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segunda-feira, 27 de março de 2017

"Misandria": uma grande zoeira e o sempre renovado ataque à autonomia das mulheres

A misandria só existe mesmo nos dicionários

Em páginas no facebook, onde se discutem tópicos referentes às questões das mulheres em geral, uma palavrinha vem rolando na boca de mulheres e homens, geralmente relacionada ao tema da participação de homens no feminismo (sic). Trata-se da palavra misandria, que fez suas primeiras aparições em língua inglesa em 1878 (para o Webster, 1909) e vem do grego miso= "ódio" + andros= "relativo ao homem, sexo masculino". Posteriormente, ainda em língua inglesa, pipocou em um artigo ou outro até se tornar mais frequente a partir dos anos 50 do século passado, alavancado sobretudo por grupos antifeministas ou masculinistas.

Em português brasileiro, online ao menos, não aparece em nosso dicionário mais famoso, o Aurélio, nem no Michaelis, nem no Aulette. Encontrei o verbete apenas no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa como: mi·san·dri·a (miso- + grego anér, andrós, homem + -ia), substantivo feminino = Aversão aos ou desprezo pelos indivíduos do sexo masculino. Isso significa que o termo ainda não tem grande circulação fora do âmbito dos movimentos e redes sociais.

De qualquer forma, "misandria" só existe mesmo em dicionários (talvez também agora em glossário psiquiátrico como a misoginia). Fora desse âmbito, ela não tem realidade social, ao contrário de sua equivalente misoginia que possui bastante concretude. Algumas falas iradas que mulheres, indignadas com a sociedade patriarcal, dirigem a homens, genericamente falando, podem, dependendo do contexto, ser realmente caracterizadas como sexistas, mas "misandria" é outra coisa. Mulheres não têm poder para ser "misândricas" como os homens têm para ser misóginos. Estabelecer simetria entre os dois termos ou é ignorância ou má-fé machista.

Misoginia não são apenas falas grosseiras ou depreciativas dirigidas a mulheres, o que poderíamos considerar mais como sexismo, dependendo do grau de depreciação. Misoginia é o ódio à mulher concretizado em inúmeras formas de violência contra o sexo feminino que vão desde restrições civis a atos de barbárie. Sem falar no monopólio masculino de várias áreas profissionais e de conhecimento.

Citando alguns exemplos, misoginia é a negação do direito ao voto e ao estudo que ainda existe em vários países, do direito à propriedade, do direito a transitar sozinha, do direito de trabalhar remuneradamente, do direito de escolher como se vestir, do direito de escolher com quem casar, do direito a participar da política, do direito sobre o próprio corpo (via criminalização do aborto) até a barbárie do estupro, do espancamento doméstico ou público, do açoitamento, da mutilação genital (130 milhões de vítimas no mundo) e de outros partes do corpo, além do assassinato.

A propósito da definição de misoginia: 70% das mulheres sofrem algum tipo de agressão durante suas vidas cometida por homens

Backlash: a acusação de odiar os homens acompanha as feministas desde seus primeiros passos

Por isso mesmo, quando comecei a ouvir essa palavrinha sendo jogada pra lá e pra cá contra ativistas, senti logo o cheiro azedo do velho e manjado backlash antifeminista. Backlash significa reação contrária, contra-ataque, no caso aos direitos das mulheres. A feminista americana Susan Faludi escreveu um clássico sobre o assunto chamado Backlash: o contra-ataque na guerra não declarada contra as mulheres (clique no título para baixar o livro), traduzido para o português em 2001 e que continua bem atual. Vale a leitura.

Os sinais de mais um surto de backlash antifeminista são bem evidentes sobretudo nas redes sociais. São os conservadores com seu feminazismo (comparando feminismo com uma das mais hediondas e antifeministas ideologias da história humana) e suas sabujas amestradas (mulheres conservadoras) culpando o feminismo por "supostamente obrigá-las a trabalhar remuneradamente quando elas queriam mesmo é ficar em casa para cuidar dos seus machos". (Então, anda difícil achar esse tipo de macho que sustenta donas de casa e a culpa é do feminismo!?).

São alguns rapazes "progressistas" que posam de interessados em feminismo e em serem aliados das mulheres em suas causas, mas que ou querem que as mulheres ensinem feminismo pra eles (vamos combinar o preço da hora-aula então) ou, mais cara de pau ainda, leem sobre feminismo, começam a se achar sabichões no assunto e passam - pasmem - a querer dizer para feministas o que é ser feminista ou não, qual o feminismo verdadeiro ou não. E, quando rechaçados em suas pretensões (machistas recicladas como "feministas"), fazem-se de ofendidos e saem choramingando que foram vítimas de "misandria". São as já famosas male tears (lágrimas masculinas), chororô masculino por descobrir que o mundo não gira mais  apenas em torno dos bolinhas.

Uma procissão de sufragistas: o direito ao voto feminino
caracterizado como um rebaixamento dos homens
Entretanto, "misandria" é apenas um novo nome para uma velha mania de acusar as mulheres, que lutam por seus direitos, de odiar os homens. De odiar os homens, de ser feias, mal-amadas, agressivas, amarguradas, masculinizadas, sapatonas, contra a família. Na primeira onda do feminismo, até o início do século passado, as vítimas desse backlash, dessa campanha injuriosa, foram as sufragistas, as ativistas que buscavam conquistar o direito de voto para as mulheres. O que votar tem a ver com odiar os homens? Nada, né? Mulheres e homens de hoje seriam capazes de fazer tal associação? Nem o Bolsonaro. Mas, na época da luta pelo voto, esse backlash voou solto. 

Décadas depois, foi a vez das feministas da segunda onda (anos 60 em diante), da emancipação econômica, do salário igual por trabalho igual, da descriminação do aborto, da liberação da sexualidade feminina, enfrentarem os mesmos ataques. Mais uma vez acusadas de odiar os homens, de ser feias, mal-amadas, agressivas, amarguradas, masculinizadas, sapatonas, contra a família. A diferença, em relação ao backlash dirigido às sufragistas, ficou por conta de se acusar abertamente as feministas de serem lésbicas em vez de falar em mulheres masculinizadas.

Aqui, no Brasil, entrou para a História o episódio de uma fulana do então proscrito Movimento Revolucionário 8 de outubro - MR-8 (e do jornal Hora do Povo) que tentou expulsar as lésbicas do III Congresso da Mulher Paulista (1981) por estas supostamente não serem mulheres e estarem encaminhando as feministas burguesas para o mau caminho. Por causa desse tipo de backlash, o movimento feminista demorou anos (no Brasil, duas décadas) para apoiar oficialmente os direitos da mulheres homossexuais. O apoio foi registrado, graças a minha intervenção, na plataforma feminista resultante dos debates da Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras (junho de 2002)

Agora, na chamada terceira onda do feminismo (anos 90 até hoje), com enfoque nas desigualdades específicas de idade, etnia, orientação sexual, classe, etc. (as tais interseccionalidades,) somadas a uma maior integração com a academia e visibilidade na mídia, novamente se veem as feministas acusadas de odiar os homens, de ser feias, mal-amadas (falta de rola), agressivas, amarguradas, masculinizadas, sapatonas, contra a família. As diferenças, em relação às campanhas antifeministas anteriores, são que:
  • primeiro, agora, conjuraram o suposto ódio aos homens na palavra "misandria", alçada à moda, na última década, por grupos americanos antifeministas (Men’s Rights Activism e Men's Rights Movement), decididos a reverter conquistas das mulheres se fazendo de vítimas do feminismo.
  • Segundo, que, ao contrário de recuar diante de mais esse surto de backlash, como no passado, muitas feministas atuais decidiram assumir que são "misândricas", a maioria para zoar em cima da absurda tentativa masculinista de estabelecer simetria entre "misandria" e misoginia e uma minoria como protesto contra o sistema patriarcal ou para simplesmente desopilar o fígado, doente de tanto engolir machismos nessa vida, dizendo desaforos a homens.

