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Mulheres samurais

no Japão medieval

Quando Deus era mulher:

sociedades mais pacíficas e participativas

Aserá,

a esposa de Deus que foi apagada da História

terça-feira, 24 de junho de 2014

As mudanças na relação entre Estado e sociedade permitiram à humanidade abandonar a situação de pobreza extrema característica de sua existência

Mauricio Rojas
Mauricio Rojas foi um marxista chileno ferrenho, membro do MIR (Movimiento de Izquierda Revolucionaria), que teve que exilar-se, depois do golpe de Augusto Pinochet, para não ser morto. Foi para a Suécia. Lá, felizmente, desemburreceu. Obteve um doutorado em economia na Universidade de Lund e abandonou as tolas superstições marxistas. Aderiu ao liberalismo e ajudou a Suécia a contornar os problemas do estado de bem-estar social. No texto O paradoxo chileno, pode-se ler um pouco mais sobre sua trajetória. No texto abaixo, que traduzi do espanhol, ele resume bem o grande salto da humanidade da pobreza extrema à riqueza relativa criado pela nova relação estabelecida entre o Estado e a sociedade. Vale a leitura.

O segredo da criação da riqueza

A mudança institucional mais significativa surgiu com a nova relação que se estabeleceu entre o Estado e a sociedade.

Por Mauricio Rojas

A humanidade começou a abandonar o estado de pobreza extrema que sempre caracterizou sua existência há apenas alguns séculos. Esse processo se iniciou, como se sabe, na Europa Ocidental, a partir do renascimento das cidades e do comércio do século XI. Posteriormente, deu um salto espetacular, com a Revolução Industrial inglesa do século XVIII, e agora, difunde-se por todo o planeta com a globalização em marcha.

Os pesquisadores concordam que a razão principal desse salto para a prosperidade foi de ordem institucional. Não dependeu dos recursos naturais nem do nível de conhecimentos ou da exploração de outros ou da riqueza acumulada pelas elites. Se tivesse sido assim, esse salto haveria se dado na China, na Índia ou no mundo islâmico, o que não aconteceu. Ele ocorreu devido à significativa mudança institucional na relação entre Estado e sociedade. Em algumas partes da Europa, o poder do soberano deixou de ser ilimitado e caprichoso para ter que se submeter à legalidade e passar a respeitar seus súditos. Shakespeare refletiu muito bem essa novidade  em “O Mercador de Veneza” (1600). A prosperidade veneziana dependia da capacidade de atrair investidores e comerciantes confiantes de que seus direitos seriam respeitados e a lei cumprida por todos, inclusive pelo soberano.

Quase dois séculos depois, em 1776, Adam Smith deu sua resposta clássica à pergunta sobre “a causa da riqueza das nações”: somos mais ricos porque somos mais livres e seremos ainda mais ricos se incrementarmos nossa liberdade. A seu ver, a divisão do trabalho e a especialização são a chave do aumento da produtividade, embora o motor mais poderoso do progresso seja o interesse próprio, a busca por melhores condições individuais. Essa busca sempre existiu e levou a muita violência e a muito pouco progresso enquanto não foi enquadrada dentro de um marco de liberdade para todos e de trocas voluntárias. Só então nos vimos forçados a fomentar nosso próprio interesse satisfazendo o dos outros em vez de violentá-los.

Surge assim uma ordem espontânea, onde cada um se especializa em servir aos demais para servir a si mesmo. E a eficiência desta ordem cresce na medidade em que ampliamos a esfera das trocas voluntárias. É por isso que Smith afirma que “a divisão do trabalho se encontra limitada pela extensão do mercado” e predica a liberdade de comércio a fim de ampliá-lo.

Mais de meio século depois encontramos quem melhor e pior compreendeu a essência da ordem da liberdade, Karl Marx. “O Manifesto Comunista” (1848) é uma descrição ainda insuperada da força criativa da “burgesia” que “não pode existir sem a condição de revolucionar incessantemente os instrumentos de produção”. A causa do elemento distintivo do capitalismo (palavra que Marx não usava) ou “ordem burguesa” é esta: a competição econômica como meio para o enriquecimento próprio.

Onde outras classes econômicas usaram a força, a burguesia passou a usar sua capacidade de produzir de forma mais eficiente. Por isso, “a burguesia cumpriu um papel altamente revolucionário na História”, multiplicando a riqueza , acumulando-a, contudo,  em cada vez menos mãos, na visão de Marx. Tal visão, porém, provou-se equivocada, levando-o a profetizar a pobreza massiva e a inevitável revolução comunista.

