terça-feira, 6 de abril de 2021

Neurocientista Gina Rippon lança livro que desbanca suposta inferioridade do cérebro feminino

Neurocientista Gina Rippon

 Por muitos séculos, a ciência tem sido utilizada para sustentar que as mulheres são inferiores aos homens. Teorias nesse sentido foram criadas e propagadas por figuras como Aristóteles, Charles Darwin, Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietzsche. Alimentada desde a Idade Antiga, essa visão persistiu mesmo com o avanço científico. A partir do século 18, diversas técnicas e metodologias da medicina foram criadas a fim de estudar as diferenças (muitas vezes inexistentes) entre os sexos masculino e feminino — quase sempre para justificar a desigualdade sexual na sociedade da época, que marginalizava mulheres e outras minorias.

Trabalhos tidos como científicos mediam crânios de mulheres a fim de alegar sua incapacidade intelectual e argumentar por que elas seriam menos racionais e mais emocionais. Apesar de soarem absurdas atualmente, muitos pesquisadores ainda insistem em encontrar diferenças funcionais no cérebro de homens e mulheres. Hoje, isso é feito a partir de estudos com técnicas de neuroimagem.
Em geral, eles [os autores] não são especialistas na área, mas se propõem a explicar problemas comportamentais em relacionamentos ou no trabalho pautando-se pela diferença entre os sexos”, afirma a neurocientista britânica Gina Rippon.
Professora da Universidade Aston, no Reino Unido, Rippon é especialista em técnicas de imagem cerebral e pesquisa o uso de eletroencefalografia e magnetoencefalografia em estudos sobre processos cognitivos. Ao longo de sua carreira, ela se deparou com diversos artigos que utilizavam exames como esses para procurar diferenças entre o “cérebro masculino” e o “cérebro feminino”. Notando inconsistências nesses trabalhos, passou a questioná-los e a investigar o assunto.

Para mostrar que a desigualdade sexual não tem base biológica, a neurocientista escreveu seu primeiro livro não acadêmico, Gênero e os nossos cérebros: como a neurociência acabou com o mito de um cérebro feminino ou masculino (no original em inglês temos "nossos cérebros generificados", o que é bem mais preciso), lançado em janeiro no Brasil pela editora Rocco. Nele, ela discute a contribuição da ciência para a criação de preconceitos e reúne evidências de que comportamentos tido como masculinos ou femininos são socialmente construídos, e não ditados pelo cérebro. A seguir, Rippon reflete sobre a cultura sexista na neurociência, conta como começou a questionar pesquisas pautadas pela diferença entre os sexos e dá dicas de como identificar e desbancar estudos enviesados.

Com ao menos quatro décadas de expertise em técnicas de neuroimagem, você se dedicou a muitos estudos sobre condições como esquizofrenia, transtorno do espectro autista e dislexia. De que maneira a relação entre sexo e neurociência começou a chamar sua atenção também?

Durante a minha formação, convivi com uma visão inflexível da neurociência: a ciência da época acreditava firmemente em ligações fixas entre o cérebro e o comportamento. Isso incluía uma organização fixa desse órgão, com diferenças igualmente fixas entre os cérebros de homens e mulheres. Ao longo dos anos 1980 e 1990, houve uma revolta por parte de alguns pesquisadores, descontentes com as explicações dadas a certos comportamentos e baseadas apenas na biologia do cérebro. As principais críticas giravam em torno, principalmente, das desculpas dadas à desigualdade entre os sexos: muitos estudos sugeriam que, de alguma forma, as mulheres eram inferiores, que não tinham certas habilidades por conta de algumas características físicas cerebrais e, por isso, não seriam bem-sucedidas em negócios, política, ciência etc.

Esses pesquisadores começaram a questionar e sugerir que, por um momento, ignorássemos a biologia e focássemos na forma como a sociedade molda o comportamento das pessoas, principalmente como mulheres são colocadas e mantidas em posições inferiores.


O movimento feminista teve influência na sua carreira e nessa crítica que foi sendo alimentada dentro da comunidade científica?

Com certeza. Na verdade, eu sentia que havia uma desconexão entre o meu envolvimento pessoal com a segunda onda do feminismo e o tipo de pesquisa que eu estava fazendo. Eu comecei a perceber que os estudos não traziam provas conclusivas sobre a ligação entre cérebro, comportamento e diferenças sexuais. E isso remete a mais de um século de pesquisas pautadas por uma forte agenda das diferenças, que apoiava que mulheres deveriam ter uma posição inferior na sociedade.

Esse tipo de pensamento ganhou uma nova força com o desenvolvimento de técnicas de neuroimagem. Por meio delas, nós realmente pudemos ver o que esse órgão é capaz de fazer em seres humanos vivos. Muitos papers começaram a pipocar afirmando que haviam encontrado “A” diferença entre o cérebro de homens e mulheres — cada um apontando para uma resposta diferente. Mas nenhuma delas trazia provas realmente consistentes de que houvesse uma distinção relevante.

Então, podemos dizer que essa é a definição de “neurolixo” da qual você trata em seu lixo?

