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sexta-feira, 20 de outubro de 2017

50 Anos de Tropicália

Reunião tropicalista. No alto, Caetano, Torquato Neto e Rita Lee; no meio, Tom Zé,
Glauber Rocha, Rogério Duprat e Gil - Arte de André Melo
Tropicália comemora 50 anos: relembre
Movimento rompeu os limites entre vanguarda e tradição, samba e iê-iê-iê, Brasil profundo e superficial

RIO - Quando Caetano Veloso apresentou “Alegria, alegria” e Gilberto Gil cantou “Domingo no parque” no III Festival de Música Popular Brasileira, estavam quebrados para sempre os limites entre vanguarda e tradição, entre samba e iê-iê-iê, entre o Brasil profundo e o superficial. Ainda não existia um nome para o que se viu ali, mas hoje sabemos que aquele festival — cuja grande final completa 50 anos no próximo dia 21 — é um dos principais marcos do nascimento da Tropicália.

Até ali, o cenário da música brasileira era assim:

1) Havia a vanguarda da bossa nova — percebida tanto no choque da gravação de João Gilberto para “Chega de saudade” quanto em sua aceitação internacional (o concerto do Carnegie Hall em 1962, o disco de Sinatra cantando Jobim em 1967, a experiência americana de Sérgio Mendes a partir de 1964).

2) Havia as tradições do samba de morro e da música nordestina, vistos como portadores das verdades de um Brasil profundo.

3) Havia a invasão anglosaxônica do rock, capitaneada pelos Beatles, aportando no Brasil pelos subúrbios como iê-iê-iê.

4) E havia jovens de classe média nos palcos dos festivais assumindo a canção como o território privilegiado para pensar seu tempo — um tempo de profundas transformações. Na política, a ditadura instaurada em 1964 e a polarização entre a esquerda e a direita. Nos costumes, a liberação sexual, os questionamentos à sociedade de consumo.

Aí veio aquela noite em 67. E, no ano seguinte, o álbum-manifesto “Tropicália ou panis et circensis” chegaria para explicar — ou para confundir, como escreveu Tom Zé anos e Chacrinha incorporou em seu programa de TV, que virou modelo da estética tropicalista, num jogo de espelhos típico do movimento.

Na capa do disco, além de Caetano, Gil e Tom Zé, estavam, em carne e osso, Gal Costa, Mutantes, Torquato Neto e Rogério Duprat. Representados em retratos, apareciam Nara Leão e Capinam. O álbum era um desfile alegórico e violento das cores e dores de um Brasil em convulsão: sofisticado e kitsch, litorâneo e interiorano. O painel incluía ainda o cantor Vicente Celestino (“Coração materno”) e o artista plástico Rubens Gerchman (sua tela “Lindoneia” inspirou a canção homônima), jornais populares e Mangueira, “Hino ao Senhor do Bonfim” e “aquela canção do Roberto”, Caribe e concretismo.

Os antecedentes do tropicalismo remontam a Oswald de Andrade (e ao “Rei da vela”, relido pelo Teatro Oficina), ao Cinema Novo, a Hélio Oiticica (sua obra “Tropicália” batizou o movimento), a João Gilberto. E as ondas que se espalharam a partir dele atingiram de volta não só a canção brasileira, mas o cinema, as artes visuais, o teatro — e até a moda e a publicidade. Mas, num país de ânimos quentes, marcado por tensões políticas agravadas pela repressão oficial, a repercussão não foi pacífica. Provocaram reações episódios como o discurso em que Caetano confrontou a plateia do Festival Internacional da Canção de 1968, o tom desafiador do espetáculo que eles montaram na Boate Sucata e a cena do programa “Divino maravilhoso” com Caetano cantando “Boas festas” enquanto apontava uma arma para a cabeça.

Por um lado, parte da esquerda via o grupo como alienado. Por outro, a direita se sentia ameaçada pelo que não entendia ali. Caetano e Gil acabaram na cadeia e, em seguida, no exílio. Para muitos, a aventura tropicalista terminava ali, sob a repressão. Mas os ecos dela se fazem presentes até hoje na música — de forma direta ou indireta — em exemplos como Nação Zumbi e BaianaSystem. Além disso, o pensamento sobre o Brasil hoje é em grande medida influenciado pela leitura que os tropicalistas estabeleceram então.

ARTIGOS E FRAGMENTOS

Essa história de rupturas e embates celebra 50 anos logo agora, quando o Brasil se vê novamente ameaçado pela censura às artes e rediscute questões que pareciam superadas. De olho na construção do futuro sem esquecer as lições do passado, o Segundo Caderno revê o movimento, em artigos e fragmentos, aos moldes das canções “Geleia geral”, “Miserere nobis” e “Tropicália”. Nas páginas seguintes, há tigres e leões soltos nos quintais, apesar das pessoas da sala de jantar, ocupadas em nascer e morrer.

Fonte: O Globo, por Leonardo Lichote, 15/10/2017


segunda-feira, 8 de maio de 2017

As sufragistas: de como as mulheres tiveram que verter sangue, suor e lágrimas pelo simples direito de votar

Cena do filme 'As Sufragistas', que aborda a luta das mulheres
por igualdade de direitos no Reino Unido. Divulgação

Nenhuma conquista social foi obtida de mão beijada. Mulheres, negros, homossexuais e tantos outros segmentos marginalizados tiveram que verter muito sangue, suor e lágrimas para conseguir os direitos mais básicos (vale assistir também o filme Selma sobre a luta dos negros americanos para poder votar). Importante ressaltar isso atualmente. Hoje, vemos, com tristeza, mulheres, negros e gays reproduzindo o discurso cínico dos conservadores, muito interessados em jogar fora o bebê junto com a água suja da bacia, de que os movimentos sociais não são mais necessários porque instrumentalizados por partidos de extrema-esquerda e outras falácias do gênero. A instrumentalização dos movimentos sociais realmente precisa acabar, mas não os movimentos sociais porque ainda falta muito o que fazer.

'As Sufragistas': metade da humanidade (no mínimo)

'As Sufragistas' é um filme que cospe na nossa cara a vergonha com verdade, raiva e paixão

por Javier Ocaña


Que duas democracias supostamente gloriosas do mundo ocidental mais avançado como o Reino Unido e a França não deram o direito de voto às mulheres, nem que fossem eleitas, até 1928 e 1944, respectivamente, deveria nos enraivecer a tal ponto que o melhor resultado seria, sem dúvida, um verdadeiro exame de consciência. E não sobre o passado, mas sobre o presente. Metade da humanidade, pelo menos, ficava à margem das decisões, e As Sufragistas, filme britânico composto principalmente por mulheres, cospe na nossa cara essa vergonha. Com raiva, com delicadeza, com elegância, com justiça, com verdade, com paixão. Porque ainda resta muito a ser feito.

Sarah Gavron é a diretora, Abi Morgan, renomada dramaturga, a roteirista, enquanto um grupo de sensacionais intérpretes, liderada pela sempre perfeita Carey Mulligan, coloca rosto naquelas mulheres com coragem suficiente para enfrentar o pior vilão, e não de quadrinhos: o homem que se acredita superior.

Gavron e Morgan relatam o processo de conversão ideológica e política de uma mulher comum. Comum? Aparentemente comum, porque essas trabalhadoras do ativismo arriscaram tudo até as últimas consequências. Até o martírio, a morte, até perder seus filhos. A imprescindível mão de obra de uma revolução que tinha seus rostos brilhantes, e necessários, em mulheres que passaram para a história por seus discursos, e que claro que se arriscaram, mas precisavam das imprescindíveis ações das que estavam na base. 

Com excelente produção, música de Alexandre Desplat, fotografia de Eduard Grau de Barcelona, já instalado confortavelmente no cinema internacional, As Sufragistas é mais do que um filme: é a configuração de uma vitória esmagadora. A encenação sem fissuras, mas sem alardes, de Gavron, entre os tons amarelados, de névoa física e tempestade moral da fotografia de Grau, que pode parecer um pouco fria em alguns momentos, mas nunca chega a rachar pela emoção do tema e das situações. Quem não ficar gelado com as imagens documentais no final, é porque tem problemas.