No início do século XX, o economista austríaco Joseph Schumpeter aprofundou nossa compreensão da criação da riqueza enfocando, para tal, a ação dos empreendedores. O que valoriza a natureza, o trabalho e o capital é a capacidade dos empreendedores para dar-lhes usos socialmente proveitosos sob formas cada vez mais eficientes. Para isso, experimentam e inovam, quer dizer, assumem diretamente a tarefa de, como disse Marx, “revolucionar incessantemente os meios de produção”. Essa revolução é a responsável pelas ondas de avanço tecnológico e “destruição criativa” que agitam o capitalismo moderno, impondo  um preço pelo progresso que nem sempre compreendemos ou estamos dispostos a pagar.

Em décadas recentes, Douglass North e outros historiadores econômicos vêm estudando mais em detalhe as instituições do progresso: o Estado de Direito, a liberdade civil e econômica, a propriedade privada, o respeito aos contratos, a limitação do poder. Para Nathan Rosenberg, grande estudioso da história da tecnologia, ao dar a todos um espaço de soberania individual, a ordem da liberdade demonstra sua superioridade decisiva ao maximizar  a quantidade de experimentos que se realizam na sociedade. Com isso, potencializa-se a capacidade de mudança e de adaptação a novas condições, o que é fundamental para a sustentabilidade do progresso. Ao mesmo tempo, a descentralização própria da liberdade faz com que o custo de cada experimento fracassado seja limitado. Pelo contrário, as ordens centralizadas tendem a reduzir a quantidade de experimentos, maximizando, porém, o custo social de cada fracasso.

Por último, Daron Acemoglu e James Robinson, em sua obra “Por que as nações fracassam?” (2012), deram importante destaque a um aspecto central das instituições que geram progresso: sua capacidade de incluir a grande maioria da população no processo de desenvolvimento. Assim, podemos completar a abordagem de Adam Smith dizendo que a profundidade do mercado - e, consequentemente, o dinamismo do capitalismo - está relacionada à igualdade básica de oportunidades que amplia a participação social no mesmo.

Não é demais lembrar essas coisas neste momento em que muitos parecem obstinados em tirar o Chile do rumo do progresso.

*O autor é diretor da Academia Liberal Fundación para elProgreso (@MauricioRojasmr).

Fonte: Pulso, Opinion, El secreto de la creación de la riqueza, Tradução Míriam Martinho

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Copa no Brasil: governo deu isenção total de impostos à FIFA no valor de R$ 1,1 bilhão


O Mundial 2014 e a Casa da Mãe Joana

A Copa é parte do contexto. Manifestações e vaias são consequência da inflação, de serviços públicos ruins e da corrupção

No século XIV, a rainha de Nápoles, Joana, após envolver-se em conspiração para a morte do marido, fugiu e foi morar em Avignon, na França. Lá, se instalou em um palácio e passou a mandar e desmandar na cidade, a ponto de regulamentar até os bordéis. A partir daí, cada prostíbulo passou a ser conhecido como “Paço da Mãe Joana”. No Brasil, a expressão foi alterada para “Casa da Mãe Joana”, sinônimo de lugar ou situação em que predominam o vale-tudo, a balbúrdia e a desorganização.

Associo a história à Copa. Desde 2007, quando o Brasil foi anunciado como país-sede, venderam-nos gato por lebre. À época, o então ministro do Esporte, Orlando Silva, afirmou: “Os estádios para a Copa serão construídos com dinheiro privado. Não haverá um centavo de dinheiro público.” Na mesma linha, o ex-presidente da CBF Ricardo Teixeira disse: “Faço questão absoluta de garantir que será uma Copa em que o poder público nada gastará em atividades desportivas.” O ex-presidente Lula confirmou: “Tudo será bancado pela iniciativa privada.”

Se fosse verdade, ninguém criticaria as arenas de Manaus, Natal, Cuiabá e Brasília — uma manada de elefantes brancos —, construídas pela iniciativa privada, por sua própria conta e risco. Curiosamente, porém, a maioria dos empresários não se interessou pelos estádios padrão Fifa. A fatura de R$ 8 bilhões, em sua quase totalidade, caiu mesmo no colo da viúva.

