8 de Março:

A origem revisitada do Dia Internacional da Mulher

Mulheres samurais

no Japão medieval

Quando Deus era mulher:

sociedades mais pacíficas e participativas

Aserá,

a esposa de Deus que foi apagada da História

quinta-feira, 31 de março de 2022

Câmara retira exigência medieval de autorização do marido para que mulher faça laqueadura

Laqueadura obstrui as trompas e evita o encontro entre óvulos e espermatozoides (Foto: Editoria de Arte/O Globo) - Fonte: Revista Cenarium

Esposas também não precisarão dar aval para vasectomia. Proposta permite também que o  procedimento seja feito durante a cirurgia do parto. Texto segue para o Senado.

A Câmara dos Deputados aprovou nesta terça-feira (8), Dia das Mulheres, um projeto de lei que retira da legislação a exigência de consentimento do cônjuge para a esterilização voluntária. No caso de uma mulher casada, a legislação atual exige a autorização do marido para a realização de laqueadura tubária. O texto segue para o Senado.

Atualmente, a legislação determina que, se forem casados, tanto o homem quanto a mulher precisam do consentimento expresso do cônjuge para a esterilização. A proposta retira essa exigência, inclusive no caso do homem que quiser fazer vasectomia.

Outra mudança prevista no texto é a possibilidade de que a cirurgia de laqueadura seja feita durante o período do parto. Neste caso, a mulher deve fazer o pedido com pelo menos seis meses de antecedência em relação ao parto e devem ser observadas as "devidas condições médicas".

A legislação atual veda esse tipo de procedimento durante os períodos de parto ou aborto, "exceto nos casos de comprovada necessidade, por cesarianas sucessivas anteriores".

A proposta também reduz de 25 para 21 anos a idade mínima para a realização de esterilização voluntária, tanto para homens quanto para mulheres.

Atualmente, a legislação prevê o procedimento para homens e mulheres maiores de 25 anos ou, pelo menos, com dois filhos vivos. Contudo, segundo a relatora, "são frequentemente manifestadas também as dificuldades de pessoas maiores de 21 anos que já têm três filhos".

Prazo para método contraceptivo

A proposta também estabelece um prazo máximo para a disponibilização de qualquer método e técnica de contracepção.

Ao justificar a inclusão da proposta, a relatora da matéria, deputada Soraya Santos (PL-RJ), cita como exemplo a inserção do Dispositivo Intrauterino (DIU), cuja "dificuldade para o procedimento é marcante".
Assim, sinalizamos aos serviços de saúde que o prazo máximo para que sejam disponibilizados deve ser de trinta dias. Temos a certeza de que é possível a organização nesse sentido", escreveu.
Planejamento familiar

Os senadores aprovaram também nesta terça-feira (8) uma proposta que altera a lei do planejamento familiar e proíbe a recusa injustificada da oferta dos métodos e técnicas contraceptivos por parte dos serviços de saúde e das empresas de plano de saúde.

Pela proposta, que vai à Câmara, será punido com multa quem impedir ou dificultar, sem a devida justificativa, o acesso aos métodos de planejamento familiar.

O texto também exclui da lei do planejamento familiar trecho que prevê que, no casamento, o processo de esterilização depende do consentimento expresso de ambos os cônjuges.

Clipping Câmara retira exigência de autorização do marido para que mulher faça laqueadura, por Elisa Clavery, G1, 08/03/2022

terça-feira, 29 de março de 2022

Democracia em declínio no mundo com processos de autocratização inclusive no Brasil

O mais próximo da democracia que o Brasil chegou foi no governo Fernando Henrique Cardoso. No mais, o país nunca foi uma democracia plena porque tem uma corrupção endêmica como seu principal impeditivo, resultando em falsa separação entre os poderes, em juízes metidos até o pescoço no afã de soltar bandidos de colarinho branco. Também não existe participação popular efetiva e constante nas decisões políticas.

