segunda-feira, 15 de outubro de 2012

A encruzilhada de Serra ou os Conservadores precisam de um partido para chamar de seu

A encruzilhada de Serra
Segue o texto na versão escrita e, estreando no blog, também a versão em áudio. 

Aproveito para apontar duas correções no áudio, quando digo, já no finzinho, "sem um partido de centro, democrático, moderno, inclusive, para nos representar", de fato é inclusivo. Também há um "homossexual" a mais após "população" em "De fato, o projeto foi feito por alguns militantes petistas e afins e simplesmente apresentado para a população,..."



Nas grandes democracias ocidentais, o pensamento conservador se expressa em uma ou mais representações partidárias com as quais busca participar do jogo democrático. No Brasil, contudo, ele não tem representação ideológica de peso, à altura do expressivo eleitorado que se identifica com essa visão de mundo, e em condições de ganhar um pleito. O que existem são pequenos partidos de verniz conservador e parlamentares dessa linha espalhados por diversas siglas, sobretudo os conhecidos parlamentares da chamada bancada evangélica que, de qualquer forma, não representam o perfil conservador em geral. Para exemplificar o que digo, basta lembrar que muitos desses evangélicos têm relações para lá de íntimas com o petismo, uma miscelânea de tendências da esquerda autoritária (ainda que pose de social-democrata). Na prática, hoje de fato o PT age como neofascista, com sua política de fusão do Estado com empresas, mas isso não é assunto para este texto.

Retomando, na ausência de um partido que os represente, os conservadores têm pegado carona nas candidaturas do tucano José Serra nos dois últimos pleitos em que ele concorreu: para a presidência, em 2010, e agora para prefeito de São Paulo. Em 2010, conseguiram colocar a pauta do aborto como vedete da eleição. Nesta querem porque querem emplacar contra o candidato petista Haddad a pecha de autor do apelidado kit gay (de fato Escola sem Homofobia), fundamentalmente alguns vídeos sobre a questão homossexual que provocaram a ira conservadora. 

Por razões que só conservadores entendem (não há cenas de sexo nem sequer de carícias nas fitas), os vídeos chinfrins foram considerados chocantes e arma de proselitismo homossexual junto às crianças indefesas. De fato, o projeto foi feito por alguns militantes petistas e afins e simplesmente apresentado para a população, ou vazado para a população em geral, incluindo aí a própria população homossexual, pelo deputado Jair Bolsonaro (boçalnaro para os íntimos). Juntando alhos com bugalhos, o assunto virou mais uma daquelas polêmicas que alimentam as páginas de sites, blogs e redes sociais e, no meio do zum-zum-zum, e por pressão da bancada evangélica, Dilma Roussef acabou vetando o material (segundo Haddad, com sua colaboração).

Histórico de ações de Serra em prol da população LGBT

Mas voltando a Serra e seus caronistas conservadores, acontece que ele nunca foi conservador, embora de formação católica. Ele é social-democrata, de centro-esquerda, inclusive com vários projetos aprovados em prol dos direitos LGBT tanto no Estado quanto na cidade de São Paulo. Fora outras pautas ditas progressistas que apoia (não gosto desse termo progressista, mas assim são definidas certas pautas). Como exemplo, cito texto do núcleo LGBT do PSDB  (Diversidade Tucana) sobre os projetos que Serra aprovou em prol da comunidade homossexual:

- instituiu, em 2005, o primeiro órgão de administração pública brasileira voltado à diversidade sexual na cidade de São Paulo, a Coordenadoria de Assuntos da Diversidade Sexual;
- instituiu, também em 2005, o Conselho Municipal em Atenção à Diversidade Sexual bem como o Centro de Referência e Combate à Homofobia;
-  criou a Coordenação de Políticas Públicas para a Diversidade Sexual no âmbito da Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo;
-  instituiu o Comitê Intersecretarial de Defesa da Diversidade Sexual e o Conselho Estadual de Defesa da Diversidade Sexual ;
-  realizou a I Conferencia Estadual LGBT de São Paulo;
-  regulamentou a Lei 10.948 (que pune a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero) e publicou decreto acerca do uso do nome social de transgêneros na administração pública;
- criou, para travestis e transexuais,  o Ambulatório de Saúde Integral;
- na reforma do Sistema Previdenciário do Estado de São Paulo, em 2007, instituiu o direito de pensão aos parceiros homossexuais e fundou o Núcleo de Combate à Discriminação, Racismo e Preconceito no âmbito de Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

Enfim, um conservador não aprovaria nada disso, como se sabe, pelo menos não no Brasil, já que, na Inglaterra, o partido conservador de David Cameron encampa abertamente até o casamento homossexual. O conservadorismo brasileiro é contra todas as demandas da modernidade, as quais julga uma ameaça à família tradicional, à cristandade e ao pleno funcionamento da via láctea. Tende para o obscurantismo mesmo.

