sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Nelson Mandela, admirável mesmo e muito além do fla-flu esquerdireitista

Nélson Mandela
Atualização: Enquanto o mundo chora a morte da figura excepcional que foi Nelson Mandela, ocorrida ontem (05/12/2013), no Brasil do atraso eterno, o fla-flu esquerdireitista profana a imagem do grande líder.

Extremesquerdistas acham que se deve exortar Mandela por seus tempos de luta armada contra o apartheid e suas tendências comunistas e não por suas - segundo eles, claro - impotentes exortações morais de combate bem comportado, disciplinado e conciliador ao racismo (sic).  Para esses tipos, como Mandela acabou com o apartheid sem guerra civil, sua vitória de fato foi um fracasso.

Os direitistas extremistas, por sua vez, acham que Mandela não merece todas as comemorações que agora recebe porque foi comunista e promoveu ações violentas e sabotagens contra a tirania racista, razão pela qual foi preso e condenado à prisão perpétua.

Primeiro que faz diferença ter acreditado em "comunismo" antes e depois da Queda do Muro de Berlim. Muita gente boa acreditou no socialismo antes de se dar conta de seu fracasso social, político e econômico. Segundo, tendo ou não mantido alguma crença nessa canoa furada, o importante é que, ao sair da cadeia, Mandela chegou ao poder e instalou, em seu país, uma democracia constitucional e não uma tirania comunista ou uma ditadura personalista (e ele tinha a faca e o queijo na mão para se perpetuar no poder).

Sobretudo, ele promoveu a conciliação racial em seu país, abdicando de buscar justiça ou revanche contra os que lhe roubaram metade da vida, em prol da pacificação da África do Sul. Só para exemplificar, durante os 27 anos que passou na cadeia em condições deploráveis, ele teve tuberculose e câncer, além de problemas nos canais lacrimais por causa do trabalho forçado nas pedreiras. Transcender todo esse dano pessoal e a justa revolta por tantos anos de sofrimento em prol da paz e da justiça é para os raros e os muito bons. Se Mandela não foi herói - o que não quer dizer santo e perfeito - ninguém mais foi.

Que os esquerdireitistas não enxerguem isso, cada um com sua cegueira particular, só mostra, mais uma vez, como no fundo são tão parecidos.

Elogios a Mandela

O Nobel de Literatura, Mario Vargas Llosa, escreveu o texto Elogios a Mandela, na edição do Estadão de 21/07/03, que merece registro não só porque resgata resumidamente a história do grande líder sul-africano como também porque o personagem merece mesmo todas as honras. Destaco o trecho:

Mandela é o melhor exemplo que temos - aliás muito raro nos nossos dias - de que a política não é apenas a tarefa suja e medíocre que tantos imaginam, da qual os malandros se valem para enriquecer e os vagabundos para sobreviver sem fazer nada, mas uma atividade que pode também melhorar a vida, substituir o fanatismo pela tolerância, o ódio pela solidariedade, a injustiça pela justiça, o egoísmo pelo bem comum, e que alguns políticos, como o estadista sul-africano, tornam o seu país, e o mundo, muito melhor do que como o encontraram.

Deixo também, ao fim do texto, a música e a letra do filme Invictus (veja a resenha), de Clint Eastwood, que também narra a trajetória de Mandela e suas estratégias para unir um país desfacelado pelos anos do famigerado apartheid.  Após 27 anos de prisão, Mandela poderia ter saído da cadeia desejoso de vingança contra os que o injustiçaram tão brutalmente, mas preferiu outro caminho, caminho que somente poucos e os muito bons conseguem trilhar. Imperdíveis o texto de Llosa e o filme de Eastwood.

Elogios a Mandela

Nelson Mandela, o político mais admirável destes tempos tumultuados, segue em um hospital de Pretória, após completar 95 anos na quinta-feira. Poderemos ter a certeza de que todos os elogios feitos a ele são justos, pois o estadista sul-africano transformou a história do seu país de uma maneira que ninguém imaginava concebível, e demonstrou com sua inteligência, habilidade, honestidade e coragem que, no campo da política, às vezes, os milagres são possíveis. 