Eu chamo de neurolixo esse emprego incorreto da neurociência e de neuroimagens por autores de livros populares sobre ciência. Em geral, eles não são especialistas na área, mas se propõem a explicar problemas comportamentais em relacionamentos ou no trabalho pautando-se pela diferença entre os sexos. Muitos interpretam mal o resultado de estudos ou se baseiam em pesquisas de má qualidade para justificar comportamentos, ignorando completamente o fato de que temos mais provas de que o cérebro de homens e mulheres são mais similares do que diferentes. Aliás, muitos estudos que chegaram a essa conclusão não foram publicados. Afinal, não é tão interessante dizer que não há diferenças na capacidade cerebral de homens e mulheres, não é mesmo?

Pode nos contar sobre o que mais motivou você a escrever essa obra e desmascarar pesquisas desse tipo?

O livro surgiu para mostrar que há novas formas de estudar cérebro e sexo, sem se pautar em diferenças biológicas e levando em consideração como a sociedade molda nossos comportamentos, que não são inatos. Minha motivação é mostrar que não há base biológica em estereótipos como “mulheres são melhores para lidar com crianças’’, ou “meninos gostam mais de matemática do que meninas”. É ir contra o pensamento de que a igualdade entre mulheres e homens nunca será atingida porque há uma “diferença natural e biologicamente determinada” que deveria ser intocada e inquestionável. Eu não me tornei cientista porque tenho “o cérebro de um cientista”; foi por ver as consequências públicas dessa crença fixa de algo que não era verdade.

Na sua visão, quais são os principais equívocos cometidos por neurocientistas e autores leigos ao tratar sobre cérebro e comportamento?

Um dos maiores erros é não reconhecer o que sabemos hoje sobre a plasticidade cerebral. Antes, acreditava-se que apenas o cérebro de bebês e crianças fosse elástico, sendo modificado pelas novas experiências e habilidades. A partir de uma certa idade, pensava-se, o órgão se tornava mais fixo. Agora nós sabemos que, por exemplo, nosso cérebro ganha novos neurônios ao longo de toda a vida e sua estrutura e função mudam constantemente, seja ao aprender uma língua, tocar um instrumento ou jogar um esporte. O maior erro é assumir que qualquer diferença que você encontra surge de um fator biológico invariável, sem olhar para outros fatores.

Como podemos identificar quando um estudo é enviesado ou não foi feito de forma rigorosa?

Essa pergunta é muito importante. Junto com as psicólogas Cordelia Fine [da Universidade de Melbourne, na Austrália] e Daphna Joel [da Universidade de Tel-Aviv, em Israel], escrevi um artigo voltado para leigos explicando alguns pontos que precisam ser levados em consideração para saber se uma pesquisa é duvidosa ou não. Verifique se a descoberta foi replicada em outro lugar com uma amostra diferente; qual foi o tamanho da amostra do estudo e quantas comparações foram feitas também são pontos relevantes. Vale refletir: os pesquisadores discutem as semelhanças e as diferenças ou apenas enfatizam as diferenças? Comparando com outros estudos mais reconhecidos, o quão consistente essa pesquisa é?

O que deve ser feito para que os jovens cientistas não repitam os mesmos erros e estejam conscientes desse viés?

Estou no processo de escrever algo para periódicos científicos sobre como saber se você coletou dados e os analisou corretamente. A forma como você apresenta suas conclusões também é muito importante para que não sejam feitas más interpretações — há pessoas que não são especialistas e que irão ler o que você escreveu e serão impactadas pelos resultados que você traçou.

Pesquisas sobre o cérebro são de interesse geral, todos nós temos curiosidade para saber como ele funciona. Então, tanto os jornais científicos quanto os autores precisam ser muito cuidadosos. Ao relacioná-lo com questões de gênero, podemos estar influenciando a criação de crianças ou a elaboração de políticas públicas sobre diversidade e inclusão. Isso envolve muita responsabilidade na forma como você relata suas conclusões.

Quais são os prejuízos de estudos como esses, produzidos por mais de um século, para a nossa sociedade?

Eu me preocupo muito com a sub-representação das mulheres na ciência, um problema de longa data. Por muito tempo, assumiu-se que elas não poderiam ser cientistas porque não tinham o cérebro apto para isso. Conforme o tempo foi passando, ficou claro que as mulheres são tão capazes quanto os homens. Ainda assim, os discursos sexistas se adaptaram, e há quem acredite em razões biológicas de por que mulheres escolhem não fazer ciência, mesmo que elas possam.

A ciência, como uma organização, tem sua cultura — e ela pode ser bem hostil para mulheres. Há muito a ser feito até que as pessoas parem de olhar para o indivíduo e comecem a observar a cultura que uma determinada organização possui. Precisamos perceber que talvez não estejamos permitindo que as pessoas conquistem seu potencial por conta da forma como estruturamos a nossa cultura.

Clipping “Minha motivação é mostrar que não há base biológica em estereótipos”, Revista Galileu, 24/03/2021

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