segunda-feira, 27 de março de 2017

"Misandria": uma grande zoeira e o sempre renovado ataque à autonomia das mulheres

A misandria só existe mesmo nos dicionários

Em páginas no facebook, onde se discutem tópicos referentes às questões das mulheres em geral, uma palavrinha vem rolando na boca de mulheres e homens, geralmente relacionada ao tema da participação de homens no feminismo (sic). Trata-se da palavra misandria, que fez suas primeiras aparições em língua inglesa em 1878 (para o Webster, 1909) e vem do grego miso= "ódio" + andros= "relativo ao homem, sexo masculino". Posteriormente, ainda em língua inglesa, pipocou em um artigo ou outro até se tornar mais frequente a partir dos anos 50 do século passado, alavancado sobretudo por grupos antifeministas ou masculinistas.

Em português brasileiro, online ao menos, não aparece em nosso dicionário mais famoso, o Aurélio, nem no Michaelis, nem no Aulette. Encontrei o verbete apenas no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa como: mi·san·dri·a (miso- + grego anér, andrós, homem + -ia), substantivo feminino = Aversão aos ou desprezo pelos indivíduos do sexo masculino. Isso significa que o termo ainda não tem grande circulação fora do âmbito dos movimentos e redes sociais.

De qualquer forma, "misandria" só existe mesmo em dicionários (talvez também agora em glossário psiquiátrico como a misoginia). Fora desse âmbito, ela não tem realidade social, ao contrário de sua equivalente misoginia que possui bastante concretude. Algumas falas iradas que mulheres, indignadas com a sociedade patriarcal, dirigem a homens, genericamente falando, podem, dependendo do contexto, ser realmente caracterizadas como sexistas, mas "misandria" é outra coisa. Mulheres não têm poder para ser "misândricas" como os homens têm para ser misóginos. Estabelecer simetria entre os dois termos ou é ignorância ou má-fé machista.

Misoginia não são apenas falas grosseiras ou depreciativas dirigidas a mulheres, o que poderíamos considerar mais como sexismo, dependendo do grau de depreciação. Misoginia é o ódio à mulher concretizado em inúmeras formas de violência contra o sexo feminino que vão desde restrições civis a atos de barbárie. Sem falar no monopólio masculino de várias áreas profissionais e de conhecimento.

Citando alguns exemplos, misoginia é a negação do direito ao voto e ao estudo que ainda existe em vários países, do direito à propriedade, do direito a transitar sozinha, do direito de trabalhar remuneradamente, do direito de escolher como se vestir, do direito de escolher com quem casar, do direito a participar da política, do direito sobre o próprio corpo (via criminalização do aborto) até a barbárie do estupro, do espancamento doméstico ou público, do açoitamento, da mutilação genital (130 milhões de vítimas no mundo) e de outros partes do corpo, além do assassinato.

A propósito da definição de misoginia: 70% das mulheres sofrem algum tipo de agressão durante suas vidas cometida por homens

Backlash: a acusação de odiar os homens acompanha as feministas desde seus primeiros passos

Por isso mesmo, quando comecei a ouvir essa palavrinha sendo jogada pra lá e pra cá contra ativistas, senti logo o cheiro azedo do velho e manjado backlash antifeminista. Backlash significa reação contrária, contra-ataque, no caso aos direitos das mulheres. A feminista americana Susan Faludi escreveu um clássico sobre o assunto chamado Backlash: o contra-ataque na guerra não declarada contra as mulheres (clique no título para baixar o livro), traduzido para o português em 2001 e que continua bem atual. Vale a leitura.

Os sinais de mais um surto de backlash antifeminista são bem evidentes sobretudo nas redes sociais. São os conservadores com seu feminazismo (comparando feminismo com uma das mais hediondas e antifeministas ideologias da história humana) e suas sabujas amestradas (mulheres conservadoras) culpando o feminismo por "supostamente obrigá-las a trabalhar remuneradamente quando elas queriam mesmo é ficar em casa para cuidar dos seus machos". (Então, anda difícil achar esse tipo de macho que sustenta donas de casa e a culpa é do feminismo!?).