Separando alhos de bugalhos: homens feministos e homens antipatriarcais

Seja como for, trata-se de reação, neste caso realmente necessária, contra o verdadeiro assalto que homens ditos progressistas (com apoio de suas capitãs do mato) vêm fazendo ao feminismo, insistindo em que "eles têm o direito de opinar no movimento feminista (por serem pela igualdade entre os sexos...hã, hã...)", "porque, errando ou acertando, no debate feminista, homem pode 'contribuir' para o movimento e até que "feminismo não é das mulheres". São frases que colhi em redes sociais e que, com algumas variações, são representativas da costumeira falta de senso de limites da mentalidade machista.

Porque, obviamente, esses homens não são aliados da luta das mulheres coisa nenhuma. Estão agindo com base na velha (de)formação machista que receberam, tentando SIM roubar o protagonismo das mulheres no movimento que elas criaram para lutar exatamente contra o machismo. Ou será que ainda restam dúvidas diante de uma frase como "o feminismo não é das mulheres"? Aliás, eu mesma presenciei a fala de um cara dizendo para uma moça, a propósito de um texto que ela escrevera sobre feminismo e capitalismo, que o feminismo dela não era verdadeiro e o dele é que era!!!

Homens são adestrados para não deixar espaços onde as mulheres possam estar sozinhas (pois ficam fora de seu controle); são adestrados para achar que as mulheres têm que servi-los e amá-los, apesar de eles terem criado um mundo que trata as mulheres a socos e pontapés. É esse adestramento que está por trás dessa historinha de participação masculina no feminismo a fim de contribuir com a luta das mulheres (cavalo de Tróia), da historinha de feminista ensinar feminismo a homens (mulher tem que servir ao homem) e amá-los incondicionalmente (foram adestradas para isso, o que falhou?)

Mas vamos combinar, mulher nenhuma tem obrigação de ensinar homem algum sobre feminismo. No máximo, se tiver, pode passar bibliografia, que isso não configura exploração. O resto ele que se vire no google como qualquer outro mortal. Mulher não tem obrigação de gostar de homem. Então, homens construíram um sistema que exala desprezo e ódio pelas mulheres por todos os poros e as mulheres nem podem expressar seu ódio por ele? Portanto, não tem essa de dizer que as que dizem não gostar de homens não são feministas. Como não? Porque escaparam do adestramento para amar incondicionalmente quem nada faz para ser amável? Se não querem ser odiados, não sejam odiáveis. Se querem ser amados, que sejam por seus méritos, não na base de todo o tipo de coação. Amor de verdade não combina com submissão.

Coletivos de Homens Antipatriarcais (na Argentina)
Por outro lado, existem sim homens pró-feministas, antipatriarcais, mas são aqueles homens que buscam desconstruir em si mesmos os condicionamentos que receberam. Um homem antipatriarcal respeita o direito de mulheres não quererem conversa com ele seja sobre o quer for, incluindo feminismo. Assim como entende que uma mulher pode não querer se relacionar sexualmente com ele. Entende o significado da palavra NÃO.

Em vez de ficar enchendo o saco de quem não tem esse apêndice, se realmente se interessa pelo tema, vai à luta, busca informações sobre o mesmo, constrói sites sobre gênero e feminismo (vi alguns) e cria grupos para discutir com outros homens outros modelos de ser homem em vez de querer forçar presença onde não é bem-vindo. Inclusive porque também sabe que homens e mulheres convivem em muitos outros ambientes onde se pode discutir feminismo sem ser o movimento feminista. Fora os espaços interseccionais que podem ser criados para esse fim COM MULHERES QUE SE DISPONHAM A CONVERSAR. 

O homem antipatriarcal também entende porque algumas mulheres detestam homens, embora pessoalmente isso lhe seja doloroso, e busca desarmar a bomba patriarcal que criou esse sintoma em vez de simplesmente rotular essas mulheres de loucas necessitadas de tratamento. Chamar mulheres que não gostam de homens de loucas é negar a realidade objetiva do mundo em que vivemos. De repente, estão mais é zonzas de dolorosa lucidez. Loucas são as estruturas do sistema que os homens criaram e não as mulheres que as odeiam.

Vale lembrar que, além das próprias ações violentas cometidas por homens contra o sexo feminino, o patriarcado ainda onera as mulheres com o peso de superar o ódio que ele mesmo provoca. Sobretudo para mulheres que experimentaram diretamente a misoginia, há de se convir que não é fácil superar o rancor provocado pela violência sofrida, embora transcendê-lo seja fundamental para seu próprio bem, para sua integridade psicológica.

Tratamento igual para comportamento igual (ou separando alhos de bugalhos)     
                      
Pessoalmente, embora já tenha sido até acusada falsamente de querer levar homens para sacrossantos espaços feministas, sempre considerei o separatismo feminista cláusula pétrea (e não só o feminista). Feminismo é coisa de mulher, como gravidez e menstruação. Sempre fui contra a participação de homens em grupos feministas, encontros feministas, e continuo sendo. O tema desse artigo, aliás, só reitera a minha posição. Os espaços feministas são para mulheres conviverem com outras mulheres, tentar a difícil tarefa de chegarem a denominadores comuns de luta, desconstruírem o adestramento para a rivalidade entre mulheres que recebem desde o berço.

Mulheres têm que priorizar mulheres e não homens, como têm feito nos últimos séculos. Mulheres têm que sobretudo priorizar a si mesmas, ser saudavelmente individualistas em contraposição à educação para a abnegação feminina, esse papo furado de se sacrificar por homens, filhos, as religiões dos homens, as "causas" dos homens ou seja lá por quem for.

Por outro lado, contudo, como sei separar alhos de bugalhos, nunca vi problemas de trabalhar com homens em outros movimentos e em outras instâncias, tendo, com uns, bons momentos de coleguismo e produtividade em ações comuns e, com outros, péssimos momentos. De uma forma geral, encaro os homens primeiro como indivíduos e não como integrantes do patriarcado opressor. Sei que a floresta patriarcal é densa, mas consigo ver que há diferenças entre as árvores. E todo mundo é inocente até prova em contrário.

Além disso, alguns homens também são vítimas desse mesmo sistema que nos aflige (sobretudo gays). Retrospectivamente, vale também lembrar que alguns homens, embora ultraminoritários, levantaram suas vozes pelos direitos das mulheres, quando elas ainda não tinham voz pública. Depois que passaram a ter, continuaram apoiando as bandeiras que as mulheres decidiram levantar sem querer decidir por elas que bandeiras são essas.

Fora ainda que há um bocado de mulher cúmplice da opressão das mulheres. Mulheres conservadoras, mesmo quando não se assumem como tais, têm um papel deletério nas lutas pela autonomia das mulheres. Não se contentam em ser medíocres e subservientes. Querem que todas sejam medíocres  e subservientes como elas. Não dá, portanto, para dividir o mundo em bandidos e mocinhas simplesmente.

Por isso, trato homens como iguais desde que como igual me tratem de forma sincera. Entretanto,
 não banco a Poliana jogando o jogo da contente porque conquistamos algumas igualdades formais. Infelizmente, no cotidiano das inter-relações pessoais, o machismo continua são e salvo e raivoso. É só dar uma olhada nas redes sociais e no atual backlash antifeminista para constatar isso. Na Inglaterra, já apareceu até partido antifeminista. Ser realista não configura nenhuma "misandria".

