terça-feira, 14 de julho de 2015

Visão de mundo antimercado vigora nos cursos de humanas das universidades e nas redações do ENEM



Destaque: 
É um discurso de quem se alinha mais ao mundo socialista que ao capitalista e hoje sente saudades daquela "alternativa". Nesse pensamento, pouco se busca entender do funcionamento normal do mercado, com propriedade privada, sistema de preços, empreendedorismo, publicidade, risco, consumo, lucro e especulação. A isso tudo reserva-se a condenação. É compreensível que esse tipo de pensamento tenha se difundido quando lembramos que ele foi também uma reação à ditadura militar censora, violenta e autoritária que se colocava como radicalmente antisocialista. Só que os tempos mudaram, e os conteúdos não.
Nota máxima para o clichê ideológico
Por Joel Pinheiro da Fonseca


Vendo as redações com nota máxima do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) de 2014 que começaram a ser veiculadas na mídia em maio, quando o MEC liberou a consulta aos espelhos da correção oficial, penso não na publicidade infantil, tema da prova, mas na propaganda ideológica juvenil, também presente nos textos.

Essa modalidade de propaganda é transmitida principalmente nas disciplinas de humanas do ensino médio a jovens que estão engatinhando na vida intelectual. Ainda despreparados para formular suas próprias ideias, matam essa capacidade no berço e compram com facilidade os discursos e as formas de pensar a eles vendidas.

Faz mais de uma década que terminei o ensino médio e constato que nada mudou.

O fim da Guerra Fria continua sendo o mais importante referencial histórico; o mundo desde então estacionou sob o jugo do capitalismo. O capitalismo, por sua vez, gera intencionalmente a doença do consumismo para que as pessoas comprem sempre mais, caso contrário o sistema ruiria sob o excesso de produção. A mídia exerce o papel de controladora quase onipotente dos desejos humanos, incitando-os ao consumo desmedido. As crianças são especialmente indefesas. E o Estado é a principal ou mesmo a única instância que visa nosso bem e que pode nos proteger.

Partindo desse esquema básico, praticamente todas as redações chegam à mesma conclusão: a publicidade infantil deve ser proibida ou sofrer pesadas restrições.

É curioso que, na era da internet, dos smartphones, do YouTube, tablets e redes sociais, nada disso sequer seja mencionado em redações sobre a relação das crianças com a comunicação eletrônica. A vida mudou, os hábitos são outros, mas o discurso sobre o tema continua preso à imagem da criança sozinha em casa na frente da televisão sem qualquer outro contato com o mundo externo.

Da mesma forma, ninguém menciona a queda histórica da receita com publicidade, seja televisiva, impressa ou mesmo online. Simplesmente atribuem poderes imensos a uma indústria em processo de fragmentação e cujos principais atores passam por uma crise profunda.

É interessante notar que se a propaganda fosse realmente a todo-poderosa, seria muito fácil reverter, por exemplo, a má alimentação infantil: bastaria fazer publicidade de vegetais e comidas mais saudáveis, coisa que as marcas infantis até tentam –vide as maçãs da Turma da Mônica–, com sucesso limitado. Ao mesmo tempo, impérios outrora imbatíveis como o McDonald's têm vendas em queda livre no mundo inteiro, inclusive nos Estados Unidos, a despeito de seu pesado investimento em publicidade. Não se menciona, ademais, que a publicidade infantil de hoje é mais comedida do que a de décadas passadas, quando a televisão tinha alcance muito maior.

As práticas da indústria também mudaram: já faz anos que as lanchonetes vendem brinquedos separados de lanches e oferecem frutas na sobremesa, que biscoitos recebem doses extras de vitaminas e que mascotes foram banidas da propaganda de cerveja. E, no entanto, a revolta com as práticas comerciais nunca foi tão forte.

Por fim, apesar de tanto se falar em capitalismo, ninguém se preocupa em imaginar as consequências econômicas de uma possível proibição. É como se a produção e a oferta de produtos infantis e de espaços destinados ao público mirim fossem completamente independentes da publicidade que garante vendas e receitas.

Todas essas considerações poderiam figurar na educação que os jovens recebem, ainda que como contraponto. E, no entanto, não figuram. A narrativa básica já está formatada e é vendida pronta para que milhões de jovens a reproduzam nas provas. Uma visão de mundo antimercado e anticonsumo vigora nos cursos de humanas de nossas universidades, inclusive nos de pedagogia.

É um discurso de quem se alinha mais ao mundo socialista que ao capitalista e hoje sente saudades daquela "alternativa". Nesse pensamento, pouco se busca entender do funcionamento normal do mercado, com propriedade privada, sistema de preços, empreendedorismo, publicidade, risco, consumo, lucro e especulação. A isso tudo reserva-se a condenação. É compreensível que esse tipo de pensamento tenha se difundido quando lembramos que ele foi também uma reação à ditadura militar censora, violenta e autoritária que se colocava como radicalmente antisocialista. Só que os tempos mudaram, e os conteúdos não.

BAGAGEM

É natural que a formação dos professores se reflita nas salas de aula e mesmo na já previsível escolha de temas do Enem. Um professor, falando de questões sociais e econômicas, traz sua própria bagagem. O que não é intelectualmente saudável é que ela seja a referência única, sem alternativas, e que tenha parado no tempo, ficando alheia à revolução tecnológica e às tendências atuais da sociedade.

Adolescentes terminam o ensino médio sem nem mesmo terem noções rudimentares de oferta e demanda, mas familiarizados com o conceito de mais-valia e cheios de certezas sobre os males do sistema econômico "neoliberal" e com ojeriza à ideia de lucro.

E não é apenas uma questão de conteúdo. Há uma notável semelhança também na forma de pensar e de escrever. Os estudantes usam e abusam de citações –Marx, Foucault, Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Freud, Gandhi, Platão, Bourdieu; além do vilão Adam Smith– e nenhum deles faz referência à própria experiência de ter sido criança há não mais do que sete anos e, portanto, julgar se, em seu próprio caso, a publicidade infantil era tão poderosa assim.

Nossos estudantes aprendem que a menção a medalhões do pensamento –muitas vezes mal colocada– é preferível às suas próprias ideias e pensamentos. A supressão da primeira pessoa é, diga-se de passagem, uma exigência rígida de estilo nas redações, ensinada em colégios e cursinhos e observada por todos.

A criança –creio que ninguém discorde– não tem maturidade para tomar decisões de consumo por conta própria. Por isso mesmo não controla o dinheiro da casa. Aos poucos, amparada por pais e escola, aprende a lidar com os apelos do mundo e da mídia.

O adolescente também vive uma imaturidade: a intelectual. Inicialmente indefeso frente a apelos ideológicos, vai aos poucos aprendendo a pensar por conta própria. Para isso, ao invés de ensinado a repetir dogmaticamente o "discurso crítico" de gerações passadas, poderia ser estimulado a procurar novas ideias, a comparar posições conflitantes, a articular suas experiências e a fomentar debates. Assim teríamos mais diversidade de opinião no Enem e, quem sabe, as sementes de uma renovação intelectual do país.

JOEL PINHEIRO DA FONSECA, 30, é economista, mestre em filosofia e escreve para o site spotniks.com.

Fonte: Folha de SP, Ilustríssima, 12/07/2015

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