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segunda-feira, 6 de março de 2017

O sequestro do termo "gênero": uma perspectiva feminista do transgenerismo

Transgenerismo: de volta à medicalização do comportamento humano
Já havia escrito sobre transgenerismo aqui no blog, com o texto Que conservadores e "progressistas" me desculpem, mas não existe criança "trans", ainda não muito consciente das dimensões dessa nova onda. Hoje, melhor informada e mais preocupada, pretendo abordar, sempre que possível,  os vários aspectos que configuram essa moda regressiva. Para começar, traduzi e editei o texto abaixo, da ensaísta americana Terri M. Murray, também mestre em Teologia, com especialização em ética cristã, e doutora em Filosofia, que escreveu o livro "Thinking Straight About Being Gay: Why It Matters If We’re Born That Way," (algo como "Visão hétero sobre ser Gay: Por que importa se nascemos desse jeito?").

Ressalvo que, neste texto, quando a autora fala em "queer", refere-se à comunidade de lésbicas, gays, bissexuais e drags e não aos adeptos da teoria queer.  "Queer" é um termo pejorativo, em inglês, usado contra homossexuais e outros indivíduos sexualmente não normativos. Significa esquisito, estranho, anormal. Já em fins dos anos 80, contudo, ele passou a ser assumido pelos próprios discriminados como identidade política, principalmente no contexto do surgimento da AIDS. A partir da década de 90, sobretudo de 1991 em diante, passa a ser adotado pelos acadêmicos que forjaram a chamada Teoria Queer, entre outros, Teresa de Lauretis, Michael Warner, Judith Butler, Eve Kosofsky Sedgwick, Lee Edelman. 

Por fim, embora tenha alguma divergência com a autora, concordo no geral com sua abordagem que me trouxe inclusive um novo dado sobre o tema. Ela faz um histórico a respeito da mudança do conceito de gênero, da visão progressista, dos tempos dos movimentos pelos direitos civis (meados do século passado até o novo milênio), para a visão regressiva atual. Aponta como o movimento transgênero sequestrou a linguagem e imitou a  postura política dos movimentos libertários anteriores, com intenção, contudo, oposta a desses movimentos (cavalo de Troia de uma política sexual regressiva). Aponta também para o retorno da medicalização do comportamento humano, trazida no bojo do transgenerismo, em particular no que se refere ao possível futuro da biotecnologia como ferramenta para eliminar homossexuais ainda no útero. E termina proclamando a volta ao conceito de gênero anterior como a via para nos livrar do possível futuro distópico que se avizinha. Não é uma leitura rápida, mas para sorver como um bom vinho. Degustem!

Terri M. Murray
O sequestro do termo "gênero":
uma resposta feminista ao transgenerismo 

Gênero costumava ser um conceito legal. Feministas fodonas como Simone de Beauvoir o usaram para distinguir o que você tem no meio das pernas (sexo) do que tem entre  as orelhas (gênero). Você nasceu com o primeiro; o segundo lhe ensinaram. O que colocaram entre suas orelhas (mente) chegou ali via doutrinação cultural patriarcal.

Mas essa concepção libertadora sempre teve variados opositores. Quando as mulheres começaram a ocupar papéis considerados masculinos ou posições consideradas tradicionalmente masculinas, os agentes do patriarcado recorreram à “natureza” para reforçar o sistema. Apelar para a "natureza" funcionava (e funciona) porque a paisagem cultural estava tão saturada de estereótipos (e continua) que eles pareciam (parecem) realmente naturais. Nesse contexto, foi fácil criar uma teoria biologicamente determinista para explicar porque o patriarcado não seria uma questão política mas sim uma necessidade biológica. Sociobiologistas, como E.O. Wilson, insistiram que a persistência do patriarcado se deveria ao suposto fato de a cultura ser assentada nos genes 😲.

Nada de novo nessa abordagem. Freud já havia postulado que as raízes da cultura patriarcal emanavam do pênis e da vagina (principalmente do todo-poderoso pênis). Tradicionalistas cristãos sempre vincularam os arranjos sociais patriarcais às funções reprodutivas, como visto na “Criação”, limitando os papéis sociais das mulheres aos de mãe e esposa. A transgressão e a punição de Eva por "deus" reforçaram mais ainda a subserviência da mulher ao marido. E São Paulo acrescentou uma pitada da autoridade do Novo Testamento a essa receita, declarando que as mulheres “deveriam se submeter aos maridos” assim como ao "senhor". A sagrada instituição do casamento era uma invenção humana, mas continha as intenções de “deus”.

Algumas feministas teimosas se recusaram a concordar com essa naturalização do patriarcado e seu concomitante determinismo biológico, em vez disso apontando a dominação masculina como resultado das instituições sociais, culturais, teológicas, acadêmicas e econômicas de nosso mundo. Existencialistas como Beauvoir abominavam ideias que tentavam explicar o comportamento humano como determinado por alguma "essência" fixa. Tanto ela quanto seu companheiro de longa data, Jean-Paul Sartre, insistiam que o caráter dos indivíduos é formado em resposta às circunstâncias que vivenciam e através das escolhas que realizam. Somos jogados nesse mundo, in situ, com nossa capacidade de livre-arbítrio, e nossas escolhas precisam ser tomadas inclusive frente a situações imutáveis como a do sexo biológico com o qual nascemos. Mas como as pessoas reagem a essas situações depende de cada uma particularmente. Embora seja óbvio que apenas mulheres possam engravidar, as implicações dessa capacidade são indeterminadas, e a atual divisão sexual do trabalho é apenas uma possibilidade de arranjo social entre várias outras.

Assim como as feministas de outrora, gays, lésbicas e bissexuais costumavam transgredir os estereótipos de gênero ensinados pela cultura patriarcal. A partir dos amplamente difundidos mitos de gênero heterossexistas, essas pessoas desviantes (queer) foram rotuladas de “sapatões”, “bichas”, "caminhoneiras", “viados” — nomes criados para estigmatizar qualquer indivíduo que se recusasse a agir e se vestir de acordo com os papéis de gênero sexistas e heterossexistas. Mas elas reagiram à intolerância dos criadores desses mitos, apropriando-se desses apelidos pejorativos e transformando-os em bandeiras de luta.
Dzi Croquettes
 Ao tornarem as normas de gênero uma forma de teatro, drag queens e kings mostraram que qualquer pessoa pode adotar e imitar os papéis de gênero independente de sua genitália particular, dessa forma expondo o fato de que o gênero não é algo natural, mas sim uma forma convencional de interpretação, como um figurino que se usa ou se tira (a la Judith Butler). Queers encarnaram o fracasso dos estereótipos de gênero em colar nas pessoas reais. Tudo isso era revolucionário porque desnudava a ficção conservadora de que todos os homens compartilham de uma personalidade heterossexual masculina diferente da das mulheres e vice-versa.
Na esteira das feministas, os queers começaram a apontar que somados aos mitos sociais sobre como meninos e meninas se sentem vem também a noção de que todas as pessoas são atraídas pelo sexo oposto. Boa parte da concepção de gênero é construída com base nos papéis heterossexuais e no heterossexismo. Os papéis sociais femininos e masculinos, culturalmente normativos (quer dizer, papéis de gênero), tornaram-se ritualizados como parte da cultura ocidental cristã que fetichiza e erotiza a diferença sexual.  Exagerar as diferenças entre mulheres e homens, mistificar o sexo oposto e tornar tabu os atos sexuais serve também para elevar a excitação de penetrar os mistérios do "outro" e transpor as barreiras que se opõe à realização sexual. Pressupor que a heterossexualidade é inata facilitou a bifurcação dos humanos em dois tipos opostos que se atraem mutuamente. Da mesma forma que as feministas rejeitaram a definição de “mulher” como ser oposto ao ideal masculino, os homossexuais se recusaram a ver a si mesmos como a versão defeituosa ou perturbada dos heterossexuais.