São alguns rapazes "progressistas" que posam de interessados em feminismo e em serem aliados das mulheres em suas causas, mas que ou querem que as mulheres ensinem feminismo pra eles (vamos combinar o preço da hora-aula então) ou, mais cara de pau ainda, leem sobre feminismo, começam a se achar sabichões no assunto e passam - pasmem - a querer dizer para feministas o que é ser feminista ou não, qual o feminismo verdadeiro ou não. E, quando rechaçados em suas pretensões (machistas recicladas como "feministas"), fazem-se de ofendidos e saem choramingando que foram vítimas de "misandria". São as já famosas male tears (lágrimas masculinas), chororô masculino por descobrir que o mundo não gira mais  apenas em torno dos bolinhas.

Uma procissão de sufragistas: o direito ao voto feminino
caracterizado como um rebaixamento dos homens
Entretanto, "misandria" é apenas um novo nome para uma velha mania de acusar as mulheres, que lutam por seus direitos, de odiar os homens. De odiar os homens, de ser feias, mal-amadas, agressivas, amarguradas, masculinizadas, sapatonas, contra a família. Na primeira onda do feminismo, até o início do século passado, as vítimas desse backlash, dessa campanha injuriosa, foram as sufragistas, as ativistas que buscavam conquistar o direito de voto para as mulheres. O que votar tem a ver com odiar os homens? Nada, né? Mulheres e homens de hoje seriam capazes de fazer tal associação? Nem o Bolsonaro. Mas, na época da luta pelo voto, esse backlash voou solto. 

Décadas depois, foi a vez das feministas da segunda onda (anos 60 em diante), da emancipação econômica, do salário igual por trabalho igual, da descriminação do aborto, da liberação da sexualidade feminina, enfrentarem os mesmos ataques. Mais uma vez acusadas de odiar os homens, de ser feias, mal-amadas, agressivas, amarguradas, masculinizadas, sapatonas, contra a família. A diferença, em relação ao backlash dirigido às sufragistas, ficou por conta de se acusar abertamente as feministas de serem lésbicas em vez de falar em mulheres masculinizadas.

Aqui, no Brasil, entrou para a História o episódio de uma fulana do então proscrito Movimento Revolucionário 8 de outubro - MR-8 (e do jornal Hora do Povo) que tentou expulsar as lésbicas do III Congresso da Mulher Paulista (1981) por estas supostamente não serem mulheres e estarem encaminhando as feministas burguesas para o mau caminho. Por causa desse tipo de backlash, o movimento feminista demorou anos (no Brasil, duas décadas) para apoiar oficialmente os direitos da mulheres homossexuais. O apoio foi registrado, graças a minha intervenção, na plataforma feminista resultante dos debates da Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras (junho de 2002)

Agora, na chamada terceira onda do feminismo (anos 90 até hoje), com enfoque nas desigualdades específicas de idade, etnia, orientação sexual, classe, etc. (as tais interseccionalidades,) somadas a uma maior integração com a academia e visibilidade na mídia, novamente se veem as feministas acusadas de odiar os homens, de ser feias, mal-amadas (falta de rola), agressivas, amarguradas, masculinizadas, sapatonas, contra a família. As diferenças, em relação às campanhas antifeministas anteriores, são que:
  • primeiro, agora, conjuraram o suposto ódio aos homens na palavra "misandria", alçada à moda, na última década, por grupos americanos antifeministas (Men’s Rights Activism e Men's Rights Movement), decididos a reverter conquistas das mulheres se fazendo de vítimas do feminismo.
  • Segundo, que, ao contrário de recuar diante de mais esse surto de backlash, como no passado, muitas feministas atuais decidiram assumir que são "misândricas", a maioria para zoar em cima da absurda tentativa masculinista de estabelecer simetria entre "misandria" e misoginia e uma minoria como protesto contra o sistema patriarcal ou para simplesmente desopilar o fígado, doente de tanto engolir machismos nessa vida, dizendo desaforos a homens.