Tudo isso foi sendo gestado, antes mesmo que na história, na solidão de uma consciência, na desolada prisão de Robben Island, onde Mandela ingressou, em 1964, para cumprir pena de prisão perpétua e trabalhos forçados. As condições em que o regime do apartheid mantinha seus presos políticos na ilha rodeada de um mar traiçoeiro e tubarões, em frente à Cidade do Cabo, eram atrozes. Uma cela tão minúscula que parecia um nicho ou o covil de uma fera, uma esteira de palha, uma sopa de milho três vezes ao dia, mudez obrigatória, visitas de meia hora de duração a cada seis meses, e o direito de receber e escrever somente duas cartas ao ano, nas quais jamais deveriam ser mencionados temas políticos nem da atualidade. Em tal isolamento, ascetismo e solidão transcorreram os primeiros nove anos dos 27 que Mandela passou na ilha.

Cela onde Nelson Mandela cumpriu pena
(Robben Island, Cape Town, Western Cape Province)
Em vez de suicidar-se ou enlouquecer, como muitos companheiros de prisão, nos nove anos Mandela meditou, reviu suas próprias ideias e ideais, fez uma autocrítica radical de suas convicções e atingiu aquela serenidade e sabedoria que a partir de então guiariam todas as suas iniciativas políticas. Embora nunca tenha compartilhado das teses dos resistentes que propunham uma 'África para os africanos' e queriam atirar ao mar todos os brancos da União Sul Africana, em seu partido, o Congresso Nacional Africano, Mandela, assim como Sisulu e Tambo, os dirigentes mais moderados, estavam convencidos de que o regime racista e totalitário só seria derrotado mediante ações armadas, sabotagens e outras formas de violência, e para tanto formou um grupo de comandos ativistas chamado Umkhonto we Sizwe, que enviava para Cuba, à China Popular, à Coreia do Norte e à Alemanha Oriental jovens militantes para que se adestrassem.

Deve ter levado muito tempo - meses, anos - para convencer-se de que toda essa concepção da luta contra a opressão e o racismo na África do Sul era equivocada e ineficaz, e era preciso renunciar à violência e optar por métodos pacíficos, ou seja, buscar uma negociação com os dirigentes da minoria branca - equivalente a cerca de 12% do país, que explorava e discriminava de maneira iníqua os 88% restantes - e convencê-la de que permanecera no país porque a convivência entre as duas comunidades era possível e necessária, quando a África do Sul fosse uma democracia governada pela maioria negra.

Naquela época, final dos anos 60 e início dos 70, pensar semelhante coisa era um exercício mental distante da realidade. A brutalidade irracional com que a maioria negra era reprimida e os esporádicos atos terroristas com que os resistentes respondiam à violência do Estado haviam criado um clima de rancor e ódio que fazia prever, mais cedo ou mais tarde, um desenlace de dimensões cataclísmicas no país.

A liberdade só poderia significar o desaparecimento ou o exílio para a minoria branca, particularmente para os africâners, os verdadeiros donos do poder. É espantoso pensar que Mandela, perfeitamente consciente das vertiginosas dificuldades que encontraria no caminho que traçara para si, decidiria empreendê-lo, e, mais ainda, que perseveraria nele sem sucumbir ao desalento um só instante, e, 27 anos mais tarde, concretizaria aquele sonho impossível: uma transição pacífica do apartheid para a liberdade, enquanto a maior parte da comunidade branca permanecia no país ao lado dos milhões de negros e mulatos sul-africanos que, convencidos por seu exemplo e suas razões, haviam esquecido os insultos e os crimes do passado, e perdoado.

Seria preciso recorrer à Bíblia, àquelas histórias exemplares do catecismo que nos contavam quando éramos crianças, para tentar entender o poder de convicção, a paciência, a vontade inquebrantável e o heroísmo que Nelson Mandela deve ter demonstrado durante todos aqueles anos para persuadir, primeiramente seus próprios companheiros de Robben Island, depois seus correligionários do Congresso Nacional Africano e, por último, os próprios governantes e a minoria branca, de que não era impossível que a razão substituísse o medo e o preconceito, que uma transição sem violência era igualmente factível e ela assentaria as bases de uma convivência humana em lugar do sistema cruel e discriminatório imposto à África do Sul por séculos. Creio que Nelson Mandela é ainda mais digno de reconhecimento por esse trabalho extremamente lento, hercúleo, interminável, graças ao qual suas ideias e convicções foram contagiando os seus compatriotas como um todo, do que pelos extraordinários serviços que prestaria depois, já no governo, aos seus concidadãos e à cultura democrática.