Tanto para as feministas quanto para os queers de fins do século passado, o natural havia sido reprimido pelo social. Ao mesmo tempo, porém, o "natural" também era produzido pelos pressupostos culturais e teológicos existentes. Ideias sobre gênero não são apenas resultado de observações empíricas; elas são as premissas das "pesquisas". Por isso, quando os indivíduos não se amoldam aos estereótipos de gênero, alegadamente estariam invertendo os papéis de gênero (supostamente fixos, reais) e não expondo-os como as ficções que de fato são. Se os indivíduos, quando observados, não se conformam realmente com as ideias sociais de gênero, então isso deveria valer como evidência de que as ideias sociais sobre gênero são furadas. Em vez disso, os papéis de gênero são pressupostos a priori, e as evidências em conflito com eles são interpretadas como sinais de "anormalidade" ou "desvio", não como uma indicação de que a pressuposta "norma" sempre foi falha. Há um problema de circularidade em toda a moldura conceitual onde as questões de gênero são "pesquisadas". O bestseller de John Gray "Homens são de Marte, Mulheres são de Vênus" é um bom exemplo dessa metodologia anticientífica.
O novo movimento transgênero não é uma extensão dos esforços anteriores para desconstruir a mitologia sexista e heterossexista. Não agrupa feministas e dissidentes de gênero numa frente solidária e unida em oposição à mitologia heterossexista e aos estereótipos sexuais. Ao contrário, divide e conquista o outrora poderoso movimento contracultural, sequestrando sua linguagem e imitando sua postura política para disfarçar intento oposto ao desse movimento. Embora numericamente reduzidos, os ativistas transgênero, promotores desse contra-ataque ao movimento contracultural, são figuras bem posicionadas no establisment e contam com apoio total da mídia na promoção de sua "causa" - outra coisa que os separa dos predecessores libertários dos anos 80 e 90.
Nos últimos anos, o termo "gênero" foi radicalmente redefinido por esse movimento reacionário que o tornou sinônimo de mero estado mental interior em oposição a seu significado original de "série de convenções (e restrições) sobre como mulheres e homens podem ser e o que podem fazer". Chrissie Daz está certa ao afirmar que alguma coisa fundamental se alterou na forma como o termo gênero passou a ser entendido no século XXI, com os novos ativistas transgênero representando uma grande mudança paradigmática em relação à concepção de gênero prevalente nos 40 anos anteriores. A princípio uma ideia empunhada pela esquerda liberal (social-democrata) contra as normas sociais sexistas e heterossexistas conservadoras, o termo "gênero" foi transformado numa arma do arsenal de uma política regressiva que não é somente sexista mas também homofóbica. 
O atual movimento transgênero reforça o mito de que homens e mulheres são espécies diferentes de seres humanos, não apenas reprodutiva mas mentalmente - com diferentes desejos, necessidades, atitudes e mentes distintas. Agora os porta-vozes do transgenerismo apoiam a naturalização conservadora tradicional de "masculinidade" e "feminilidade" como estados psicológicos inatos, intrínsecos ao ser humano desde o nascimento e provenientes de química cerebral ou de outras interações hormonais do corpo. A ideia progressista de que não há um jeito uniforme de meninas e meninos sentirem ou pensarem foi descartada. Em vez de lutar contra o rígido binarismo de gênero heterossexista (como sua retórica, aliás, sugere), os novos guerreiros transgênero assumem que seu inato senso de eu  ("identidade") é inerentemente "masculino" ou "feminino" antes de qualquer socialização. Aparentemente, julgam que a doutrinação cultural é insignificante. O termo "gênero" foi despolitizado, naturalizado e medicalizado de um só golpe.
Gênero agora é um conceito que aparenta fazer o tipo de trabalho político outrora associado ao movimento dos direitos civis. Na verdade, contudo, sua nova versão reverte a lógica que norteou os direitos civis no passado. Os ativistas dos direitos civis  apontavam que a discriminação baseada em diferenças biológicas como cor da pele ou sexo falhava em reconhecer a humanidade comum a todas as pessoas como agentes morais. Agrupar pessoas de acordo com traços físicos comuns negligencia o caráter e a individualidade das mesmas. Grupos humanos eram definidos por referência à cor de pele ou aos genitais, não por seu agenciamento humano, seu caráter ou comportamento. Assim as pessoas eram reduzidas a seus corpos (ou parte deles) enquanto seus atributos mais distintivos de intelecto e vontade (aspectos que deveriam fundamentar qualquer avaliação de caráter) eram negligenciados.

A "masculinidade" ou "feminilidade" da psique trans é tratada como uma condição
 inata semelhante à cor do cabelo ou à pigmentação da pele.
Os ativistas de gênero atuais não reivindicam ser tratados como indivíduos nem veem seu caráter como uma escolha. Eles enfatizam que pertencem a uma ‘minoria’ definida pela identidade de gênero ou por uma similar condição biológica que alegadamente teriam com outras pessoas. Enquanto os ativistas de direitos civis tornaram a biologia irrelevante, os ativistas dos direitos de gênero a colocaram num altar. A "masculinidade" ou "feminilidade" de sua psique é tratada como uma condição inata semelhante à cor do cabelo ou à pigmentação da pele. Assim sendo, como categoria de pessoas definidas por referência a uma suposta diferença biológica inata, eles não deveriam sofrer mais discriminação do que mulheres ou minorias étnicas. Entretanto, enquanto mulheres e minorias étnicas dos movimentos civis de meados do século XX estavam ansiosas por se desassociar das referências biológicas reducionistas de suas identidades, reivindicando não ser definidas a partir de sua genitália ou cor da pele, os ativistas transgênero de hoje reivindicam reconhecimento de sua alegada diferença "biológica", acreditando que o pertencimento a um grupo biológico particular os autoriza a ter direitos civis.

Adotar a narrativa biológica determinista da condição trans (uma psique de gênero inata) requer que primeiro aceitemos as premissas conservadoras sobre gênero. Como vimos acima, uma coisa que vem incrustada no conceito de gênero é a heterossexualidade obrigatória de mulheres e homens. Assim, se a ideologia de gênero heterossexista define "mulher" como par erótico do homem, as lésbicas tendem a não se identificar com a ‘feminilidade’ (papel de gênero feminino), já que não se sentem atraídas por homens nem desejam ser objeto da atenção sexual masculina. Da mesma forma, gays acharão difícil se encaixar na masculinidade heterossexual e suas correspondentes suposições eróticas.
Uma vez que o conceito de gênero binário vem sendo renaturalizado e recolocado como um dos dois possíveis estados psicológicos dos seres humanos, as pessoas de sexo feminino que se identificam com o que se convencionou chamar de masculino e seu correspondente objeto de desejo ficam com a única opção de "se tornar" do sexo masculino. Se elas desejam "agir como homens", sendo biologicamente mulheres, é porque estão doentes (disfóricas). O mesmo para as pessoas de sexo masculino que sentem forte afinidade com os papéis normativos de gênero feminino e sua correspondente orientação sexual. Não por menos pessoas homossexuais andam tão confusas diante desse contexto.
Médicos especialistas em transgêneros identificam a disforia (insatisfação) de gênero como uma condição psicossexual anormal. Mas, se a disforia é realmente um efeito ou sintoma do mal-entendido da sociedade a respeito da bioquímica sexual natural, então a doença não é intrínseca ao paciente; ela  resulta do relacionamento entre o paciente e a cultura circundante. De fato, tanto o eugenista liberal Nicholas Agar quanto os bioeticistas cristãos Michael J. Reiss e Roger Straughan interpretam "doença" como um conceito socialmente construído ou “de certo modo, um relacionamento entre a pessoa e a sociedade”.
Os ativistas queer do passado, porém, argumentavam que é a natureza do próprio relacionamento - não a natureza do "paciente" - que faz o mesmo se sentir infeliz. Hoje, todavia, o desconforto social com a diferença foi reconceituado como uma anormalidade psicossexual da constituição do paciente. O "cérebro desordenado" do sujeito é visto como a causa de uma inaceitável interação do indivíduo com as organizações sociais. Como consequência política dessa concepção, desvia-se o foco da crítica das instituições sociais necessitadas de reforma para a reforma do indivíduo supostamente anormal. Ele precisa ser reformulado para se encaixar nas instituições.
Para citar um exemplo de como isso funciona na prática, basta considerar a situação das pessoas homossexuais no Irã. O Irã é uma teocracia sexista, intolerante e homofóbica, onde as leis fundamentalistas religiosas impõe um estrito status quo heteronormativo. A solução estatal para a homossexualidade nesse país se resume a duas possibilidades: (1) punir ou executar quem a pratica abertamente, ou (2) "encorajar" homossexuais a transicionar, cirurgicamente, para o sexo "correto" de modo que a pessoa se encaixe na norma heterossexual, a única norma que o Irã tolera. Consequentemente, o Irã tem o segundo maior número de cirurgias de redesignação sexual do mundo, perdendo apenas para a Tailândia. Tal fato se assemelha ao clareamento químico da pele das pessoas negras para torná-las mais aceitáveis numa sociedade racista, quando o que deveria ser feito é atacar o racismo. Trata-se de uma política regressiva. Em vez de rejeitar ou desconstruir o binarismo heteronormativo, a indústria médica está facilitando a "desconstrução" literal do indivíduo transgênero - literalmente desconstruindo seu próprio corpo -  de modo que ele se refaça na imagem heterossexista desejada. Isso é violência mascarada de compaixão.
Esse tipo de prática não é muito diferente da "medicina" de estilo soviético do início dos anos 70, quando o estado soviético usava de violência física somente como último recurso ao lidar com os dissidentes que começavam a pressionar por mais liberdade política. Investigações psiquiátricas e diagnósticos de doença mental (esquizofrenia geralmente) se tornaram o instrumento preferido para possibilitar o encarceramento dos dissidentes em hospitais psiquiátricos. À luz do relacionamento político conturbado entre o movimento pelos direitos homossexuais e as instituições políticas vigentes, a atual tendência de tratamento transgênero pode ser melhor analisada com base no argumento de Michel Foucault de que toda as categorias de desordens psicológicas são expressões de relacionamentos de poder na sociedade. De forma simplificada, Foucault vê a loucura não como própria do indivíduo mas sim como uma definição social desejada pela sociedade para o segmento não-conformista de sua população.