A luz no fim do túnel foi a Lava Jato que, pela primeira vez em nossa História, botou políticos e empresários corruptos, incluindo o santo da seita petista, São Lula, na cadeia. Mas o juiz símbolo da Lava Jato, Sérgio Moro, cometeu o erro crasso de se meter com Bolsonaro, não se sabe por vaidade ou ingenuidade ou mesmo por burrice, sendo traído pelo mesmo e virando vitrine dos petistas e seus cúmplices no aparelho cleptocrático atual. Hoje a cleptocracia recuperou boa parte de suas perdas, Lula processou Deltan Dallagnol e promete processar outros. Com Bolsonaro, nada democrático ou ético, o Brasil só continou descendo a ladeira. Com Lula, sedento do sangue dos que o puniram, a situação só deve piorar. 


O Brasil passa por um processo de "autocratização" e é considerado como um dos cinco países onde a democracia sofre os maiores abalos no mundo na última década. O alerta é do V-Dem Institute, da Suécia, um dos principais centros de pesquisa sobre o estado da democracia e que avalia centenas de dados de cada país por décadas. Segundo o estudo, a crise na democracia brasileira só não foi maior graças à atuação da Justiça, freando o presidente Jair Bolsonaro.

Para os pesquisadores do centro, o Brasil não é uma democracia liberal, já que vive desafios para garantir que todos os critérios de um estado de direito consolidado sejam atendidos. No ranking da entidade, o país aparece apenas como uma "democracia eleitoral".

A classificação sobre o índice de democracia nos países é liderada por Suécia, Dinamarca, Noruega, Costa Rica, Nova Zelândia, Estônia, Suíça, Finlândia, Alemanha, Irlanda, Bélgica e Portugal.

Na modesta 59ª posição, o Brasil perde para países como Gana, Bulgária, Senegal, Armênia, Romênia, Cabo Verde, África do Sul ou São Tomé e Príncipe.

O V-Dem Institute, que faz parte da Universidade de Gotemburgo, produz o maior conjunto global de dados sobre democracia, com mais de 30 milhões de pontos de dados para 202 países entre os anos de 1789 e 2021. Envolvendo mais de 3.700 acadêmicos e outros especialistas de outros países, o V-Dem mede centenas de diferentes atributos de democracia e, segundo seus representantes, permite novas maneiras de estudar a natureza, causas e consequências da democracia.

O instituto deixa claro que o Brasil está entre os países que mais sofreu um processo de erosão da democracia na última década, ao lado de Hungria, Índia, Polônia, Sérvia e Turquia. Na América Latina, o Brasil faz parte de um grupo que conta como El Salvador, Nicarágua e Venezuela.

A deterioração da democracia no país só não foi maior por conta da resistência do Supremo Tribunal Federal, diante da pressão de Bolsonaro para deslegitimar o sistema eleitoral.

Outra característica do Brasil é a "polarização tóxica" no sistema partidário e no debate político.
Por exemplo, a polarização no Brasil começou a aumentar em 2013 e atingiu níveis tóxicos com a vitória eleitoral do presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro em 2018. Desde que tomou posse, Bolsonaro se uniu aos manifestantes para pedir a intervenção militar na política brasileira e o fechamento do Congresso e da Suprema Corte", disse. "Além disso, ele promoveu uma militarização em larga escala de seu governo e a desconfiança do público no sistema de votação", denuncia o grupo.

 Erosão da democracia no mundo e um retorno ao ano de 1989

No restante do mundo, a situação é também considerada como preocupante. De acordo com o estudo, o nível de democracia desfrutado pelo cidadão global médio em 2021 caiu para os níveis de 1989.
Os últimos 30 anos de avanços democráticos estão agora erradicados. As ditaduras estão em alta e abrigam 70% da população mundial - 5,4 bilhões de pessoas", alertou.
A entidade estima que as democracias liberais atingiram o auge em 2012 com 42 países nesta qualificação. Mas, agora, estão nos níveis mais baixos em mais de 25 anos. Hoje, apenas 34 nações podem ser chamadas como democracias liberais abrigam apenas 13% da população mundial.
O declínio democrático é especialmente evidente na Ásia-Pacífico, Europa Oriental e Ásia Central, assim como em partes da América Latina e do Caribe", declarou.
Já as ditaduras estão em ascensão. O número de autocracias fechadas passou de 25 para 30 países, com 26% da população mundial

Mas é a autocracia eleitoral que é considerada como a situação mais comum, abrigando 44% da população mundial, ou seja, 3,4 bilhões de pessoas.