Afirmar que a metade desse valor decorre de financiamentos que serão cobrados com rigor pelos bancos é, no mínimo, uma falácia. Em sete arenas, os próprios governos estaduais assumiram dívidas de R$ 2,3 bilhões com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Sendo empréstimos contraídos pelos estados, adivinhe, leitor, de onde sairá o dinheiro para quitá-los?

Outro sofisma é a comparação entre o custo dos estádios em 12 cidades e os gastos integrais em Saúde e Educação, efetuados pela União, pelos estados e por todos os municípios brasileiros, de 2010 a 2013. Com a intenção de tornar irrelevantes os investimentos nas arenas, a presidente Dilma, às vésperas da Copa, apresentou soma de R$ 1,7 trilhão, segundo ela “investida” em Saúde e Educação, incluindo no montante, de forma inadequada, itens de custeio, como vigilância, limpeza, salários, luz e água, entre outros. Na realidade, o custo dos estádios equivale a dois anos de investimentos federais em Saúde ou à instalação de 2.263 escolas.

Em contrapartida, boa parte das reformas dos aeroportos e do legado de mobilidade ainda está pelo caminho. Para atenuar o caos urbano chegaram a ser previstos R$ 12,4 bilhões. No entanto, cerca de R$ 4 bilhões simplesmente sumiram da Matriz de Responsabilidades, visto que as obras não ficariam prontas a tempo do Mundial. Das que restaram, apenas 43% foram concluídas, segundo o TCU. Dessa forma, chegamos ao Mundial com o ônus dos elefantes brancos e sem o bônus dos legados.

Até agora, ninguém sabe o custo real da Copa. No Portal da Transparência constam R$ 25,6 bilhões, mas o valor — por sinal desatualizado — não inclui, por exemplo, as verbas de publicidade, as estruturas temporárias, os centros de treinamento e os subsídios à entidade presidida por Blatter, bem como às empresas por ela indicadas. Apesar de a Fifa ter obtido receitas de R$ 10 bilhões, o Congresso Nacional concedeu-lhe inédita isenção total de impostos, correspondente a R$ 1,1 bilhão. No pacote do perdão estão tributos federais como IRRF, IOF, contribuições sociais, PIS/Pasep, Importação, Cofins Importação, entre outros. Como a Fifa diz que não exigiu esse amplo favor, quem foi o mentor dessa caridade com o nosso chapéu?

Enfim, a Copa 2014 será marcada por falta de planejamento, má gestão, obras inacabadas, excessivas cidades-sede, desperdícios evitados pelo TCU (R$ 700 milhões), denúncia de superfaturamento do “Mané Garrincha” (R$ 431 milhões), arenas entre as mais caras do mundo e repulsa à Fifa, entidade que merece um “chute no traseiro”.

De qualquer forma, quando 72% da população estão insatisfeitos (Pew Research Center), a Copa é apenas parte do contexto. As manifestações e as vaias são consequência da inflação, da estagnação da economia, da péssima qualidade dos serviços públicos e da corrupção deslavada. É bom lembrar que em 2010, na Copa da África do Sul, o ex-presidente Nelson Mandela foi ovacionado.

Como o protesto mais eficiente não é nos estádios, mas nas urnas, o dever de casa para hoje será o Brasil vencer o México e avançar rumo à conquista da Copa — a Copa da Mãe Joana.

Gil Castello Branco é economista e fundador da organização não-governamental Associação Contas Abertas

Fonte: O Globo, Gil Castello Branco, 17/06/2014

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Feminismos: tantos que alguns já viraram o avesso de si mesmos

Vi o texto abaixo no facebook e me identifiquei em boa parte com a visão da autora, Marília Coutinho. Alguns grupos de mulheres que hoje se dizem feministas descambaram para um sectarismo tão grande que até já existe um feminismo paradoxalmente machista, classista e racista, apoiando inclusive homens abusadores, se suas vítimas forem mulheres brancas, de classe média e não anticapitalistas. Já li falações nesse sentido em redes sociais.