AS SUFRAGISTAS
Direção: Sarah Gavron.
Elenco: Carey Mulligan, Ben Whishaw, Anne-Marie Duff, Meryl Streep, Helena Bonham Carter.
Gênero: drama. Reino Unido, 2015.
Duração: 106 minutos

Abaixo o filme em baixa definição. Para assistir numa imagem melhorada clique aqui, depois em auto para subir a definição para 360. Dá pra ver legalzinho.

segunda-feira, 10 de abril de 2017

Leni Riefenstahl, a cineasta genial que revolucionou a arte cinematográfica documentando o nazismo

Leni Riefenstahl, a genial cineasta que documentou o nazismo
Há tempos, em uma lista de discussão, criticava-se o autor de novelas Aguinaldo Silva por seu personagem Crô, o estereótipo do gay com seus tiques e trejeitos femininos. Criticava-se Aguinaldo porque o personagem Crô, da novela Fina Estampa, prestaria um desserviço à causa homossexual encarnando uma caricatura dos homens gays e, além de tudo, um capacho. Segundo os críticos de Aguinaldo, principalmente por este ser também homossexual e ter editado o Lampião da Esquina (primeira publicação LGBT de distribuição nacional), seus personagens deveriam representar uma imagem positiva dos homens homossexuais, de acordo com os parâmetros de positividade da militância. Agora, o personagem virou filme, e as críticas continuam bem ácidas.

A discussão levou ao recorrente debate sobre a necessidade ou não do engajamento da arte em lutas políticas, debate que desde fins do séc. XVIII não sai de pauta. Fazendo um aparte, pessoalmente, rejeito  a obrigação de qualquer finalidade moral ou social para a arte, considerando-a válida apenas como expressão estética. Sou da turma da arte pela arte.

Por outro lado, meio imbrincada ao debate sobre arte engajada ou não geralmente surge a discussão sobre o quanto a obra de um artista pode ser avaliada por sua vida pessoal e suas posições políticas. De fato, ética e estética nem sempre andam juntas, a História registrando a obra de artistas que foram inovadores em estética mas bem discutíveis em ética. Muitos artistas geniais mostraram triste apreço por ideias e práticas autoritárias, sexistas, racistas, antissemitas além de por comportamentos delinquentes. 

Então, distinguir a obra de seu autor, embora imprescindível, nem sempre é tarefa fácil. Principalmente para nós, simples distinto público, é dureza mesmo separar o joio do trigo. Penso na objeção emocional que passei a ter quanto à obra de Chico Buarque de Holanda depois de saber de seu apreço pela ditadura cubana. Logo ele que, no período da ditadura militar, posava de paladino da democracia com suas musiquinhas de protesto!? Hoje, sem grandes problemas digestivos, só consigo escutar sua obra lírica.

De qualquer forma, Chico Buarque nunca foi um artista excepcional. Pelo contrário, sua obra sempre foi convencional em termos de estética, sem nada de muito inovador, apesar de ter composições realmente bonitas. Mas e quando se trata de um artista, no caso de uma artista genial, inovadora em sua arte como poucos, mas cuja obra retratou exatamente um dos fenômenos políticos mais lastimáveis da história humana?

Refiro-me a cineasta alemã Leni Riefenstahl que revolucionou a arte cinematográfica tendo como tema nada menos do que o nazismo. Em suas obra-primas, O Triunfo da Vontade e Olympia, Leni filmou respectivamente um encontro do partido nazista, em 1934, e as Olimpíadas, na Alemanha de Hitler, em 1936. Inovou tanto que, segundo Vicente Amorim, cineasta brasileiro (de Um Homem Bom, 2008), falando sobre Olympia:
É a glorificação da perfeição física que até hoje se irradia na propaganda, no design moderno, nos editoriais de moda. Se retirarmos a influência de Leni, provavelmente ainda estaríamos no século 19, do ponto de vista visual.
Verdade. O que salta aos olhos ao ver os dois documentários de Leni é sua atualidade. Parece que estamos assistindo a peças produzidas por algum artista de hoje. Tantos anos passados e as imagens ainda impactam e emocionam por sua beleza. Se a cineasta teve ou não um maior engajamento com o nazismo ou se simplesmente se aproveitou do culto nazista à beleza para produzir uma verdadeira elegia à forma humana, ao corpo humano, continua uma questão em aberto. Uma coisa, contudo, é certa: ela foi uma artista excepcional, uma mulher polêmica e notável.

Seguem texto de 2009 da revista Aventuras na História, sobre a Leni Riefenstahl, dois vídeos com suas obras O Triunfo da Vontade e Olympia. Seguem ainda odocumentário sobre ela: The Wonderful Horrible Life of Leni Riefenstahl (A maravilhosa vida horrível de Leni Riefenstahl). À parte a questão estética, são todos documentos históricos imperdíveis. 


A cineasta de Hitler
Leni Riefenstahl inventou técnicas cinematográficas e produziu imagens com efeitos espetaculares. Além de talentosa, era linda. Nada disso bastou para libertá-la da sombra nazista

No dia 1º de agosto de 1936, eram abertos na Alemanha os XI Jogos Olímpicos da história moderna. Pela primeira vez, a recém-inaugurada televisão transmitia para aparelhos instalados em prédios públicos de Berlim a espetacular cerimônia. Fascinado, o povo alemão viu e ouviu, ao vivo, um orgulhoso Adolf Hitler recebendo do grego Sypiridon Louis (campeão da maratona de Atenas, em 1896) um ramo de oliveira colhido nos montes de Olímpia, ao som de 100 mil vozes bradando "Heil, Hitler! Heil, Fuerher!" Todas as cenas da cerimônia foram registradas em 400 quilômetros de filme pela cineasta alemã Leni Riefenstahl.

A cobertura do evento foi uma encomenda do Comitê Olímpico Internacional, mas teve, claro, a mão de Adolf Hitler, presidente do país-sede dos jogos. Foi dele a palavra final sobre quem seria a responsável pelas imagens que terminaram se tornando um poderoso instrumento de propaganda a favor do regime nazista. Numa época de tecnologias cinematográficas incipientes, Leni soube tirar proveito da megaestrutura colocada à sua disposição. Ela inventou novas formas de olhar pela câmera, revolucionando as imagens de um jeito  que até hoje marcam o que assistimos na televisão ou no fotojornalismo esportivo.

Os contornos épicos dados ao evento não se limitaram à abertura dos jogos. Seis meses antes, Leni já estava dirigindo os técnicos que cobririam as provas realizadas na piscina. Como a tecnologia ainda não permitia captar imagens ao nível da água, Leni teve a ideia de construir plataformas especiais nas bordas para os operadores de câmera, que também eram posicionados com o atleta nos saltos de trampolim e dentro da água.

Nas provas de corrida, ela também inovou ao mandar cavar buracos e instalar trilhos para poder captar imagens à altura do chão. E equipou de câmeras corredores que acompanharam os atletas. Os planos ousados - focados no esforço e tensão dos competidores - e a fotografia única de Leni geraram imagens consideradas por especialistas uma aula de estética e de hipervalorização do corpo, com efeitos obtidos a partir de closes muito próximos ou de enquadramentos de baixo para cima, que davam aos atletas aspecto de estátuas gregas.
"É a glorificação da perfeição física que até hoje se irradia na propaganda, no design moderno, nos editoriais de moda. Se retirarmos a influência de Leni, provavelmente ainda estaríamos no século 19, do ponto de vista visual", diz Vicente Amorim, cineasta brasileiro que, em 2008, dirigiu o longa-metragem Um Homem Bom.
Triunfo da propaganda

A aproximação de Leni com Hitler aconteceu em 1932, quando ela dirigiu seu primeiro filme, A Luz Azul, juntamente com o húngaro Bela Balázs, um dos críticos mais influentes nos anos 30 e 40. Abordava a história de uma jovem montanhesa, representada pela própria diretora, em busca de uma pedra que projetava luminosidade singular. Antes disso, ela havia atuado como atriz em seis películas do alemão Arnold Fanck, especialista em filmes de montanha, que impressionaram muito a artista. Rodados em penhascos e em meio a avalanches, há quem diga que veio daí "o culto à monumentalidade" de Leni.

