quinta-feira, 14 de junho de 2012

Doris Lessing sobre as origens do politicamente correto

Doris Lessing
Em 1992, a escritora britânica Doris Lessing, prêmio Nobel de Literatura de 2007, redigiu um artigo, chamado Perguntas que não se deveria fazer a um escritor, sobre o chamado "politicamente correto" que, já naquela época, começava a mostrar sua face autoritária e persecutória. 

Nesse artigo, Lessing afirma que o "politicamente correto" é um legado do (então) recém-finado comunismo, um legado, contudo, não perceptível pela maioria das pessoas. Ela busca, consequentemente, visibilizar esse legado rastreando os sinais da maldita herança comunista nas ideias, na linguagem e no comportamento da sociedade do período citado. Traduzi trechos do artigo e os editei no texto abaixo. Depois da tradução, postei o link para o site do The New York Times de onde retirei o original intitulado Questions You Should Never Ask a Writer. 

O legado comunista nas ideias politicamente corretas

Doris Lessing identifica, nas perguntas que lhe faziam sobre os temas de seus livros (de onde o título de seu artigo), um dos legados do comunismo. Diz ela:

"Todos os entrevistadores fazem esta pergunta aos escritores: 'Você acha que um escritor deveria...?' 'Os escritores deveriam...?' A pergunta sempre tem a ver com um posicionamento político, trazendo implícita a ideia de que todos os escritores deveriam fazer a mesma coisa. Essas frases têm uma longa história embora desconhecida das pessoas que as usam casualmente (?)."

"Uma forma muito comum de se fazer crítica literária, não identificada como oriunda do comunismo, embora o seja, é a que acredita na necessidade de haver um tema engajado para justificar a produção de um livro. Todo escritor já ouviu alguém dizer que um romance, um conto, é 'sobre' uma coisa ou outra. Escrevi uma história, The Fifth Child (O Quinto Filho), que foi rotulada como sendo sobre o problema palestino, pesquisa genética, feminismo, antissemitismo e assim por diante.

Uma jornalista francesa entrou em meu escritório e nem bem sentou já foi dizendo: ' Naturalmente, O Quinto Filho é sobre a AIDS.'

Boa maneira de matar uma conversa, posso lhes assegurar. Mas o interessante é analisar o hábito de se criticar um trabalho literário dessa forma. Eu receberia olhares espantados se dissesse que 
redigiria um panfleto, caso quisesse escrever sobre a AIDS e o problema palestino. Afirmar que um trabalho de imaginação tenha que ser 'realmente' sobre algum problema é, novamente, uma herança do realismo socialista. Nessa perspectiva, escrever uma história simplesmente pelo amor à produção literária é ser frívolo, para não dizer reacionário.


A exigência de que os enredos tenham que ser 'sobre' alguma coisa vem do pensamento comunista e, recuando antes dele, do pensamento religioso, com seu pendor por livros de autoajuda tão simplistas como mensagens em amostras grátis."


O legado comunista na linguagem politicamente correta 

Doris Lessing identifica o legado comunista nos jargões utilizados pela imprensa, no pernosticismo da linguagem acadêmica e nos termos dos ativistas. Conforme à escritora, tratam-se de "palavras confinadas à esquerda, como animais encurralados":

"Não é uma ideia nova afirmar que o comunismo degradou a linguagem e, com ela, o pensamento. Há um jargão comunista reconhecível em cada sentença. Na Europa, apenas poucas pessoas da minha geração não fizeram piadas sobre termos, entre outros, como 'passos concretos', 'contradições', 'interpenetração de opostos'. 

Percebi, pela primeira vez, que esses slogans destruidores de mentes tinham o poder de ganhar asas e voar para bem longe de suas origens ao ler um artigo, no Times de Londres, dos anos 50, onde se dizia: 'A manifestação do sábado passado foi uma prova irrefutável da situação concreta....' Palavras confinadas à esquerda, como animais encurralados, passaram para o uso comum e, com elas, suas ideias. Até na imprensa conservadora e liberal podia-se ler artigos inteiros de teor marxista, sem que os próprios autores se dessem conta disso. 

Retornando ao exemplo das perguntas que entrevistadores fazem a escritores, ela identifica outros termos herdeiros do comunismo:

"Todos os entrevistadores fazem esta pergunta aos escritores: "Você acha que um escritor deveria...?" "Os escritores deveriam...? A pergunta sempre tem a ver com um posicionamento político, trazendo implícita a ideia de que todos os escritores deveriam fazer a mesma coisa. Estas frases têm uma longa história embora desconhecida das pessoas que as usam casualmente (?). Outro exemplo do gênero é o termo 'engajamento', muito em voga algum tempo atrás. Fulano de tal é um escritor engajado?