Ao contrário da autora, contudo, não perdi a esperança de resgatar o feminismo desse mar de lama de mulheres que perderam literalmente o juízo e que inclusive, por seus excessos, prestam um desserviço aos direitos das mulheres. Destaco o seguinte trecho do texto que vale a leitura:
Um feminismo burro que sacrifica a busca minimalista por consensos que permitiria uma ação ecumênica em busca de poucos e importantérrimos objetivos comuns. 
Desse feminismo, vários de nós fomos excluídos e nos excluímos. Nosso desejo por relações justas entre sexos e gêneros permanece, no entanto. Nossa capacidade de agir nessa direção também. Mas fomos usurpados da ferramenta de organização para isso: esta está, para sempre, pervertida pelo pensamento sectário. Já era.
Feminismo revanchista, feminismo escatológico e feminismo autoritário: onde ficamos nós, que não queremos isso?
Nós, herdeiros de feminismos reflexivos esquecidos, que observamos relações desiguais e violentas entre sexos e gêneros e gostaríamos de expressar nosso desejo por sua substituição? Que achamos que estupro não tem justificativa, jamais? Que achamos que disparidade salarial para funções iguais entre homens e mulheres é inaceitável? Que enxergamos o viés machista em diversas situações cotidianas e achamos que vale a pena apontá-las? Isso tudo, entre tantas outras coisas, mais ou menos visíveis conforme nosso lugar nas sociedades heterogêneas a que pertencemos.

Nós fomos mais ou menos excluídos de um universo cada vez mais ocupado por discursos hegemônicos de ódio, sectários e até mesmo machistas.

Já tive oportunidade de apontar o perigo da inversão revanchista proposta por militantes do “feminismo negro”, que chega a propor que nenhuma outra etnia possa celebrar sua identidade. Já me manifestei contra atos escatológicos e irresponsáveis, horrores que se intitulam feministas e surpreendentemente ganham apoio das porta-vozes majoritárias do movimento.

Exponho aqui minha rejeição ao discurso machista do texto “Um pinto contra Francisco Sá”, de Juliana Cunha.

Por favor, leiam o texto mas não deixem de assistir o vídeo, que é retratado de maneira distorcida pelo artigo de Juliana. Se possível, leiam também os comentários ao texto, grande parte bastante lucida, criticados pelas feministas hegemônicas de plantão.

O resumo da ópera é o seguinte: Yasmin Ferreira confrontou, pela primeira vez, um agressor que lhe importunava todos os dias numa rota obrigatória que a moça fazia entre sua casa e a faculdade onde estuda. Ponto final. Inferimos (e depois temos a comprovação) disso que:

A agressão era repetida e não um caso fortuito (que seria inaceitável, mas se repetido todos os dias configura tortura: observando o incômodo e dor da vítima, o perpetrador repete a agressão);

A vítima obrigatoriamente encontrava seu agressor, pois ele é porteiro de um edifício na rota da moça (ou seja, sua ocupação proporcionava a ele um acesso garantido à vítima e foi neste contexto que a moça empregou o termo, que Juliana, maliciosamente, assume ser uma forma de desqualificação do trabalhador);

Uma jornalista captou acidentalmente a explosão de revolta da moça, que ganhou coragem para confrontar o agressor apenas naquela ocasião;

O agressor fugiu da câmera (qualquer um que assista o vídeo vê isso claramente) e não, como maliciosamente diz a jornalista Juliana, “não foi ouvido”.

Juliana, a jornalista, constrói um caso contra o que chama de “feminismo branco e de classe média”, que ignora as injustiças sociais. A conclusão de seu texto é fácil: a condição de classe e raça do agressor é um atenuante para a agressão sexual que ele pratica.

Este argumento foi defendido por diversas feministas (igualmente brancas e de classe média, curioso).

Vejamos um trecho do texto de Juliana:

“O argumento de que a cantada de rua seria violenta por se dar em um ambiente inapropriado, com métodos e palavras erradas, soa capenga se pensarmos que dentro da organização social brasileira não há ambiente, palavra ou método de abordagem que torne o desejo de um homem pobre e negro por uma mulher branca e rica algo que possa ser exposto em público sem causar atrito.”

Agressão sexual virou “expressão de desejo”? Puxa, pensei que o conceito da agressão sexual (cantada, passada de mão, assédio e estupro) como forma de violência de gênero já era um consenso há muitíssimas décadas, inclusive tipificado como tal em diversas constituições democráticas. Que retrocesso é esse?

O mesmo que ouvi na minha adolescência por parte de “companheiros” stalinistas: “a mulher burguesa que se veste com mini-saia merece o estupro do homem trabalhador porque expõe a ele o que, por barreira de classe, ele não pode ter”. Não é chocante? “O que ele não pode ter”, ou seja: minha bunda é um objeto caro, que chato, coitado do pobre que não pode comprar este objeto. Tudo bem então se ele roubar ou tomar a força esse objeto. Afinal, é uma situação injusta em que ele, pobre, é excluído da possibilidade de comprar ou obter este objeto.