Separando alhos de bugalhos: homens feministos e homens antipatriarcais

Seja como for, trata-se de reação, neste caso realmente necessária, contra o verdadeiro assalto que homens ditos progressistas (com apoio de suas capitãs do mato) vêm fazendo ao feminismo, insistindo em que "eles têm o direito de opinar no movimento feminista (por serem pela igualdade entre os sexos...hã, hã...)", "porque, errando ou acertando, no debate feminista, homem pode 'contribuir' para o movimento e até que "feminismo não é das mulheres". São frases que colhi em redes sociais e que, com algumas variações, são representativas da costumeira falta de senso de limites da mentalidade machista.

Porque, obviamente, esses homens não são aliados da luta das mulheres coisa nenhuma. Estão agindo com base na velha (de)formação machista que receberam, tentando SIM roubar o protagonismo das mulheres no movimento que elas criaram para lutar exatamente contra o machismo. Ou será que ainda restam dúvidas diante de uma frase como "o feminismo não é das mulheres"? Aliás, eu mesma presenciei a fala de um cara dizendo para uma moça, a propósito de um texto que ela escrevera sobre feminismo e capitalismo, que o feminismo dela não era verdadeiro e o dele é que era!!!

Homens são adestrados para não deixar espaços onde as mulheres possam estar sozinhas (pois ficam fora de seu controle); são adestrados para achar que as mulheres têm que servi-los e amá-los, apesar de eles terem criado um mundo que trata as mulheres a socos e pontapés. É esse adestramento que está por trás dessa historinha de participação masculina no feminismo a fim de contribuir com a luta das mulheres (cavalo de Tróia), da historinha de feminista ensinar feminismo a homens (mulher tem que servir ao homem) e amá-los incondicionalmente (foram adestradas para isso, o que falhou?)

Mas vamos combinar, mulher nenhuma tem obrigação de ensinar homem algum sobre feminismo. No máximo, se tiver, pode passar bibliografia, que isso não configura exploração. O resto ele que se vire no google como qualquer outro mortal. Mulher não tem obrigação de gostar de homem. Então, homens construíram um sistema que exala desprezo e ódio pelas mulheres por todos os poros e as mulheres nem podem expressar seu ódio por ele? Portanto, não tem essa de dizer que as que dizem não gostar de homens não são feministas. Como não? Porque escaparam do adestramento para amar incondicionalmente quem nada faz para ser amável? Se não querem ser odiados, não sejam odiáveis. Se querem ser amados, que sejam por seus méritos, não na base de todo o tipo de coação. Amor de verdade não combina com submissão.

Coletivos de Homens Antipatriarcais (na Argentina)
Por outro lado, existem sim homens pró-feministas, antipatriarcais, mas são aqueles homens que buscam desconstruir em si mesmos os condicionamentos que receberam. Um homem antipatriarcal respeita o direito de mulheres não quererem conversa com ele seja sobre o quer for, incluindo feminismo. Assim como entende que uma mulher pode não querer se relacionar sexualmente com ele. Entende o significado da palavra NÃO.

Em vez de ficar enchendo o saco de quem não tem esse apêndice, se realmente se interessa pelo tema, vai à luta, busca informações sobre o mesmo, constrói sites sobre gênero e feminismo (vi alguns) e cria grupos para discutir com outros homens outros modelos de ser homem em vez de querer forçar presença onde não é bem-vindo. Inclusive porque também sabe que homens e mulheres convivem em muitos outros ambientes onde se pode discutir feminismo sem ser o movimento feminista. Fora os espaços interseccionais que podem ser criados para esse fim COM MULHERES QUE SE DISPONHAM A CONVERSAR. 

O homem antipatriarcal também entende porque algumas mulheres detestam homens, embora pessoalmente isso lhe seja doloroso, e busca desarmar a bomba patriarcal que criou esse sintoma em vez de simplesmente rotular essas mulheres de loucas necessitadas de tratamento. Chamar mulheres que não gostam de homens de loucas é negar a realidade objetiva do mundo em que vivemos. De repente, estão mais é zonzas de dolorosa lucidez. Loucas são as estruturas do sistema que os homens criaram e não as mulheres que as odeiam.

