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O artigo 254 do Código de Trânsito Brasileiro afirma que é proibido ao pedestre VI – desobedecer à sinalização de trânsito específica |
Casamento de imprudências
Agora, duas jovens, Isabelli Helena
de Lima Costa e Isabela Priel Regis, de 18 anos, foram atropeladas, em 9 de
abril de 2025, na Avenida Goiás de São Caetano do Sul, cidade do ABCD paulista com
um dos maiores índices de desenvolvimento humano do país. A tragédia decorreu
da imprudência das moças, que atravessaram a faixa de pedestres com o sinal
fechado para elas, e da irresponsabilidade de um celerado, Breno dos Santos
Sampaio, de 26 anos, dirigindo a altíssima velocidade dentro de perímetro
urbano (mais de 100 por hora). A culpa do sujeito é inequívoca. Quanto maior a
velocidade, maior o risco de se produzir acidentes fatais.
Se bem que, num aparte, já presenciei uma mulher ser
atropelada na Av. Paulista (em frente à Faculdade Cásper Líbero), em meio a um
congestionamento, porque ela decidiu cruzar a avenida entre os carros e não na
faixa de pedestres. Na primeira andada a mais que os carros deram, ela foi
atingida, embora a velocidade máxima fosse de uns 40 por hora.
Imprensa irresponsável negligenciando imprudência de
pedestre
Então, no caso das garotas de São Caetano, não vi ninguém
questionar a culpa do motorista. Problema é que a imprensa resolveu passar pano
total para a imprudência das garotas. As manchetes se tornaram exclusivamente
do tipo “duas jovens foram mortas na faixa de pedestres por motorista que
dirigia em alta velocidade em São Caetano do Sul.” O “detalhe”, nada
irrelevante para entender a tragédia, de que elas atravessaram a avenida de
três faixas com o sinal vermelho ou desapareceu ou ficou perdido no meio de
textos mais preocupados em dizer que o pedestre tem preferência na faixa de
pedestres mesmo com o sinal vermelho para ele. Em outras palavras, a culpa do
desastre teria sido exclusivamente do motorista por estar correndo demais,
embora o sinal estivesse verde para ele.
A história de que o pedestre tem preferência absoluta na faixa de pedestres está mal contada e induz as pessoas a erro. Quando há semáforo em ruas e avenidas, tanto motoristas quanto pedestres TÊM QUE RESPEITAR O SINAL correspondente. Os carros só podem seguir com o semáforo verde, os pedestres só podem atravessar com o sinal verde para eles. Apenas no caso de o pedestre ter atravessado direitinho no sinal verde para ele, mas no final de sua travessia o sinal mudar para o vermelho, os carros devem esperar até que termine sua passagem, mesmo que o semáforo esteja verde para os veículos. Obviamente, trata-se da situação em que os carros estão esperando no semáforo sua hora de passar, atrás da faixa de pedestres.
No caso das garotas, contudo, elas começaram a travessia com
o sinal vermelho para elas - um primeiro carro já passou em boa velocidade em
sua frente nessa trajetória - e foram atropeladas quando o sinal continuava
vermelho. Mesmo depois da colisão, o sinal levou ainda alguns segundos para
ficar verde para os pedestres. Isso significa que o sinal estava verde para o
motorista (como ele afirma), ou mudando
para o amarelo (como afirma a polícia) no momento da colisão. Como disse, a
culpa do motorista é inequívoca, por estar trafegando em alta velocidade em via
urbana, o que facilitou a tragédia, mas não é possível nem responsável ignorar
a imprudência das garotas. Imprudência seguramente derivada do hábito que
pedestres têm no Brasil de atravessar ruas e avenidas com sinal vermelho para
eles.
Os surreais apologistas da imprudência
Entretanto, seja por esse mau hábito de não respeitar sinal
vermelho e/ou por causa da história mal contada de que o pedestre sempre tem
razão mesmo quando tenta se jogar embaixo de um carro, um bocado de gente
parece ter se identificado com o comportamento imprudente das garotas e decidiu
transformar o sem noção do motorista no único vilão da história. Algo que,
objetivamente falando, só teria sentido se o motorista tivesse perdido o
controle do carro, por estar em altíssima velocidade, invadido a calçada onde
estavam as moças, que estariam responsavelmente esperando o sinal abrir para
elas, e as atropelado ali mesmo. Casos assim já aconteceram de fato e não são,
infelizmente, incomuns, acrescidos muitas vezes do agravante do motorista estar
bêbado.