A Sindrome de Estocolmo eleitoral de Serra e seus sequestradores conservadores

Apesar de seu histórico de homem liberal, Serra temerariamente começou a trilhar os passos do PT (um dos grandes responsáveis pela ascenção dos evangélicos no país, vide suas relações com Edir Macedo, Garotinho, Bispa Sônia, entre outros),  fazendo média com conservadores, além do democraticamente aceitável, para tentar ganhar a eleição.  Parece estar sofrendo de síndrome de Estocolmo eleitoral,  tentando conquistar  a simpatia dos conservadores que  tentam sequestrar sua trajetória política.  Esses conservadores sabem que Serra não é conservador mas estão barganhando voto para que o tucano inclusive contrarie sua natureza política  supostamente como única forma de vencer Haddad. Nas palavras de um conhecido representante dessa vertente, Nivaldo Cordeiro, no vídeo O Desafio de Serra:

 “O espectro esquerdista tem o monopólio do PT. Se José Serra quiser tirar a diferença (positiva em relação a Haddad, no momento) vai ter que imitar o Mitt Romney dos EUA. Vai ter que fazer um discurso conservador, uma mensagem clara , direta, sem subterfúgios. ... É uma coisa muito irônica porque Serra é um homem genuinamente esquerdista, abraçou a causa de esquerda na juventude e nunca largou. E agora se defronta com a situação de que só poderá ser eleito e manter o projeto do PSDB, e defender a sociedade aberta e cumprir uma missão histórica muito importante que está reservada a ele, se fizer um discurso provavelmente contrário a sua crença mais íntima. Mas terá que fazê-lo porque a questão agora é uma única: como ganhar a eleição. E não se ganha eleição  com certos pruridos e excesso de coerência não. José Serra terá que empolgar o eleitorado conservador porque essa gente está doida por um candidato que apele a seu voto. Esses conservadores vão se transformar em cabos eleitorais gratuitos, automáticos, entusiastas. Buscarão voto na rua para elegê-lo. Mas só o farão se ele tiver um discurso para essa gente. Até agora ele não teve. Terá que abraçar bandeiras que ele não gosta pessoalmente provavelmente, mas terá que fazê-lo porque isso é do profissionalismo político: terá que ser contra o aborto, terá que ser contra o gayzismo, terá que denunciar fortemente a tramoia do mensalão , botar isso em evidência, levar para a população mais simples. A classe média está bem informada sobre o mensalão mas a periferia nem sabe o que é... Tem que associar o Haddad àquela proposta maldita do kit gay. Tem que fazer a agenda conservadora, fazer o discurso conservador ... ou faz isso e se diferencia e ganha a eleição... ou não faz e perde a eleição. Essa é a encruzilhada.“

Sério que essa é uma das falas mais inacreditáveis que já ouvi na vida. Seu autor, arauto do conservadorismo, esse mesmo conservadorismo que tanto condena a desonestidade, a falta de ética do PT, quer que o candidato José Serra faça um discurso contrário às suas crenças mais íntimas, que jogue fora sua trajetória política, ou seja, que seja completamente desonesto, para vencer o PT. Além do que a argumentação do tal Nivaldo é uma falácia cabeluda. Vários fatores podem levar Serra a perder as eleições, mas com certeza não será por não encampar a agenda conservadora que isso ocorrerá. Aliás, se o PT ganhar, pode-se atribuir a vitória, entre outras coisas, a incompetência desses conservadores que não conseguem concretizar um partido próprio e parasitariamente tentam desfigurar um candidato de outra corrente política para defender suas bandeiras. Eles de fato estão mais preocupados com suas bandeiras do que com a vitória de Serra. 