Vale lembrar que, além das próprias ações violentas cometidas por homens contra o sexo feminino, o patriarcado ainda onera as mulheres com o peso de superar o ódio que ele mesmo provoca. Sobretudo para mulheres que experimentaram diretamente a misoginia, há de se convir que não é fácil superar o rancor provocado pela violência sofrida, embora transcendê-lo seja fundamental para seu próprio bem, para sua integridade psicológica.

Tratamento igual para comportamento igual (ou separando alhos de bugalhos)     
                      
Pessoalmente, embora já tenha sido até acusada falsamente de querer levar homens para sacrossantos espaços feministas, sempre considerei o separatismo feminista cláusula pétrea (e não só o feminista). Feminismo é coisa de mulher, como gravidez e menstruação. Sempre fui contra a participação de homens em grupos feministas, encontros feministas, e continuo sendo. O tema desse artigo, aliás, só reitera a minha posição. Os espaços feministas são para mulheres conviverem com outras mulheres, tentar a difícil tarefa de chegarem a denominadores comuns de luta, desconstruírem o adestramento para a rivalidade entre mulheres que recebem desde o berço.

Mulheres têm que priorizar mulheres e não homens, como têm feito nos últimos séculos. Mulheres têm que sobretudo priorizar a si mesmas, ser saudavelmente individualistas em contraposição à educação para a abnegação feminina, esse papo furado de se sacrificar por homens, filhos, as religiões dos homens, as "causas" dos homens ou seja lá por quem for.

Por outro lado, contudo, como sei separar alhos de bugalhos, nunca vi problemas de trabalhar com homens em outros movimentos e em outras instâncias, tendo, com uns, bons momentos de coleguismo e produtividade em ações comuns e, com outros, péssimos momentos. De uma forma geral, encaro os homens primeiro como indivíduos e não como integrantes do patriarcado opressor. Sei que a floresta patriarcal é densa, mas consigo ver que há diferenças entre as árvores. E todo mundo é inocente até prova em contrário.

Além disso, alguns homens também são vítimas desse mesmo sistema que nos aflige (sobretudo gays). Retrospectivamente, vale também lembrar que alguns homens, embora ultraminoritários, levantaram suas vozes pelos direitos das mulheres, quando elas ainda não tinham voz pública. Depois que passaram a ter, continuaram apoiando as bandeiras que as mulheres decidiram levantar sem querer decidir por elas que bandeiras são essas.

Fora ainda que há um bocado de mulher cúmplice da opressão das mulheres. Mulheres conservadoras, mesmo quando não se assumem como tais, têm um papel deletério nas lutas pela autonomia das mulheres. Não se contentam em ser medíocres e subservientes. Querem que todas sejam medíocres  e subservientes como elas. Não dá, portanto, para dividir o mundo em bandidos e mocinhas simplesmente.

Por isso, trato homens como iguais desde que como igual me tratem de forma sincera. Entretanto,
 não banco a Poliana jogando o jogo da contente porque conquistamos algumas igualdades formais. Infelizmente, no cotidiano das inter-relações pessoais, o machismo continua são e salvo e raivoso. É só dar uma olhada nas redes sociais e no atual backlash antifeminista para constatar isso. Na Inglaterra, já apareceu até partido antifeminista. Ser realista não configura nenhuma "misandria".

Dito posto, nesta situação em particular, endosso completamente o escracho que a nova geração de feministas vem fazendo dos caras de paus que querem mandar em mulher até no feminismo, posando de solidários com a luta das mulheres (no caso dos progressistas). Ao contrário das gerações de feministas anteriores, a atual não parece se intimidar com a acusação de "odiadora de homens" que sempre acompanhou a turma. Pelo contrário, parece que quanto mais as chamam de "misândricas" mais elas se assumem como tais e mais desancam uzomi (como dizem).

Me pergunto apenas se a zoação não vai longe demais quando leio um texto sério, desconstruindo objetivamente a suposta misandria, mas que termina com a autora assinando "fulana de tal, devotadamente misândrica". À guisa de comparação, é como se ativistas LGBT decidissem se dizer heterofóbicos de gozação porque um bando de manés conservadores saem até em passeata se dizendo vítimas de uma tal "heterofobia" tão real quanto a tal "misandria".