Mas foi Balázs quem apresentou a ela O Couraçado Potemkin, obra-prima do russo Sergei Eisenstein, famoso por suas teses sobre a montagem dialética, que dizem que as sensações de um filme podem ser construídas. Conversando sobre essas teorias com Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazista, Leni caiu rapidamente no gosto do chanceler da Alemanha, que, dizem as más línguas, sempre teve uma quedinha por ela - questionada, a diretora afirmou que, para Hitler, fez apenas documentários.

E que documentários. Depois do inexpressivo Vitória da Fé, de 1933, sobre o quinto congresso do partido nazista, ela foi convencida por Hitler a produzir um longa-metragem sobre o sexto congresso. Foi sua obra-prima e sua condenação. O encontro partidário, marcado para setembro de 1934, em Nuremberg, transformou-se no filme O Triunfo da Vontade, extraordinária peça de propaganda. A logística de produção foi apoteótica para a época: mais de 100 técnicos e 30 câmeras. Segundo a própria Leni, no documentário The Wonderful Horrible Life of Leni Riefenstahl ("A maravilhosa vida horrível de Leni Riefenstahl"), de Ray Müller, feito em 1993, Hitler queria "um filme feito por um artista, e não por um diretor de partido".

Para sua realização, ela desenvolveu truques e artifícios até então inéditos. Por exemplo, um elevador construído e encaixado entre os mastros das enormes bandeiras do partido permitiu mover a câmera da esquerda para a direita e de cima para baixo, e fazer longos travellings (quando a câmera se desloca de forma contínua). Outro recurso, diz André Piero Gatti, pesquisador do Centro Cultural São Paulo e professor de História do Cinema na Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), foram "câmeras muito próximas (close-ups) que tornaram agigantados objetos simples e contribuíram para a distorção da escala, para a captação em imagens de uma espécie de místico poder absoluto, escondendo atrás de uma beleza plástica a podridão de um regime".

Para o filósofo Paul Virilio, no livro Guerra e Cinema, "o evento foi organizado de maneira espetacular, não somente do ponto de vista de uma reunião popular, mas de modo a fornecer material para um filme de propaganda". Tudo foi determinado em função da câmera: os rostos voltados para o mesmo lugar, os braços levantados em cumprimento nazista, as ruas apinhadas de gente, que se fundem em um grande corpo, o conceito-chave da unidade alemã.


Dois anos depois é que veio o documentário Olympia, que fez dos jogos uma celebração do corpo e do Terceiro Reich. Leni era linda, talentosa e mulher, numa área dominada por homens. Mas foi a cineasta de Hitler. E a vinculação ao nazismo a perseguiu para sempre. Até a morte, aos 101 anos, em 2003, ela afirmou desconhecer os crimes cometidos por seus patrocinadores.

No fim da Segunda Guerra, a cineasta foi presa por quatro anos. Solta, tentou filmar, mas foi hostilizada pela opinião pública. Trabalhou então como fotógrafa. Nos anos 70, lançou dois livros sobre os nubas, tribo do Sudão com quem passou seis meses nos anos 60, fotografando obsessivamente. Esse material forma o que os críticos consideram seu mais importante ensaio. Cobriu os Jogos Olímpicos de Munique (1972) para a revista Time e fotografou celebridades, como Mick Jagger. Nos anos 80, mergulhou no silêncio da fotografia submarina, que resultou no filme Impressões Subaquáticas (2002).


Receita para fazer voar
Muitas câmeras para seguir o mergulho

Em 1932, houve uma tentativa de filmar os Jogos Olímpicos de Los Angeles. Mas eram poucas câmeras e para poucas modalidades. Em 1936, nos jogos de Berlim, Leni Riefenstahl produz um documentário com uma superestrutura de produção. A imagem dos mergulhadores no ar virou um marco para a foto esportiva. Operadores trocavam lentes embaixo da água para acompanhar a parte final dos saltos, criando uma sequência sem pausas, do início ao fim das provas. Hans Ertl, fotógrafo-chefe, criou uma câmera subaquática e uma plataforma de apoio para filmar ao nível da superfície. Leni subverteu o ponto de vista clássico "de plateia", em troca de ângulos inesperados.

Do trampolim

Saltos filmados em plongée (de cima para baixo) e de baixo para cima, do trampolim, dão impressão de voo. De uma plataforma ao nível da água, a câmera pega a hora do mergulho.

Do céu

Um dirigível levava uma câmera automática, com objetivas de até 600 mm, o limite máximo da época. O resultado eram panorâmicas aéreas do evento e do mergulho.

Dentro d'água

Equipamentos à prova d'água filmam o fim do mergulho. Diferentes lentes captam detalhes do músculo, da respiração e da expressão dos atletas.

Saiba mais

LIVRO

Leni - The Life and Work of Leni Riefensthal, Steven Bach, Knopf, 2007

Biografia que explora as fronteiras éticas entre arte, beleza e verdade, muito crítica às escolhas feitas pela cineasta.

SITES
Fotos, informações sobre a artista, críticas e dados técnicos.

Fonte: Aventuras na História, Bruno Vieira Feijó | 20/07/2009


Publicado originalmente em 11/12/13

segunda-feira, 27 de março de 2017

"Misandria": uma grande zoeira e o sempre renovado ataque à autonomia das mulheres

A misandria só existe mesmo nos dicionários

Em páginas no facebook, onde se discutem tópicos referentes às questões das mulheres em geral, uma palavrinha vem rolando na boca de mulheres e homens, geralmente relacionada ao tema da participação de homens no feminismo (sic). Trata-se da palavra misandria, que fez suas primeiras aparições em língua inglesa em 1878 (para o Webster, 1909) e vem do grego miso= "ódio" + andros= "relativo ao homem, sexo masculino". Posteriormente, ainda em língua inglesa, pipocou em um artigo ou outro até se tornar mais frequente a partir dos anos 50 do século passado, alavancado sobretudo por grupos antifeministas ou masculinistas.

Em português brasileiro, online ao menos, não aparece em nosso dicionário mais famoso, o Aurélio, nem no Michaelis, nem no Aulette. Encontrei o verbete apenas no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa como: mi·san·dri·a (miso- + grego anér, andrós, homem + -ia), substantivo feminino = Aversão aos ou desprezo pelos indivíduos do sexo masculino. Isso significa que o termo ainda não tem grande circulação fora do âmbito dos movimentos e redes sociais.

De qualquer forma, "misandria" só existe mesmo em dicionários (talvez também agora em glossário psiquiátrico como a misoginia). Fora desse âmbito, ela não tem realidade social, ao contrário de sua equivalente misoginia que possui bastante concretude. Algumas falas iradas que mulheres, indignadas com a sociedade patriarcal, dirigem a homens, genericamente falando, podem, dependendo do contexto, ser realmente caracterizadas como sexistas, mas "misandria" é outra coisa. Mulheres não têm poder para ser "misândricas" como os homens têm para ser misóginos. Estabelecer simetria entre os dois termos ou é ignorância ou má-fé machista.

Misoginia não são apenas falas grosseiras ou depreciativas dirigidas a mulheres, o que poderíamos considerar mais como sexismo, dependendo do grau de depreciação. Misoginia é o ódio à mulher concretizado em inúmeras formas de violência contra o sexo feminino que vão desde restrições civis a atos de barbárie. Sem falar no monopólio masculino de várias áreas profissionais e de conhecimento.

Citando alguns exemplos, misoginia é a negação do direito ao voto e ao estudo que ainda existe em vários países, do direito à propriedade, do direito a transitar sozinha, do direito de trabalhar remuneradamente, do direito de escolher como se vestir, do direito de escolher com quem casar, do direito a participar da política, do direito sobre o próprio corpo (via criminalização do aborto) até a barbárie do estupro, do espancamento doméstico ou público, do açoitamento, da mutilação genital (130 milhões de vítimas no mundo) e de outros partes do corpo, além do assassinato.

