sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Mais um questiona o esquerdireitismo: Sou de esquerda ou de direita?

Contardo Calligaris
Contardo Calligaris (psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor) escreveu o ótimo artigo abaixo, Sou de Esquerda ou de Direita?, para sua coluna de ontem (12/12/13), na Folha de São Paulo, questionando essa divisão maniqueísta, pela qual muitos se batem, mas que está longe de ter uma definição precisa. 

Só não concordo quando diz que a direita nos EUA era libertária (como se espera da direita, ela não gostava que o governo se metesse na vida da gente) mas hoje adora tutelar os cidadãos (todos vulneráveis e meio incapazes, não é?) e tenta promover leis que regrem o comportamento de todos segundo seus "princípios".

Mesmo, nos EUA, os conservadores sempre integraram a direita (aliás, a direita nasce com eles na época da Revolução Francesa), e eles sempre adoraram e continuando adorando querer reger o comportamento de todos segundo seus "princípios". Pessoalmente, acho que os libertários (como, aliás, vem acontecendo) devem deixar a direita para os conservas e seguir um caminho independente. A escritora Ayn Rand já alertava sobre a contraproducência desse enlace para quem de fato defende a liberdade 
 não só econômica mas também individual.

No mais, o texto é ótimo e mostra bem o quanto é confuso, para qualquer pessoa mais exigente, essa polarização esquerda-direita neste início de século XXI.

Sou de esquerda ou de direita?

Li a pesquisa do Datafolha publicada na Folha de domingo passado, e tentei entender se sou de esquerda ou de direita. Não consegui concluir. As frases propostas à apreciação dos entrevistados me deixam hesitante; sempre preciso completá-las (com adversativas e reservas) para poder concordar ou discordar.

Por exemplo, o "governo deve ser o maior responsável por investir para a economia crescer". É uma ideia que deveria seduzir meu lado esquerdo. Mas não sei se houve uma época da minha vida em que eu não desconfiasse da intervenção do Estado na vida da gente. No Brasil de hoje, então, nem se fala: qualquer aumento da presença do governo agita visões pavorosas de corrupções crônicas e de burocracias acomodadas e ineficientes.

Em geral, a geração à qual pertenço, a dos baby boomers, não gosta de Estados e governos. Alguns de nós (uma pequena minoria) cresceram e militaram num isolamento cultural que os deixou à margem da revolução libertária dos anos 60 --isso, sobretudo em países que, na época, eram dominados por ditaduras, como o Brasil. Mas, para a grande maioria dos baby boomers, sonhar com justiça e dignidade para todos nunca significou confiar em Estados, governos, entidades coletivas, partidos e opiniões dominantes.

Conheci de perto (apesar do cheiro) alguns moradores de rua de Paris e Nova York que não se deixam levar para um abrigo nem nas piores noites do inverno, porque não aceitam ter que ouvir um sermão ou uma missa em troca de calor, sopa e colchão. Eles são meus heróis. Nossa tendência é outra: aceitamos facilmente a tutela moral de Estados e governos, como se fosse normal retribuir assim os benefícios da social-democracia.

Regra: o Estado que parece pagar a conta (embora ele pague com nossos impostos) sempre se sente autorizado a expandir sua tutela moral sobre nós. E eu tenho repulsa por qualquer tipo de tutela. Nisso e por isso, sou libertário. Como isso funciona com direita e esquerda?

Houve uma época em que, nos EUA, a direita era libertária (como se espera da direita, ela não gostava que o governo se metesse na vida da gente). Por exemplo, a direita libertária podia detestar gays e lésbicas, mas não por isso reconheceria ao Estado o direito de dizer o que se pode e o que não se pode na vida sexual e afetiva das pessoas.

Isso acabou: a direita de hoje adora tutelar os cidadãos (todos vulneráveis e meio incapazes, não é?) e tenta promover leis que regrem o comportamento de todos segundo seus "princípios".

Será que a esquerda, então, herdou o antigo espírito libertário da direita? Nem um pouco. Quando a direita começou a querer transformar suas crenças em legislação, a esquerda fez a mesma coisa, com um agravante: ela se tornou hipócrita (ela sempre declara querer o bem de todos, até dos que ela persegue).

Um exemplo. Hoje o Brasil recebe François Hollande, presidente da França. O governo (de esquerda) de Hollande é responsável por uma recente proposta de lei pela qual 1) é preciso abolir a prostituição e 2) o jeito é penalizar os clientes das prostitutas, com multas e prisão (leis parecidas já foram tentadas na Suécia e na Noruega, com resultados pífios e sinistros para as prostitutas).

Sugiro que nossa presidente ofereça a seu colega francês o livro de Adriana Piscitelli, "Trânsitos - Brasileiras nos Mercados Transnacionais do Sexo" (Uerj).

Além de ser um bom exemplo da qualidade de nossas pesquisas, o livro lembraria a Hollande que somos menos hipócritas que seu governo: sabemos que o verdadeiro problema que o governo francês quer resolver não é a prostituição (e ainda menos a prostituição forçada), mas a imigração de mulheres, que tentam ser livres trabalhadoras do sexo e que, em geral, não são vítimas nem de traficantes, nem de cafetões, nem de seus clientes.

Cher M. Hollande, bem-vindo ao Brasil. A França pode tomar decisões erradas, como todo mundo, mas, pela cultura e pelas ideias que ela representa sobretudo nos últimos dois séculos, ela não pode, não deve se permitir ser ridícula. Merci.

Agora, uma palavra, em aparte, a Dilma Rousseff: Presidente, pode ser que a gente já tenha decidido comprar os Rafales, mas os franceses não sabem disso. Será que poderíamos negociar? Vamos comprar seus caças, mas vocês deixem suas prostitutas em paz? Seria generoso, e alguns brasileiros e brasileiras na França agradeceriam.

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