Parece que as garotas partem do princípio de que, já que vão nos xingar de qualquer forma de qualquer coisa, vamos zoando enquanto der. Mas tenho minhas dúvidas se isso não alimenta ainda mais a falácia da "misandria". Afinal quantas pessoas percebem o sarcasmo desse posicionamento? Não é possível só zoar, com todo o poder corrosivo que o humor tem contra os pequenos e grandes tiranos, sem correr o risco de parecer incoerente?

Esquerda e Direita também são filhas do Patriarcado

Vale lembrar ainda que todo esse backlash e sua correspondente zoeira não têm a ver com a surrada dicotomia esquerda-direita. O sistema patriarcal é o conjunto maior que engloba os outros sistemas político-econômicos e filosóficos criados pelos homens nos últimos milênios. Embora a citada zoeira das feministas se dirija também à direita conservadora e seu feminazismo, seu foco maior são os ditos progressistas, esquerdistas, libertários, que querem ser feministas à fórceps. Vale notar que os chamados esquerdomachos também usam a desqualicação "feminazi" dos conservadores contra as jovens feministas.

Mal fazem 30 anos que a esquerda tradicional deixou de dizer que feminismo é coisa de burguesa desocupada (mais uma desqualificação) e luta divisionista da luta maior, a luta de classes. Ainda hoje se encontram esquerdistas do gênero dizendo essa abóbora. Agora, parece que aderiram a estratégia do "se não pode vencê-las, junte-se a elas". Como a história ensina, sabe-se bem para quê. Pena que tantas ainda botem fé nessa esquerda fóssil e suas ideias arqueológicas.

Os libertários (anarquistas de esquerda) tiveram correntes promotoras da igualdade entre os sexos e a liberdade sexual desde seus primórdios, mas vale salientar que o termo libertário virou uma espécie de palavra-bom-bril que se presta a mil e uma utilidades ideológicas, chegando a ser usada hoje como autodenominação até de alguns conservadores. Basta que o cara se diga contra o boggieman Estado (o bicho-papão Estado) e já passa a se proclamar libertário, embora seja liberticida em vários outros aspectos. 

Esse sequestro do termo libertário até por conservadores tem a ver com a história política americana. Como por lá sociais-democratas passaram a se dizer liberais (desde os anos 30), liberais passaram a se denominar libertários para se diferenciar. Acontece que o liberalismo, ao longo de sua trajetória secular, saiu de sua origem de esquerda, empurrado pelo socialismo, caminhou para o centro do espectro político e acabou sequestrado pelo conservadorismo com quem passou a fazer frente ao comunismo (bem de passagem). 

Essa má companhia de certa forma imantou as tribos liberais (libertários, anarcocapitalistas, austríacos, minarquistas, liberais sociais...) de um ranço conservador que se observa em declarações, por exemplo, contra o casamento LGBT e em apoio a supostas escolhas da mulher entre perspectivas libertárias e conservadoras como se fossem equivalentes.

Contra o casamento LGBT a desculpa é que se deve lutar para o Estado não mais legislar sobre as relações humanas em vez de ampliar seu alcance. Como tal proposta é de remota concretização, na prática significa negar o acesso ao instituto civil do casamento para casais de mesmo sexo. 

Quanto às supostas escolhas da mulher, compara-se ser dona de casa com ser uma profissional remunerada, embora a primeira opção deixe a mulher numa situação de particular hipossuficiência e vulnerabilidade enquanto a outra a habilite a ser sujeito da própria vida dentro dos limites de nossas sociedades. Na mesma perspectiva, afirma-se que a mulher muçulmana tem o direito de andar de burca, no mundo ocidental, desconsiderando a situação de imigrante dessa mulher ainda sob o tacão das sharias da vida, como se estivesse no seu país de origem. 