Dito posto, nesta situação em particular, endosso completamente o escracho que a nova geração de feministas vem fazendo dos caras de paus que querem mandar em mulher até no feminismo, posando de solidários com a luta das mulheres (no caso dos progressistas). Ao contrário das gerações de feministas anteriores, a atual não parece se intimidar com a acusação de "odiadora de homens" que sempre acompanhou a turma. Pelo contrário, parece que quanto mais as chamam de "misândricas" mais elas se assumem como tais e mais desancam uzomi (como dizem).

Me pergunto apenas se a zoação não vai longe demais quando leio um texto sério, desconstruindo objetivamente a suposta misandria, mas que termina com a autora assinando "fulana de tal, devotadamente misândrica". À guisa de comparação, é como se ativistas LGBT decidissem se dizer heterofóbicos de gozação porque um bando de manés conservadores saem até em passeata se dizendo vítimas de uma tal "heterofobia" tão real quanto a tal "misandria".

Parece que as garotas partem do princípio de que, já que vão nos xingar de qualquer forma de qualquer coisa, vamos zoando enquanto der. Mas tenho minhas dúvidas se isso não alimenta ainda mais a falácia da "misandria". Afinal quantas pessoas percebem o sarcasmo desse posicionamento? Não é possível só zoar, com todo o poder corrosivo que o humor tem contra os pequenos e grandes tiranos, sem correr o risco de parecer incoerente?

Esquerda e Direita também são filhas do Patriarcado

Vale lembrar ainda que todo esse backlash e sua correspondente zoeira não têm a ver com a surrada dicotomia esquerda-direita. O sistema patriarcal é o conjunto maior que engloba os outros sistemas político-econômicos e filosóficos criados pelos homens nos últimos milênios. Embora a citada zoeira das feministas se dirija também à direita conservadora e seu feminazismo, seu foco maior são os ditos progressistas, esquerdistas, libertários, que querem ser feministas à fórceps. Vale notar que os chamados esquerdomachos também usam a desqualicação "feminazi" dos conservadores contra as jovens feministas.

Mal fazem 30 anos que a esquerda tradicional deixou de dizer que feminismo é coisa de burguesa desocupada (mais uma desqualificação) e luta divisionista da luta maior, a luta de classes. Ainda hoje se encontram esquerdistas do gênero dizendo essa abóbora. Agora, parece que aderiram a estratégia do "se não pode vencê-las, junte-se a elas". Como a história ensina, sabe-se bem para quê. Pena que tantas ainda botem fé nessa esquerda fóssil e suas ideias arqueológicas.

Os libertários (anarquistas de esquerda) tiveram correntes promotoras da igualdade entre os sexos e a liberdade sexual desde seus primórdios, mas vale salientar que o termo libertário virou uma espécie de palavra-bom-bril que se presta a mil e uma utilidades ideológicas, chegando a ser usada hoje como autodenominação até de alguns conservadores. Basta que o cara se diga contra o boggieman Estado (o bicho-papão Estado) e já passa a se proclamar libertário, embora seja liberticida em vários outros aspectos. 

Esse sequestro do termo libertário até por conservadores tem a ver com a história política americana. Como por lá sociais-democratas passaram a se dizer liberais (desde os anos 30), liberais passaram a se denominar libertários para se diferenciar. Acontece que o liberalismo, ao longo de sua trajetória secular, saiu de sua origem de esquerda, empurrado pelo socialismo, caminhou para o centro do espectro político e acabou sequestrado pelo conservadorismo com quem passou a fazer frente ao comunismo (bem de passagem). 

Essa má companhia de certa forma imantou as tribos liberais (libertários, anarcocapitalistas, austríacos, minarquistas, liberais sociais...) de um ranço conservador que se observa em declarações, por exemplo, contra o casamento LGBT e em apoio a supostas escolhas da mulher entre perspectivas libertárias e conservadoras como se fossem equivalentes.

Contra o casamento LGBT a desculpa é que se deve lutar para o Estado não mais legislar sobre as relações humanas em vez de ampliar seu alcance. Como tal proposta é de remota concretização, na prática significa negar o acesso ao instituto civil do casamento para casais de mesmo sexo. 

Quanto às supostas escolhas da mulher, compara-se ser dona de casa com ser uma profissional remunerada, embora a primeira opção deixe a mulher numa situação de particular hipossuficiência e vulnerabilidade enquanto a outra a habilite a ser sujeito da própria vida dentro dos limites de nossas sociedades. Na mesma perspectiva, afirma-se que a mulher muçulmana tem o direito de andar de burca, no mundo ocidental, desconsiderando a situação de imigrante dessa mulher ainda sob o tacão das sharias da vida, como se estivesse no seu país de origem. 

Desconsidera-se que a burca,  niqabs e congêneres são objetivamente um mal, porque a misoginia é objetivamente errada. E essas vestes são misoginia pura, negação da presença das mulheres na esfera pública que só podem transitar como se não existissem (sem identidade visível). Fora os problemas físicos que esses trajes acarretam. A jornalista norueguesa Asne Seierstad, que escreveu O livreiro de Cabul, assim descreve o uso da burca que experimentou quando de sua passagem pelo Afeganistão:
A burca aperta e dá dor de cabeça. Enxerga-se mal através da rede bordada. É abafada e faz suar. É preciso tomar cuidado o tempo todo onde pisar, porque não podemos ver nossos pés. Era um alívio tirá-la ao chegar em casa.”
Não custa lembrar ainda que, na época da monarquia secular do xá Mohamed Reza Pahlevi (anos 60 e 70), no Irã, quando puderam escolher como se vestir, as mulheres, em geral, optaram por aposentar as burcas, niqabs e outras aberrações. Resumindo, escolhas não se dão num vácuo social e político. Muitas escolhas estão mais para escolhas de Sofia.

Em outras palavras, sob o nome libertário, hoje se observa inclusive sutis incentivos a formas conservadoras de relacionamentos humanos via análises desconectadas do contexto social em que as escolhas individuais se dão. Não deixa de ser lamentável essa regressão, considerando a importância histórica do pensamento liberal e libertário na história das conquistas das mulheres.

Citando o filósofo e economista David Schmidtz, em seu livro Os elementos da Justiça, uma teoria é como um mapa. Mapas não pretendem ser a realidade em si mesma, apenas uma representação adequada da realidade para nos orientar. De forma parecida, as teorias são representações úteis de um terreno (as sociedades em que vivemos). Nada além disso. Mapas não são perfeitos, teorias também não. Não raro, para não se perder no caminho, há que se consultar e comparar mapas diferentes.


E eles veem misandria até na Malévola

Por último, comento o artigo A Misandria de Malévola, de um cara chamado André Forastieri, publicado quando do lançamento do filme em junho do ano passado. Comento porque referenda o que disse sobre a recente circulação do termo "misandria" e porque se constitui num exemplo perfeito da vigarice dos que usam a palavra. Como acho que todos já viram o filme dá pra contar o roteiro sem estragar a festa. E pago o pato de escrevê-lo para ver quem acha a misandria da história. Quem achar leva um doce.
Era uma vez..... 
Um reino de fadas e outras criaturas da floresta sempre ameaçado pelo vizinho rei do reino dos humanos que queria lhes roubar as riquezas. Um menino do reino dos humanos, Stefan, consegue adentrar o reino das fadas onde conhece Malévola menina. Eles ficam amigos,  meio namorados, mas depois de crescidos, adolescentes, não mais se veem, pois o rapaz deixa de visitar a garota. Nesse ínterim, o rei dos humanos finalmente decide invadir o reino das fadas, mas é detido (e ferido) por Malévola, agora uma fada toda poderosa, e seus companheiros da floresta.