A propósito da definição de misoginia: 70% das mulheres sofrem algum tipo de agressão durante suas vidas cometida por homens

Backlash: a acusação de odiar os homens acompanha as feministas desde seus primeiros passos

Por isso mesmo, quando comecei a ouvir essa palavrinha sendo jogada pra lá e pra cá contra ativistas, senti logo o cheiro azedo do velho e manjado backlash antifeminista. Backlash significa reação contrária, contra-ataque, no caso aos direitos das mulheres. A feminista americana Susan Faludi escreveu um clássico sobre o assunto chamado Backlash: o contra-ataque na guerra não declarada contra as mulheres (clique no título para baixar o livro), traduzido para o português em 2001 e que continua bem atual. Vale a leitura.

Os sinais de mais um surto de backlash antifeminista são bem evidentes sobretudo nas redes sociais. São os conservadores com seu feminazismo (comparando feminismo com uma das mais hediondas e antifeministas ideologias da história humana) e suas sabujas amestradas (mulheres conservadoras) culpando o feminismo por "supostamente obrigá-las a trabalhar remuneradamente quando elas queriam mesmo é ficar em casa para cuidar dos seus machos". (Então, anda difícil achar esse tipo de macho que sustenta donas de casa e a culpa é do feminismo!?).

São alguns rapazes "progressistas" que posam de interessados em feminismo e em serem aliados das mulheres em suas causas, mas que ou querem que as mulheres ensinem feminismo pra eles (vamos combinar o preço da hora-aula então) ou, mais cara de pau ainda, leem sobre feminismo, começam a se achar sabichões no assunto e passam - pasmem - a querer dizer para feministas o que é ser feminista ou não, qual o feminismo verdadeiro ou não. E, quando rechaçados em suas pretensões (machistas recicladas como "feministas"), fazem-se de ofendidos e saem choramingando que foram vítimas de "misandria". São as já famosas male tears (lágrimas masculinas), chororô masculino por descobrir que o mundo não gira mais  apenas em torno dos bolinhas.

Uma procissão de sufragistas: o direito ao voto feminino
caracterizado como um rebaixamento dos homens
Entretanto, "misandria" é apenas um novo nome para uma velha mania de acusar as mulheres, que lutam por seus direitos, de odiar os homens. De odiar os homens, de ser feias, mal-amadas, agressivas, amarguradas, masculinizadas, sapatonas, contra a família. Na primeira onda do feminismo, até o início do século passado, as vítimas desse backlash, dessa campanha injuriosa, foram as sufragistas, as ativistas que buscavam conquistar o direito de voto para as mulheres. O que votar tem a ver com odiar os homens? Nada, né? Mulheres e homens de hoje seriam capazes de fazer tal associação? Nem o Bolsonaro. Mas, na época da luta pelo voto, esse backlash voou solto. 

Décadas depois, foi a vez das feministas da segunda onda (anos 60 em diante), da emancipação econômica, do salário igual por trabalho igual, da descriminação do aborto, da liberação da sexualidade feminina, enfrentarem os mesmos ataques. Mais uma vez acusadas de odiar os homens, de ser feias, mal-amadas, agressivas, amarguradas, masculinizadas, sapatonas, contra a família. A diferença, em relação ao backlash dirigido às sufragistas, ficou por conta de se acusar abertamente as feministas de serem lésbicas em vez de falar em mulheres masculinizadas.

Aqui, no Brasil, entrou para a História o episódio de uma fulana do então proscrito Movimento Revolucionário 8 de outubro - MR-8 (e do jornal Hora do Povo) que tentou expulsar as lésbicas do III Congresso da Mulher Paulista (1981) por estas supostamente não serem mulheres e estarem encaminhando as feministas burguesas para o mau caminho. Por causa desse tipo de backlash, o movimento feminista demorou anos (no Brasil, duas décadas) para apoiar oficialmente os direitos da mulheres homossexuais. O apoio foi registrado, graças a minha intervenção, na plataforma feminista resultante dos debates da Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras (junho de 2002)

Agora, na chamada terceira onda do feminismo (anos 90 até hoje), com enfoque nas desigualdades específicas de idade, etnia, orientação sexual, classe, etc. (as tais interseccionalidades,) somadas a uma maior integração com a academia e visibilidade na mídia, novamente se veem as feministas acusadas de odiar os homens, de ser feias, mal-amadas (falta de rola), agressivas, amarguradas, masculinizadas, sapatonas, contra a família. As diferenças, em relação às campanhas antifeministas anteriores, são que:
  • primeiro, agora, conjuraram o suposto ódio aos homens na palavra "misandria", alçada à moda, na última década, por grupos americanos antifeministas (Men’s Rights Activism e Men's Rights Movement), decididos a reverter conquistas das mulheres se fazendo de vítimas do feminismo.
  • Segundo, que, ao contrário de recuar diante de mais esse surto de backlash, como no passado, muitas feministas atuais decidiram assumir que são "misândricas", a maioria para zoar em cima da absurda tentativa masculinista de estabelecer simetria entre "misandria" e misoginia e uma minoria como protesto contra o sistema patriarcal ou para simplesmente desopilar o fígado, doente de tanto engolir machismos nessa vida, dizendo desaforos a homens.

Separando alhos de bugalhos: homens feministos e homens antipatriarcais

Seja como for, trata-se de reação, neste caso realmente necessária, contra o verdadeiro assalto que homens ditos progressistas (com apoio de suas capitãs do mato) vêm fazendo ao feminismo, insistindo em que "eles têm o direito de opinar no movimento feminista (por serem pela igualdade entre os sexos...hã, hã...)", "porque, errando ou acertando, no debate feminista, homem pode 'contribuir' para o movimento e até que "feminismo não é das mulheres". São frases que colhi em redes sociais e que, com algumas variações, são representativas da costumeira falta de senso de limites da mentalidade machista.

Porque, obviamente, esses homens não são aliados da luta das mulheres coisa nenhuma. Estão agindo com base na velha (de)formação machista que receberam, tentando SIM roubar o protagonismo das mulheres no movimento que elas criaram para lutar exatamente contra o machismo. Ou será que ainda restam dúvidas diante de uma frase como "o feminismo não é das mulheres"? Aliás, eu mesma presenciei a fala de um cara dizendo para uma moça, a propósito de um texto que ela escrevera sobre feminismo e capitalismo, que o feminismo dela não era verdadeiro e o dele é que era!!!

Homens são adestrados para não deixar espaços onde as mulheres possam estar sozinhas (pois ficam fora de seu controle); são adestrados para achar que as mulheres têm que servi-los e amá-los, apesar de eles terem criado um mundo que trata as mulheres a socos e pontapés. É esse adestramento que está por trás dessa historinha de participação masculina no feminismo a fim de contribuir com a luta das mulheres (cavalo de Tróia), da historinha de feminista ensinar feminismo a homens (mulher tem que servir ao homem) e amá-los incondicionalmente (foram adestradas para isso, o que falhou?)

Mas vamos combinar, mulher nenhuma tem obrigação de ensinar homem algum sobre feminismo. No máximo, se tiver, pode passar bibliografia, que isso não configura exploração. O resto ele que se vire no google como qualquer outro mortal. Mulher não tem obrigação de gostar de homem. Então, homens construíram um sistema que exala desprezo e ódio pelas mulheres por todos os poros e as mulheres nem podem expressar seu ódio por ele? Portanto, não tem essa de dizer que as que dizem não gostar de homens não são feministas. Como não? Porque escaparam do adestramento para amar incondicionalmente quem nada faz para ser amável? Se não querem ser odiados, não sejam odiáveis. Se querem ser amados, que sejam por seus méritos, não na base de todo o tipo de coação. Amor de verdade não combina com submissão.

Coletivos de Homens Antipatriarcais (na Argentina)
Por outro lado, existem sim homens pró-feministas, antipatriarcais, mas são aqueles homens que buscam desconstruir em si mesmos os condicionamentos que receberam. Um homem antipatriarcal respeita o direito de mulheres não quererem conversa com ele seja sobre o quer for, incluindo feminismo. Assim como entende que uma mulher pode não querer se relacionar sexualmente com ele. Entende o significado da palavra NÃO.