Clipping Brasil vive processo de "autocratização"; democracia recua 30 anos no mundo, por Jamil Chade, UOL, 21/03/2022,

quinta-feira, 24 de março de 2022

Historiadora e psicanalista Elisabeth Roudinesco critica identitarismo e excesso de termos do atual debate público

A escritora Elisabeth Roudinesco, em Paris em 25 de março de 2017.
• Créditos: Eric Fougere - Corbis

Autora francesa lança 'Eu Soberano' e afirma que há uma efervescência de termos, como cisgênero, branquitude, interseccionalidade, que obscurecem a realidade.

Elisabeth Roudinesco
notabilizou-se como historiadora da psicanálise, autora de biografias sobre Sigmund Freud e Jacques Lacan e de um Dicionário da Psicanálise. Com Eu Soberano – Um Ensaio sobre as Derivas Identitárias, recém-lançado no Brasil (Zahar, 304 págs., R$ 74), ela faz sua intervenção no debate incandescente sobre a questão identitária. O livro é um libelo contra as “designações identitárias” que, segundo ela, reduzem o ser humano a uma experiência específica e tentam acabar com a natureza do que é distinto. A autoafirmação de si, escreve Roudinesco no prefácio do livro, leva à hipertrofia do eu, em que “cada um tenta ser si-mesmo como um rei, e não como um outro” e consolida tendências de isolamento. Em contraponto, diz ela, é preciso reforçar a existência de uma identidade universal, que é múltipla e inclui o estrangeiro. No livro, Roudinesco fala com admiração da obra de Gilberto Freyre, da mestiçagem e da existência de um “hibridismo barroco” no Brasil.

O ensaio é uma genealogia do que Roudinesco chama de “derivas identitárias” – a metamorfose de movimentos sociais que, no começo do século 20, buscavam a emancipação, o progresso e a transformação do mundo para melhor em movimentos de afirmação de identidade, que buscam exprimir indignação ou o desejo de visibilidade e reconhecimento. Para ilustrar os perigos dos sectarismos identitários, Roudinesco evoca sua participação em um colóquio sobre psicanálise em 2005 no Líbano, país com 17 comunidades religiosas, cada uma com sua legislação e jurisdições próprias, e habituado a viver em guerra. Ao ser questionada por um anfitrião se seria cristã ortodoxa, por causa do sobrenome, Roudinesco teve de responder que seu pai era judeu-romeno, sua mãe era de uma família protestante de origens alemãs, mas ela era ateia, sem ser anticlerical, e se identificava apenas como cidadã francesa. Tempos depois, um dos participantes do colóquio e o filho do anfitrião morreriam em atentados a bomba em Beirute. Apesar da crítica às “derivas identitárias”, Roudinesco enfatiza que o maior perigo é o ressurgimento do identitarismo de extrema-direita, ancorado numa tradição de racismo e antissemitismo com profundas raízes no Ocidente.

A seguir, trechos da entrevista de Roudinesco ao Estadão sobre o livro.

Palestra da psicanalista Elisabeth Roudinesco em auditório da PUC São Paulo, em 2010
Foto: Tiago Queiroz/Estadão
ESP: Seu ensaio começa com uma história pessoal no Líbano, em que a senhora fez questão de se identificar como francesa. Sua motivação para o livro tem a ver com a defesa dessa condição de cidadã de um país do Ocidente, tão questionado pelos movimentos identitários?