Desconsidera-se que a burca,  niqabs e congêneres são objetivamente um mal, porque a misoginia é objetivamente errada. E essas vestes são misoginia pura, negação da presença das mulheres na esfera pública que só podem transitar como se não existissem (sem identidade visível). Fora os problemas físicos que esses trajes acarretam. A jornalista norueguesa Asne Seierstad, que escreveu O livreiro de Cabul, assim descreve o uso da burca que experimentou quando de sua passagem pelo Afeganistão:
A burca aperta e dá dor de cabeça. Enxerga-se mal através da rede bordada. É abafada e faz suar. É preciso tomar cuidado o tempo todo onde pisar, porque não podemos ver nossos pés. Era um alívio tirá-la ao chegar em casa.”
Não custa lembrar ainda que, na época da monarquia secular do xá Mohamed Reza Pahlevi (anos 60 e 70), no Irã, quando puderam escolher como se vestir, as mulheres, em geral, optaram por aposentar as burcas, niqabs e outras aberrações. Resumindo, escolhas não se dão num vácuo social e político. Muitas escolhas estão mais para escolhas de Sofia.

Em outras palavras, sob o nome libertário, hoje se observa inclusive sutis incentivos a formas conservadoras de relacionamentos humanos via análises desconectadas do contexto social em que as escolhas individuais se dão. Não deixa de ser lamentável essa regressão, considerando a importância histórica do pensamento liberal e libertário na história das conquistas das mulheres.

Citando o filósofo e economista David Schmidtz, em seu livro Os elementos da Justiça, uma teoria é como um mapa. Mapas não pretendem ser a realidade em si mesma, apenas uma representação adequada da realidade para nos orientar. De forma parecida, as teorias são representações úteis de um terreno (as sociedades em que vivemos). Nada além disso. Mapas não são perfeitos, teorias também não. Não raro, para não se perder no caminho, há que se consultar e comparar mapas diferentes.


E eles veem misandria até na Malévola

Por último, comento o artigo A Misandria de Malévola, de um cara chamado André Forastieri, publicado quando do lançamento do filme em junho do ano passado. Comento porque referenda o que disse sobre a recente circulação do termo "misandria" e porque se constitui num exemplo perfeito da vigarice dos que usam a palavra. Como acho que todos já viram o filme dá pra contar o roteiro sem estragar a festa. E pago o pato de escrevê-lo para ver quem acha a misandria da história. Quem achar leva um doce.
Era uma vez..... 
Um reino de fadas e outras criaturas da floresta sempre ameaçado pelo vizinho rei do reino dos humanos que queria lhes roubar as riquezas. Um menino do reino dos humanos, Stefan, consegue adentrar o reino das fadas onde conhece Malévola menina. Eles ficam amigos,  meio namorados, mas depois de crescidos, adolescentes, não mais se veem, pois o rapaz deixa de visitar a garota. Nesse ínterim, o rei dos humanos finalmente decide invadir o reino das fadas, mas é detido (e ferido) por Malévola, agora uma fada toda poderosa, e seus companheiros da floresta.

De volta ao castelo, no leito de morte, o rei promete o trono e a mão da filha a quem matasse Malévola. Stefan, agora adulto, por ganância, resolve se incumbir da tarefa. Volta ao reino das fadas, chama por Malévola, faz-se de bonzinho e romântico, dá-lhe uma bebida com sonífero, mas não consegue matá-la. Arranca-lhe, contudo, as asas e se vai. Apresenta as asas como prova de que teria matado a fada. Ele se torna rei, casa com a princesa, e Malévola acorda mutilada e sedenta de vingança. Quando sabe que o casal real vai batizar a filha, aparece no batizado e joga uma praga na bebê. Ao fazer 16 anos, ela tocará no fuso de uma roca de tear e cairá num sono mortal do qual só despertará se receber um beijo de amor verdadeiro. 
O pai desesperado manda queimar todos os teares do reino e guardar os pedaços no calabouço do castelo. Encarrega também três fadas benfazejas, mas atrapalhadas, de criar Aurora numa casinha no campo, onde pensa protegê-la da praga. Mas Malévola descobre onde está a menina e acaba acompanhando seu crescimento e se encantando por ela, abençoada que fora para ser cheia de graça e amada por todos. Quando a menina se aproxima dos dezesseis anos, Malévola tenta reverter o feitiço mas não consegue. Quando aparece um garoto, um príncipe, que se apaixona por Aurora, considera-o a chance de salvar a menina do feitiço. Mas a garota descobre quem a enfeitiçou e quem é seu pai. Volta para o palácio pouco antes da hora certa do feitiço funcionar e, hipnotizada, põe o dedo no fuso de uma roca de tear quebrada, que encontrou no calabouço do castelo,  adormecendo em seguida.