Em vez de ficar enchendo o saco de quem não tem esse apêndice, se realmente se interessa pelo tema, vai à luta, busca informações sobre o mesmo, constrói sites sobre gênero e feminismo (vi alguns) e cria grupos para discutir com outros homens outros modelos de ser homem em vez de querer forçar presença onde não é bem-vindo. Inclusive porque também sabe que homens e mulheres convivem em muitos outros ambientes onde se pode discutir feminismo sem ser o movimento feminista. Fora os espaços interseccionais que podem ser criados para esse fim COM MULHERES QUE SE DISPONHAM A CONVERSAR. 

O homem antipatriarcal também entende porque algumas mulheres detestam homens, embora pessoalmente isso lhe seja doloroso, e busca desarmar a bomba patriarcal que criou esse sintoma em vez de simplesmente rotular essas mulheres de loucas necessitadas de tratamento. Chamar mulheres que não gostam de homens de loucas é negar a realidade objetiva do mundo em que vivemos. De repente, estão mais é zonzas de dolorosa lucidez. Loucas são as estruturas do sistema que os homens criaram e não as mulheres que as odeiam.

Vale lembrar que, além das próprias ações violentas cometidas por homens contra o sexo feminino, o patriarcado ainda onera as mulheres com o peso de superar o ódio que ele mesmo provoca. Sobretudo para mulheres que experimentaram diretamente a misoginia, há de se convir que não é fácil superar o rancor provocado pela violência sofrida, embora transcendê-lo seja fundamental para seu próprio bem, para sua integridade psicológica.

Tratamento igual para comportamento igual (ou separando alhos de bugalhos)     
                      
Pessoalmente, embora já tenha sido até acusada falsamente de querer levar homens para sacrossantos espaços feministas, sempre considerei o separatismo feminista cláusula pétrea (e não só o feminista). Feminismo é coisa de mulher, como gravidez e menstruação. Sempre fui contra a participação de homens em grupos feministas, encontros feministas, e continuo sendo. O tema desse artigo, aliás, só reitera a minha posição. Os espaços feministas são para mulheres conviverem com outras mulheres, tentar a difícil tarefa de chegarem a denominadores comuns de luta, desconstruírem o adestramento para a rivalidade entre mulheres que recebem desde o berço.

Mulheres têm que priorizar mulheres e não homens, como têm feito nos últimos séculos. Mulheres têm que sobretudo priorizar a si mesmas, ser saudavelmente individualistas em contraposição à educação para a abnegação feminina, esse papo furado de se sacrificar por homens, filhos, as religiões dos homens, as "causas" dos homens ou seja lá por quem for.

Por outro lado, contudo, como sei separar alhos de bugalhos, nunca vi problemas de trabalhar com homens em outros movimentos e em outras instâncias, tendo, com uns, bons momentos de coleguismo e produtividade em ações comuns e, com outros, péssimos momentos. De uma forma geral, encaro os homens primeiro como indivíduos e não como integrantes do patriarcado opressor. Sei que a floresta patriarcal é densa, mas consigo ver que há diferenças entre as árvores. E todo mundo é inocente até prova em contrário.

Além disso, alguns homens também são vítimas desse mesmo sistema que nos aflige (sobretudo gays). Retrospectivamente, vale também lembrar que alguns homens, embora ultraminoritários, levantaram suas vozes pelos direitos das mulheres, quando elas ainda não tinham voz pública. Depois que passaram a ter, continuaram apoiando as bandeiras que as mulheres decidiram levantar sem querer decidir por elas que bandeiras são essas.

Fora ainda que há um bocado de mulher cúmplice da opressão das mulheres. Mulheres conservadoras, mesmo quando não se assumem como tais, têm um papel deletério nas lutas pela autonomia das mulheres. Não se contentam em ser medíocres e subservientes. Querem que todas sejam medíocres  e subservientes como elas. Não dá, portanto, para dividir o mundo em bandidos e mocinhas simplesmente.

Por isso, trato homens como iguais desde que como igual me tratem de forma sincera. Entretanto,
 não banco a Poliana jogando o jogo da contente porque conquistamos algumas igualdades formais. Infelizmente, no cotidiano das inter-relações pessoais, o machismo continua são e salvo e raivoso. É só dar uma olhada nas redes sociais e no atual backlash antifeminista para constatar isso. Na Inglaterra, já apareceu até partido antifeminista. Ser realista não configura nenhuma "misandria".

Dito posto, nesta situação em particular, endosso completamente o escracho que a nova geração de feministas vem fazendo dos caras de paus que querem mandar em mulher até no feminismo, posando de solidários com a luta das mulheres (no caso dos progressistas). Ao contrário das gerações de feministas anteriores, a atual não parece se intimidar com a acusação de "odiadora de homens" que sempre acompanhou a turma. Pelo contrário, parece que quanto mais as chamam de "misândricas" mais elas se assumem como tais e mais desancam uzomi (como dizem).

Me pergunto apenas se a zoação não vai longe demais quando leio um texto sério, desconstruindo objetivamente a suposta misandria, mas que termina com a autora assinando "fulana de tal, devotadamente misândrica". À guisa de comparação, é como se ativistas LGBT decidissem se dizer heterofóbicos de gozação porque um bando de manés conservadores saem até em passeata se dizendo vítimas de uma tal "heterofobia" tão real quanto a tal "misandria".

Parece que as garotas partem do princípio de que, já que vão nos xingar de qualquer forma de qualquer coisa, vamos zoando enquanto der. Mas tenho minhas dúvidas se isso não alimenta ainda mais a falácia da "misandria". Afinal quantas pessoas percebem o sarcasmo desse posicionamento? Não é possível só zoar, com todo o poder corrosivo que o humor tem contra os pequenos e grandes tiranos, sem correr o risco de parecer incoerente?

Esquerda e Direita também são filhas do Patriarcado

Vale lembrar ainda que todo esse backlash e sua correspondente zoeira não têm a ver com a surrada dicotomia esquerda-direita. O sistema patriarcal é o conjunto maior que engloba os outros sistemas político-econômicos e filosóficos criados pelos homens nos últimos milênios. Embora a citada zoeira das feministas se dirija também à direita conservadora e seu feminazismo, seu foco maior são os ditos progressistas, esquerdistas, libertários, que querem ser feministas à fórceps. Vale notar que os chamados esquerdomachos também usam a desqualicação "feminazi" dos conservadores contra as jovens feministas.

Mal fazem 30 anos que a esquerda tradicional deixou de dizer que feminismo é coisa de burguesa desocupada (mais uma desqualificação) e luta divisionista da luta maior, a luta de classes. Ainda hoje se encontram esquerdistas do gênero dizendo essa abóbora. Agora, parece que aderiram a estratégia do "se não pode vencê-las, junte-se a elas". Como a história ensina, sabe-se bem para quê. Pena que tantas ainda botem fé nessa esquerda fóssil e suas ideias arqueológicas.

Os libertários (anarquistas de esquerda) tiveram correntes promotoras da igualdade entre os sexos e a liberdade sexual desde seus primórdios, mas vale salientar que o termo libertário virou uma espécie de palavra-bom-bril que se presta a mil e uma utilidades ideológicas, chegando a ser usada hoje como autodenominação até de alguns conservadores. Basta que o cara se diga contra o boggieman Estado (o bicho-papão Estado) e já passa a se proclamar libertário, embora seja liberticida em vários outros aspectos. 

Esse sequestro do termo libertário até por conservadores tem a ver com a história política americana. Como por lá sociais-democratas passaram a se dizer liberais (desde os anos 30), liberais passaram a se denominar libertários para se diferenciar. Acontece que o liberalismo, ao longo de sua trajetória secular, saiu de sua origem de esquerda, empurrado pelo socialismo, caminhou para o centro do espectro político e acabou sequestrado pelo conservadorismo com quem passou a fazer frente ao comunismo (bem de passagem). 

Essa má companhia de certa forma imantou as tribos liberais (libertários, anarcocapitalistas, austríacos, minarquistas, liberais sociais...) de um ranço conservador que se observa em declarações, por exemplo, contra o casamento LGBT e em apoio a supostas escolhas da mulher entre perspectivas libertárias e conservadoras como se fossem equivalentes.

