Desde a Carta sobre a Tolerância, aparecida em Londres em 1689, ano da Revolução Gloriosa, de autoria do filósofo inglês John Locke, que se prega a necessária separação dos assuntos do Estado daqueles da Igreja. Dizia o filósofo que enquanto os interesses de um se misturassem com os do outro não haveria progresso em direção à tolerância. Daí a necessidade de uma separação radical entre a política (então, a encargo do rei) e a religião (sob auspício do clero). “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, como teria dito o próprio Cristo.
No Brasil, formalmente ao menos, a separação do Estado e da Igreja vem desde a Constituição de 1891, estando essa separação consagrada no art. 19 da Constituição Federal de 1988.
Entretanto, apesar desses avanços, como a religião e o estado mantiveram concubinato por tantos milênios da história humana, até hoje religiosos sonham em recriar os antigos laços. Afinal, o hábito faz o monge. Sem falar dos povos que ainda são governados por governos teocráticos, como nos países islâmicos.
Daí que estamos novamente às voltas com ameaças ao estado laico (o estado não religioso) tanto em nosso país como no mundo. Fundamentalistas cristãos já se tornaram um flagelo tão grande na África quanto o vírus da AIDS e do Ebola. Nos EUA, como se vê pode ler no artigo abaixo, a "influência dos conservadores religiosos ultrapassou os rituais e passou a afetar uma série de aspectos da vida pública americana."
No Brasil, pastores deputados já estão há um tempo em circulação, e chegamos ao ponto de ter dois candidatos à presidência evangélicos, uma com chances de ganhar o pleito. Aliás, exatamente devido à sua formação evangélica, Marina Silva já alterou seu programa de governo de modo a não apoiar objetivamente nenhuma demanda da população LGBT.
Torna-se imprescindível portanto que os secularistas se organizem, a exemplo da American Humanist Association (AHA) americana, para entoar um versinho da época da Revolução Francesa que dizia:
Torna-se imprescindível portanto que os secularistas se organizem, a exemplo da American Humanist Association (AHA) americana, para entoar um versinho da época da Revolução Francesa que dizia:
“Apaguemos o vestígio
Do jugo supersticioso
A razão lhe toma o prestígio
A razão é bem precioso”.
(VOVELLE, Michel. A Revolução Francesa Contra a Igreja. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1989, p.53.)
É descabido que, em pleno século XXI, haja gente querendo determinar a vida da sociedade com base em livros de mitologia. Quem quiser seguir suas crenças ou crendices que as siga, mas não as queira impor ao conjunto da sociedade, sobretudo usando o Estado para tal. Repetindo as palavras de Locke, enquanto os interesses da religião se misturarem com os do Estado não haverá progresso em direção à tolerância. Não haverá, portanto, uma sociedade mais democrática e feliz.
Ateus dos EUA se organizam para influenciar política
Em contraposição à crescente direita religiosa, céticos tentam promover candidaturas com uma visão de Estado mais secular
WASHINGTON - Com o avanço da direita religiosa nos EUA, os descrentes decidiram sair do armário e se organizar para influenciar políticas públicas, principalmente nas áreas de educação, saúde e mudanças climáticas. Depois de estabelecer um grupo de lobby em Washington, os céticos de todo o gênero criaram um comitê para financiar candidatos às eleições legislativas de novembro comprometidos com uma visão secular de governo.
Nenhum integrante do Congresso americano é abertamente ateu, em um reflexo do rechaço a essa opção em um país no qual referências religiosas frequentam as manifestações políticas. O presidente dos EUA termina seus discursos solenes com “Deus salve a América” e todas as sessões do Senado e da Câmara são abertas por capelães oficiais, que juntos ganham salários anuais de US$ 345 mil, pagos com dinheiro público.
Na última década e meia, a influência dos conservadores religiosos ultrapassou os rituais e passou a afetar uma série de aspectos da vida pública americana. Em muitas escolas, a Teoria da Evolução começou a ser ofuscada pelo ensino do criacionismo, que apresenta a visão bíblica da origem do mundo.
As restrições ao aborto aumentaram e o rechaço ao custeio de certos métodos anticoncepcionais por motivos religiosas foi chancelado pela Suprema Corte, que também considerou constitucional a realização de orações em encontros da comunidade para discutir políticas públicas.