O "reconhecimento" clínico e médico aparentemente progressista e compassivo do "paciente" transgênero está na realidade reforçando o binarismo heteronormativo que por muito tempo causou sofrimento e alienação para uma grande variedade de pessoas homossexuais. Não precisamos nos opor a que adultos bem informados consintam em transicionar cirurgicamente para um corpo com o qual se sintam mais à vontade. Entretanto, progressistas não deveriam correr para abraçar esta opção acriticamente ou como a solução principal para os que sofrem com a chamada disforia de gênero.

Editado de comentários do facebook: cons e trans, farinhas do mesmo saco
Simplesmente não há como testar se a infelicidade de alguns com seu corpo é um subproduto da doutrinação dogmática de gênero ou uma condição inata, já que todas as culturas tem doutrinação de gênero, embora das formas as mais variadas. Não há um grupo de controle contra o qual se possa comparar indivíduos doutrinados pelos estereótipos de gênero. Mas a reivindicação dos transativistas de que algumas pessoas do sexo feminino são inerentemente "masculinas" enquanto outras de sexo masculino são inerentemente "femininas" assume o que precisa provar: a saber, que o gênero é natural e intrínseco à feitura psicossexual dos indivíduos em vez de uma série de ficções culturalmente em circulação que as pessoas internalizam. Embora não haja problema em aceitar a hipótese de que a orientação sexual possa ser inata, tal aceitação não nos compromete a comprar uma teoria essencialista de gênero. De fato, feministas e queers progressistas deram um tiro no pé ao abandonar a distinção natureza-cultura que o conceito de gênero anterior tão bem iluminou.

No contexto da narrativa determinista de gênero, torna-se difícil distinguir a pessoa homossexual da transgênero. Esta última é conceitualizada como alguém que tem uma psique feminina ou masculina presa no corpo "errado". Mas, "errado" de acordo com quem ou com o quê? Não importa se homossexual ou heterossexual, as normas de gênero binárias representam uma série de restrições de atuação para pessoas de sexo feminino e masculino. A própria homossexualidade representa uma boa razão para que algumas pessoas não se sintam à vontade em seus próprios corpos, dadas as expectativas sexuais erigidas junto com as normas de gênero heterossexistas. Mas algumas pessoas heterossexuais também consideram muito difícil se identificar com muitas das expectativas inerentes ao gênero que lhes designaram. Algumas pessoas simplesmente acham os conceitos de gênero muito alienantes e não conseguem se adaptar a suas generalizações sobre "mulheres" e "homens". Não são doentes por isso, apenas apresentam um sintoma de desconforto social. Todos os indivíduos são "encorajados" a acreditar que ficarão melhor e serão mais felizes se suas ideias sobre seus "eus" biológicos se encaixarem com as ideias culturalmente aceitáveis. E elas podem ser ainda mais felizes se transicionarem em vez de virarem crossdressers ou viverem com a constante rejeição que assombra os não-conformistas. Numa sociedade inclusiva, a opção de transicionar não deveria ser descartada, mas, de novo, igualmente não deveria ter precedência sobre a luta por novas reformas sociais. Sobretudo deveria ser uma decisão tomada apenas por  adultos que estão plenamente conscientes do papel que a cultura joga no entendimento que elas têm de si mesmas.

Para compreender as implicações políticas iminentes da atual tendência de direitos transgênero, precisamos ter clareza de como seus conceitos centrais funcionam em relação aos direitos da mulheres e da população LGBI assim como em relação à eugenia liberal. Eugenistas transhumanistas/Liberais (Nicholas Agar, Julian Savulescu, James Hughes, Nick Bostrom, David Pearce, Gregory Stock, John Harris, Johann Hari, et al.) combinam biopolítica com economia de livre mercado para alcançar uma política social ostensivamente liberal sobre o uso da biotecnologia. Estes autoproclamados "eugenistas liberais" estão reivindicando o uso ilimitado ou desregulado da reprogenética. Eles diferenciam a reprogenética da eugenia considerando que esta última implica coerção estatal a pretexto de beneficiar pessoas. A primeira (reprogenética) seria voluntariamente buscada por pais com o objetivo de melhorar suas crianças de acordo com suas preferências. Esta seria uma eugenia "privatizada" ou de "livre mercado" (havendo naturalmente um incentivo financeiro para promover seu uso).
Dentro da aparentemente progressista barriga do Cavalo de Troia transgênero se esconde uma política sexual regressiva que está pronta para usar a medicina e a biotecnologia a fim de, primeiro cirurgica e quimicamente - e mais tarde talvez mesmo geneticamente - recolocar-nos nos papéis tradicionais do velho binarismo heterossexual. A engenharia social feita por meio da disciplina e da punição pode logo ser realizada via biotecnologia, tratamentos hormonais pré-natais e/ou edição de genoma.
Considerando a hipótese de uma causa biológica para a atração homossexual, eliminá-la certamente reduzirá o comportamento homossexual. Negar tal fato é fingir que atos sexuais voluntários não têm relação com a atração sexual involuntária. O exato propósito das intervenções reprogenéticas será, através da eliminação da predisposição biológica involuntária para o comportamento homossexual, eliminar o comportamento homossexual voluntário dos indivíduos. Isso acontecerá não por tirar o livre-arbítrio dos indivíduos mas sim por guiar biologicamente a direção para onde suas escolhas se encaminharão, onde serão  mais provavelmente expressas. Mas poderão ainda aquelas pessoas cuja orientação sexual principal é hétero se engajar em atos homoeróticos? Naturalmente. Mas isso passa ao largo da questão central. As intervenções reprogenéticas para proibir o desejo homossexual constituiriam uma forma de engenharia social, que não é terapêutica em qualquer sentido médico, visando restringir o comportamento do indivíduo (sem seu consentimento) aos objetivos de vida que os pais preferem. O futuro poderá trazer pessoas homossexuais que não se rebelem contra a doutrinação homofóbica dos pais nem saiam do armário porque simplesmente não desejarão fazê-lo.

O novo movimento trans (intencionalmente ou não) remove a única barreira que impede pais de serem capazes de presumir o consentimento implícito do paciente para essa espécie de "tratamento" eugenista de sua "condição" psicossexual. Para definir e mirar a orientação homossexual como uma condição médica passível de "tratamento" será necessário primeiro distinguir esse "tratamento" da violência médica homofóbica, que seria muito questionável. O que inviabiliza essa distinção é a suposição de que o paciente alegremente coincidiria com tal "tratamento". Em sua pressa para abraçar os "direitos transgênero", progressistas bem intencionados e pessoas homossexuais estão fomentando exatamente essa suposição. O movimento eugenista homofóbico tem buscado o santo graal da orientação sexual biológica com o objetivo de descobrir como mudá-la. Se algum dia realmente localizarem uma causa ou causas biológicas para a orientação homossexual, só lhes faltará, para poder curá-la, uma moldura conceitual que lhes permita a edição homofóbica do genoma ou o tratamento hormonal  pré-natal a fim de parecerem benevolentes. Como o "tratamento" será feito num feto, os especialistas precisarão patologizar a homossexualidade de tal forma que os pais acreditem que é como se tivessem o consentimento do paciente (prole) para sua "cura".

Mas eles só podem presumir tal coisa se os indivíduos com sexualidades não binárias consentirem em mudar a si mesmos. O movimento transgênero luta pelo reconhecimento de sua condição desviante como condição médica e reivindica o "direito" de seus integrantes, como pacientes, de ter acesso à assistência médica para transicionar de volta à definição de saúde socialmente conservadora.