Formação. É preciso lembrar que o homem que assumiu essa admirável tarefa era um prisioneiro político, o qual, até o ano de 1973, quando foram abrandadas as condições carcerárias em Robben Island, vivia praticamente confinado numa minúscula cela e com apenas uns poucos minutos diários para trocar algumas palavras com os outros presos, quase privado de toda comunicação com o mundo exterior. Contudo, sua tenacidade e sua paciência tornaram possível o impossível. Enquanto na prisão já menos inflexível dos anos 70, pôde estudar e formar-se em Direito, suas ideias foram rompendo pouco a pouco os preconceitos totalmente legítimos que existiam entre os negros e mulatos sul-africanos e começou a ser aceita sua tese de que a luta pacífica na busca de uma negociação seria mais eficaz e permitiria alcançar a liberdade mais rapidamente.

Mas foi ainda mais difícil convencer de tudo isso a minoria que detinha o poder e julgava ter o direito divino de exercê-lo com exclusividade e para sempre. Esses eram os pressupostos da filosofia do apartheid proclamada por seu mentor intelectual, o sociólogo Hendrik Verwoerd, na Universidade de Stellenbosch, em 1948, e adotada de modo quase unânime pelos brancos nas eleições daquele mesmo ano. Como convencê-los de que estavam equivocados, de que deviam renunciar não apenas a semelhantes ideias, mas também ao poder, e resignar-se a viver numa sociedade governada pela maioria negra?

O esforço durou muitos anos, mas, no final, como a gota persistente que fura a pedra, Mandela foi abrindo portas na cidadela de desconfiança e temor, e, um dia, o mundo inteiro descobriu estupefato que o líder do Congresso Nacional Africano saía às vezes de sua prisão para ir tomar civilizadamente o chá das cinco com os que seriam os dois últimos mandatários do apartheid, Botha e de Klerk.

Quando Mandela subiu ao poder, sua popularidade na África do Sul havia se tornado indescritível, tanto na comunidade negra quanto na branca (lembro ter visto, em janeiro de 1998, na Universidade de Stellenbosch, o berço do apartheid, uma parede coberta de fotos de alunos e professores recebendo a visita de Mandela com entusiasmo delirante).

MARIO VARGAS LLOSA - O Estado de S.Paulo
Esse tipo de devoção popular mitológica costuma atordoar quem a recebe e fazer dele - como no caso de Hitler, Stalin, Mao, Fidel Castro - um demagogo e um tirano. Mas Mandela não se deixou envaidecer; continuou sendo o homem simples, austero e honesto que sempre foi e, para surpresa do mundo todo, negou-se a permanecer no poder, como seus compatriotas pediam. Aposentou-se e foi passar os seus últimos anos na aldeia indígena de onde se originara sua família.

Mandela é o melhor exemplo que temos - aliás muito raro nos nossos dias - de que a política não é apenas a tarefa suja e medíocre que tantos imaginam, da qual os malandros se valem para enriquecer e os vagabundos para sobreviver sem fazer nada, mas uma atividade que pode também melhorar a vida, substituir o fanatismo pela tolerância, o ódio pela solidariedade, a injustiça pela justiça, o egoísmo pelo bem comum, e que alguns políticos, como o estadista sul-africano, tornam o seu país, e o mundo, muito melhor do que como o encontraram. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

Invictus Theme Song

Out of the night, that covers me
I'm unafraid, I believe
Beyond this place of wrath and tears
Beyond the hours that turned to years
I thank whatever, whatever gods may be

9000 days were set aside
9000 days of destiny
9000 days to thank gods wherever they maybe

It matters not, the circumstance
We rise above, we took a chance
And I thank whatever, whatever gods maybe

9000 days were set aside
9000 days of destiny
9000 days to thank gods, wherever they may be

A broken heart that turned to stone
Can break a man, but not his soul
9000 days were set aside
9000 days of destiny
9000 days to thank gods,
wherever they may be
I thank whatever, whatever gods may be

Ver resenha do filme Invictus e o poema de mesmo nome que foi fonte de inspiração para Mandela. 

4 comentários:

Teve suas qualidades, virtudes e defeitos, mas sua queda pelo comunismo compromete sua imagem. Não o admiro tanto assim.

Sim, o período conciliador do Mandela é o que distinguiu como pessoa extraordinária! Se ele tivesse seguido pelo caminho do confronto, depois de solto, o apartheid ainda estaria por lá. Tem gente que é cega.

Foi comunista e terrorista sim. Mandou explodir gente também! E fez alianças com os donos das minas de diamante e ouro na África que usam trabalho escravo para chegar ao poder. Lutou contra o apartheid, mas é ídolo de pés de barro.

Sim. Correto. Sua maior vitória foi o perdão, mesmo após 27 anos de cadeia, Física e mental. Mudar sobre essas circunstâncias é o maior exemplo.

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