Só que não é um objeto: é o corpo de uma pessoa. Para os stalinistas, o fato desta pessoa ser burguesa (ou “branca de classe média”) a desqualifica como gente e a objetifica.

Peraí: objetificar a mulher não era o que todo mundo condenava? Então como pode ser parte de um argumento supostamente transformador, supostamente até feminista? Pois ao combater o “feminismo branco de classe média” a autora (e as feministas hegemônicas) defende o “feminismo de verdade”, o interseccional, aquele comprometido com o movimento negro, os movimentos anti-capitalistas e também anti-religiosos.

O feminismo sectário que exclui todas as mulheres que forem brancas (ou que não tenham vergonha de ser brancas), não pobres, que forem religiosas, que não forem anti-capitalistas, que tiverem suas dúvidas quanto ao aborto, etc.

Um feminismo burro que sacrifica a busca minimalista por consensos que permitiria uma ação ecumênica em busca de poucos e importantérrimos objetivos comuns.

Desse feminismo, vários de nós fomos excluídos e nos excluímos. Nosso desejo por relações justas entre sexos e gêneros permanece, no entanto. Nossa capacidade de agir nessa direção também. Mas fomos usurpados da ferramenta de organização para isso: esta está, para sempre, pervertida pelo pensamento sectário.

Já era.

Fonte: Marília Coutinho (blog), 07/06/2014

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Que conservadores e "progressistas" me desculpem, mas não existe criança "trans"



Quando a religião predominava como reguladora do mundo, tudo que ela considerava fora  de seus rígidos padrões de comportamento caía na categoria de pecado. E os pecadores pagavam seus pecados até virando tochas vivas nas fogueiras da Inquisição.

Com o advento das ciências médicas e afins, o que era pecado virou doença ou anormalidade. Os pecadores de antes viraram doentes ou anormais por não se encaixarem nos padrões dos novos reguladores do mundo. E psicólogos, psiquiatras, sexólogos e outros tantos ditos "especialistas" no comportamento humano se revelaram pródigos em criar problemas para depois se propor como fornecedores de soluções.

De homossexuais, transexuais, centauros e unicórnios

Uma de suas mais conhecidas invenções, desenvolvida na segunda metade do século XIX, foi "o homossexual", "o terceiro sexo", criatura tida como possuidora de uma "alma feminina em um corpo masculino" ou de uma "alma masculina em um corpo feminino". E saíram os doutos senhores inclusive a buscar por características anatômicas nesses invertidos que comprovassem suas fantasias. E como quem procura acha, não é que acharam as tais diferenças!? Modo de dizer, claro.

Foi preciso chegar a 1990, mais de um século depois da invenção do homossexual pelos "especialistas", para homens e mulheres, que preferem amantes e amores de mesmo sexo, conseguirem tirar sua orientação sexual da classificação internacional de doenças. Classificação - claro - obra dos próprios "especialistas". E tal façanha ainda não é consenso, haja vista a recorrente historinha da tal "cura gay". Saiu da moda, porém, entre a maioria dos "especialistas" atuais, considerar "os homossexuais" como doentes. 

Entretanto, a ideia de gente presa em corpo errado nunca deixou de cativar os corações e mentes dos "especialistas". Tanto que, com nova perspectiva, retomaram a historinha criando agora a figura do "transexual", desta feita em meados do século passado (anos 50/60). O transexual é a criatura tão descontente com seu sexo de nascimento, em tal sofrimento com essa condição, que só tratamentos hormonais e mesmo cirurgias de reatribuição sexual, ou mais popularmente, de mudança de sexo, podem resolver seu problema.

Essa história de transexual me lembra o aforisma do Millôr Fernandes sobre o comunismo. Dizia o genial frasista: "O comunismo é uma espécie de alfaiate que quando a roupa não fica boa faz alterações no cliente." Os "especialistas" são desse tipo de alfaiate que faz alterações no cliente porque ele não consegue se sentir bem na roupa de gênero que a sociedade lhe deu. Obviamente o problema reside na roupa de gênero (verdadeira camisa de força) e não no cliente, porém é mais fácil e gratificante, em múltiplos sentidos, fazer alterações no paciente.