Mesmo que alguns dos transicionados não venham a se tornar heterossexuais, terão de qualquer forma apoiado a noção heterossexista de que gênero é, para algum subconjunto de indivíduos, uma condição biológica interna que os faz se sentir mal. Como pacientes voluntários que aceitam a medicalização de sua infelicidade, eles terão jogado um importante papel na reformulação teórica de questões políticas como patologias clínicas. Embora os apoiadores dos trans sejam motivados por boas intenções, eles involuntariamente ajudam os conservadores sociais a vender uma agenda eugenista ao público, travestindo-a  de compaixão esclarecida ou tolerância pela diversidade.
Não há razão pela qual não possamos sentir compaixão por pessoas que se sintam presas num corpo biológico "errado". O perturbador não é como esses indivíduos se sentem.  Pelo contrário, a questão é como seus sentimentos estão sendo enquadrados ou interpretados, e isso se deve em parte aos contextos sociopolíticos nos quais seus sentimentos surgiram em primeiro lugar. Como Sarah Ditum argumentou, "a existência do sofrimento não é evidência de que o sofredor tenha clareza inquestionável da origem de seu sofrimento." Se as sociedades fossem organizadas em torno da ideia de que a sexualidade humana natural (atração) inclui tanto as variantes heterossexuais quanto as homossexuais, não somente isso ajudaria a eliminar o estigma associado aos intersexuais, como diminuiria significativamente a homofobia e (em grande medida) o sexismo. E como isso quebraria os mitos sexistas que alienam os que não se sentem "à vontade" com os papéis sociais designados para pessoas de seu sexo, provavelmente haveria também um aumento do bem-estar daqueles que atualmente sentem que estão presos no corpo "errado".
                  
Fonte do original: Culture on offensive: The Hijacking of Gender: A Feminist Take on Transgenderism Tradução: Míriam Martinho, São Paulo, 04/03/2017

Chimamanda Ngozi Adichie é uma escritora nigeriana. Aqui ela afirma o óbvio: "Não acho que seja uma boa coisa falar das questões das mulheres como se fossem as mesmas das questões das transfemininas (ou transmullheres) porque não acho que isso seja verdade. 

Uma transfeminina (ou transmulher) honestíssima afirma que as trans não são mulheres.

Também se opõe aos procedimentos de transição em crianças pelos danos que causam à saúde das mesmas.

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Aos 110 anos do nascimento de Hannah Arendt, a importância de sua reflexão para o entendimento e análise do mundo atual.

14/10/1906 (Hanôver, Alemanha) - 04/12/1975 (Nova Iorque, EUA)
Muita honra pertencer ao seleto grupo onde estrela Hannah Arendt. Como ela disse em 1972 (e eu poderia dizer hoje):
A esquerda pensa que sou conservadora; os conservadores, que sou de esquerda; e eu não me incomodo, pois entendo que as questões substantivas do século não serão iluminadas por esses rótulos”. Nas suas palavras: “I somehow don’t fit”. Ela não se enquadrava nos rótulos e estava à vontade com o que denominou a tradição subterrânea do pária consciente que elaborou, refletindo, por exemplo, sobre Heine, Bernard Lazare e Kafka.
As questões substantivas deste século XXI também não serão iluminadas por esses rótulos. E eu também nunca me encaixei em rótulo algum. Sempre fui uma pária bem consciente! 



Hannah Arendt, 110 anos

O tempo confirmou como são fecundas as trilhas abertas pela reflexão arendtiana

Celso Lafer

Decorridos 110 anos do nascimento de Hannah Arendt, existe generalizado consenso, nos mais diversificados quadrantes culturais, sobre a importância e o significado da sua reflexão para o entendimento e análise do mundo atual. Por isso se pode dizer que ela adquiriu o status de um clássico, cuja obra nunca termina de dizer aquilo que tem para dizer, para recorrer à formulação de Italo Calvino. Daí o número crescente de livros dedicados à sua obra que adensam anualmente, a partir de distintas perspectivas, a bibliografia arendtiana.

Em 1965, quando tive o privilégio de ser seu aluno na Universidade Cornell, não existia tal consenso. Ela era então personalidade intelectual conhecida, mas controvertida.

Seu grande livro de 1951, Origens do Totalitarismo (ver abaixo), tornou-a figura pública de destaque intelectual. Nessa obra, identificou no totalitarismo um inédito regime político, voltado para a dominação total, distinto das conhecidas figuras do despotismo, da tirania e da ditadura. Destacou a sua especificidade, apontando que se caracteriza pela ubiquidade do medo, instrumentado na organização burocrática de massas e sustentado pelo emprego do terror e da ideologia. Apontou igualmente que a operação dos campos de concentração, direcionada para o indizível da descartabilidade do ser humano, inerente à dominação totalitária, não obedecia a critérios de utilidade econômica e política, escapando assim do âmbito da tradicional categoria da razão de Estado, na qual a relação entre meios e fins é inerente à justificação do não cumprimento de princípios éticos.

Origens do Totalitarismo surgiu na guerra fria. Foi recepcionado com ressalvas e suspeitas pela esquerda, em especial a comunista, pois identificava não apenas no nazismo, mas também no stalinismo, uma modalidade de regime totalitário, assinalador das rupturas configuradoras da era dos extremos, a marca histórica do século 20.


Eichmann em Jerusalém (1963, 1964) gerou explícitas e mais acesas controvérsias, entre outras razões, pelo impactante conceito da banalidade do mal, explicativo da personalidade de Eichmann, que perpetrou sem parar para pensar o que significa o mal ativo de tornar seres humanos supérfluos. Como Arendt esclareceu, em carta a Scholem, só o bem é profundo. O mal que qualificou como banal não é radical, é extremo. Não tem profundidade nem dimensão demoníaca, mas pode proliferar e devastar o mundo inteiro precisamente porque se espalha como um fungo sobre a superfície da Terra, desafiando, pelas suas características, o pensamento e a compreensão.

Arendt, como se vê pela menção a esses dois livros, não era facilmente identificável no âmbito das disciplinas acadêmicas – Filosofia, Teoria Política, História – nem se enquadrava nos cânones políticos usuais: esquerda/direita, liberal/conservador. Como disse em 1972: “A esquerda pensa que sou conservadora; os conservadores, que sou de esquerda; e eu não me incomodo, pois entendo que as questões substantivas do século não serão iluminadas por esses rótulos”. Nas suas palavras: “I somehow don’t fit”. Ela não se enquadrava nos rótulos e estava à vontade com o que denominou a tradição subterrânea do pária consciente que elaborou, refletindo, por exemplo, sobre Heine, Bernard Lazare e Kafka.

Para ela, “o importante é compreender”, e para compreender o mundo do século 20, com suas rupturas e descontinuidades que se prolongam no século 21, é necessário pensar pela própria cabeça e disseminar, à maneira de Lessing, os fermentos do conhecimento provenientes desse empenho. Isso requer levar em conta a baliza da experiência, tendo em vista a fragmentação dos “universais” provenientes do hiato entre passado e futuro, que pôs em questão a pertinência da tradição do pensamento. Nessa moldura, elaborou os exercícios de pensamento político que singularizam os ensaios de Entre o Passado e o Futuro, seu primeiro livro publicado no Brasil.


Não por acaso, o tema do juízo, o entender o concreto de uma situação sem o apoio de regras gerais, permeia a sua reflexão. A esse tema ela não deu tratamento mais circunstanciado. Faleceu tendo discutido o pensar e o querer, sem iniciar a sua análise do julgar, que integraria A Vida do Espírito. Das indicações de suas aulas se verifica que, inspirada pela leitura da Crítica do Juízo, de Kant, no juízo reflexivo e raciocinante encontrou o seu caminho, pois esse tipo de juízo lida com o problema de como avaliar um particular, buscando o seu significado mais amplo, sem o lastro do determinante de prévias normas gerais. Daí a maneira como enfrentou o desafio de pensar “sem o apoio do corrimão” de conceitos gerais esgarçados pelas realidades contemporâneas. Seus alunos, entre eles Elisabeth Young-Bruehl, sua biógrafa, e Jerome Kohn, organizador de vários de seus livros póstumos e hoje seu testamenteiro literário, foram sensíveis ao deslumbrante e duradouro impacto dos fermenta cognitionis arendtianos. Ambos seguiram em 1968, em Nova York, na New School, a retomada do curso dado em Cornell em 1965, em que fui seu aluno, sobre “Experiências políticas do século 20”.

No curso construiu com uma multiplicidade de leituras (de textos históricos, políticos, romances, poesias) a narrativa da biografia imaginária de alguém que nasceu na última década do século 19, não estava à margem da História, mas não foi um ator protagônico, e reagiu à variedade de eventos que incidiram na sua vida e cujo destino, como tantos no século 20, foi conformado pela dinâmica da política. O curso, para os que o seguiram, nunca termina de dizer o que tem para dizer sobre a atualidade de Hannah Arendt.

O tempo confirmou de maneira generalizada como são fecundas as trilhas abertas pela reflexão de Arendt. Por isso se converteu num clássico, que preenche os requisitos desse atributo na formulação de Bobbio: 1) sua obra é uma interpretação esclarecedora do século 20; 2) instiga constantes e contínuas leituras e releituras; e 3) seus conceitos e formulações são heurísticos e reveladores para entender o mundo em que estamos.

