sexta-feira, 26 de julho de 2013

Pondé, o conservador-liberal (?), chamou a esquerda para conversar, e ela respondeu

Com o texto Debate com a Direita, publicado ontem na FSP, Marcelo Miterhof respondeu à convocação feita por Luiz Felipe Pondé, em sua coluna do dia 08/07/2013 (ver abaixo), na  mesma Folha de São Paulo, onde dizia: "E aí, esquerda: vamos conversar? Vamos parar de se xingar e sentar numa távola redonda e discutir o Brasil?"

Quem já me leu sabe que sou ardorosa anti-esquerdo-direitista, pois esse fla-flu ridículo reduz drasticamente o espectro político a uma dicotomia maniqueísta que, nem de longe, dá conta da infinidade de nuances das diferentes correntes de pensamento sociopolíticas e econômicas existentes ontem e hoje. Em geral, serve apenas para impedir as pessoas de pensar livremente, enclausurá-las nessa polarização simplista que busca encaixar a realidade dentro de seus limites, torná-las incapazes de analisar os problemas do mundo atual objetivamente.

De qualquer forma, acho produtivo que os que se dizem de esquerda e direita tentem discutir o país em diálogo em vez de ficar apenas se xingando mutuamente. Dessa discussão, quem sabe, também se possa extrair um pouco mais de precisão para o que seja a tal direita e a tal esquerda (ou então detoná-las)  na qual especialmente socialistas e conservadores tanto apreciam se abrigar.

Por exemplo, as definições que Pondé e Miterhof dão de conservador e liberal não são as mesmas e, por certo, não encontrarão eco em outros que assim se definem. Mas concordo com Miterhof quando diz que o termo liberal-conservador é contraintuitivo. Mais do que isso, é mesmo contraditório, já que tradição (bandeira conservadora) e liberdade (bandeira liberal) não combinam. Como se pode ver, há mais visões políticas entre o céu e a terra do que sonha a vã filosofia dos dogmáticos de esquerda e direita.

Debate com a direita
Marcelo Miterhof

Luiz Felipe Pondé, em sua coluna na Folha de 08/07/2013, convida a esquerda a discutir o Brasil com os conservadores, parando com os xingamentos mútuos. Com um certo atraso, aceito o convite.

Pondé se define como liberal-conservador. Vale tentar explicar o sentido do termo, algo contraintuitivo.

O liberalismo é político, com destaque para os direitos individuais: liberdades de expressão e religiosa, pluralismo moral, emancipação feminina, direitos gays etc.

O conservadorismo se refere, entre outras coisas, à economia, caracterizada por um outro liberalismo, o econômico, em que o mercado tem um papel central e extremo, dado pela máxima "vícios privados, virtudes públicas", que sintetiza a crença na livre iniciativa como o vetor do desenvolvimento: não se culpe por agir visando seu estrito interesse próprio, pois o resultado é bom para todos.

Estamos de acordo quanto às garantias civis como parte essencial da democracia e para que o país seja um lugar mais legal de viver.

As bandeiras libertárias foram no Brasil historicamente levantadas pela esquerda. Talvez isso se deva ao fato de a direita brasileira ter sua raiz num conservadorismo agrário pré-capitalista. Isso não significa que essas bandeiras sejam exclusivas da esquerda e tampouco que todos nela sejam politicamente liberais. Além disso, é inegável que as liberdades individuais foram inventadas pelas revoluções burguesas.

As diferenças surgem na economia. A visão conservadora prega o Estado mínimo, que provê só serviços essenciais, como educação e segurança, para equalizar as oportunidades a partir das quais os indivíduos buscarão seu interesse. Profissionais liberais e pequenos empresários seriam a força do capitalismo.

O problema é que, apesar de boas sacadas quanto ao poder da competição e da busca do lucro, não é assim que o capitalismo funciona melhor.

Por exemplo, grandes empresas são mais eficientes. O poder de mercado torna mais fácil acumular recursos para inovar. Como dizia Schumpeter, um carro pode correr porque tem freios.

O Estado também tem papel central na economia. Os gastos públicos estabilizam o capitalismo, criando uma demanda que impulsiona o investimento e, as sim, a produtividade. Além disso, para a esquerda, distribuir renda não é somente um valor moral, mas também uma forma de acelerar o crescimento: pobres consomem mais os ganhos adicionais que obtém.

A principal diferença entre direita e esquerda está na ênfase que cada uma respectivamente dá à competição e à cooperação.

Essas são formas de interação em alguma medida sempre presentes nas relações humanas. Exagerar na ênfase numa ou outra direção cria problemas. Sem cooperação, a força inovadora do capitalismo é desagregadora, como ocorreu até a crise de 29. Sem competição, o comunismo foi pouco dinâmico e repressor.

O Estado de bem-estar social foi uma inovação pública que consolidou a força do capitalismo ao torná-lo mais equilibrado, mas exageros cooperativos também ocorrem. Por exemplo, há casos de seguro-desemprego na Europa em que é demasiadamente pequena a diferença entre trabalhar ou não.

Claro, a dosagem entre competição e cooperação não tem receita pronta, abrindo espaço para debates e experimentações.

Por fim, uma boa questão levantada pelo liberal-conservadorismo é se haveria uma contradição entre o intervencionismo econômico e as liberdades individuais.