Não foi o que aconteceu, claro, no caso em pauta, mas, no
clima histérico e maniqueísta que transforma qualquer assunto em briga de
torcida nas redes sociais, as gurias viraram as inocentes mártires do trânsito
insano do país, o motorista, um monstro digno de linchamento e qualquer pessoa
apontando que essa dicotomia não se sustenta virou passadora de pano para o
criminoso assassino de donzelas. A situação foi tomando ares cada vez mais
surreais com gente afirmando que identificar a participação das gurias no
próprio infortúnio era a demonstração de que o Brasil é um país bárbaro,
desumano que jamais atingirá a civilização. É para acabar.
Lembrei do choque civilizatório que sofri quando estive em
Genebra, na Suíça, a terra dos relógios, chocolates e bancos. Foram vários os
choques, entre eles, para não sair muito do tema dessa postagem, o
comportamento dos suíços em frente a uma faixa de pedestres. Fiquei parada com
eles e uma amiga brasileira na calçada de uma dessas faixas esperando o sinal
ficar verde para atravessar uma rua de duas mãos relativamente larga. Não vinha
viva alma de carro em nenhuma das direções da rua, e eu já querendo atravessar,
mas nenhum nativo moveu um músculo nesse sentido, e, por constrangimento, nem
eu. Só quando o sinal abriu mesmo, o pessoal atravessou a faixa diante de um ou
dois carros que enfim haviam aparecido.
Isso foi há muito tempo e não sei se, hoje, com a política
de imigração em massa criando sérios problemas culturais e sociais na Europa,
continua havendo essa demonstração de civilidade em Genebra. Você pode até
achar exagerado pedestre não atravessar rua mesmo não havendo carro algum à
vista, mas isso sim é exercício de civilidade, mesmo porque a gente não
fica horas parada na calçada, ao contrário do que os apologistas da
imprudência andaram dizendo em torno da tragédia envolvendo as garotas.
Nota: Por coincidência, entrando hoje, dia 21/04/2025, no X, me deparei com esse vídeo do perfil Rafael Zattar impressionado com o fato dos europeus, no caso espanhóis, não cruzarem a faixa mesmo não avistando carro por perto. Então, parece que os europeus permanecem civilizados. |
Sério que há tempos não lia tal cascata de bobagens falaciosas
e, ainda por cima, vinda de gente resmungando que o Brasil está condenado à
barbárie enquanto, ao mesmo tempo, referenda, paradoxalmente, comportamentos irresponsáveis
no trânsito. Para começar, ninguém fica plantado na calçada em frente de faixa
de pedestres em qualquer horário. O tempo médio de espera para atravessar, segundo
o Estatuto do Pedestre, deve ser de um minuto e meio, mas a ONG Instituto Corrida Amiga encontrou um tempo de espera de abertura de
dois minutos e 11 segundos, em
uma pesquisa com 167 semáforos analisados em 21 cidades de seis Estados. A
partir dessa pesquisa, a ONG também relatou que o sinal verde para os pedestres
atravessarem leva uma média entre 7 a 10 segundos aberto, tempo ínfimo considerando a diversidade
etária e de mobilidade física dos pedestres. Não por menos, quando na travessia
em semáforo, como comentei anteriormente, os motoristas devem esperar o pedestre concluir a passagem mesmo
que o sinal já esteja verde para os carros. De qualquer forma, desde quando 2 minutos
de espera para atravessar uma avenida pode ser encarado como ficar plantado numa
esquina, principalmente considerando que disso pode depender sua vida? E, no
caso das jovens, elas estavam numa avenida bem iluminada com bastante gente
circulando ainda, apesar de ser cerca de 23:00. Não havia qualquer pressão extra
para que arriscassem a vida cruzando a faixa de pedestres no vermelho.
Quanto a chamar de idiota e hipócrita a sensata ponderação de que as garotas ao menos deveriam ter olhado melhor antes de atravessar porque supostamente elas não teriam como identificar o perigo do motorista a mil por hora, vale lembrar que, primeiro, exatamente porque não há como saber que tipo de motorista está trafegando e em que velocidade, não se deve atravessar faixa de pedestres no vermelho. Aliás, qual o sentido de ir para uma faixa de pedestres para passar no vermelho? Em termos de segurança, são duas atitudes que se anulam. Depois, que, no caso das das jovens de São Caetano, elas só olharam uma vez na direção de onde vinham os carros antes de iniciar a travessia. Nenhuma outra vez, embora a recomendação das autoridades de trânsito aos pedestres é de sempre atravessar em sua faixa respectiva, respeitar a sinalização de trânsito, olhar para ambos os lados antes de atravessar e não correr.