ER: Ao citar o que ocorreu no Líbano, quis mostrar que mesmo eu já fui confrontada por uma designação identitária. No Líbano, houve uma situação extravagante porque foi a primeira vez em que eu tive que afirmar que era francesa, não por uma questão de identidade, mas por cidadania. A motivação do livro, porém, foi a de dizer algumas coisas que precisam ser esclarecidas. Há muito tempo, eu queria escrever algo sobre o que está acontecendo no mundo intelectual, que é a substituição da busca da emancipação pela afirmação identitária. Essa transformação se apoia notadamente em pensadores franceses que eu conheci, sobretudo Michel Foucault e Jacques Derrida, e que contribuíram para ilustrar o pensamento crítico. A designação identitária, porém, tem algo fortemente criticável porque ela coloca o sujeito em apenas um território como se nós fizéssemos parte de uma raça, de um gênero, de uma religião. É um perigo porque embute a retração dos valores universais de cada sujeito. Eu não reivindico os valores do Ocidente, mas os valores universais.

ESP: Sua intenção foi então recuperar a obra desses grandes intelectuais franceses que estariam sendo reinterpretados de uma forma equivocada?

ER: Não é propriamente o desejo de recuperar, mas de refletir sobre a transformação da obra deles. A reivindicação identitária mostra o conjunto do Ocidente como imperialista e colonizador, mas esquece que houve lutas anticoloniais dentro dos países ocidentais. Jean-Paul Sartre, que foi de uma geração bem anterior a Foucault e Derrida, encarnou a luta contra o colonialismo francês, mas foi arrastado para a lama com a tese de que os anticolonialistas franceses não tinham o direito de ser anticolonialistas porque eram franceses, ocidentais, brancos. Isso me ofende, porque sempre fui anticolonialista e venho de uma família anticolonialista. Além desse ponto de partida, outra motivação para o ensaio é mostrar que houve passos para trás com várias dessas derivas identitárias. A questão do gênero foi revolucionária ao introduzir a noção de que ele é uma construção social e psíquica e não apenas uma diferença anatômica de sexo, mas houve uma guinada no sentido contrário quando se passou a negar o sexo em detrimento do gênero. Ambos, sexo e gênero, são necessários.

ESP: A senhora considera então que muitas dessas derivas identitárias estão promovendo retrocessos?

ER: Sim. A noção de “negritude”, por exemplo, passou a ser racializada. Quando Aimé Césaire (poeta de origem martinicana) dizia que era negro e permaneceria sempre negro, ele não afirmava isso do ponto de vista da raça, mas, sim, do sentido do pertencimento a uma história e a uma cultura. Todas essas derivas, além disso, são acompanhadas de uma linguagem obscura. Há uma efervescência de terminologias, como cisgênero, branquitude, interseccionalidade, que obscurecem a situação real. O excesso de jargões é sempre um mau sinal. Um pensador que inova, é claro, inventa conceitos, mas há um certo limite para criar neologismos. Nesse caso, nós chegamos a um ponto de exagero.

Pintura sem título de 2014 do artista americano Kerry James Marshall sobre negritude    Foto: Metropolitan Museum of Arts
ESP: Apesar dessa linguagem obscura, e mesmo sendo minoritários na opinião pública, como a senhora assinala em seu livro, os movimentos identitários ganharam as ruas e inflamaram o debate público, tanto à esquerda como à direita. Como tais movimentos ganharam essa dimensão?

ER: Eles são muito ativistas. Além disso, há uma midiatização desse fenômeno. Na França, ganharam também repercussão na sociedade por causa dos debates memoriais sobre a guerra da Argélia. Estamos enfim nos apoderando da verdade de nossa história para reconhecer os crimes cometidos pela colonização. Mas esses movimentos identitários permanecem minoritários e, na minha opinião, não têm futuro. Esse fenômeno não vai durar. As derivas identitárias são sintomas de um mundo que está em transformação. Por isso, são derivas. Não são coisas bem instaladas. Acredito que se trata de uma crise do pós-colonialismo, do pós-comunismo. É uma crise que tem aspectos positivos, viu? As derivas identitárias colocaram o problema das minorias. Mas, no combate da história, estão condenadas porque elas se tornaram punitivas com a cultura do cancelamento, o boicote aos espetáculos e, sobretudo, com a releitura das obras de arte.