Fonte: O Estado de S.Paulo, por Celso Lafer, 20/11/2016

Livros da filósofa em PDF

A Condição Humana

Origens do Totalitarismo 


terça-feira, 11 de outubro de 2016

Estudo descarta haver diferenças significativas entre os cérebros de mulheres e homens

A palavra gênero entrou para o vocabulário popular pela via torta da falácia da "ideologia de gênero", um espantalho conservador para assustar os pais das crianças contra a educação sexual nas escolas pois esta visaria transformar seus filhos em homossexuais. Se fosse para levar a sério essa mistificação, deveríamos apontar para os verdadeiros pais da ideologia de gênero, de fato, os próprios conservadores. Por que o que é gênero? Gênero é o padrão de comportamento inculcado na cabeça das pessoas, desde a tenra idade, pelo que se chama educação diferenciada, ou seja, o adestramento diferente que é dado a meninas e meninos para se encaixarem no que se convencionou chamar de feminino e masculino (papéis de gênero). De fato, masculino e feminino são apenas características humanas que foram arbitrariamente separadas entre os sexos para fins de dominação e exploração dos homens sobre as mulheres e/ou para garantir privilégios aos homens em detrimentos das mulheres.  E não adianta querer tapar o sol com a peneira, porque é sim para issoque serve a educação de gênero. Mesmo no Ocidente, com todos os avanços promovidos pelo feminismo, meninas continuam sendo adestradas para crescerem e virarem empregadas de cama e mesa de qualquer boçal da vida, e os meninos, adestrados para serem  parasitas que acham essa exploração algo natural.

A eficácia desse modelo de educação diferenciada (a verdadeira ideologia de gênero) repousa exatamente em sua capacidade de fazer aquilo que é cultural passar por natural. Na fórmula conservadora patriarcal (com perdão da redundância), o sexo biológico (fêmea, macho, intersexual), fruto da natureza, tem uma (falsa) relação intrínseca com o gênero (fruto da cultura porque produto de educação). Assim, define-se gênero como natural objetivando torná-lo inquestionável já que algo tido como natural, inerente ao ser, é considerado imutável, por isso, inquestionável. E, para garantir essa inquestionabilidade, vale tudo, desde falar em essência feminina, masculina, psiquê feminina, masculina, cérebros femininos e masculinos, apelar para deus, a ordem divina, qualquer coisa que garanta a fanfic do gênero natural. Somente a partir de meados do século passado,  a falácia do gênero natural passou a ser questionada por muitas e muitos educadores, psicólogos, cientistas sociais, feministas, antropólogos, estudiosos de gênero e inclusive neurocientistas.

Entretanto, a ideia do determinismo biológico como explicação para diferenças comportamentais permanece forte em corações e mentes, talvez porque dê sensação de segurança a  muitos. Recentemente, ao repassar o artigo  que transcrevo abaixo, em um grupo de discussão do Facebook, me apareceu um sujeito tentando desqualificar a notícia porque para ele todo o comportamento humano tem base biológica e, portanto, diferenças comportamentais entre os sexos também teriam explicação natural. Quando eu o refutei dizendo que os seres humanos são fundamentalmente seres culturais e que, portanto, o peso da cultura superava o das condições inatas, o cara veio me pedir fontes sobre essa declaração (sic). Talvez ele precise de fontes sobre essa declaração porque o número de orangotangos produzindo sinfonias, macacas realizando feitos científicos, cachorros erguendo prédios, gatos promovendo religiões é estonteante, não é mesmo?


Piadas à parte, acho que o cara nem sabe a definição de cultura. Lembrando, "cultura é o conjunto de ideias, comportamentos, símbolos e práticas sociais, repassados de geração a geração através da vida em sociedade. Inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes. Cultura é o que forma os indivíduos." Obviamente, mulheres e homens são diferentes em termos anatômicos, fisiológicos e genéticos, mas o que essas diferenças implicam em termos de comportamento ninguém sabe de fato. E não se sabe porque o papel da cultura na formação das pessoas é imenso, sobretudo devido à educação diferenciada de meninas e menino, mulheres e homens. Na pesquisa comentada abaixo, com base em estudo do final do ano passado, neurologistas da Universidade de Tel Aviv afirmam que o diformismo sexual, ou seja, as diferenças entre a anatomia feminina e masculina, em especial nos genitais, não se repete no que diz respeito ao cérebro, sede da mente das pessoas. Por isso, entre outras coisas, o mais sensato é só procurar explicações naturalistas para as diferenças comportamentais entre mulheres e homens quando todas as outras tentativas de explicação pela via cultural falharem. Geralmente, elas não falham.

Não existe cérebro masculino ou feminino
Estudo descarta que haja diferenças anatômicas significativas por razão de sexo

Por Miguel Ángel Criado

Um estudo com centenas de imagens de cérebros de homens e mulheres não encontrou provas de que exista um cérebro masculino e outro feminino. Embora haja algumas diferenças anatômicas em determinadas áreas em função do sexo, estas não permitem dividir os humanos em duas categorias. Na verdade, o cérebro de cada um é um mosaico com elementos tanto femininos quanto masculinos.

Ideias como a da inteligência emocional e best-sellers recentes como O Cérebro Feminino ou, no século passado, a saga Os Homens São de Marte, as Mulheres São de Vênus, alimentaram a tese do dimorfismo sexual do cérebro. Se há diferenças entre homens e mulheres em outras partes da sua anatomia, em especial os genitais, por que não haveria no cérebro? E, se existe no que é físico, ou seja, no cérebro, também deve existir no que é essencial, a mente.

Entretanto, não há provas de que, do ponto de vista da matéria cinzenta, da matéria branca, das conexões neuronais e da espessura do córtex cerebral, o cérebro de uma mulher e de um homem sejam diferentes pelo simples fato de seu sexo ser distinto. As provas, aliás, apontam para o contrário. Em um dos maiores estudos já feitos, um grupo de pesquisadores israelenses, alemães e suíços comparou a anatomia de 1.400 cérebros de homens e mulheres para concluir que, mais do que duas categorias, o que existe é um mosaico cerebral.
Na genitália, há diferenças segundo o sexo que vão se somando até criar dois tipos, as genitálias masculinas e as genitálias femininas”, diz Daphna Joel, pesquisadora da Universidade de Tel Aviv e principal autora do estudo “Cerca de 99% das pessoas têm genitálias masculinas ou femininas, e só algumas poucas têm órgãos genitais cuja forma está entre as formas masculina e feminina, ou têm alguns órgãos com a forma masculina e outros com a feminina. São os que chamamos intersexuais”, acrescenta.


Entretanto, o hermafroditismo cerebral é a norma, e os cérebros 100% masculinos ou femininos são a exceção. 

Na verdade, o que existem são muitos tipos de cérebros”, afirma Joel. “Além disso, o tipo de cérebro que só apresenta características mais prevalentes nos homens do que nas mulheres é muito raro, tão raro como o tipo de cérebro com um perfil em que predomine entre as mulheres”, acrescenta.
Para sustentar essas afirmações, Joel e seus colegas recolheram imagens do cérebro de voluntários de vários projetos científicos. Além da heterogeneidade da amostra (um total de 1.400 pessoas), sua pesquisa recém-publicada na PNAS dispõe de uma força adicional. As imagens neurológicas foram obtidas com tecnologias e métodos diversificados, para evitar distorções. Enquanto algumas determinam melhor a espessura do córtex cerebral, outras registram a estrutura e dimensões das diferentes áreas do cérebro.

Um dos estudos, por exemplo, baseou-se em imagens do cérebro de quase 300 pessoas (169 mulheres e 112 homens). Usando a técnica conhecida como morfometria baseada no voxel (VBM, na sigla em inglês), foi possível determinar o volume de matéria cinzenta de 116 áreas do cérebro.
Não há nenhuma região em nossas amostras que revele uma clara distinção entre uma forma masculina e uma forma feminina, ou seja, que se apresente de forma evidente apenas nos homens ou apenas nas mulheres”, destaca Joel. “Na realidade, há um alto grau de superposição entre mulheres e homens em todas as regiões estudadas”, acrescenta. Ainda assim, apontaram as 10 zonas que apresentaram maior contraste em função do gênero. Foi o caso dos dois lados do giro frontal superior, do núcleo caudado e dos dois hemisférios do hipocampo, todos com uma diferenciação inferior ao nível estatisticamente significativo.
Com essas 10 áreas foi possível criar uma espécie de contínuo do extremo masculino ao extremo feminino. O cérebro de apenas 1% dos homens e 10% das mulheres caía em cada extremo, e um terço das pessoas tinha cérebros anatomicamente intermediários. Os exames foram repetidos com outras amostras de pessoas e tecnologias, como a de imagem por tensores de difusão, com a qual se pode estabelecer a conectividade entre as diferentes zonas cerebrais. Em todas elas, os resultados foram similares.
A maioria dos humanos tem cérebros compostos por mosaicos de características que os tornam únicos, algumas são mais comuns entre as mulheres em comparação aos homens, e outras são mais comuns nos homens em relação às mulheres, e há ainda outras que são comuns a homens e mulheres”, comenta a pesquisadora israelense.
As teorias sobre a diferenciação sexual no cérebro ganharam força em meados do século passado. Mas, como comenta o pesquisador Xurxo Mariño, da Neurocom e da Universidade de Coruña, “esses trabalhos se centraram na sexualidade, em especial no estudo da emergência da homossexualidade”. Alguns se empenharam em encontrar anomalias anatômicas que a explicassem, e encontraram algumas, como o menor tamanho de uma estrutura cerebral chamada estria terminal nas mulheres e também nos homens transexuais. Mas boa parte daquela ciência partia da ideologia.