Malévola leva o príncipe adormecido para o castelo, e as fadas benfazejas o encaminham para beijar Aurora, mas o beijo não desperta a jovem. Malévola que observa a cena se aproxima do leito onde Aurora está deitada, arrepende-se do que fez, e beija a jovem na testa. Ela desperta. As duas tentam sair do castelo, mas são interceptadas pelo pai de Aurora que quer matar Malévola. Aurora encontra as asas de Malévola em uma caixa de vidro que deita ao chão. O vidro se quebra e as asas libertas procuram a dona que está tendo sérios problemas em vencer o rei e seu exército. Com as asas, porém, Malévola derrota o rei, as duas voltam para o reino das fadas, tudo também volta a ser feliz e cor-de-rosa como nos contos de fadas. Aurora é consagrada rainha do local e fica com o namoradinho. Malévola termina o filme voando entre as nuvens acompanhada do corvo Diaval.
E o doce vai para.... Cadê a "misandria" do enredo? O bicho comeu. Qual a mensagem da história? É o amor e o perdão não o ódio e a vingança que de fato fazem as pessoas transcenderem a dor das violências sofridas, das injustiças sofridas, que de fato cicratizam as feridas. Malévola foi traída e violentada por Stefan de quem decidiu se vingar amaldiçoando sua filha. Mas é exatamente essa filha, possuidora dos dons da beleza, da alegria e da amabilidade, que fazem Malévola amar de novo e se arrepender do que fez. Diante de Aurora adormecida, Malévola diz literalmente "eu estava tão perdida em meio ao ódio e a vingança, e, agora, perdi você para sempre" e promete proteger a menina enquanto viver. E a beija com seu beijo de amor verdadeiro que a faz despertar. Liberta do ódio, redimida pelo amor, Malévola volta ser íntegra, recuperando suas asas.

Pro picareta que escreveu o texto A Misandria de Malévola, contudo, a "misandria" é a mensagem de Malévola. É ler para crer:
Todo homem é um bruto traiçoeiro ou um idiota banana. Toda mulher é inocente, e se age mal, é por que um homem a levou a isso. Essa é a mensagem de Malévola. A nova versão da Bela Adormecida parece politicamente correta. É o contrário. O termo técnico é misandria.
O conceito está no dicionário há mais de meio século, mas ainda não faz parte do vocabulário de ninguém. Trabalho com palavras e também não conhecia. Trata-se do ódio ou desprezo ao sexo masculino. Como misoginia é o ódio contra o sexo feminino. Se não conhecia o termo, fiz minha parte para popularizar o conceito. Publicamos na editora Conrad o livro da feminista radical Valerie Solanas, SCUM Manifesto.
E ele cita um trecho do SCUM, de uma das feministas mais hardcore da história, que esculhamba os homens no mesmo nível que inúmeros filósofos esculhambaram mulheres séculos afora. Mas o que a fala radical de Solanas tem a ver com o filme em questão só mesmo a mente perturbada do autor conseguiu perceber. Tanto que acha que o SCUM deve ter inspirado a roteirista do filme, Linda Woolverton, que criou uma Malévola rainha dominadora, de couro negro, que "adota" uma princesinha púbere por quem tem uma obsessão nada maternal. Inclusive garante que, se o filme não fosse pra família, teria rolado um beijo lésbico entre elas. Pior, trata-se de amor correspondido porque é Aurora que resgata as asas de Malévola, tornando-a novamente plenamente poderosa. Então não só as mulheres podem se virar sem homens, mas também homens são supérfluos e perigosos. E termina o textículo, ruminando sobre a visão dos homens que as menininhas iam levar para casa depois de ver o filme.