Não creio. Defender o Estado de bem-estar social é de meu interesse individual. Não sou a favor de distribuir renda por ser bonzinho, e, sim, porque é o melhor jeito de tornar o Brasil mais rico e porque uma sociedade mais equilibrada é boa para mim. Afinal, viver em meio a uma grande pobreza me põe sob risco.

O bem comum atende a interesses próprios menos imediatos. Um exemplo banal é o das regras de trânsito. Furar o sinal vermelho faz a pessoa chegar mais rápido ao destino. O risco de acidente é baixo. Porém basta dirigir no Rio para verificar que a busca de um interesse próprio estrito pode ser pior para todos.

Além disso, a economia é só um meio de criar as condições da liberdade. A liberdade das sarjetas tem seu charme, mas é para poucos. Para ser livre, é preciso contar com itens de consumo básicos da modernidade --geladeira, TV--, além de educação, viajar etc. O capitalismo regulado é a melhor maneira de propiciar essas coisas a todos.

FOLHA DE SP - 08/07

A camisa do Feliciano 
Luiz Felipe Pondé

Sou conservador e sou contra o projeto da cura gay e a favor do casamento gay. Difícil?

Nesses tempos sombrios de crise, somos obrigados a falar muito e por isso sempre acabamos falando demais. Precisamos de mais clareza, mas, como dizem por aí, a democracia é o regime do barulho, e no barulho o mais fácil é gritar "palavras de ordem", muito mais fácil para temperamentos que gozam em assembleias. Não é o meu caso, (in)felizmente.

No dia 29 de junho, aconteceu em São Paulo a Marcha para Jesus. Nela, o conhecido pastor e deputado Feliciano usava uma camisa na qual estava escrito "eu represento vocês".

Claro, de primeira, entendemos que ele quer dizer que representa os evangélicos que ali estavam. Não tenho tanta certeza: tenho amigos e conhecidos que são evangélicos e estão muito longe do que Feliciano diz representar. Não podemos jogar todos os evangélicos no mesmo "saco".

Mas me interessa hoje outra coisa: ele diz ser representante dos conservadores no Brasil. O conceito é complexo e pouco afeito a espíritos que gostam de falar para multidões. Mas é urgente dizer que Feliciano não representa o pensamento conservador no Brasil. Vou dar um exemplo "clichê" em seguida. Antes, vamos esclarecer uma coisa.

A tradição "liberal-conservative", como se diz comumente em inglês, se caracteriza por uma sólida literatura quase desconhecida entre nós: David Hume (sua moral), Adam Smith, Edmund Burke, Alexis de Tocqueville, Friedrich Hayek, T.S. Eliot, Michael Oakeshott, Isaiah Berlin, Russell Kirk, Theodore Dalrymple, John Gray, Gertrude Himmelfarb, Thomas Sowell, Phyllis Schafler, Roger Scruton, entre outros.

Não é à toa que matérias como a da "Ilustrada" do domingo 30 de junho falam que a Flip (poderia ter falado de qualquer outra atividade intelectual no país) é de esquerda: quase ninguém conhece a bibliografia "liberal-conservative" entre nós, porque a esquerda mantém uma poderosa reserva de mercado na vida intelectual pública no país, inclusive tornando um inferno a vida na universidade para jovens interessados neste tipo de bibliografia.

Esta reserva de mercado intelectual e ideológica inviabiliza pesquisas e trabalhos mesmo em sala de aula. Isso faz dos jovens intelectuais interessados nessa tradição uns fantasmas invisíveis, verdadeiras almas penadas, sem corpo institucional para atuarem. Mesmos os centros financiados por bancos investem apenas na bibliografia de esquerda.

Como toda visão política, os conservadores são diferentes entre si e nem sempre convivem bem com seus pares, principalmente quando saímos do livro e vamos para política partidária. Imagine alguém de uma esquerda "islandesa" sendo obrigado a engolir Pol Pot em seu clube intelectual.

O pensamento "liberal-conservative" se caracteriza por defender a sociedade de livre mercado, a propriedade privada, a liberdade de expressão e religiosa, pluralismo moral, a democracia representativa com "corpos médios" locais atuantes, uma educação meritocrática, emancipação feminina, tributação alta para grandes heranças, desoneração da classe trabalhadora, profissionais liberais e pequenos e médios empresários, Estado mínimo necessário (inclusive porque isso diminui a corrupção), saúde eficaz para a população.

E, não esqueçamos: opção liberal quanto à vida moral, cada um faz o que quiser na vida privada contanto que respeite a lei, e esta deve levar em conta esta liberdade privada.

Simplesmente não existe opção partidária no Brasil para quem pensa dessa forma. Por exemplo, dizer que os conservadores queimam bandeiras do movimento negro é uma piada. Isso deve fazer Joaquim Nabuco tremer em seu túmulo, já que ele, conservador, foi um dos principais intelectuais e defensores da abolição da escravatura no Brasil.

E aí voltamos à camisa do Feliciano. Ele não representa os conservadores no Brasil, a começar porque é alguém que mistura religião com política.

Deixe-me esclarecer uma coisa (vou usar um tema "clichê"): sou conservador e sou contra o projeto da cura gay e a favor do casamento gay.

E aí, esquerda: vamos conversar? Vamos parar de se xingar e sentar numa távola redonda e discutir o Brasil?

FOLHA DE SP - 08/07

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