Os estudos na época se baseavam em questionários, não em observações diretas do cérebro e suas diferenças anatômicas. Isso é algo que só a moderna tecnologia de imagens neurológicas está permitindo. Ainda assim, recorda Mariño, “já em 1948 houve quem falasse mais de um contínuo cerebral do que de categorias dicotômicas”. Foi o biólogo Alfred Kinsey quem, com sua escala sobre a orientação sexual, antecipou-se ao estudo atual.

Fonte: El País, Neurociência, 1/12/2015

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Fernando Holiday, de token black a ponta de lança do reacionarismo

Eleito vereador no último pleito, Fernando Holiday, do Movimento Brasil "Livre" (MBL), um dos grupos que organizou as manifestações pelo impeachment de Dilma afirmou, em sua página do facebook: 
Meu primeiro pronunciamento feito aqui na minha página pós-eleição, além de divulgar os gastos finais de campanha, foi apoiar a medida do prefeito eleito João Doria de EXTINGUIR a secretaria de Igualdade Racial e LGBT. Precisamos diminuir o tamanho da máquina da prefeitura! Sou e serei a favor de qualquer redução de gastos ou estruturas burocráticas." 
Bem, Doria voltou atrás em sua fala sobre extinguir secretarias (não sei como ficará a situação agora) e, no caso da LGBT, nem poderia extingui-la porque sequer existe. Ao que tudo indica, Holiday não está a par desses detalhes, mais preocupado em jogar para sua plateia de reaças empedernidos.

Entretanto sua fala provocou engulhos em muitos, inclusive em mim. Me fez lembrar direto o personagem do filme Django Livre (de Quentin Tarantino), Stephen, interpretado magistralmente por Samuel Lee Jackson, o negro liberto que trabalha para o escravocrata Calvin Candie (Leonardo DiCaprio), em sua plantation, e é mais vil com os outros negros do que o próprio patrão. Claro que vão dizer que estou exagerando na analogia, pois não há como comparar as imbecilidades ditas por Holiday, num regime democrata, com as falas e ações escrotas de um agente do sistema escravagista. No entanto, o desprezo que o personagem de Jackson provoca nos espectadores do filme, em mim também naturalmente, não é muito diferente do que senti ao ler a fala de Holiday. Guardadas às devidas proporções, a motivação de ambos é sim a mesma. Adiante.


Naturalmente,  a performance de Holiday vem rendendo assunto nas redes sociais e já virou tema de postagens em blogs e sites tanto ditos de direita quanto de esquerda. No site Diário do Centro do Mundo, de esquerda, Marcos Sacramento escreveu texto intitulado Quantos mandatos Fernando Holiday do MBL cumprirá até tornar-se negro?, criticando Holiday, entre outras coisas, por ser contra cotas e por querer extinguir a secretaria de promoção da igualdade racial de São Paulo. O título e o texto são bem equivocados pois querem fazer crer que se uma pessoa negra não for favorável a cotas raciais ela não seria negra de fato. Ser negro então deixa de ser uma condição inata para se tornar um modelo específico de militância!? Eu, hein!

Do outro lado, blogueiros e colunistas de direita saíram em defesa do Stephen tupiniquim afirmando coisas do tipo: "A esquerda não consegue entender a existência de Holiday porque acredita ter o monopólio da defesa dos negros, pobres e “oprimidos” em geral. (Leandro Narloch)."  Ou "O negro, o gay, a mulher, nada disso importa. Não como indivíduo, ao menos. Só começam a importar quando servem de mascote para a esquerda, para sua agenda totalitária estatizante. E isso só acontece quando aceitam o papel de vítimas, de coitadinhos, clamando por intervenção estatal(Rodrigo Constantino)." Festival de clichezinhos direitosos repetidos ad nauseum.

Mas quem disse que o problema de Holiday  é não se encaixar nos parâmetros de esquerda que a militância seja negra ou LGBT define como corretos? Vamos lembrar que uma parcela do movimento negro sempre foi contra cotas raciais. Ativistas históricos do movimento foram contra a implementação das cotas. A autora deste texto foi e continua sendo contra cotas raciais. Acho um grande equívoco. Agora, porque sou contra a ala racialista que tem preponderado no Movimento Negro nos últimos anos, eu vou atacar o movimento negro em si mesmo, sair por aí dizendo que a luta contra o racismo é desnecessária, coisa de vitimistas, porque somos todos apenas "indivíduos"!!?? Querer extinguir secretarias que lidam com essa questão específica sob a desculpa esfarrapada de reduzir gastos ou estruturas burocráticas? Até parece que não existem outras instâncias governamentais bem mais supérfluas onde promover cortes, não é verdade? Essa gente subestima tanto assim a inteligência alheia?

O mesmo em relação ao movimento LGBT, feminista, qualquer outro. Minhas críticas ao movimento LGBT, do qual sou uma das fundadoras, são inúmeras, sobretudo pelo aparelhamento petista que sofreu nos últimos anos. Daí eu atacar o movimento em si mesmo, desqualificando toda uma história de lutas, na base da enorme falácia de que somos apenas "indivíduos" e não tem sentido a gente lutar em coletivos!!?? Esse papo furadésimo de contra "coletivismos" pra lá e pra cá que se ouve frequentemente no meio liberaleco-conservador!? Vale destacar que as únicas pessoas realmente julgadas como indivíduos neste mundo são os donos do poder, ou seja, os homens brancos, héteros, burgueses e cristãos (com algumas variações aí), os estereótipos do privilégio. O restante da humanidade é julgada por fazer parte de algum coletivo em primeiro lugar e não como indivíduo. E obviamente não foram as esquerdas que coletivizaram as pessoas e sim os próprios conservadores com seus preconceitos, discriminações e seu mundo de excludências. As esquerdas, quando muito, manipulam os coletivizados para seus propósitos.

Enfim, repetindo, o problema do Holiday não é ele não se encaixar nos parâmetros que a militância de esquerda criou para lidar com as questões relativas aos direitos humanos. O problema com Holiday é ele se encaixar nos parâmetros que a direita criou para combater os direitos humanos. Holiday poderia ser crítico dos movimentos sociais e buscar inclusive trazer novas propostas para os mesmos de uma perspectiva diferente da atual. Poderia promover até quem sabe uma benéfica renovação dessas expressões políticas através do diálogo crítico.  Mas o que ele quer é jogar para a plateia conservadora que o elegeu e que, como todo mundo sabe, é contrária aos direitos humanos. Holiday é mais do que um token black.* É um ponta de lança do reacionarismo que usa de sua negritude e suposta homossexualidade como fator divisionista das lutas por direitos humanos a fim de revertê-las e até mesmo impedi-las. Trata-se de um oportunista que surfou na onda antipetista e nas manifestações do impeachment de Dilma para se eleger encenando uma mistura de alborghetti, datena e ratinho com falsa indignação. Quer se dar bem na vida a qualquer preço. A História registra várias figuras como ele ao longo dos séculos. Os cristãos o celebram no sábado de Aleluia.


* Token Black é o nome que se dá ao membro de uma minoria historicamente discriminada inserido em qualquer ambiente adverso a sua especificidade apenas para que se crie a impressão de tolerância e ausência de preconceitos. 

Token Black é o nome do personagem da animação South Park exatamente por ser a única criança negra do desenho. 


segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Mude o mundo: Seja amiga de uma mulher

De Míriam Martinho e Lúcia Nóbrega

Certeiro o texto da Ruth Manaus abaixo, menos o título, embora entenda o sentimento que tenta passar. Mulheres são adestradas pela educação patriarcal a ser inimigas umas das outras (claro, dividir para melhor governar), e infelizmente, a maioria segue o script aprendido de forma automática. E não me refiro apenas àquelas patéticas mulheres conservadoras, meras bonecas de ventríloquo conservador (os homens falam por suas bocas) que escrevem páginas tipo "eu não sou obrigada a ser feminista" ou outras tantas de mesmo (baixo) nível. Refiro-me até a feministas de carteirinha mais preocupadas em provar que sua corrente é a  portadora da verdade e da luz - inclusive somando-se a marmanjos para rachar outras mulheres que delas discordam - do que em garantir a fundamental solidariedade feminina.