Ao fim do texto, lamentei não ter lido a resenha na época em que foi escrita para ter podido dar ao autor um lençol onde enxugar tantas lágrimas masculinas de recalque. Porque não passa disso a "misandria" que Forastieri viu em Malévola. Puro recalque  por ter assistido um filme onde homens não são protagonistas e - horror dos horrores para machistas - as mulheres são solidárias na luta contra o vilão da história.

Se a descrição dos vilões das histórias como tudo que há de ruim, em qualquer mídia, fosse sinal de misandria, ia ser difícil achar um filme que não fosse misândrico, mesmo tendo homens protagonistas, como de praxe, e o roteiro e direção também feito por homens. Na quadrilogia Alien, a protagonista é mulher, e os roteiristas e diretores desses filmes passaram uma visão nada positiva do sexo masculino. Seriam então misândricos? Me poupe!!

Não dá pra deixar de observar ainda que o autor deve ser consumidor assíduo de vídeos de pornô "lésbico" e ficou viciado em ver sexo entre mulheres mesmo em relações onde só se enxerga amor materno ou fraterno. Sexualizar a relação entre Malévola e Aurora equivale a ver na relação do treinador de boxe com sua pupila, do filme Menina de Ouro, de Clint Eastwood, algo além de um sentimento paternal e filial.

Moral dessa longa história: toda vez que se ler ou ouvir um cara chamar mulheres, ou obras feitas por ou sobre mulheres, de "misândricas", é bem provável que seja porque, no filme da vida, ele se deu conta de que os homens não são mais os únicos protagonistas e - horror dos horrores pra ele, claro - as mulheres podem ser solidárias umas com as outras e derrotar juntas os vilões das histórias de todo o dia.

Abaixo o beijo de Malévola em Aurora e o resgate das asas de Malévola por Aurora Pruzomi chorarem. Beijim no ombro, guys!

Publicado originalmente em 03/02/2015



5 comentários:

Intenso. Mas os caras acham que quando mulheres priorizam mulheres estão excluindo eles. E tem muita mulher que concorda. Enquanto os homens são super-unidos, as mulheres são desunidas. Isso explica o patriarcado mais do que qualquer texto acadêmico. Bjk

Mas não dá mesmo pra dividir as coisas na base do bandido e mocinha porque tem muita mulher que cria os filhos para serem machistas e as filhas submissas idiotas como as mães. Por isso concordo que se tem que priorizar ensinar feminismo para as mulheres. Sendo feministas elas vão criar os filhos de outro modo, quebrando o círculo vicioso do machismo. Parabéns pela qualidade do texto.

Típico texto de alguém que acha homem é um ser que apenas têm vontade de fazer sexo com qualquer uma sem nem perguntar antes,e que leva sua "masculinidade" acima de tudo...
Uma pena não conhecerem homens realmente bons nesse mundo..

Deixa eu ver se entendi. Você dá a definição de misandria de acordo com o dicionário, alude a situações onde mulheres (por culpa dos homens, claro) demonstram a mesma definição da palavra, mas diz que não, que trata-se de sexismo. E pq? Porque ela não existe fora dos dicionários, é preciso mulheres com poder sobre homens para haver misandria.
Olha, não é a misandria que não existe fora do dicionário, é a SUA definição que não existe dentro dele. Quem exibe ódio e ódio contra homens, é misândrico. Ponto. Vc tá querendo distorcer a definição de uma palavra para atender a sua visão.
Mas sou homem, então vc pode usar a carta do "homem querendo dar palpite no feminismo" a vontade, já que lógica agora tem sexo. Não passo de um machista dizendo como vc tem que pensar.

A pena não é elas não conhecerem homens realmente bons, é serem pouco capazes de os enxergarem. O fanatismo ideológico é tamanho que se assemelha ao religioso. São muitos meios de ser herege e quase nenhum de ser santo, ou um homem bom. No final, não vai ter homem que vai escapar do inferno. hahaha

Postar um comentário

Compartilhe

Twitter Delicious Facebook Digg Stumbleupon Favorites