De volta ao castelo, no leito de morte, o rei promete o trono e a mão da filha a quem matasse Malévola. Stefan, agora adulto, por ganância, resolve se incumbir da tarefa. Volta ao reino das fadas, chama por Malévola, faz-se de bonzinho e romântico, dá-lhe uma bebida com sonífero, mas não consegue matá-la. Arranca-lhe, contudo, as asas e se vai. Apresenta as asas como prova de que teria matado a fada. Ele se torna rei, casa com a princesa, e Malévola acorda mutilada e sedenta de vingança. Quando sabe que o casal real vai batizar a filha, aparece no batizado e joga uma praga na bebê. Ao fazer 16 anos, ela tocará no fuso de uma roca de tear e cairá num sono mortal do qual só despertará se receber um beijo de amor verdadeiro. 
O pai desesperado manda queimar todos os teares do reino e guardar os pedaços no calabouço do castelo. Encarrega também três fadas benfazejas, mas atrapalhadas, de criar Aurora numa casinha no campo, onde pensa protegê-la da praga. Mas Malévola descobre onde está a menina e acaba acompanhando seu crescimento e se encantando por ela, abençoada que fora para ser cheia de graça e amada por todos. Quando a menina se aproxima dos dezesseis anos, Malévola tenta reverter o feitiço mas não consegue. Quando aparece um garoto, um príncipe, que se apaixona por Aurora, considera-o a chance de salvar a menina do feitiço. Mas a garota descobre quem a enfeitiçou e quem é seu pai. Volta para o palácio pouco antes da hora certa do feitiço funcionar e, hipnotizada, põe o dedo no fuso de uma roca de tear quebrada, que encontrou no calabouço do castelo,  adormecendo em seguida.

Malévola leva o príncipe adormecido para o castelo, e as fadas benfazejas o encaminham para beijar Aurora, mas o beijo não desperta a jovem. Malévola que observa a cena se aproxima do leito onde Aurora está deitada, arrepende-se do que fez, e beija a jovem na testa. Ela desperta. As duas tentam sair do castelo, mas são interceptadas pelo pai de Aurora que quer matar Malévola. Aurora encontra as asas de Malévola em uma caixa de vidro que deita ao chão. O vidro se quebra e as asas libertas procuram a dona que está tendo sérios problemas em vencer o rei e seu exército. Com as asas, porém, Malévola derrota o rei, as duas voltam para o reino das fadas, tudo também volta a ser feliz e cor-de-rosa como nos contos de fadas. Aurora é consagrada rainha do local e fica com o namoradinho. Malévola termina o filme voando entre as nuvens acompanhada do corvo Diaval.
E o doce vai para.... Cadê a "misandria" do enredo? O bicho comeu. Qual a mensagem da história? É o amor e o perdão não o ódio e a vingança que de fato fazem as pessoas transcenderem a dor das violências sofridas, das injustiças sofridas, que de fato cicratizam as feridas. Malévola foi traída e violentada por Stefan de quem decidiu se vingar amaldiçoando sua filha. Mas é exatamente essa filha, possuidora dos dons da beleza, da alegria e da amabilidade, que fazem Malévola amar de novo e se arrepender do que fez. Diante de Aurora adormecida, Malévola diz literalmente "eu estava tão perdida em meio ao ódio e a vingança, e, agora, perdi você para sempre" e promete proteger a menina enquanto viver. E a beija com seu beijo de amor verdadeiro que a faz despertar. Liberta do ódio, redimida pelo amor, Malévola volta ser íntegra, recuperando suas asas.

Pro picareta que escreveu o texto A Misandria de Malévola, contudo, a "misandria" é a mensagem de Malévola. É ler para crer:
Todo homem é um bruto traiçoeiro ou um idiota banana. Toda mulher é inocente, e se age mal, é por que um homem a levou a isso. Essa é a mensagem de Malévola. A nova versão da Bela Adormecida parece politicamente correta. É o contrário. O termo técnico é misandria.
O conceito está no dicionário há mais de meio século, mas ainda não faz parte do vocabulário de ninguém. Trabalho com palavras e também não conhecia. Trata-se do ódio ou desprezo ao sexo masculino. Como misoginia é o ódio contra o sexo feminino. Se não conhecia o termo, fiz minha parte para popularizar o conceito. Publicamos na editora Conrad o livro da feminista radical Valerie Solanas, SCUM Manifesto.
E ele cita um trecho do SCUM, de uma das feministas mais hardcore da história, que esculhamba os homens no mesmo nível que inúmeros filósofos esculhambaram mulheres séculos afora. Mas o que a fala radical de Solanas tem a ver com o filme em questão só mesmo a mente perturbada do autor conseguiu perceber. Tanto que acha que o SCUM deve ter inspirado a roteirista do filme, Linda Woolverton, que criou uma Malévola rainha dominadora, de couro negro, que "adota" uma princesinha púbere por quem tem uma obsessão nada maternal. Inclusive garante que, se o filme não fosse pra família, teria rolado um beijo lésbico entre elas. Pior, trata-se de amor correspondido porque é Aurora que resgata as asas de Malévola, tornando-a novamente plenamente poderosa. Então não só as mulheres podem se virar sem homens, mas também homens são supérfluos e perigosos. E termina o textículo, ruminando sobre a visão dos homens que as menininhas iam levar para casa depois de ver o filme.

Ao fim do texto, lamentei não ter lido a resenha na época em que foi escrita para ter podido dar ao autor um lençol onde enxugar tantas lágrimas masculinas de recalque. Porque não passa disso a "misandria" que Forastieri viu em Malévola. Puro recalque  por ter assistido um filme onde homens não são protagonistas e - horror dos horrores para machistas - as mulheres são solidárias na luta contra o vilão da história.

Se a descrição dos vilões das histórias como tudo que há de ruim, em qualquer mídia, fosse sinal de misandria, ia ser difícil achar um filme que não fosse misândrico, mesmo tendo homens protagonistas, como de praxe, e o roteiro e direção também feito por homens. Na quadrilogia Alien, a protagonista é mulher, e os roteiristas e diretores desses filmes passaram uma visão nada positiva do sexo masculino. Seriam então misândricos? Me poupe!!

Não dá pra deixar de observar ainda que o autor deve ser consumidor assíduo de vídeos de pornô "lésbico" e ficou viciado em ver sexo entre mulheres mesmo em relações onde só se enxerga amor materno ou fraterno. Sexualizar a relação entre Malévola e Aurora equivale a ver na relação do treinador de boxe com sua pupila, do filme Menina de Ouro, de Clint Eastwood, algo além de um sentimento paternal e filial.

Moral dessa longa história: toda vez que se ler ou ouvir um cara chamar mulheres, ou obras feitas por ou sobre mulheres, de "misândricas", é bem provável que seja porque, no filme da vida, ele se deu conta de que os homens não são mais os únicos protagonistas e - horror dos horrores pra ele, claro - as mulheres podem ser solidárias umas com as outras e derrotar juntas os vilões das histórias de todo o dia.

Abaixo o beijo de Malévola em Aurora e o resgate das asas de Malévola por Aurora Pruzomi chorarem. Beijim no ombro, guys!

Publicado originalmente em 03/02/2015



quinta-feira, 23 de março de 2017

Empresa Memphis Meats, do Vale do Silício, produz carnes sem matar animais

Empresa produz carne vermelha e de frango sem matar animais 

A Memphis Meats, do Vale do Silício, anunciou na semana passada a criação bem-sucedida de filés de frango e de pato cultivados em laboratório, feitos com DNA dos animais, mas sem abater nenhum. Os produtos são feitos a partir de amostras de célula que se multiplicam quimicamente e formam filés quase idênticos aos que já conhecemos.