Contra o casamento LGBT a desculpa é que se deve lutar para o Estado não mais legislar sobre as relações humanas em vez de ampliar seu alcance. Como tal proposta é de remota concretização, na prática significa negar o acesso ao instituto civil do casamento para casais de mesmo sexo. 

Quanto às supostas escolhas da mulher, compara-se ser dona de casa com ser uma profissional remunerada, embora a primeira opção deixe a mulher numa situação de particular hipossuficiência e vulnerabilidade enquanto a outra a habilite a ser sujeito da própria vida dentro dos limites de nossas sociedades. Na mesma perspectiva, afirma-se que a mulher muçulmana tem o direito de andar de burca, no mundo ocidental, desconsiderando a situação de imigrante dessa mulher ainda sob o tacão das sharias da vida, como se estivesse no seu país de origem. 

Desconsidera-se que a burca,  niqabs e congêneres são objetivamente um mal, porque a misoginia é objetivamente errada. E essas vestes são misoginia pura, negação da presença das mulheres na esfera pública que só podem transitar como se não existissem (sem identidade visível). Fora os problemas físicos que esses trajes acarretam. A jornalista norueguesa Asne Seierstad, que escreveu O livreiro de Cabul, assim descreve o uso da burca que experimentou quando de sua passagem pelo Afeganistão:
A burca aperta e dá dor de cabeça. Enxerga-se mal através da rede bordada. É abafada e faz suar. É preciso tomar cuidado o tempo todo onde pisar, porque não podemos ver nossos pés. Era um alívio tirá-la ao chegar em casa.”
Não custa lembrar ainda que, na época da monarquia secular do xá Mohamed Reza Pahlevi (anos 60 e 70), no Irã, quando puderam escolher como se vestir, as mulheres, em geral, optaram por aposentar as burcas, niqabs e outras aberrações. Resumindo, escolhas não se dão num vácuo social e político. Muitas escolhas estão mais para escolhas de Sofia.

Em outras palavras, sob o nome libertário, hoje se observa inclusive sutis incentivos a formas conservadoras de relacionamentos humanos via análises desconectadas do contexto social em que as escolhas individuais se dão. Não deixa de ser lamentável essa regressão, considerando a importância histórica do pensamento liberal e libertário na história das conquistas das mulheres.

Citando o filósofo e economista David Schmidtz, em seu livro Os elementos da Justiça, uma teoria é como um mapa. Mapas não pretendem ser a realidade em si mesma, apenas uma representação adequada da realidade para nos orientar. De forma parecida, as teorias são representações úteis de um terreno (as sociedades em que vivemos). Nada além disso. Mapas não são perfeitos, teorias também não. Não raro, para não se perder no caminho, há que se consultar e comparar mapas diferentes.


E eles veem misandria até na Malévola

Por último, comento o artigo A Misandria de Malévola, de um cara chamado André Forastieri, publicado quando do lançamento do filme em junho do ano passado. Comento porque referenda o que disse sobre a recente circulação do termo "misandria" e porque se constitui num exemplo perfeito da vigarice dos que usam a palavra. Como acho que todos já viram o filme dá pra contar o roteiro sem estragar a festa. E pago o pato de escrevê-lo para ver quem acha a misandria da história. Quem achar leva um doce.
Era uma vez..... 
Um reino de fadas e outras criaturas da floresta sempre ameaçado pelo vizinho rei do reino dos humanos que queria lhes roubar as riquezas. Um menino do reino dos humanos, Stefan, consegue adentrar o reino das fadas onde conhece Malévola menina. Eles ficam amigos,  meio namorados, mas depois de crescidos, adolescentes, não mais se veem, pois o rapaz deixa de visitar a garota. Nesse ínterim, o rei dos humanos finalmente decide invadir o reino das fadas, mas é detido (e ferido) por Malévola, agora uma fada toda poderosa, e seus companheiros da floresta.

De volta ao castelo, no leito de morte, o rei promete o trono e a mão da filha a quem matasse Malévola. Stefan, agora adulto, por ganância, resolve se incumbir da tarefa. Volta ao reino das fadas, chama por Malévola, faz-se de bonzinho e romântico, dá-lhe uma bebida com sonífero, mas não consegue matá-la. Arranca-lhe, contudo, as asas e se vai. Apresenta as asas como prova de que teria matado a fada. Ele se torna rei, casa com a princesa, e Malévola acorda mutilada e sedenta de vingança. Quando sabe que o casal real vai batizar a filha, aparece no batizado e joga uma praga na bebê. Ao fazer 16 anos, ela tocará no fuso de uma roca de tear e cairá num sono mortal do qual só despertará se receber um beijo de amor verdadeiro. 
O pai desesperado manda queimar todos os teares do reino e guardar os pedaços no calabouço do castelo. Encarrega também três fadas benfazejas, mas atrapalhadas, de criar Aurora numa casinha no campo, onde pensa protegê-la da praga. Mas Malévola descobre onde está a menina e acaba acompanhando seu crescimento e se encantando por ela, abençoada que fora para ser cheia de graça e amada por todos. Quando a menina se aproxima dos dezesseis anos, Malévola tenta reverter o feitiço mas não consegue. Quando aparece um garoto, um príncipe, que se apaixona por Aurora, considera-o a chance de salvar a menina do feitiço. Mas a garota descobre quem a enfeitiçou e quem é seu pai. Volta para o palácio pouco antes da hora certa do feitiço funcionar e, hipnotizada, põe o dedo no fuso de uma roca de tear quebrada, que encontrou no calabouço do castelo,  adormecendo em seguida.

Malévola leva o príncipe adormecido para o castelo, e as fadas benfazejas o encaminham para beijar Aurora, mas o beijo não desperta a jovem. Malévola que observa a cena se aproxima do leito onde Aurora está deitada, arrepende-se do que fez, e beija a jovem na testa. Ela desperta. As duas tentam sair do castelo, mas são interceptadas pelo pai de Aurora que quer matar Malévola. Aurora encontra as asas de Malévola em uma caixa de vidro que deita ao chão. O vidro se quebra e as asas libertas procuram a dona que está tendo sérios problemas em vencer o rei e seu exército. Com as asas, porém, Malévola derrota o rei, as duas voltam para o reino das fadas, tudo também volta a ser feliz e cor-de-rosa como nos contos de fadas. Aurora é consagrada rainha do local e fica com o namoradinho. Malévola termina o filme voando entre as nuvens acompanhada do corvo Diaval.
E o doce vai para.... Cadê a "misandria" do enredo? O bicho comeu. Qual a mensagem da história? É o amor e o perdão não o ódio e a vingança que de fato fazem as pessoas transcenderem a dor das violências sofridas, das injustiças sofridas, que de fato cicratizam as feridas. Malévola foi traída e violentada por Stefan de quem decidiu se vingar amaldiçoando sua filha. Mas é exatamente essa filha, possuidora dos dons da beleza, da alegria e da amabilidade, que fazem Malévola amar de novo e se arrepender do que fez. Diante de Aurora adormecida, Malévola diz literalmente "eu estava tão perdida em meio ao ódio e a vingança, e, agora, perdi você para sempre" e promete proteger a menina enquanto viver. E a beija com seu beijo de amor verdadeiro que a faz despertar. Liberta do ódio, redimida pelo amor, Malévola volta ser íntegra, recuperando suas asas.