'Conscientizar' é outro termo que entrou na moda depois de 'engajamento'. Tem mão dupla: por um lado, significa oferecer informação e apoio moral a quem realmente necessita; por outro, restringir a informação somente à propaganda aprovada pelo instrutor. Termos como 'engajamento', 'conscientizar' e 'politicamente correto' são apenas a continuidade daquele velho molestamento conhecido como linha partidária.

Neste trecho, Lessing atribui a linguagem vazia e obscura da academia à influência do comunismo.


"Mesmo até cinco, seis anos atrás, publicações como o Izvestia, Pravda e milhares de outros jornais comunistas pareciam programados para preencher o máximo de espaço possível sem de fato dizer nada. Naturalmente porque era perigoso tomar posições que poderiam ter que ser defendidas. Agora esses jornais redescobriram o uso do idioma, mas se pode encontrar a herança deixada pela linguagem vazia e morta daqueles tempos na academia e particularmente em algumas áreas da Sociologia e da Psicologia.

Um jovem amigo meu, do Iêmen do Norte, economizou todo o dinheiro que podia para viajar à Grã-Bretanha a fim de estudar Sociologia. Pedi para ver seu material de estudo, e ele me mostrou um calhamaço tão mal escrito e num jargão tão feio e vazio que era difícil de entender. Havia centenas de páginas com ideias que poderiam facilmente ser resumidas em dez. 

Sim, eu sei que o estilo obscuro do meio acadêmico não começou com o comunismo – como Swift, por exemplo, nos informa – mas o pedantismo e a verborragia do comunismo têm suas raízes na academia alemã. E agora ambos se tornaram uma espécie de vírus que contaminou o mundo inteiro. 

É um dos paradoxos do nosso tempo que ideias capazes de transformar sociedades, plenas de insigths sobre como o animal humano realmente se comporta e pensa, sejam frequentemente apresentadas em linguagem incompreensível."

O legado comunista no comportamento politicamente correto

Neste trecho, Lessing exemplifica a influência do legado comunista no comportamento das pessoas ligadas ao politicamente correto

Um amigo professor universitário me relatou que, quando estudantes começaram a matar aulas de genética e a boicotar palestrantes visitantes cujos pontos de vista não coincidiam com sua ideologia (deles), decidiu convidá-los para debater e ver um vídeo sobre fatos atuais. Uma meia dúzia desses estudantes apareceu, com seus uniformes de jeans e camiseta, sentou-se em silêncio enquanto meu amigo tentava argumentar com eles, manteve os olhos baixos enquanto ele passava o vídeo e, depois, como uma única pessoa, saiu sem dizer uma palavra. Tal demonstração espelha o comportamento comunista, embora a meia dúzia citada não tenha consciência disso. Trata-se de uma representação visual das mentes fechadas dos jovens ativistas comunistas do passado.

E, na Grã-Bretanha, cada vez mais vemos, em câmaras municipais ou escolas, funcionários, diretores, orientadores pedagógicos e professores sendo perseguidos por grupos de "caça-às-bruxas" mediante as táticas mais sujas e cruéis. Eles acusam suas vítimas de racistas ou de qualquer outra coisa tida como reacionária. Ao apelar para seus superiores, contudo, as vítimas dessas perseguições conseguem provar que a campanha contra elas era injusta. Estou certa de que milhões de pessoas, após o chão comunista ter ruido a seus pés, estão em busca frenética, mesmo que de forma inconsciente, por outro dogma."

Relativizando o politicamente correto (ou a cauda que sacode o cão)

Apesar das críticas ao legado comunista, como algo essencialmente negativo, que identifica no politicamente correto, Doris Lessing consegue ver algo de positivo nessa perspectiva, uma avaliação com a qual concordo:

"O politicamente correto tem um lado bom? Sim, ao nos impelir a reexaminar nossas atitudes, o que é sempre útil. O problema é que, como em todos os movimentos populares, os radicais, a princípio à margem, acabam assumindo a liderança dos movimentos; a cauda começa a sacudir o cão. Para cada mulher ou homem que tranquila e razoavelmente usa o politicamente correto para examinar suas suposições, há vinte demagogos cuja real motivação é o desejo de poder sobre os outros, não menos demagogos porque se veem como antirracistas ou feministas ou seja lá o quer for."

The End

Vi a indicação para esse texto da Doris Lessing no blog do professor de filosofia Orlando Tambosi tempos atrás. Como ando particularmente interessada no tema, resolvi traduzir o texto e transformá-lo na postagem acima. Vale lembrar que Doris Lessing foi adepta do comunismo, quando jovem, o que a credencia para reconhecer no "politicamente correto" as sombras dessa velha ideologia autoritária. Lessing, aliás, escreveu The sweetest Dream, em 2001, traduzido para o português como O Sonho Mais Doce (Cia das Letras), onde ela fala a respeito das ilusões de sua geração, com destaque exatamente para o comunismo. Vale a leitura.  

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