessoas internalizam. Embora não haja problema em aceitar a hipótese de que a orientação sexual possa ser inata, tal aceitação não nos compromete a comprar uma teoria essencialista de gênero. De fato, feministas e queers progressistas deram um tiro no pé ao abandonar a distinção natureza-cultura que o conceito de gênero anterior tão bem iluminou.

No contexto da narrativa determinista de gênero, torna-se difícil distinguir a pessoa homossexual da transgênero. Esta última é conceitualizada como alguém que tem uma psique feminina ou masculina presa no corpo "errado". Mas, "errado" de acordo com quem ou com o quê? Não importa se homossexual ou heterossexual, as normas de gênero binárias representam uma série de restrições de atuação para pessoas de sexo feminino e masculino. A própria homossexualidade representa uma boa razão para que algumas pessoas não se sintam à vontade em seus próprios corpos, dadas as expectativas sexuais erigidas junto com as normas de gênero heterossexistas. Mas algumas pessoas heterossexuais também consideram muito difícil se identificar com muitas das expectativas inerentes ao gênero que lhes designaram. Algumas pessoas simplesmente acham os conceitos de gênero muito alienantes e não conseguem se adaptar a suas generalizações sobre "mulheres" e "homens". Não são doentes por isso, apenas apresentam um sintoma de desconforto social. Todos os indivíduos são "encorajados" a acreditar que ficarão melhor e serão mais felizes se suas ideias sobre seus "eus" biológicos se encaixarem com as ideias culturalmente aceitáveis. E elas podem ser ainda mais felizes se transicionarem em vez de virarem crossdressers ou viverem com a constante rejeição que assombra os não-conformistas. Numa sociedade inclusiva, a opção de transicionar não deveria ser descartada, mas, de novo, igualmente não deveria ter precedência sobre a luta por novas reformas sociais. Sobretudo deveria ser uma decisão tomada apenas por  adultos que estão plenamente conscientes do papel que a cultura joga no entendimento que elas têm de si mesmas.

Para compreender as implicações políticas iminentes da atual tendência de direitos transgênero, precisamos ter clareza de como seus conceitos centrais funcionam em relação aos direitos da mulheres e da população LGBI assim como em relação à eugenia liberal. Eugenistas transhumanistas/Liberais (Nicholas Agar, Julian Savulescu, James Hughes, Nick Bostrom, David Pearce, Gregory Stock, John Harris, Johann Hari, et al.) combinam biopolítica com economia de livre mercado para alcançar uma política social ostensivamente liberal sobre o uso da biotecnologia. Estes autoproclamados "eugenistas liberais" estão reivindicando o uso ilimitado ou desregulado da reprogenética. Eles diferenciam a reprogenética da eugenia considerando que esta última implica coerção estatal a pretexto de beneficiar pessoas. A primeira (reprogenética) seria voluntariamente buscada por pais com o objetivo de melhorar suas crianças de acordo com suas preferências. Esta seria uma eugenia "privatizada" ou de "livre mercado" (havendo naturalmente um incentivo financeiro para promover seu uso).
Dentro da aparentemente progressista barriga do Cavalo de Troia transgênero se esconde uma política sexual regressiva que está pronta para usar a medicina e a biotecnologia a fim de, primeiro cirurgica e quimicamente - e mais tarde talvez mesmo geneticamente - recolocar-nos nos papéis tradicionais do velho binarismo heterossexual. A engenharia social feita por meio da disciplina e da punição pode logo ser realizada via biotecnologia, tratamentos hormonais pré-natais e/ou edição de genoma.
Considerando a hipótese de uma causa biológica para a atração homossexual, eliminá-la certamente reduzirá o comportamento homossexual. Negar tal fato é fingir que atos sexuais voluntários não têm relação com a atração sexual involuntária. O exato propósito das intervenções reprogenéticas será, através da eliminação da predisposição biológica involuntária para o comportamento homossexual, eliminar o comportamento homossexual voluntário dos indivíduos. Isso acontecerá não por tirar o livre-arbítrio dos indivíduos mas sim por guiar biologicamente a direção para onde suas escolhas se encaminharão, onde serão  mais provavelmente expressas. Mas poderão ainda aquelas pessoas cuja orientação sexual principal é hétero se engajar em atos homoeróticos? Naturalmente. Mas isso passa ao largo da questão central. As intervenções reprogenéticas para proibir o desejo homossexual constituiriam uma forma de engenharia social, que não é terapêutica em qualquer sentido médico, visando restringir o comportamento do indivíduo (sem seu consentimento) aos objetivos de vida que os pais preferem. O futuro poderá trazer pessoas homossexuais que não se rebelem contra a doutrinação homofóbica dos pais nem saiam do armário porque simplesmente não desejarão fazê-lo.