Sair do armário não é só uma figura de linguagem. Os militantes da não religião seguem os passos dos gays e dos ativistas que defendem direitos civis para ampliar a visibilidade. “Ao não sermos notados, ajudamos a criar uma atmosfera na qual todo o mundo nos EUA parece ser cristão. Os secularistas devem ser visíveis e participar do debate público, para que os deputados e senadores tenham de considerar o que seus eleitores ateus e agnósticos pensam, o que reduz o poder da direita religiosa”, disse o advogado David Niose, diretor da American Humanist Association (AHA), uma das principais entidades seculares dos EUA.
Criada em 1941, a organização ganhou visibilidade na última década, em parte como resposta ao crescimento do fundamentalismo cristão. O número de associados que contribuem financeiramente para a entidade se multiplicou por seis, para 29 mil. Outros 300 mil são seguidoras da AHA no Facebook.
Um dos nossos objetivos é nos livrar do estereótipo negativo e criar uma atmosfera na qual as pessoas podem ser abertas em relação a suas crenças e saber que terão apoio de organizações como a nossa”, observou Bishop McNeill, coordenador do Freethought Equality Fund, um comitê que arrecadou US$ 25 mil em doações individuais de aproximadamente 500 pessoas. O grupo declarou apoio a 15 candidatos, nem todos ateus. Entre eles, há religiosos que professam uma agenda secular, na qual está a separação entre Estado e Igreja.
Apesar de minoritários, os secularistas são a fatia demográfica que cresce mais rapidamente nos EUA. Sua participação subiu de 15,3% da população, em 2007, para 19,6%, em 2012. A maior parte desse contingente diz não ter nenhuma convicção particular e não se identifica com os rótulos de “ateu” ou “agnóstico”.
O que os une é a não filiação a uma religião, o que levou o Pew Research Center a batizá-los de “nenhuns”. Entre os jovens de 18 a 29 anos, o porcentual de “nenhuns” é de 32%, mais que o dobro dos 15% registrados entre pessoas de 50 a 64 anos. Na faixa de 30 a 49 anos, o índice é de 21%. “A maioria das pessoas da próxima geração não terá filiação religiosa”, aposta Don Wharton, ativista ateu de Washington. Segundo ele, o rótulo “humanista secular” tende a encontrar menos resistência que “ateu”. “Os ateus ainda são demonizados e vítimas de intolerância. Temos de mostrar que temos tantas preocupações éticas quanto os humanistas.”
Fonte: O Estado de São Paulo, por Claudia Trevisan, 31/08/2014
4 comentários:
"Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, como teria dito o próprio Cristo."
Jesus nunca quis dizer "separe política de religião", com esse versículo, mas sim cumpra suas obrigações perante o César, ou seja pague seus impostos. Tampouco foi a Carta para a Tolerância de Locke que criou a separação do Estado e da Igreja. ela surgiu na Reforma protestante
Como assim a fala atribuída ao Cristo não quer dizer separar igreja de política? Pagar impostos ao imperador é do âmbito da política, do Estado. A quem pagamos nossos impostos? Ao Estado ou às igrejas? Dar a Deus o que é de Deus naturalmente é da esfera religiosa, já que "deus" é um conceito religioso. São débitos diferentes a ser pagos a Deus e ao Estado porque são esferas distintas. Pensar não custa.
Depois, não disse que foi a Carta de Tolerância de Locke que criou a separação do Estado e da Igreja. Disse que, desde sua publicação, fala-se nessa separação. E sua publicação data do ano da Revolução Gloriosa, ou seja, a Reforma Protestante. Estudar não custa.
Não vejo a necessidade de ser ateu para defender o Estado Laico. Religiões de matrizes africanas estão sendo constantemente atacadas por evangélicos fundamentalistas, e não só, invadem outras igrejas, quebram imagens e etc.; a mídia vem mostrando isso no cotidiano e cada vez mais. Num possível - sim, cada vez mais possível, infelizmente - Estado Teocrático não haverá nenhuma forma de Diretos para a população LGBT, nem mesmo a possibilidade de discussão. Apesar de negarem, a guerra já foi declarada. Manter a secularidade e a laicidade é um valor moral, individual, inclusive.
De fato, Ricardo, não é preciso ser ateu para defender o Estado Laico. Basta ser democrático de fato. Assim como a igualdade perante a lei, a separação religião-estado é princípio basilar das democracias, princípio, no entanto, constantemente ameaçado por fundamentalistas religiosos. Há de fato um preocupante crescimento do fanatismo evangélico no Brasil, desrespeitando outras religiões (até os primos católicos) e usando os LGBT como bodes-expiatórios de sua sanha autoritária. A guerra pode ter sido declarada, mas ainda não está perdida. Fundamental organizar-se contra essa vertente do Mal.
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