Não deixa de ser irônico que, sobre esse tema, conservadores e "especialistas", considerados em geral "progressistas", comunguem da mesma perspectiva. Os chamados papéis de gênero (masculino e feminino) são impostos a meninas e meninos pela educação diferenciada. Nada tem a ver com o sexo natural das crianças, lembrando que a natureza só passa a distinguir efetivamente os sexos na puberdade. Durante a infância, meninas e meninos são praticamente indistinguíveis, a não ser para os que podem ver seus genitais.

Quem estabelece a diferença entre a garotada, na tenra idade, não é a natureza e sim  a sociedade. A educação diferenciada começa já desde o berço, com a roupinha cor-de-rosa idiota para a menina e o azul para o menino, estendendo-se, por toda a infância, por meio de roupas e cortes de cabelo diferentes para ambos os sexos. Também via brinquedos e brincadeiras diferentes para meninas e meninos. E, para garantir que as crianças caibam na roupa de gênero que lhes foi designada, vale tudo, desde induções várias até a repressão dos menos domesticáveis.

Trata-se de fato do primeiro grande massacre contra a individualidade das pessoas porque, na infância, elas não têm como se defender. São como massinhas de modelar que os pais e a sociedade empurram para forminhas pré-estabelecidas em detrimento de suas características (de cada criança) de personalidade, temperamento, índole. Todas as meninas têm que caber na forminha do feminino. Todos os meninos na forminha do masculino. Caso contrário, os conservadores apelam para a porrada, como nas falas atravessadas do deputado Jair Bolsonaro, e os "especialistas", agora, para a mudança de sexo.   

Papéis de gênero não são naturais e não existem crianças "trans"

E aqui chegamos ao tema central dessa postagem. Que gente adulta, maior e vacinada queira mudar de sexo, porque acha que nasceu no sexo errado ou seja lá pelo que for, é um direito que a assiste. Acho que adultos pagam bastante caro, em vários sentidos, para incorporar uma fantasia, uma convenção criada pela sociedade conservadora. Entretanto, o ser humano vive buscando alterar sua aparência de diferentes formas, por diferentes vias. Dermatologistas e cirurgiões plásticos contam hoje com um fantástico arsenal para mudar o visual das pessoas, às vezes para melhor, às vezes para ficarem parecendo um ET, como no caso do Michael Jackson. Os tratamentos de mudança de sexo são formas radicais de body modification (modificação do corpo), tais como tatuagens no corpo inteiro, escarificações e outras tantas de espantar a muitos.

E até aí morreu Neves, como no dito popular. Acho que todos os seres humanos têm soberania sobre seus próprios corpos e o direito de fazer com eles o que bem entender. No caso dos transexuais, têm também o direito de obter documentação correspondente ao sexo que escolheram. Picuinha total negar-lhes algo tão simples. E, diga-se de passagem, os trans, não só os sexuais, devem aumentar no futuro.

Agora, quando essa história de transexualidade passa a ser aplicada a crianças, tudo muda muito de figura. Digo porque atualmente vez ou outra, rola nas redes sociais exemplos de crianças "trans", ou seja, meninos e meninas que não se sentem bem na roupa de gênero que a sociedade lhes impôs e que saem dizendo, inocentemente, que são do sexo oposto. E os pais, condicionados pelo binarismo de gênero (a crença nos papéis de gênero feminino e masculino como naturais), resolvem submeter as crianças a tratamentos hormonais e outras loucuras para enquadrá-las no suposto sexo certo. A garota gosta de roupas, brincadeiras, coisas que os pais e a sociedade dizem que são de menino. A garota pode consequentemente se sentir um menino, tendo sua interpretação errônea corroborada pelos pais. 

Comparo essa invenção de criança "trans", e o consequente "tratamento" a que andam submetendo as pobres crianças, à pedofilia. Crianças têm sexualidade difusa, compatível com seu nível de maturidade, mas não vão, de livre e espontânea vontade, querer se relacionar sexualmente com gente grande. Elas são induzidas por algum adulto a atos que lhes são danosos. Trata-se de uma violência.

