Eduardo Afonso, colunista do jornal O Globo, questiona o politicamente correto na linguagem, mostrando que termos, hoje considerados ofensivos, como "mulato", não têm, em sua etimologia, conotação pejorativa.O preto no branco na linguagem
Palavras são armas poderosas. Talvez por isso haja tanta gente empenhada num estatuto do desarmamento do vocabulário, e a treta (sobre quem pode falar sobre o quê e quais termos estão autorizados) não dá trégua.
Todos, todas e todxs já devem ter ouvido que uma linguagem neutra ajudaria a criar uma sociedade mais justa — mesmo que para isto brasileiros, brasileiras e brasileirxs tenham que ser redundantes e pronunciar coisas impronunciáveis como todxs e brasileirxs .
Claro que para neutralizar a linguagem será preciso rever a concepção de que claro queira dizer exato, correto, inequívoco, luminoso, e que escuro seja sinistro, sombrio, suspeito. Será preciso revogar a dicotomia entre luzes e trevas que nos acompanha desde o big bang bíblico, e reparar a injustiça de o branco ser a soma de todas as cores e o preto, a ausência de luz. Tarefa complicada — mas não para quem acredita que branco e preto , claro e escuro, onde quer que apareçam, estejam a serviço da opressão racial.
Por isso não se deveria mais falar em magia negra, mercado negro, buraco negro, lista negra ou ovelha negra, que têm tanto a ver com afrodescendência quanto amarelar tem com os asiáticos ou vermelho de raivacom os apaches. (Sem contar a caixa-preta dos aviões, da qual só se tem notícia quando acontece uma tragédia, e a inveja branca, uma improvável inveja do bem.)
Dois milênios antes de haver tráfico humano da África para as Américas, a palavra grega mélas já significava não só negro, escuro, mas também triste, funesto. E esta acepção não tinha qualquer vínculo com cor de pele: era uma metáfora, uma construção cultural. Se o verbo denegrir é um insulto e merece ser eliminado, a eugenia linguística deveria atingir também a palavra “melancolia”, que vem de melanós (negro) + kholé (bílis, veneno). E levar junto a “Aquarela do Brasil” com sua merencória (variação de melancólica) luz da lua e o mulato inzoneiro.
O mulato é objeto (ou sujeito) de outra falsa polêmica. Venha do latim mulus (ser híbrido, não necessariamente uma mula), ou de muladi (mestiço de árabe com não árabe), a palavra não evoca animais de carga, mas miscigenação. Negar palavras que definam as nuances étnicas (pardo, moreno, mulato, mameluco) é ter em mente um mundo em preto e branco, uma espécie de apartheid lexical.
Quanto a judiar (outro termo teoricamente a ser proscrito), é o rabino Henry Sobel quem diz:
O significado está claro: não há nada de pejorativo. Não fomos nós que maltratamos. Nós, os judeus, fomos maltratados. (...) O termo não deve ser eliminado. Pelo contrário, é bom que o mundo se lembre do preconceito do passado, para que não o permita no presente e no futuro.”
Mesmo não tendo originalmente cunho racista, muitas palavras podem vir a ferir suscetibilidades. Evitar usá-las com quem se sinta ofendido é uma questão de empatia. Uma espécie de “não falar de corda em casa de enforcado” — o que não implica banir corda, cordão e cordel dos dicionários.
Haveria motivos de sobra para qualquer um de nós se magoar ao ser chamado de brasileiro (e brasileira e brasileirx). Os nascidos nesta terra eram conhecidos como brasis, brasílicos ou brasilienses. Brasileiro não era nacionalidade; era profissão. Ser brasileiro era depreciativo, sinônimo de gente xucra, incivilizada, que vivia da exploração do pau-brasil. O que fazer se parte da população entrar nessa vaibe e resolver que não é mais brasileiro com muito orgulho, com muito amor, exigindo a abolição de termos que evoquem desmatamento ou cor de brasa?
Era melhor focar no combate às atitudes discriminatórias concretas e em expressões como “serviço de preto”, “programa de índio” ou “coisa de mulherzinha”. Aí, sim, há discriminação, etnocentrismo, misoginia — e se está falando de gente de carne e osso, não de metáforas cromáticas. Por aí se perpetuam o racismo e o machismo estruturais. Mas parece que os justiceiros (e justiceiras e justiceirxs) do vernáculo estão mais focados em nos salvar dos monstros que eles mesmos inventaram.
Fonte: O Globo, por Eduardo Afonso, 14/03/2019
Fonte: O Globo, por Eduardo Afonso, 14/03/2019