Pro picareta que escreveu o texto A Misandria de Malévola, contudo, a "misandria" é a mensagem de Malévola. É ler para crer:
Todo homem é um bruto traiçoeiro ou um idiota banana. Toda mulher é inocente, e se age mal, é por que um homem a levou a isso. Essa é a mensagem de Malévola. A nova versão da Bela Adormecida parece politicamente correta. É o contrário. O termo técnico é misandria.
O conceito está no dicionário há mais de meio século, mas ainda não faz parte do vocabulário de ninguém. Trabalho com palavras e também não conhecia. Trata-se do ódio ou desprezo ao sexo masculino. Como misoginia é o ódio contra o sexo feminino. Se não conhecia o termo, fiz minha parte para popularizar o conceito. Publicamos na editora Conrad o livro da feminista radical Valerie Solanas, SCUM Manifesto.
E ele cita um trecho do SCUM, de uma das feministas mais hardcore da história, que esculhamba os homens no mesmo nível que inúmeros filósofos esculhambaram mulheres séculos afora. Mas o que a fala radical de Solanas tem a ver com o filme em questão só mesmo a mente perturbada do autor conseguiu perceber. Tanto que acha que o SCUM deve ter inspirado a roteirista do filme, Linda Woolverton, que criou uma Malévola rainha dominadora, de couro negro, que "adota" uma princesinha púbere por quem tem uma obsessão nada maternal. Inclusive garante que, se o filme não fosse pra família, teria rolado um beijo lésbico entre elas. Pior, trata-se de amor correspondido porque é Aurora que resgata as asas de Malévola, tornando-a novamente plenamente poderosa. Então não só as mulheres podem se virar sem homens, mas também homens são supérfluos e perigosos. E termina o textículo, ruminando sobre a visão dos homens que as menininhas iam levar para casa depois de ver o filme.

Ao fim do texto, lamentei não ter lido a resenha na época em que foi escrita para ter podido dar ao autor um lençol onde enxugar tantas lágrimas masculinas de recalque. Porque não passa disso a "misandria" que Forastieri viu em Malévola. Puro recalque  por ter assistido um filme onde homens não são protagonistas e - horror dos horrores para machistas - as mulheres são solidárias na luta contra o vilão da história.

Se a descrição dos vilões das histórias como tudo que há de ruim, em qualquer mídia, fosse sinal de misandria, ia ser difícil achar um filme que não fosse misândrico, mesmo tendo homens protagonistas, como de praxe, e o roteiro e direção também feito por homens. Na quadrilogia Alien, a protagonista é mulher, e os roteiristas e diretores desses filmes passaram uma visão nada positiva do sexo masculino. Seriam então misândricos? Me poupe!!

Não dá pra deixar de observar ainda que o autor deve ser consumidor assíduo de vídeos de pornô "lésbico" e ficou viciado em ver sexo entre mulheres mesmo em relações onde só se enxerga amor materno ou fraterno. Sexualizar a relação entre Malévola e Aurora equivale a ver na relação do treinador de boxe com sua pupila, do filme Menina de Ouro, de Clint Eastwood, algo além de um sentimento paternal e filial.

Moral dessa longa história: toda vez que se ler ou ouvir um cara chamar mulheres, ou obras feitas por ou sobre mulheres, de "misândricas", é bem provável que seja porque, no filme da vida, ele se deu conta de que os homens não são mais os únicos protagonistas e - horror dos horrores pra ele, claro - as mulheres podem ser solidárias umas com as outras e derrotar juntas os vilões das histórias de todo o dia.

Abaixo o beijo de Malévola em Aurora e o resgate das asas de Malévola por Aurora Pruzomi chorarem. Beijim no ombro, guys!

Publicado originalmente em 03/02/2015



segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Alberta Hunter, grande dama do blues, canta The Love I have for you (O amor que tenho por você)

Alberta Hunter
Grande dama do blues e do jazz, Alberta Hunter  nasceu em Memphis, Tennessee, no dia primeiro de abril de 1895 e veio a falecer em Nova York no dia 17 de outubro de 1984, aos 89 anos. Foi cantora,  compositora, atriz e, curiosamente, também enfermeira. Iniciou sua carreira musical por volta de 1920,  tornando-se uma cantora de grande sucesso, aclamada pela crítica e pelo público, por seu talento e apresentações bem humoradas.

No início da década de 50, retirou-se dos palcos, tornando-se enfermeira em Nova York. Retornou apenas em 1977, novamente com grande sucesso. Mais informações sobre a diva no site Red Hot Jazz bem como no Clube de Jazz. No primeiro, inclusive, é possível baixar o áudio de alguma das músicas da cantora do início de sua carreira.

Resolvi lembrá-la porque me peguei cantando uma de suas músicas, The love I have for you, que faz parte da trilha sonora da minha vida. Abaixo segue a letra e o vídeo com a música bem como também a canção My Man Is Such A Handy Man, onde ela capricha no bom humor. Assisti na TV a gravação de algumas de suas apresentações, e pude constatar porque, ainda em vida, já havia se tornado uma lenda do blues. 

The Love I Have for You
Alberta Hunter

The love I have for you
makes my burdens light.
The love I have for you
makes my blue days bright.
Asleep or awake dear
your face I see,
your sunshine and smile is a guide for me.

The love I have for you
is within my heart.
The love I have for you
is a thing set apart.
You can search the universe,
but my dear if you do,
you’ll never find a love like the love I have for you.

I never fret a worry.
At no time am I blue.
I spend my days rejoicing
because of the love that I have for you.

You can search this universe
but my dear if you do
you’ll never find a love like the love I have for you.



Publicado originalmente em 15/01/2014

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

As Divas da década de 40: Tributo a Lauren Bacall!

Lauren Bacall (16/09/1924-12/08/2014)
Johnny Mercer (cujo centenário se completou em 18 de novembro) escreveu letras para alguns dos maiores compositores americanos, como, por exemplo, Henry Mancini em Moon River e Days of wine and roses, e  David Raksin em Laura (postei a música abaixo com Carly Simon). Clique aqui para saber mais sobre esse letrista.

De fato, Laura é música tema do filme Laura de 1944, um filme noir com Gene Tierney, Dana Andrews, Vincent Price, Clifton Webb e Judith Anderson. Como bom film noir, tem uma história detetivesca no enredo, romance e  um visual enevoado, como num sonho, somado aos contrastantes preto-e-branco. É super-elegante e traz a beleza etérea da pivô de toda a história, Laura, interpretada pela atriz Gene Tierney.

Ao ouvir a música e lembrar do filme e da atriz Gene Tierney, lembrei também de outra diva hollywoodiana dos anos 40, Lauren Bacall, que recebu o Oscar honorário, em 14/11/09, pelo conjunto de sua carreira.  Reunindo todas essas lembranças, ponderei sobre o registro de beleza das divas da década de 40, do cinema americano e internacional, e fiquei aqui divagando sobre aquela aura de magia que rodeava essas mulheres. Dizem que essa aura se deve ao trabalho de alguns fotógrafos geniais, mas acho que vai além disso. Essas mulheres tinham uma mistura de beleza, sensualidade e elegância que simplesmente foi para o brejo. Hoje também existem mulheres belíssimas passeando pelas telas de cinema, passarelas da moda, etc., mas aquele clima de mistério, beleza, sensualidade e elegância não é mais encontrado.

Sempre me amarrei nessas divas da década de 40, especialmente em Lauren Bacall. Confesso que o marido dela, Humphrey Boggart, foi a pessoa que mais invejei no mundo..rsss Que linda, nooossa! Também acho que a beleza da diva era algo não só exterior tanto que envelheceu, nunca fez plástica (como Liz Taylor), por exemplo, e permaneceu bonita até idade avançada, uma velha bonita e elegante.

Por fim, acho que deveriam solicitar  uma célula qualquer dela, preservar como patrimônio da humanidade, clonar, cultivar e depois distribuir aos fãs e aos carentes de beleza, para amenizar ao menos este mundo tão feio. Uma laurenzinha para mim, por favor!!

Abaixo, além da música Laura, lindíssima também, um vídeo com imagens de Lauren Bacall e outro com a famosa cena onde ela manda Humphrey Bogart assobiar, com aquela voz caliente. Aliás, o Oscar que recebeu foi merecido. À parte a beleza, ela também foi boa atriz.





Publicado originalmente em 22/11/09, republicado em 13/08/13 e 18/01/2015 e reeditado em 16/09/2016

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Hallelujah, de Leonard Cohen, com k.d.lang

Hallelujah - Aleluia - escrita pelo cantor e compositor canadense Leonard Cohen, em 1984, é considerada uma das maiores canções de todos os tempos, tendo sido gravada por inúmeros artistas desde seu surgimento.