O novo movimento trans (intencionalmente ou não) remove a única barreira que impede pais de serem capazes de presumir o consentimento implícito do paciente para essa espécie de "tratamento" eugenista de sua "condição" psicossexual. Para definir e mirar a orientação homossexual como uma condição médica passível de "tratamento" será necessário primeiro distinguir esse "tratamento" da violência médica homofóbica, que seria muito questionável. O que inviabiliza essa distinção é a suposição de que o paciente alegremente coincidiria com tal "tratamento". Em sua pressa para abraçar os "direitos transgênero", progressistas bem intencionados e pessoas homossexuais estão fomentando exatamente essa suposição. O movimento eugenista homofóbico tem buscado o santo graal da orientação sexual biológica com o objetivo de descobrir como mudá-la. Se algum dia realmente localizarem uma causa ou causas biológicas para a orientação homossexual, só lhes faltará, para poder curá-la, uma moldura conceitual que lhes permita a edição homofóbica do genoma ou o tratamento hormonal  pré-natal a fim de parecerem benevolentes. Como o "tratamento" será feito num feto, os especialistas precisarão patologizar a homossexualidade de tal forma que os pais acreditem que é como se tivessem o consentimento do paciente (prole) para sua "cura".

Mas eles só podem presumir tal coisa se os indivíduos com sexualidades não binárias consentirem em mudar a si mesmos. O movimento transgênero luta pelo reconhecimento de sua condição desviante como condição médica e reivindica o "direito" de seus integrantes, como pacientes, de ter acesso à assistência médica para transicionar de volta à definição de saúde socialmente conservadora.

Mesmo que alguns dos transicionados não venham a se tornar heterossexuais, terão de qualquer forma apoiado a noção heterossexista de que gênero é, para algum subconjunto de indivíduos, uma condição biológica interna que os faz se sentir mal. Como pacientes voluntários que aceitam a medicalização de sua infelicidade, eles terão jogado um importante papel na reformulação teórica de questões políticas como patologias clínicas. Embora os apoiadores dos trans sejam motivados por boas intenções, eles involuntariamente ajudam os conservadores sociais a vender uma agenda eugenista ao público, travestindo-a  de compaixão esclarecida ou tolerância pela diversidade.
Não há razão pela qual não possamos sentir compaixão por pessoas que se sintam presas num corpo biológico "errado". O perturbador não é como esses indivíduos se sentem.  Pelo contrário, a questão é como seus sentimentos estão sendo enquadrados ou interpretados, e isso se deve em parte aos contextos sociopolíticos nos quais seus sentimentos surgiram em primeiro lugar. Como Sarah Ditum argumentou, "a existência do sofrimento não é evidência de que o sofredor tenha clareza inquestionável da origem de seu sofrimento." Se as sociedades fossem organizadas em torno da ideia de que a sexualidade humana natural (atração) inclui tanto as variantes heterossexuais quanto as homossexuais, não somente isso ajudaria a eliminar o estigma associado aos intersexuais, como diminuiria significativamente a homofobia e (em grande medida) o sexismo. E como isso quebraria os mitos sexistas que alienam os que não se sentem "à vontade" com os papéis sociais designados para pessoas de seu sexo, provavelmente haveria também um aumento do bem-estar daqueles que atualmente sentem que estão presos no corpo "errado".
                  
Fonte do original: Culture on offensive: The Hijacking of Gender: A Feminist Take on Transgenderism Tradução: Míriam Martinho, São Paulo, 04/03/2017

Chimamanda Ngozi Adichie é uma escritora nigeriana. Aqui ela afirma o óbvio: "Não acho que seja uma boa coisa falar das questões das mulheres como se fossem as mesmas das questões das transfemininas (ou transmullheres) porque não acho que isso seja verdade. 

Uma transfeminina (ou transmulher) honestíssima afirma que as trans não são mulheres.

Também se opõe aos procedimentos de transição em crianças pelos danos que causam à saúde das mesmas.

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