A amizade masculina é o cimento do patriarcado, esse sistema que há uns 5000 anos, segundo pesquisadores, detona as mulheres de tantas formas que fica difícil listá-las de cabeça. É tão significativa que até inventaram um termo para ela: trata-se do bromance, do inglês "brother" mais "romance", ou seja, relacionamentos de amizades tão fortes entre homens que se parecem com um romance, embora sejam platônicos. De fato, nossa sociedade é anti-homossexual, punindo o sexo entre homens, mas homossocial, valorizando os laços masculinos acima de tudo.

As mulheres precisam aprender a fazer o mesmo. Como diz a Ruth Manaus, "já é hora de virar o jogo." A nova geração de feministas brasileiras parece mais preocupada com esse nó que ata as mulheres à prisão patriarcal tanto que ressuscitaram o termo sororidade, tradução do inglês sisterhood, muito usado pelo feminismo da segunda onda. Precisam de fato colocá-lo em prática. Se o conseguirem, podem jogar toda a teoria feminista na lata do lixo porque o sistema que nos oprime estará com seus dias contados. Não que tudo tenha que ser um mar de rosas entre mulheres, mas como diz a autora do texto abaixo: "Amigas, as mulheres nem sempre serão. Mas inimigas presumidas, isso elas nunca (mais) haverão de ser." 


Mulheres não são inimigas
A quem interessa toda essa competição?

É assim desde que somos crianças: você é mais bonita que a Dudinha. E mais esperta do que a Manu. A Lelê não faz contas tão bem quanto você, querida. E seu sapato é mais bonito que o da Maria. Enquanto isso os meninos estão em paz, correndo juntos, dando risada por aí.

Somos ensinadas a competir. A nos incomodar com a presença de novas garotas. A procurar defeitos nelas, desde o momento em que aparecem na porta. Somos incentivadas a excluir mulheres, seja porque elas supostamente nos ameaçam ou porque supostamente não sejam “tão boas quanto nós”.

Essa rivalidade, tão boa e tão interessante para o machismo e para toda a imensa parcela do mundo que tem medo de mulheres unidas, é potencializada pelo beijinho prazinimiga, pelo beijinho pras falsianes e pelo beijinho pras recalcadas. Não estou dizendo que não haja inimizade, falsidade e recalque sobrando por aí. Mas se nossa língua machista sempre torna o sujeito masculino, ainda que no caso haja mil mulheres e um único homem, por que deixar as inimigas, falsianes e recalcadas no feminino? Não há homens traiçoeiros soltos por aí?

Quando vemos Melania Trump plagiar o discurso de Michelle Obama, devemos nos indignar. Devemos achar tão absurdo e ridículo quanto é. Isso não quer dizer que devemos achar que as duas são inimigas e que deveriam entrar num ringue para puxar cabelos enquanto berram xingamentos estapafúrdios. Trump e Obama não fariam isso. Por que as mulheres haveriam de fazer? Um plágio entre mulheres é tão grave e sério quanto um plágio entre homens. E só.

A inimizade entre mulheres dá ibope, manchete e dinheiro. Parece ser divertida, cômica e sanguínea. Ver uma mulher cair do salto alto parece ter graça, enquanto ver um homem pisar no cadarço não. Parece que ela merece e que ele deu azar. Mas isso tudo é uma grande cilada.

Mulheres deveriam ser as primeiras a não julgar a roupa de uma mulher. A promoção de uma mulher. Os medos de uma mulher. Os defeitos de uma mulher. Porque, como dizem por aí, com a mesma severidade com a qual julgamos, seremos um dia condenados. E a vida de uma mulher é ser condenada diariamente: por estar gorda, por ser bonita demais, por chegar muito tarde, por não ser mãe, por trabalhar demais, por não casar. Precisamos colaborar com essa dinâmica errada?

Mário Quintana dizia que só acreditava na amizade entre duas mulheres se uma delas fosse muito velha ou muito feia. Ele apenas verbaliza a competição que nos imputam desde o princípio. Mas já é hora de virar o jogo. Amigas, as mulheres nem sempre serão. Mas inimigas presumidas, isso elas nunca haverão de ser.

Porque mulheres não são inimigas. Mulheres são as que passam papel higiênico por cima da porta quando o papel da sua cabine acabou. Mulheres são as que podem te oferecer um absorvente numa emergência ou um peito para seu filho. São as que entendem suas dores. São aquelas que deveriam ser as primeiras a estender a mão e nunca as primeiras a apontar o dedo.

Fonte:
Estadão, 27/07/2016

sexta-feira, 10 de junho de 2016

A doutrinação mais perigosa é a conservadora pois tenta se passar por algo natural

O psicanalista e colunista da Folha, Contardo Calligaris (foto) escreveu o texto abaixo sobre o famigerado Escola sem Partido que comentei aqui no blog na semana passada.

Destaco, do texto, alguns trechos e parágrafos que ilustram bem o perigo desse infame projeto. Em meio às muitas falácias da estrovenga autoritária, uma que se sobressai é a falsa ideia de neutralidade. Não existe a menor possibilidade de discurso neutro. Todo discurso, incluindo o conservador, é uma forma de ver o mundo, uma ideologia. Não existe neutralidade nem na área científica quanto mais nas das ciências humanas.

Os conservadores, contudo, tentam vender a ideia de que sua visão de mundo, que norteia esse projeto autoritário, não é ideológica e sim natural, derivada de alguma ordem natural, de alguma luz divina. A visão conservadora sempre tenta se vender como natural para que seus preceitos não sejam alvo de críticas, pois o natural é tido como inerente ao ser, como unha e carne, e não passível, portanto, de questionamento. Obviamente, trata-se de um argumento enganador, de uma falácia monumental. Não compre.

Sou contra doutrinação, de todo tipo. Justamente por isso, parece-me bom que os professores proponham conteúdos diferentes do que os pais já pensam e já tentam impor às crianças. Sem isso, ir para a escola para o quê? Aluno bom é o que critica a casa graças ao que aprende na escola, e a escola graças ao que aprendeu em casa.
A maior garantia contra conteúdos "invasivos" deveria ser a variedade das ideias que uma criança encontra na escola. Minha lembrança é que, longe de aderir à ideologia de um ou outro (professor), foi discordando que aprendemos mais –discordando deles e dos nossos pais.

Aqui vem um problema mais sério. ...Como proteger as crianças contras as ideologias que se apresentam como jeitos "naturais" de pensar? Como evitar que elas aceitem ingenuamente os clichês que são transmitidos como "naturais"?

Os próprios doutrinadores, nesse caso, sequer acham que estão doutrinando, porque concebem os clichês do seu pensamento como expressão da "natureza humana".

A doutrinação mais perigosa

Na adolescência, os contos de Hemingway eram meu modelo de estilo, e eu tentava imitá-lo: frases curtas, coordenadas, repetições frequentes etc. Imaginava que, dessa forma, eu escreveria sem retórica: só os fatos, sem a tentativa de convencer ninguém de nada.

Eu estava errado: o estilo dos contos de Hemingway é tão retórico quanto a escrita de um bacharel em direito do século 19. A retórica do bacharel incluía a vontade de falar diferente do povo e de se diferenciar dele. A de Hemingway, ao contrário, incluía a vontade de parecer espontâneo e "natural".

Em geral, a gente quase sempre acha que nossa escrita e nossa fala são "naturais", enquanto as dos outros são infestadas pela retórica. Na verdade, não há escrita ou fala que não sejam retóricas.

Guardemos essa constatação e vamos ao tema de hoje. Como assinala e discute o editorial da Folha de 15 de maio, na Câmara dos Deputados, em várias Assembleias Legislativas estaduais e Câmaras Municipais, "tramitam projetos contra a 'doutrinação ideológica' [das crianças] em matéria política, religiosa ou sexual".

Em Alagoas, onde a legislação já foi adotada, o professor deve evitar conteúdos que estejam "em conflito com as convicções morais, religiosas ou ideológicas dos estudantes ou de seus pais ou responsáveis".

O movimento Escola sem Partido chega a oferecer um modelo de notificação anônima para os pais denunciarem os professores que pratiquem "doutrinação" na escola.

Sou contra doutrinação, de todo tipo. Justamente por isso, parece-me bom que os professores proponham conteúdos diferentes do que os pais já pensam e já tentam impor às crianças. Sem isso, ir para a escola para o quê? Aluno bom é o que critica a casa graças ao que aprende na escola, e a escola graças ao que aprendeu em casa.