Isabelli e Isabela morreram atropeladas em São Caetano do Sul ao atravessarem a faixa de pedestres com o sinal vermelho |
Os vídeos sinceros e as responsabilidades devidas
Observando dois vídeos que registraram mais do que a
travessia propriamente dita das jovens rumo ao atropelamento, percebe-se em um (abaixo)
que elas vêm caminhando pela calçada enquanto alguns carros e uma moto, que
estavam parados no semáforo, iniciavam a partida porque o sinal de pedestres já
estava no vermelho. Quando elas chegaram na faixa de pedestres, o sinal
continuava vermelho para elas, mas elas apenas deram uma olhada na direção de
onde vinham os carros e iniciaram a travessia. Aí temos o primeiro carro que
passa em boa velocidade na frente delas, e o próximo que as atropela. Apenas um
segundo antes da colisão, a garota de blusa preta olha na direção da trajetória
dos carros quando parece se dar conta do veículo que ia atropelá-la (de
arrepiar). A outra nem isso. Então, procede a ponderação de que, ao menos,
deveriam ter olhado melhor ao travessar. Quem sabe não teriam tido tempo de
evitar a colisão quando ainda estavam na segunda faixa, sendo que o
atropelamento foi na terceira?
Portanto, mais uma vez, a tragédia que se abateu sobre as jovens começou, em primeiro lugar, com sua decisão imprudente de cruzar a avenida no vermelho e terminou com a irresponsabilidade do motorista trafegando a mais de 100 por hora em via urbana. Elas foram as protagonistas da tragédia, ele, o coadjuvante. Como elas morreram na flor da vida, o cara sobreviveu (o acidente poderia ter sido fatal para ele também) e, em relação ao carro, o ser humano sempre é a parte mais frágil da situação, foi fácil transformar o motorista no boneco de Judas da história e o sair malhando a torto e a direito sem ver mais nada. Além disso, pelo histórico que se levantou dele, já vinha acumulando multas por excesso de velocidade e carma suficiente para produzir uma fatalidade, o que ampliou seu linchamento virtual. No entanto, com mais distanciamento emocional, repito, constata-se de forma irrefutável, pela marcação do tempo do vídeo, como já citado, que elas teriam sobrevivido a ele se tivessem esperado 12 segundos pelo sinal verde porque ele passou aos 7. O que custa esperar 12 segundos para garantir até possíveis 2.524.608.000 segundos de vida (80 anos)?
Por fim, ainda houve os que levantaram uma suposta falta de empatia na indicação da participação das jovens na própria tragédia. Mas não é possível ter empatia com os mortos, só com os vivos. Pelos mortos, a gente tem respeito, quando se dão ao respeito, ou luto compassivo quando se vão, por exemplo, tão jovens por um ridículo descuido. O verdadeiro respeito que devemos ter por Isabelli Helena de Lima Costa e Isabela Priel Regis é no sentido de alertar a todas as pessoas, como deveria ter feito a imprensa, para que não cometam o mesmo erro que elas cometeram a fim de salvar suas vidas. Perder a vida por não esperar 12 segundos por uma mudança de sinal é de partir o coração em muitos pedaços. Quanto ao motorista, Breno dos Santos Sampaio, por sua participação nesse drama, espera-se que, no mínimo, perca a carta de habilitação mas também pague por homicídio com dolo eventual (quando se assume o risco de matar, de acordo com o Código Penal, no Art. 121).
Código de Trânsito Brasileiro: Art.70 Capítulo IV – DOS PEDESTRES E CONDUTORES DE VEÍCULOS NÃO MOTORIZADOS Os pedestres que estiverem atravessando a via sobre as faixas delimitadas para esse fim terão prioridade de passagem, exceto nos locais com sinalização semafórica, onde deverão ser respeitadas as disposições deste Código. Parágrafo único. Nos locais em que houver sinalização semafórica de controle de passagem será dada preferência aos pedestres que não tenham concluído a travessia, mesmo em caso de mudança do semáforo liberando a passagem dos veículos. Portanto, faz-se necessário ressaltar que nos locais em que há sinalização semafórica, tanto o condutor como o pedestre, devem corresponder com as respectivas luzes. Ou seja, se a luz do semáforo estiver vermelha para os condutores, significa que está no momento do pedestre atravessar; enquanto que quando a luz do semáforo estiver verde para os condutores, significa que os pedestres precisam esperar para alterar a sinalização. |
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