E como disse antes, Serra parece estar sofrendo de Síndrome de Estocolmo, querendo agradar seus potenciais sequestradores. Sábado, deu entrevista ao Estadão onde afirma que o apelidado kit gay não foi feito para educar e sim para doutrinar. O tal suposto kit é mesmo bem ruinzinho, poderia se discutir sua abordagem, naturalmente, mas essa história de doutrinar é ridícula. A verdade é que as outras variantes da sexualidade humana, a homo e a bissexualidade, são apresentadas nos vídeos do kit como naturais, um conceito que bate de frente com a visão conservadora de que a heterossexualidade é a única forma normal, natural de relacionamento entre seres humanos. Seria o caso de perguntar porque, se é tão natural, a simples menção das outras variantes da sexualidade humana poderia destruí-la, não é mesmo? Será que atestar a existência dos cavalos ameaça a vida dos cachorros? 

Não há como combater a homofobia sem apresentar a homo e a bissexualidade como variantes naturais da sexualidade humana

O fato é que não há como combater a homofobia sem apresentar a homossexualidade ou a bissexualidade como variantes naturais da sexualidade humana. Pela perspectiva conservadora, contudo, qualquer projeto de educação sexual nas escolas que fale de maneira natural da homossexualidade corre o risco de ser vetado sob acusação de fazer proselitismo homossexual, como se fosse possível induzir alguém a ser o que não é (pode-se no máximo forçar alguém, através da repressão, a fingir ser o que não é). Independente de como se aborde a questão, o objetivo é combater o preconceito contra os alunos homossexuais e não arrebanhar criancinhas para o homossexualismo. Como Serra também afirma que é preciso combater a homofobia, resta saber qual solução apresentará para esse impasse, caso eleito.

Agora há um aspecto do discurso do citado conservador com o qual concordo: Serra está mesmo numa encruzilhada. Como também disse editorial da Folha de São Paulo, intitulado Kit Evangélico, fazendo média com conservadores, Serra pode conseguir votos dos mesmos, quem sabe até ganhar as eleições (por essa via torta eu duvido), “mas não há como comer do bolo conservador e, ao mesmo tempo, passar-se por liderança moderna, arejada.” Estaria Serra disposto a jogar fora toda uma trajetória política por uma eleição, mesmo considerando a importância desta atual em São Paulo? Sabe-se que, pelas deficiências da política eleitoral brasileira, as alianças mais insólitas acabam rolando no país (haja vista que gente do PSOL apoiou o ACM na Bahia), mas há barganhas que colocam em risco toda a credibilidade da pessoa. E Serra não tem mais idade para se recuperar de tamanho tombo.

O que é pior, essa situação coloca a todas nós, pessoas moderadas, não autoritárias, igualmente numa encruzilhada entre as viúvas do Muro de Berlim e a Santa Inquisição conservadora, sem um partido de centro, democrático, moderno, inclusivo, para nos representar, já que o PSDB também agora resolveu flertar com coisas do arco da velha.

Pior ainda, o PT, com seu proverbial cinismo, embora tenha inúmeras ligações com evangélicos, embora Haddad, sem qualquer histórico de apoio à comunidade LGBT, tenha inclusive vetado o tal kit gay com Dilma, igualmente com base na falácia da doutrinação, já está atacando Serra como homofóbico por conta de sua declação sobre o kit. Lembremos que a única coisa que petistas sabem fazer bem é mentir. Suas mentiras têm uma cola das mais aderentes. Assim, Serra, apesar de todo seu currículo de políticas contra o preconceito, pode ficar também rotulado como homofóbico por um sujeito que nada fez pelos LGBT. 

Tempos difíceis. Vamos torcer para que a Síndrome de Estocolmo de Serra fique restrita a essa declaração conceitualmente equivocada de que o kit faria doutrinação (?!) da homo e da bissexualidade. Se a síndrome avançar, pessoalmente, mesmo sabendo da importância de se votar contra o PT, vou repensar meu apoio ao tucano, salientando que, meu voto, depois dessa fala sobre doutrinação, já se encontra constrangido. Afinal, trocar 6 por meia dúzia não é escolha verdadeira.

2 comentários:

Ouvi o podcast todo. M-A-R-A-V-I-L-H-O-S-O! Parabéns pelo lindo trabalho.

Sergio Viula

Absurdo! Com tanta coisa para se discutir sobre São Paulo, tantos problemas e só se ouve essa conversa de kit gay. E nem tem kit gay na proposta dos candidatos. Ficam discutindo algo do passado. Eta Brasil atrasado!

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