Frase histórica de Beauvoir, publicada em 1949, provoca grita de conservadores |
O texto abaixo foi escrito por um homem, Rogerio Waldrigues Galindo, para o Gazeta do Povo, o que, por si só, demonstra que as polêmicas envolvendo o feminismo não são coisa de guerra dos sexos. Tem mais a ver, a se falar em batalhas, com guerra de mentalidades entre os que entendem a liberdade como um patrimônio para todos e dos que acham que ela deve ser exclusividade do clichê "homem, branco, hétero, burguês e cristão".
Impressionou a todas e todos, que não atravessam a vida pelo vale das sombras do obscurantismo, a indignação ignorante e hipócrita de conservadores com a presença do trecho histórico do livro o Segundo Sexo (1949) de Simone de Beauvoir, na prova do ENEM, onde ela afirmava que ninguém nasce mulher, torna-se. Disse uma obviedade: não é a biologia que determina o comportamento da mulheres em nossa sociedade e sim a cultura, "a construção do feminino é um processo dado pela civilização" (como bem lembrou outro homem, o historiador Leandro Karnal). Outra grita foi contra o tema da redação do ENEM sobre a violência doméstica contra as mulheres. Tal tema seria uma tentativa de doutrinação esquerdista dos adolescentes via prova.
Depois de mais de uma década de uma quase hegemonia da esquerda brasileira, fóssil, anacrônica, agora em decadência, temos a ascensão de uma direita ignorante e reacionária que também ameaça a democracia e os direitos da população. O Rogério disseca as razões para a grita com a suposta doutrinação esquerdista no ENEM com muita propriedade e vai ao cerne da questão: o ódio ao feminismo é o ódio à liberdade das mulheres.Vale a leitura.
Enem mostra que ódio ao feminismo é ódio à liberdade das mulheres
O ódio que o feminismo provoca em muitas pessoas é impressionante. E diz muito sobre a sociedade em que vivemos. Neste fim de semana, as provas do Enem voltaram a causar chiadeira de quem acha que o MEC usa a educação para doutrinar alunos. Tinha duplamente a ver com o feminismo.
Primeiro, uma das questões de Ciências Humanas usava um trecho de “O segundo sexo”, de Simone de Beauvoir. Citava-se o trecho inicial clássico em que a filósofa diz que ninguém “nasce mulher”. A discussão é fascinante: ela defende que as mulheres são o que são na sociedade não por questões biológicas inerentes, mas sim porque o mundo as trata de determinada maneira.
Já seria tolice infinita dizer que usar um clássico na prova era doutrinação. Mas é pior: a pergunta não pedia para que se concordasse sobre o texto, nem para que se discorresse sobre ele, nem nada. Queria apenas que o sujeito fosse capaz de identificar o texto com uma corrente de pensamento. Com o feminismo. A questão era só isso.
Era como colocar um texto de Adam Smith e pedir que se identificasse aquilo com o capitalismo. Ou de Marx e exigir que se soubesse que aquilo tem a ver com comunismo. Ou falar de Martin Luther King e perguntar se aquilo tinha ou não relação com os direitos dos negros. Não se pode fazer isso?
O tema da redação, que pedia um texto sobre “a persistência da violência contra a mulher” no Brasil fez de novo, no domingo, muita gente se exaltar. Como se a violência contra a mulher não fosse um fato, ou como se pedir que os alunos raciocinem sobre isso significasse que a prova é “de esquerda” (como alguém disse por aí, a direita deveria ficar envergonhada de se afastar de um tema como esse, entregando-o de bandeja para seus oponentes).
Mas por que o ódio contra o feminismo? Pode ser que muita gente considere algumas feministas estridentes e exageradas. Não se negue: todo movimento social pode ter exageros e estridências. Mas nesse caso podia haver um questionamento pontual contra certos argumentos, talvez. Não. Há ódio, inclusive de mulheres, às feministas em geral. Ao feminismo em si.
Tempos atrás entrevistei vereadoras e deputadas do Paraná. Só duas se disseram feministas. As outras queriam distância. Dia desses, li um comentário de uma senhora que se dizia revoltada com o feminismo porque, graças às feministas, ela era obrigada a trabalhar fora e não podia ficar em casa com os filhos. Um blogueiro chegou a escrever um texto dizendo que talvez não fosse interessante para as mulheres ganhar o mesmo que os homens no trabalho…
O ódio ao feminismo pode ter origem em certos exageros, mas parece mais que tem a ver com duas outras coisas. Um conservadorismo inerente à nossa sociedade e uma falta de compreensão do que é o feminismo.
O conservadorismo quer que as coisas mudem pouco não só em relação ao que são mas ao que eram. Isso se mudarem. Há conservadores sérios, que querem apenas evitar mudanças bruscas e revolucionárias, e há base para isso. Mas há os que usem isso como pretexto para imobilismo ou até para regressão social.
Um “conservador-fenômeno-de-Facebook” comemorava dez mil assinantes neste fim de semana dizendo que os neófitos não esperassem muito dele como conservador: ele até lavava a louça enquanto a mulher descansava. O que imagina alguém assim que é o conservadorismo? Uma regressão ao século dezoito? Isso, na verdade, já é outra coisa: reacionarismo.
Mas parece que o outro problema é igualmente grave: o desconhecimento do que é o feminismo. Pensam talvez que seja algo de outro mundo, que as mulheres querem odiar aos homens, que querem ser superiores, que querem mais direitos do que os outros. Pode até haver algum exagero do gênero, claro. Sempre há.
Mas feminismo, se for resumir em uma linha, poderia ser o seguinte. Que as mulheres não sejam obrigadas a ter limitações extra simplesmente por serem mulheres.
Quem odeia o feminismo normalmente odeia, de fato, é a liberdade das mulheres.
É pedir demais? É doutrinação falar disso?
Fonte: Gazeta do Povo, 26/10/20015
Fonte: Gazeta do Povo, 26/10/20015