Essa invenção de criança "trans" é a mesma coisa. Crianças não têm idade para discernir sobre algo complexo como identidade sexual. Gostam de coisas e brincadeiras que lhes agradam como pequenos indivíduos em formação já com seus gostos particulares. Os adultos é que vão dizer a elas que o que apreciam pode ou não ser supostamente adequado ao seu sexo. E são os adultos que decidem, agora com aval dos "especialistas", partir para a violência de fazer "tratamentos" a fim de adequar meninos e meninas ao que se convencionou chamar de masculino ou feminino. Se a roupa não serve no cliente, fazemos alterações no cliente e não na roupa. 

Pra mim, essa gente é tão criminosa quanto um pedófilo, e "tratamentos" para mudança de sexo só deveriam ser permitidos mesmo para adultos, maiores e vacinados. As crianças devem ser deixadas em paz. Como disse a blogueira Camila Lisboa, que me inspirou essa postagem, em seu artigo "E se meus pais tivessem decidido que eu era uma criança "transgênero" e me transformado em um menino?" :
Sinceramente, rezo para que essa moda não pegue. Para que os pais deixem seus filhos livres com as suas escolhas durante a infância, sem impor que precisam ter cabelos longos ou curtos, usar shorts, vestidos, azul ou cor-de-rosa. Que os pais não transformem a sexualidade das crianças em uma questão durante a infância, que deixem que sejam simplesmente crianças e esperem a chegada da adolescência e idade adulta para que possam ter maturidade e discernimento para decidirem por conta própria o time para o qual desejam torcer.
Perfeito. Os papéis de gênero (essa história ridícula de coisa de menino e coisa de menina) têm sido uma fonte permanente de conflitos emocionais para todo o mundo, como coisa massificante que são, em detrimento da individualidade das pessoas. Em casos mais extremos, levam até a tragédias como o caso do pai que matou o filho de pancada por ser efeminado, seguindo os conselhos do truculento Bolsonaro (boçalnaro). Pais e mães amorosos tem que fazer como o famoso casal de atores Brad Pitt e Angelina Jolie, cuja filha, Shiloh Nouvel, prefere o "masculino", pede para ser chamada de John e gosta de usar roupas dos irmãos. Disse o célebre ator, em entrevista a Oprah Winfrey:
Nós tentamos promover a individualidade (das crianças) ao máximo, não importando quão excêntrica ela possa ser”.
Shiloh Nouvel: só ela poderá definir o que será quando crescer
A considerar as fotos da garota (ver acima e abaixo), a cara do pai, a única coisa certa é que ela vai arrebatar os corações quando crescer.

Para terminar, acautelem-se todos contra os "especialistas", mesmo quando se apresentam bonzinhos (de boas intenções está pavimentado o chão do inferno). Quer dizer, não vão assim comprando de primeira o que eles dizem. A razão pela qual os conservadores criaram os papéis de gênero pode ser encontrada na imagem acima, na frase da saudosa Simone de Beauvoir, de uma época em que feministas expunham mais as ideias do que as tetas. "Admitir a existência de uma natureza feminina é aderir a um mito inventado pelos homens para prender as mulheres em sua condição de oprimidas". Em outras palavras, trata-se da velha questão do poder, nesse particular do poder dos homens sobre as mulheres. 

As razões dos "especialistas" são da mesma natureza. Trata-se do poder de ditar o comportamento de todos. Para atestar como sua coerência é falha, basta lembrar que enquanto andam dando aval a "tratamentos" de mudança de sexo em crianças - uma tremenda violência - celebram a ridícula lei da Palmada que quer penalizar pais por darem um tapinha na bunda de um moleque ou moleca mais levados, não dados a respeitar limites só com a coação das palavras.

E essa celebração se deve ao fato de serem eles, "os especialistas", os criadores dessa nova patacoada e também seus aplicadores, via Estado, já que os "delituosos" pais e mães podem ser encaminhados para - ora, vejam - "tratamento" psicológico ou psiquiátrico (idem para a criança que levou um tapa na bunda). A lei inclusive obriga médicos e assistentes sociais a denunciar pais supostamente agressores. Para completar o quadro de incoerência, deram à lei o nome do menino Bernardo Boldrini, assassinado pelos pais com um sedativo e não com palmadas. Como se fosse possível comparar um tapa com um assassinato, não é?

Enfim, parece haver mais em comum entre conservadores e certos "especialistas" do que sonham as vãs filosofias. E eles, os fiscais da vida de todos, que se entendam, mas o fato é que, na real, os papéis de gênero não são naturais e não existem crianças "trans".

Fotos: revista Quem

A moleca do casal Pitt-Jolie criada com respeito por sua individualidade

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