Apesar do título, do jeito de hino religioso e das citações bíblicas, a letra fala mesmo é das vicissitudes da vida, de sexo e desencontros amorosos, de uma visão desalentada da existência que põe em dúvida se mesmo a arte pode nos salvar.

Nas citações bíblicas, o autor diz que soube que o Rei David encontrara um acorde especial para louvar a Deus, mas a mulher a quem fala não liga para música: "But you don't really care for music, Do you?" Relata ainda que a mulher (Betsabá) que seduz e desencaminha David, tira-lhe a força (corta-lhe o cabelo, referência à Sansão) através do sexo: "she cut your hair and from your lips she drew the halleujah (ela cortou seu cabelo e de seus lábios extraiu a aleluia - do orgasmo)".


No restante da canção, o autor continua vendo o amor como uma batalha de onde ele sai cativo e ferido "I saw your flag on the marble arch/love is not a victory march, it's a cold and it's a broken Hallelujah (Vi sua bandeira no monumento de mármore/o amor não é uma marcha vitoriosa, é uma aleluia fria e sofrida). Maybe there's a God above/And all I ever learned from love/Was how to shoot at someone who outdrew you/It's not a cry you can hear at night/It's not somebody who's seen the light/it's a cold and it's a broken Hallelujah (Talvez haja um Deus lá em cima/E tudo que eu sempre aprendi com o amor/foi como atirar contra alguém que já havia sacado primeiro/Não é uma súplica que você escuta à noite/Não é alguém que viu a luz/É uma aleluia fria e sofrida)".

Leonard Cohen escreveu duas versões de Hallelujah, tirando da segunda versão, de 1994, seu caráter mais espiritual (redentor) e enfatizando a evocação sexual, porém, de qualquer forma, manteve a mescla de religioso e profano da música, o contraste entre a melancólica descrição da vida, exposta na letra, e a qualidade de transcendência, contida nas Aleluias crescentes, que configuram sua beleza indiscutível.

Segundo consta, em artigo de Neil McCormik (junho/2008), para o Telegraph online, Coen declarou sobre sua famosa canção, no maior estilo Zen:
É isso aí. Não há saída para essa confusão. O único momento em que você consegue viver no meio desses conflitos absolutamente irreconciliáveis da vida é quando finalmente aceita tudo e diz ‘Olhe, eu não entendo nada disso, mas... Aleluia!'"
Gosto de todas as versões que diferentes artistas já deram a essa música, mas preferi postar esta da k.d.lang, que também consta de seu álbum Hymns of the 49th Parallel (2004), porque é uma das mais bonitas interpretações de Hallelujah. O próprio Leonard Cohen afirmou, em entrevista, ter ficado comovido com a performance de k.d.lang na ocasião registrada no vídeo abaixo (ele estava na plateia). Segundo o compositor, Lang levou a música a seu definitivo e bem-aventurado estado de perfeição.
 

Vale ainda salientar que há vários versos, escritos por Cohen, para essa mesma melodia, sendo a letra abaixo apenas uma das variantes conhecidas. E que muita gente canta esses versos em ordem diferente da apresentada na versão de k.d. lang ou mesmo inventa versos para Hallelujah.                            


Hallelujah – Leonard Cohen


I've heard there was a secret chord
that David played, and it pleased the Lord
But you don't really care for music, Do you?
It goes like this, the fourth, the fifth
The minor Fall, The major lift,
The baffled king composing, hallelujah

Hallelujah, Hallelujah
Hallelujah, Hallelujah

Your faith was strong but you needed proof
You saw her bathing on the roof
Her beauty in the moonlight overthrew you
She tied you to a kitchen chair, she broke your throne
she cut your hair and from your lips she drew the halleujah

Hallelujah, Hallelujah
Hallelujah, Hallelujah

Maybe I've been here before
I know this room, I've walked this floor
I used to live alone before I knew you
I've seen your flag on the marble arch
love is not a victory march
it's a cold and it's a broken Hallelujah

Hallelujah, Hallelujah
Hallelujah, Hallelujah

There was a time you let me know
What's real and going on below
but now you never show it to me, do you?
And remember when I moved in you
the holy dove was moving too
And every breath we drew was Hallelujah

Hallelujah, Hallelujah
Hallelujah, Hallelujah

Maybe there's a God above
And all I ever learned from love
Was how to shoot at someone who outdrew you
It's not a cry you can hear at night
It's not somebody who's seen the light
it's a cold and it's a broken Hallelujah

Hallelujah, Hallelujah
Hallelujah, Hallelujah
Hallelujah, Hallelujah
Hallelujah, Hallelujah
Hallelujah, Hallelujah
Hallelujah, Hallelujah…

Publicado originalmente em 08/04/2009

sábado, 6 de agosto de 2016

Aniversário de Adoniran Barbosa, o poeta do Bexiga!


Filho de imigrantes italianos, o jovem João Rubinato foi office-boy, carregador, faxineiro, encanador, pintor de paredes, garçom e caixeiro em loja de tecidos antes de se tornar o sambista nacionalmente conhecido como Adoniran Barbosa. João Rubinato tirou o nome Adoniran Barbosa da junção do nome de um amigo, chamado Adoniran Alves, com o sobrenome do compositor e cantor de sambas de breque Luís Barbosa (1910/1938).

Apaixonado pelo samba carioca que ouvia no rádio, iniciou a carreira artística, em 1934, vencendo um concurso de música de Carnaval, realizado pela prefeitura de São Paulo, com a marcha Dona Boa, e nunca mais parou. Com a persona artística de Adoniran Barbosa, desenvolveu um estilo próprio de samba, utilizando o dialeto dos paulistanos descendentes de italianos, que ocupavam os cortiços da região central da cidade, mesclado com muito humor. Trabalhou também no rádio e no cinema, mas foi realmente a música que o consagrou.

Hoje, Adoniran Barbosa faria 110 anos, se estivesse aqui presente em carne e osso. Já que isso não é mais possível que esteja em espírito com sua música tão especial, seu samba italianado que é a cara de São Paulo.
 
Abaixo, alguns de seus clássicos, como Saudosa Maloca, as Mariposa, Trem das Onze, Iracema (com a imensa Elis Regina que também faz sua versão de Saudosa Maloca), Samba no Bexiga e Bom dia, Tristeza, esta última uma curiosidade, já que se trata de uma música de fossa (como se dizia na época) cantada por outra ilustre finada, a gata nada mansa Maysa. Na verdade, Adoniran musicou uma letra que lhe foi passada por Vinícius de Morais, o que mostra também o ecletismo do poeta do Bexiga.

Meu humilde tributo ao grande João Rubinato Adoniran Barbosa e sua música maravilhosa que sempre me divertiu e emocionou.

quinta-feira, 19 de maio de 2016

Fernanda Montenegro fala da dependência da classe artística em relação ao dinheiro público


No bojo da discussão sobre a transformação do Ministério da Cultura em Secretaria da Cultura, o que tem provocado pitis mil na classe artística brasileira, a grande dama do teatro, Fernanda Montenegro, esclarece a questão, embora constrangida.

Fernanda Montenegro elucida a questão: ‘nós ficamos dependentes do dinheiro público’ (veja o vídeo)

A discussão em torno da extinção do Ministério da Cultura, transferindo as atribuições para o Ministério da Educação, que tem provocado inúmeras críticas, principalmente do meio artístico, recebeu uma explicação extremamente plausível da mais premiada atriz brasileira de todos os tempos, considerada tanto pelo público quanto pela crítica, como a dama do palco da dramaturgia brasileira.

Com muito sentimento e emoção, Fernanda Montenegro diz que os artistas ficaram dependentes do dinheiro público.

Ela explica que outrora para montar os espetáculos ‘os artistas iam aos bancos, se endividavam e o público vinha. Depois, isso foi diminuindo, os governos foram tomando conta, o poder econômico em cima do teatro, das artes cênicas e nós fomos ficando dependentes, porque era dinheiro público e o ingresso tinha que ser aviltado, mais barato’.

Ela conclui dizendo que ‘hoje em dia o pipoqueiro e o guardador de carros ganham mais do que o ator que está em cena’.

Veja o vídeo:



Fonte: Jornal da Cidade, 17/05/2016

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