Não gostaria que meus filhos fossem doutrinados em marxismo (qual marxismo, aliás?), mas me parece impensável que eles não entendam nada e não leiam nada de um pensamento que foi a maior paixão intelectual do século 19 e do século 20. Também não gostaria que meus filhos fossem doutrinados em Bíblia (qual Bíblia, aliás?), mas me parece impensável que eles não leiam nada do livro que foi a referência central da cultura ocidental durante séculos.

A maior garantia contra conteúdos "invasivos" deveria ser a variedade das ideias que uma criança encontra na escola. No meu ginásio, o professor de filosofia era trotskista. Eu, na época, estava fundando o círculo estudantil Piero Gobetti (liberal e anti-fascista italiano). O professor de latim era monarquista: admirávamos seus poemas, mas éramos todos republicanos. Minha lembrança é que, longe de aderir à ideologia de um ou outro, foi discordando que aprendemos mais –discordando deles e dos nossos pais.

Aqui vem um problema mais sério. É fácil inventar sistemas de controle contra a transmissão de ideologias reconhecíveis. Por exemplo, era fácil se proteger do marxismo do professor de filosofia ou do monarquismo do professor de latim. Bem mais difícil era se proteger contra o professor de italiano, o qual não tinha "ideias" para "doutrinar" ninguém: ele apenas distribuía trivialidades como se, por serem triviais, elas não merecessem nossa atenção crítica. É o exemplo do começo: assim como não tem escrita que não seja retórica, não tem pensamento que não seja ideológico.

Como proteger as crianças contras as ideologias que se apresentam como jeitos "naturais" de pensar? Como evitar que elas aceitem ingenuamente os clichês que são transmitidos como "naturais"?

Receio que, retirando as ideologias explícitas (que podem ser combatidas, discutidas e recusadas), só reste para as crianças a ideologia do círculo da padaria, que é a mais perniciosa, porque parece ser o pensamento "espontâneo" de "todos".

Os próprios doutrinadores, nesse caso, sequer acham que estão doutrinando, porque concebem os clichês do seu pensamento como expressão da "natureza humana".

Você se pergunta quais são os conteúdos dessa ideologia implícita que contamina nossas crianças às escondidas? Seria bom voltar ao "Dicionário das Ideias Feitas", de Gustave Flaubert (Nova Alexandria).

PUDOR: mais belo ornamento da mulher. GOZO: palavra obscena. DEUS: o próprio Voltaire o afirmou: "Se Deus não existisse, precisaríamos inventá-lo". DEICÍDIO: indignar-se contra, embora seja um crime pouco frequente.

Fonte: FSP, 19/06/2016

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Escola Sem Partido: Macartismo renasce no Brasil


Uma das vantagens de se tornar um clássico é que a gente passa a ter uma visão - digamos - mais panorâmica da História. O PT levou 13 anos para acabar com a imagem da esquerda, cultuada desde antes do fim da ditadura militar, a golpes de mentiras deslavadas, incoerências, cinismo, corrupção siderada e autoritarismo.

A centro-esquerda democrática que temos, o PSDB, por sua tibieza e ambiguidade (e provável rabo preso também), nunca fez a oposição devida aos desmandos do petismo e deixou um vácuo de poder que passou a ser preenchido por um ascendente movimento liberal-conservador (esse paradoxo). Este por sua vez, pelo lado liberal, passou a trazer ideias de bom senso sobre a necessidade de diminuir o tamanho do Estado para evitar tantos impostos, evitar a burrocracia, o espaço cativo para parasitas e corruptos e o sempre presente perigo do autoritarismo. Diminuir a interferência do Estado sobre a economia e a vida dos indivíduos é o mantra. Tá certinho.

Pelo lado conservador, contudo, passou a contradizer todo o bom senso do discurso político e econômico liberal. Pra começo de ideia, fica difícil acreditar que gente que vive falando em liberdade individual seja tão sexista (o ambiente dito liberal é um verdadeiro clube do bolinha) e defenda a interferência estatal na escolha das mulheres entre ser mães ou não quando queiram ou possam. O mesmo vale para a estrovenga autoritária chamada Escola Sem Partido, defendida por ditos liberais que estão usando o Estado - sim, sim, sim - via projetos de lei de viés marcartista*, para tentar calar seus inimigos esquerdistas nas escolas.

O projeto é uma fraude do título ao último parágrafo. Ninguém quer partidos nas escolas, mas esse projeto não combate propaganda de partidos nas escolas. De fato, visa combater à livre circulação de ideias, pretendendo impedir que crianças e adolescentes tenham acesso a informações que não sejam de perspectiva conservadora. Quer até prender professores por assédio ideológico!!! Sério que, quando a gente pensa que já viu de tudo, aparece ainda alguma coisa pra nos espantar.

Incapazes de competir com suas ideias no livre mercado das ideias e influenciar na formação de professores de perspectiva não esquerdista, os conservadores liberalecos - os mesmos que tanto dizem combater a interferência do Estado na vida dos indivíduos e a defender a livre expressão até em casos de insultos às pessoas - estão usando o Estado para tentar impedir a livre expressão dos professores nas escolas. Durma-se com um barulho desses.

Estão conseguindo, pela incoerência, cinismo, desfaçatez e autoritarismo, tirar, como o PT fez com a esquerda, toda a credibilidade do movimento que mal acabaram de iniciar nesses últimos dez anos. No editorial abaixo, da Folha de São Paulo, um alerta sobre essa perigosa e inexequível proposta.

* O senador Joseph MacCarthy foi um político que deslanchou uma verdadeira caça às bruxas nos EUA, nos anos 50, para combater supostos comunistas infiltrados nas mais diversas áreas da sociedade americana. Seus principais alvos foram educadores, artistas, intelectuais, funcionários públicos e sindicalistas. Qualquer suposta ligação de alguém com ideias ou associações consideradas de esquerda levava pessoas a perderem empregos, ter suas carreiras destruídas e até irem presas. Tudo baseado em leis e demissões posteriormente declaradas inconstitucionais e ilegais.

Alguns projetos inspirados no funesto Escola Sem Partido também preveem denúncias anônimas contra professores, por assédio ideológico (PL 1411/2015), que podem levar à demissão e até à prisão. O PL 2731/2015 também ameaça de exoneração e prisão por até dois anos os professores que descumpram a “proibição de utilização da ideologia de gênero, orientação sexual e congêneres ou de qualquer outro tipo de ideologia.” Mais detalhes aqui e aqui.

Na base da ideologia
A educação pública no Brasil padece de muitos males, a começar por sua ineficiência na missão fundamental de dar aos alunos o domínio da língua e da matemática.

A ela se soma, em muitos centros, a predominância entre educadores de uma cultura esquerdista que os leva a confundir seu papel em sala de aula com o de doutrinadores. Como definiu sem rodeios um sindicato do ramo, o professor seria um "personagem indispensável nas lutas de classe".

Contra isso se insurge o Escola sem Partido. Ocorre, porém, que o movimento vem fomentando a edição de leis municipais e estaduais que não só não resolvem o problema como também suscitam suspeita (suspeita não, trata-se de coisa autoritária mesmo) pertinente quanto a seu caráter autoritário.

Legislação dessa natureza acaba de ser adotada em Alagoas. Na Câmara dos Deputados, em pelo menos nove Assembleias Legislativas e 17 Câmaras Municipais tramitam projetos contra "doutrinação ideológica" em matéria política, religiosa ou sexual.

A norma alagoana estipula como dever do professor "abster-se de introduzir (...) conteúdos que possam estar em conflito com as convicções morais, religiosas ou ideológicas dos estudantes ou de seus pais ou responsáveis".

Com essa generalidade, qualquer um poderia exigir a punição do docente que ensinar aos alunos os princípios do evolucionismo darwiniano, a anatomia da genitália humana, o pensamento de Karl Marx ou o reconhecimento legal de relações homoafetivas.

Tais conteúdos factuais decerto conflitam com crenças e valores de alguns pais de alunos; no mundo atual, contudo, não haveria por que vedá-los, inclusive em escolas públicas. O Estado é leigo e não pode se pautar pelas convicções morais de indivíduos.

Ao vedar "a prática de doutrinação política e ideológica", a legislação defendida pelo Escola sem Partido incorre num paternalismo em contradição com a orientação liberal (nada tem de liberal de fato) que diz inspirá-la.

Não se combatem eventuais abusos da liberdade docente com leis vagas e punitivas. Nenhuma norma será capaz de definir de modo operacional o que seja ou não seja ideologia em sala de aula, nem substituirá o diálogo dos pais e dos alunos com professores e diretores.

Espera-se que a Base Curricular Comum ora em discussão, ao fixar o conteúdo mínimo que todo aluno tem direito de aprender, venha a dar mais clareza sobre o que nenhum professor pode omitir e nenhum pai tem o poder de censurar baseados apenas em suas inclinações particulares.
Fonte: Editorial FSP, 15/05/2016

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