Os filés de aves vêm um ano depois do lançamento das almôndegas produzidas em laboratório pela mesma companhia, que promete revolucionar a indústria alimentícia produzindo carne “de verdade” sem crueldade.
É emocionante induzir os primeiros frangos e patos que não precisaram da criação de animais. Este é um momento histórico para o movimento da carne limpa”, disse, em comunicado, Uma Valeti, CEO da Memphis Meat. 
Nós realmente acreditamos que esse é um momento significativo para a humanidade, e uma oportunidade de negócio incrível – de transformar uma indústria global gigante enquanto contribuímos para resolver um dos problemas de sustentabilidade mais urgentes do nosso tempo”, continua.
Embora já estejam prontos, os produtos devem ser lançados aos consumidores apenas em 2021, quando a companhia espera ter reduzido os custos o suficiente para que seja viável a venda dos mesmos pelos valores das carnes no mercado. Atualmente, produzir 500 g de carne em laboratório custa cerca de US$ 9 mil.

Confira, abaixo, o vídeo de divulgação da companhia, e clique aqui para mais fotos dos pratos feitos com os produtos:


Fonte: Infomoney, 20/03/2017

terça-feira, 21 de março de 2017

Libertem as meninas do estereótipo feminino e elas serão grandes cientistas, matemáticas, engenheiras

Vencedora do Prêmio Diáspora Brasil em ciências, Duilia de Mello trabalha há 11
anos na Nasa, como especialista em análise de imagens do Hubble - Tommy Wiklind/Nasa



À parte conhecer o mérito individual da astrofísica brasileira Duília de Mello, o artigo abaixo é interessante porque mostra ser a malfadada educação diferenciada o grande obstáculo para a realização das potencialidades das mulheres. Destaco trechos da notícia abaixo, da própria astrofísica, de colegas dela e de uma economista que atesta essa realidade, realidade  óbvia que muitos, contudo, insistem em não aceitar, preferindo ir buscar chifres em cabeças de cavalos para responder o porquê de certas diferenças profissionais entre mulheres e homens. (Ver também, sobre o tema, Que conservadores e "progressistas" me desculpem, mas não existe criança "trans")
Diz a economista Hildete Pereira de Mello:
A despeito das dificuldades, ela (Duília) teve o que muitas meninas não têm: a liberdade de sonhar poder ser qualquer coisa, de não ser levada a reproduzir estereótipos de gênero.
— Os brinquedos que ainda hoje damos às crianças são uma forma de manter a organização da família da mesma forma como ela está construída há séculos — explica Hildete. — A princesa remete à ideia do príncipe encantado, do casamento como o grande upgrade da vida. A boneca é a forma de domesticar a mulher para o cuidado. Para os meninos, damos canhões, automóveis, aviões. Ou seja, são formas de socializar os bebês para os papéis sociais referidos que eles deverão cumprir.
Além disso, há a questão da maternidade e da criação dos filhos.
— Os homens não dividem os encargos da maternidade até hoje — constata Hildete. — E, ainda que elas possam pagar por creches, socialmente têm uma dificuldade muito grande. O reconhecimento social da mulher passa pela maternidade. E isso não é só no Brasil, é um problema recorrente no mundo todo.

 Diz física Márcia Cristina Bernardes Barbosa:
— O problema é comum às mais diferentes culturas — diz. — E tem a ver com algumas características da carreira. Por exemplo, há uma demanda grande por viajar, e as mulheres são as responsáveis por cuidar dos filhos, dos idosos, da casa. Outra característica importante é que é preciso ser agressivo. Por último, são carreiras que demandam avaliação constante, exigem um número de publicações. É óbvio que quando elas têm filhos não conseguem a mesma produtividade.
Diz o astrofísico Neil deGrasse Tyson (ver fala no vídeo abaixo), respondendo a supostas explicações genéticas para uma suposta “aversão” das mulheres a área de exatas:
 “Eu queria ser astrofísico desde os 9 anos. E via como o mundo ao redor reagia quando eu expressava essa ambição. Os professores retrucavam: mas você não quer ser atleta, não quer ser outra coisa? Eu queria algo que estava fora do paradigma das expectativas daqueles que estavam no poder. As forças da sociedade agem. Então, se não temos muitos negros na ciência, sei que é porque essas forças são reais e tive que superá-las para estar aqui. Portanto, antes de começarmos a falar sobre diferenças genéticas entre homens e mulheres, temos de encontrar um sistema de oportunidades iguais. Aí, sim, poderemos ter essa conversa.”

Astrofísica brasileira ganha prêmio e reabre discussão sobre mulheres na ciência
Duília de Mello trabalha há 11 anos na Nasa como analista de imagens do telescópio Hubble

RIO - Astrofísica da Nasa, pesquisadora do Goddard Space Flight Center e especialista na análise de imagens do telescópio Hubble. Duília de Mello, de 50 anos, foi a grande vencedora do prêmio Diáspora Brasil, concedido aos cientistas que se destacam no exterior. A vitória de Duília numa área quase que inteiramente dominada por homens reabre o debate sobre a participação das mulheres na ciência e a exploração dos estereótipos de gênero desde a mais tenra infância. Afinal, depois de tantos avanços, por que a área de exatas continua sendo a última fronteira das conquistas femininas?

— Ainda são poucas as mulheres na ciência, e ainda há preconceito — resume Duília. — A tendência é diminuir, espero.

Metade das bolsas já é dada a elas

Economista das universidades federais do Rio de Janeiro (UFRJ) e Fluminense (UFF), dedicada a questões de gênero, Hildete Pereira de Mello (que não é parente de Duília) está fazendo um levantamento sobre o tema, com base nas bolsas de iniciação científica concedidas pelo CNPq. De fato, a participação das mulheres está aumentando, mas a passos muito lentos. Atualmente, metade das bolsas está nas mãos de mulheres — contra 30% no fim dos anos 90. Entretanto, entre os detentores das bolsas sêniores, apenas 23,5% são do sexo feminino (eram 17% em 1999).

Ainda assim, Duília conseguiu se tornar uma “astrofísica extragaláctica”, como está assinalado no prêmio, e trabalhar na Nasa. Nada mal para uma mulher nascida nos anos 60 em Jundiaí, no interior de São Paulo, que passou a infância no subúrbio carioca de Brás de Pina.

— Sempre fui apaixonada pelo Universo e, desde pequena, queria entender como ele funcionava tão bem sendo tão complexo — contou numa entrevista. — No fim dos anos 1970 eu vivia vidrada nas descobertas das naves espaciais da Nasa, Pioneer 10 e 11, que estavam visitando Júpiter e Saturno. Naquela época não tínhamos internet, e o acesso à informação era bem restrito, principalmente para quem era de classe média baixa, como nós.

No entanto, Duília trabalha há onze anos na Nasa, foi responsável pela descoberta da supernova SN 1997D e participou também da descoberta das chamadas bolhas azuis — as estrelas órfãs, sem galáxias.

— Em 2008, detectamos umas bolhas azuis, estrelas solitárias que vivem entre as galáxias, formadas fora das galáxias. Tanto podem ser pequenos aglomerados de estrelas como galáxias anãs, que podem acabar engolidas pelas galáxias vizinhas. Enfim, é um mecanismo interessante de pensar a evolução das galáxias — Duília explica.

A despeito das dificuldades, ela teve o que muitas meninas não têm: a liberdade de sonhar poder ser qualquer coisa, de não ser levada a reproduzir estereótipos de gênero. Não é simples como parece.

— Os brinquedos que ainda hoje damos às crianças são uma forma de manter a organização da família da mesma forma como ela está construída há séculos — explica Hildete. — A princesa remete à ideia do príncipe encantado, do casamento como o grande upgrade da vida. A boneca é a forma de domesticar a mulher para o cuidado. Para os meninos, damos canhões, automóveis, aviões. Ou seja, são formas de socializar os bebês para os papéis sociais referidos que eles deverão cumprir.

Além disso, há a questão da maternidade e da criação dos filhos.

— Os homens não dividem os encargos da maternidade até hoje — constata Hildete. — E, ainda que elas possam pagar por creches, socialmente têm uma dificuldade muito grande. O reconhecimento social da mulher passa pela maternidade. E isso não é só no Brasil, é um problema recorrente no mundo todo.

Diretora do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e vencedora do Prêmio Loreal/Unesco ano passado, Márcia Cristina Bernardes Barbosa, de 54 anos, constatou isso ao participar de um projeto sobre a questão de gênero organizado pela União Internacional de Ciências, que contou com grupos de trabalho em 75 países.

— O problema é comum às mais diferentes culturas — diz. — E tem a ver com algumas características da carreira. Por exemplo, há uma demanda grande por viajar, e as mulheres são as responsáveis por cuidar dos filhos, dos idosos, da casa. Outra característica importante é que é preciso ser agressivo. Por último, são carreiras que demandam avaliação constante, exigem um número de publicações. É óbvio que quando elas têm filhos não conseguem a mesma produtividade.

A genética em questão

A questão é tão recorrente que se chegou a cogitar se haveria alguma explicação genética para a uma suposta “aversão” das mulheres a área de exatas.

A melhor resposta para isso veio de um homem, o astrofísico Neil deGrasse Tyson, num vídeo que faz sucesso nas redes sociais: “Eu nunca fui mulher, mas fui negro a minha vida toda”, disse ele. “Mas há similaridades na questão do acesso a oportunidades para negros e mulheres numa sociedade dominada por homens brancos.”

“Eu queria ser astrofísico desde os 9 anos. E via como o mundo ao redor reagia quando eu expressava essa ambição. Os professores retrucavam: mas você não quer ser atleta, não quer ser outra coisa? Eu queria algo que estava fora do paradigma das expectativas daqueles que estavam no poder. As forças da sociedade agem. Então, se não temos muitos negros na ciência, sei que é porque essas forças são reais e tive que superá-las para estar aqui. Portanto, antes de começarmos a falar sobre diferenças genéticas entre homens e mulheres, temos de encontrar um sistema de oportunidades iguais. Aí, sim, poderemos ter essa conversa.”

Fonte: O Globo, 13/06/2014, por Roberta Jansen
 


Publicado originalmente em julho de 2014 neste blog

quinta-feira, 16 de março de 2017

Para pesquisar no Google como especialista

14 Dicas para pesquisar no Google como um especialista

Você provavelmente utiliza o Google muitas vezes por dia. Mas as chances são – a menos que você seja um geek em tecnologia – de que você provavelmente ainda usa o Google em sua forma mais simples. Se o seu uso atual do Google é limitado a digitar algumas palavras, mudando a sua busca até encontrar o que você está procurando, então eu estou aqui para dizer-lhe que há uma maneira melhor – e não é difícil de aprender.

Mesmo se você já consiga usar o Google como um especialista, eu ainda sugiro que você leia este artigo. Desse modo, você terá as dicas em mão quando precisar ajudar um colega.

As seguintes dicas para pesquisar no Google são baseadas em minha própria experiência e em coisas que eu realmente acho úteis. A lista não é de forma abrangente, mas eu lhe garanto que, aprendendo a usar as dicas abaixo, você vai conseguir aproveitar o Google ainda mais.

1) Frases explícitas

Digamos que você esteja procurando por conteúdo sobre Inbound Marketing. Ao invés de simplesmente digitar inbound marketing na barra do Google, provavelmente será melhor para você pesquisar explicitamente pela frase. Para fazer isso, basta colocar a pesquisa dentro de aspas duplas.

Exemplo de busca: “inbound marketing”

Veja a diferença, quando você não usa aspas, o Google te da 7 milhões de resultados, que provavelmente não sejam tão relevantes para você, já que quando você procura "inbound marketing", ele te da 4 milhões de resultados, que ainda é muito, mas pelo menos os primeiros serão mais específicos sobre o que você está procurando.

2) Excluir palavras

Digamos que você deseje buscar por conteúdos sobre inbound marketing, mas você quer excluir todos os resultados que contenham o termo publicidade. Para fazê-lo, basta usar o sinal "-" na frente da palavra que você quer excluir.

Exemplo de busca: inbound marketing - publicidade

Mais uma vez, veja a diferença na quantidade de resultados, isso com certeza vai te poupar muitos resultado que não seriam úteis para o que você procura.


3) Pesquisas para um site específico

Muitas vezes, você deseja pesquisar um site específico para o conteúdo que corresponde a uma determinada frase. Mesmo que o site não suporte um recurso de busca (tipo este blog, vamos mudar isso em breve!), você pode usar o Google para pesquisar o conteúdo do site para achar o que você está tentando encontrar. Basta usar o modificador “site:somesite.com”.

Exemplo de busca: “SEO” site:br.hubspot.com

Este é o resultado que aparece, todos os resultados são do blog da HubSpot, o que ajuda muito se você já sabe que site vai poder te dar a informação que você procura ou se você está procurando todo o conteúdo sobre um tema em um site específico:

4) Arquivos específicos

Se você estiver procurando resultados que são de um tipo de arquivo específico, você pode usar o modificador “filetype:". Por exemplo, você pode querer encontrar apenas apresentações em PowerPoint relacionadas ao inbound marketing.

Exemplo de pesquisa: "inbound marketing" filetype:ppt

Como você pode ver, o "PPT" ao lado do título de resultado indica que é uma apresentação de PowerPoint - neste caso, já que procuramos específicamente por isto, todos os resultados são apresentações de PowerPoint.


5) Símbolo Ticker/ações

Basta digitar um símbolo ticker válido como o seu termo de pesquisa, e o Google vai lhe dar as finanças atuais e um rápido gráfico em miniatura para a ação.

Exemplo de busca: GOOG

Deste jeito você pode ver as finanças do dia da pesquisa e também de 5 dias, 1 mês, 3 meses e por ai vai.


6) Calculadora

A próxima vez que você precisar fazer um cálculo rápido, em vez de pegar o aplicativo de cálculos, você pode simplesmente digitar a expressão no Google

Exemplo de busca: 48512 * 1.02

Esta ferramenta ajuda muito quando você não tem uma calculadora por perto e quer calcular algo rapidinho, também funciona para contas mais complexas porque têm muitas funções.

7) Definições de palavras

Se você precisa procurar rapidamente a definição de uma palavra ou frase, basta usar o comando "define:”.

Exemplo de busca: define:Inbound Marketing

Se você procura uma definição ela vai aparecer em um quadradinho como esse de baixo, geralmente as definições utilizadas são as do Wikipedia.

8) Isso OU aquilo

Como padrão, ao conduzir uma pesquisa, o Google incluirá todos os termos especificados na pesquisa. Se estiver procurando por qualquer um dos termos, então você pode usar o operador OR. (Obs.: OR precisa sempre ser escrito com letras maiúsculas).

Exemplo de pesquisa: inbound marketing OR publicidade

9) Palavras no título

Quer encontrar uma página com certas palavras contidas no título (mas não necessariamente uma ao lado da outra)? Digite allintitle: seguido imediatamente das palavras ou frases.

Exemplo de pesquisa: allintitle:clube vinho

10) Pesquisa relacionada

Se quiser encontrar novos websites com conteúdo similar para um website que você já conhece, use o modificador related:algumsite.com.

Exemplo de pesquisa: related:visual.ly


11) Palavras perdidas

Esqueceu-se de uma palavra ou duas de uma frase específica, letra de música, citação de filme, ou outra coisa? Usar um asterisco "*" como curinga poderá ajudá-lo a encontrar a palavra perdida em uma frase.

Exemplo de pesquisa: quem semeia ventos, "*" tempestades

12) Traduções

Quer traduzir uma palavra simples ou frase de uma língua para outra? Não é necessário ir a um website de tradução. Basta procurar translate [palavra] to [língua], ou em português em baixo:


Exemplo: traduzir "amor" para ingles


13) Timer e Cronômetro


Não tem um timer em mãos? A Google cuida disso para você. Basta digitar qualquer valor de tempo + a palavra "timer" e a contagem automática começará automaticamente.

Exemplo de pesquisa: 20 min timer

14) Status de voo

Se digitar a companhia aérea e número do avião no Google, ele dirá as informações do voo, status e outras informações úteis.

Exemplo de pesquisa: JJ 2091


Fonte: HubSpot, por Rodrigo Souto | @rigso, 28/12/2015

terça-feira, 14 de março de 2017

Em um século, mulheres e homens terão igualdade salarial no Brasil


País levará 100 anos para igualar salário de homem e mulher
Pesquisa do Fórum Econômico Mundial coloca o Brasil com um dos países mais desiguais do mundo no que se refere a gênero

GENEBRA - A diferença salarial entre mulheres e homens no Brasil é uma das maiores do mundo e equiparar a condição dos dois sexos no País levará um século. Essas são algumas das conclusões do Relatório de Desigualdade Global de Gênero 2016 do Fórum Econômico Mundial, publicado nesta quarta-feira, 26, em Genebra.

De acordo com o levantamento, as sociedades mais igualitárias são as escandinavas. O primeiro lugar é da Islândia, seguida por Finlândia, Noruega e Suécia, ao se considerar todos os aspectos econômicos, políticos, de saúde e de educação.

Entre 144 países avaliados, o Brasil ocupa apenas a 129.ª posição no que se refere especificamente à igualdade de salários entre gêneros. Países criticados por violações aos direitos das mulheres, como Irã, Iêmen e Arábia Saudita estão em melhor posição que o Brasil.

Para equiparar as condições econômicas de homens e mulheres, serão necessários 95 anos se o atual ritmo de progresso for mantido. Em termos gerais, incluindo política, educação e outros aspectos sociais, equiparar as condições entre gêneros no País levará 104 anos.

Segundo o Fórum Econômico Mundial, a taxa brasileira é melhor que a média mundial, de cerca de 170 anos. Mas, ainda assim, o ritmo de avanço é considerado como “lento demais”.

O estudo aponta que a presença de Dilma Rousseff no cargo de presidente nos últimos anos fez o Brasil subir no ranking geral da entidade, passando da 85.ª posição para a 79.ª entre 2014 e 2015. Mas a classificação ainda é pior do que dez anos atrás, quando o Brasil ocupava a 67.ª posição. Hoje, o País fica atrás dos 17 outros países latino-americanos.

O desempenho do Brasil pode cair nas próximas edições do ranking, após o afastamento de Dilma e a posse de um governo com um número reduzido de mulheres em cargos de confiança ou ministeriais.

A disparidade econômica entre homens e mulheres no Brasil é um dos fatores que mais impedem o avanço no ranking. Nesse quesito, o País ocupa a modesta 91.ª posição entre 144 países e é superado por Paraguai, China, Camboja e Chade.

O Brasil é ainda um dos seis países do mundo onde a diferença salarial entre homens e mulheres em cargos executivos é de mais de 50%. Além disso, a presença de brasileiras no mercado de trabalho também é menor: 62% ante 83% de homens. Isso coloca o Brasil na 87.ª posição por esse critério. No que se refere à renda média, a brasileira ganha por ano US$ 11,6 mil. Já a renda média dos homens brasileiros é de US$ 20 mil.

Na América Latina, os especialistas indicam que, se o ritmo for mantido, a “lacuna econômica de desigualdade de gênero” será fechada em apenas seis décadas.

Na política, a presença feminina também é pequena, mesmo que em 2015 a Presidência fosse ocupada por uma mulher. O Congresso ocupa o 120.º lugar entre os países com melhor representação feminina. Antes mesmo de Michel Temer assumir o governo, o Brasil era apenas o 83.º quando o assunto era ministérios ocupados por mulheres. Na educação, a diferença entre homens e mulheres voltou a crescer pela primeira vez em cinco anos. O ponto positivo ficou no acesso à saúde, em que o País aparece em 1.º lugar.

Fonte: Estadão, Jamil Chade, 26/10/2016

segunda-feira, 13 de março de 2017

As mulheres que mapearam as estrelas e fundaram a astrofísica moderna

Williamina Fleming, por volta de 1890, junto à chapa, de 1888, na qual, pela primeira vez,
identificou a nebulosa Cabeça de Cavalo. Abaixo, uma imagem recente do mesmo campo.
As mulheres computadores de Harvard identificaram cerca de 400.000 estrelas, a composição desses astros e a medição de distâncias no Universo. Cerca de 80 mulheres trabalharam para o astrônomo Edward Charles Pickering, recebendo metade do que receberiam se fossem homens, e cinco se destacaram como fundadoras da astrofísica moderna: Williamina Fleming, Annie J. Cannon, Antonia C. Maury, Henrietta Swan Leavitt e Cecilia Payne. 

A empregada doméstica que descobriu 10.000 estrelas

Empregada do diretor do Observatório de Harvard virou peça-chave para a astrofísica

"Até minha empregada faria um trabalho melhor!", mas o professor Pickering jogava com cartas marcadas quando dirigiu essas palavras de encorajamento a seus assistentes em Harvard. Diante deles acumulavam-se chapas fotográficas com os espectros estelares mais detalhados até aquele momento. As primeiras chapas de uma enorme série que, posteriormente, seriam a chave com a qual a antiga astronomia daria lugar a uma nova ciência: a astrofísica.

Como é a vida; um dia você tem 19 anos e sente o tempo voar. Começa a correr sem rumo, provocando o destino, decide se casar, vai para longe e, em menos de dois anos, está sozinha, na rua, grávida e a 5.000 quilômetros de casa. Esses pensamentos deviam rodopiar na mente de Mina Fleming na primavera de 1879, enquanto se adaptava aos imprevistos da vida e deixava de lado seus seis anos de magistério para procurar um trabalho urgente como empregada doméstica. Sua velha cidade natal, Dundee, não era, claro, lugar para uma mente inquieta, oferecendo apenas um difícil, mas estável futuro na crescente indústria têxtil de juta ou nas fábricas de geleia. Nem seu marido, James Fleming, um contador bancário, viúvo e 15 anos mais velho, era, provavelmente, seu companheiro de viagem ideal. De qualquer forma, a Mrs. Fleming encontrou refúgio e trabalho como empregada doméstica na casa do diretor do Observatório da Universidade Harvard, o professor Edward Charles Pickering.

Williamina Paton Stevens Fleming tinha uma personalidade magnética e um rosto atraente, com olhos brilhantes e vivos que aumentavam o efeito encantador, e que, ao entrar, deixava no ar uma saudação alegre, embalada com sotaque escocês. Pickering, cujas habilidades incluíam a de identificar talentos, não duvidou em nenhum momento que, além de todas as outras qualidades, a nova empregada tinha uma educação e inteligência claramente superiores. Por isso, esperou que ela voltasse da Escócia, para onde Williamina havia retornado para dar à luz a seu filho, e, assim que pisou novamente em Boston, em abril de 1881, ofereceu-lhe um emprego no Observatório. No início, como assistente em tarefas administrativas e para fazer cálculos de rotina para os quais, em sua visão na época, uma mulher teria uma habilidade especial. Pelo menos, mais do que seus assistentes do sexo masculino.

Pickering era um professor de Física no comando de um observatório astronômico, o que não foi facilmente aceito pela velha guarda de Harvard. Acreditava que era hora de introduzir novos métodos. Deixar para trás a antiga astronomia de posição e movimentos e abrir caminho para a fotometria e estudos espectrais. E, embora ainda sem a base física que permitisse compreender a natureza dos objetos, estava certo de que o caminho era a coleta e classificação da maior quantidade de dados. Para isso, assim como fez Piazzi Smyth em sua campanha pioneira em Tenerife, na Espanha, colocou a técnica à frente do carro da ciência. Com o apoio de seu irmão mais novo, William Henry, começou a adotar o método de obtenção de espectros estelares colocando um prisma na lente do telescópio, para então continuar aperfeiçoando as técnicas espectroscópicas ao longo da década de 1880.

Como sempre na ciência, Pickering foi precedido por gigantes em sua empreitada. Antes dele, as primeiras descrições dos espectros de Sirius e Arturo foram reveladas por William Herschel (1798); a classificação das linhas espectrais do Sol, por Joseph von Fraunhofer (1814); a identificação de elementos químicos na atmosfera solar, por Gustav Kirchhoff e Robert Bunsen (1861); as primeiras chapas e classificações de espectros estelares, por Lewis Rutherfurd (1862); e, finalmente, o trabalho meticuloso do Padre Angelo Secchi (outro jesuíta) durante a década de sessenta (sempre no século XIX), que resultou na primeira classificação de estrelas por sua distribuição de linhas espectrais, ou seja, pelos componentes químicos de suas atmosferas (1867).

Em 1886, chegou o dinheiro da viúva de Henry Draper, um pioneiro na obtenção de fotografias de espectros de estrelas. Em memória de seu marido e para a realização de seu sonho de criar um grande catálogo, interrompido por uma morte prematura, Mary Draper decidiu financiar os trabalhos de Pickering. Fiel ao seu pragmatismo e sem complicar as coisas diante das novidades, Pickering não perdeu tempo. Sua experiência com Williamina Fleming não poderia ter sido melhor, por isso contratou outras nove mulheres para realizar os cálculos de rotina e a classificação dos espectros nas chapas fotográficas.

Edward Pickering e suas assistentes, conhecidas como "computadores de Harvard .”
Image: Harvard-Smithsonian Center for Astrophysics.
Era uma equipe de calculadoras humanas que ficariam conhecidas como "computadores de Harvard" ou "o harém de Pickering", dependendo das intenções. Um grupo de mulheres que continuaria aumentando nos anos seguintes e do qual surgiram algumas representantes da astrofísica mais importantes da história. E, no final das contas, foi uma verdadeira pechincha para o pragmático Pickering, que conseguiu uma brilhante equipe de 10 especialistas ao preço de cinco assistentes homens. Como responsável nomeou Nettie Farrar, que poucos meses depois abandonaria a carreira para se casar. Uma decisão tomada há 130 anos e cujas consequências no presente nos levam a refletir. Pickering não teve dúvidas: Mrs. Fleming iria substituí-la.
Trabalhadora, incansável e corajosa o suficiente para defender seus resultados, Williamina Fleming identificou e classificou os espectros de mais de 10.000 estrelas. Ampliou a classificação de quatro grupos de Secchi e introduziu um novo esquema baseado em 16 tipos, usando como referência as linhas de absorção do hidrogênio, identificados alfabeticamente de A a N (pulando a letra J), mais as letras O para estrelas com linhas brilhantes de emissão, P para nebulosas planetárias, e Q para as estrelas que não se encaixam nos grupos anteriores. Essa primeira parte do catálogo Draper, em compensação pelo financiamento recebido, foi publicada por Pickering em 1890, sem citar Fleming como autora (embora seja citada na parte interna e, posteriormente, não tenha hesitado em reconhecer publicamente sua autoria), e é a base da classificação espectral utilizada atualmente (classificação de Harvard).
Annie Jump Cannon at her desk at the Harvard Observatory.
Foto: The Smithsonian Institution Archives.
A chegada de espectros de resolução cada vez maior e a instalação de um telescópio em Arequipa, no Peru, no Hemisfério Sul, permitiram que a equipe liderada por Fleming e Pickering avançasse a classificação, especialmente com as importantes contribuições de duas outras "calculadoras", Antonia C. Maury e Annie J. Cannon, que reorganizaram os grupos espectrais e aumentaram o número de estrelas classificadas. Na publicação das ampliações do catálogo Draper lideradas por Maury (1897) e Cannon (em 1901 e várias outras até sua morte, em 1941) seus nomes já constam como autoras do trabalho. No total, as classificações de estrelas realizadas por essas mulheres somaram mais de 400.000.

A contribuição de Fleming poderia ser considerada decisiva e invejável para qualquer astrônomo atualmente, mas também deve ser atribuída a ela a descoberta de 10 supernovas e mais de 300 estrelas variáveis, tendo medido a posição e magnitude de 222 delas (1907), como parte da linha de trabalho que seria conduzida por outro eminente "computador de Harvard", Henrietta Swan Leavitt, que realizaria uma das descobertas fundamentais da astrofísica: a relação período-luminosidade das Cefeidas, com base na medição de distâncias no Universo. Finalmente, 59 nebulosas, entre as quais se encontra um dos objetos mais belos e fotografados do espaço, a nebulosa Cabeça de Cavalo, na constelação de Orion (1888). Apenas uma descoberta dessa importância serviria para compensar os sacrifícios de qualquer astrônomo. Antes de uma pneumonia matar Mina aos 54 anos, ela ainda teve tempo de publicar uma última classificação de um tipo de estrelas com um espectro particularmente especial e de cor branca, que posteriormente seriam chamadas de "anãs brancas".

O sucesso no desempenho de suas tarefas e capacidade de trabalhar acabaram sobrecarregando-a com tarefas mais simples que a afastavam, a contragosto, da ciência. Mrs. Fleming foi nomeada curadora da coleção fotográfica do Observatório, sendo o primeiro cargo organizacional ocupado por uma mulher. Mas também passou inúmeras horas, por exemplo, em trabalhos de edição e revisão dos Relatórios Anuais do Observatório. Seu salário "de mulher", muito inferior ao de seus colegas do sexo masculino, outro motivo de insatisfação e de protesto permanente, pode ser parcialmente compensado, por outro lado, pelo reconhecimento e honras que recebeu de numerosas sociedades astronômicas.

Em alguma tarde de domingo, talvez perto de um estádio de futebol americano depois de ver o Harvard Crimson, com seus pensamentos vagando livremente entre preocupações diárias e cuidados de mãe, pode ser que em sua mente rodopiassem novamente reflexões sobre os meandros da sorte e de como é a vida.

Julio A. Castro Almazán é físico e membro do SkyTeam do Instituto de Astrofísica de Canárias (IAC), especialista em Caracterização de Observatórios Astronômicos e Ótica Atmosférica.

Fonte: El País, 29/10/2015

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