ESP: A senhora relaciona a eclosão das angústias identitárias à ascensão de uma cultura do narcisismo. Essa cultura foi reforçada pelas redes sociais?

ER: Sim. Tomei a expressão “cultura do narcisismo” de empréstimo de Christopher Lasch (historiador americano) e de Adorno, da Escola de Frankfurt. Eles – e os psicanalistas também – notaram como o narcisismo tinha se tornado um fenômeno social muito importante no final do século 20. Nós substituímos Édipo por Narciso. Quando Freud começou com a psicanálise, vivíamos em uma sociedade de frustração, onde a liberdade sexual não existia. A partir dos anos 60, com a liberação sexual nas sociedades ocidentais, com o sujeito confrontado a ele mesmo e não mais às proibições do começo do século 20, percebeu-se que as pessoas passaram a ter outras patologias: as depressões e os narcisismos.

A pensadora Elisabeth Roudinesco, durante a programação do Fronteiras do Pensamento em Porto Alegre, no ano de 2016 Foto: Fronteiras do Pensamento
ESP: A senhora escreve que o coração de todo sistema identitário repousa numa espécie de vergonha de si mesmo. Pode explicar isso?

ER: A gente vê claramente essa vergonha de si próprio, que retorna sob uma vontade narcisista, em alguns movimentos identitários, como o dos indígenas da República (partido político francês que se descreve como antirracista, antissionista e antiimperalista). É muito visível em um livro de Houria Bouteldja (porta-voz do partido até 2020, que já foi acusada de antissemitismo e homofobia, entre outras controvérsias). Ela expressa vergonha por seus pais, imigrantes argelinos que foram assimilados na sociedade francesa. A vergonha de suas origens, que retorna sob a forma de um ódio ao outro, é uma indicação de necessidade de tratamento psíquico. Não se pode permanecer pelo resto da vida na identificação de uma posição de vítima. É preciso sair dessa posição vitimista em algum momento. Isso é válido também para o movimento Me Too.

ESP: A senhora diz no livro que o reducionismo identitário reconstrói tudo o que ele pretende combater. Por essa lógica, pode haver racismo contra brancos?

ER: O termo “racismo contra brancos” foi usado pela extrema-direita – aqui na França e em toda a parte – para atacar autênticos militantes antirracistas. Certamente, não estou de acordo com isso. Mas nós somos obrigados a refletir sobre o que é o racismo. Todas as sociedades conhecem o racismo em todos os sentidos da palavra. Se pensamos no racismo como o ódio e a vontade de exterminar o outro, sim, nesse sentido, há movimentos extremistas negros que são racistas antibranco, como há movimentos extremistas brancos, como a Ku Klux Klan, nos EUA, que são racistas antinegros. É preciso pensar o racismo como uma questão universal. Por exemplo, há ódio aos judeus em países onde não há judeus. Na Europa, há racismo contra negros em lugares onde não há negros. Então, eu sou favorável a lutar contra todas as formas de racismo, não importa de onde elas vêm, sabendo que a história do racismo foi, em primeiro lugar, a dominação dos negros pelos brancos – ou seja, a história da colonização contra os colonizados. Lutar contra o racismo e o antissemitismo não deve ser também o apanágio de quem é negro ou judeu. Não é preciso ser negro ou judeu para lutar contra o antissemitismo ou o racismo. Tem que haver a mobilização de todo mundo.
Cartaz de apoio ao movimento #MeToo, em Tóquio
Foto: REUTERS/Issei Kato - 28/04/2018
ESP: A senhora aponta também a emergência do identitarismo de extrema-direita, que brande a defesa do nacionalismo e ganhou grande força na França, com dois candidatos, Marine Le Pen e Éric Zemmour, com chances de chegar ao segundo turno das eleições presidenciais em abril. Como analisa esse fenômeno – em particular, a novidade política representada por Zemmour, um judeu de origem argelina?

ER: Estamos numa situação em que nós, na Europa e na França, acordamos velhos demônios. O verdadeiro perigo identitário é esse: a extrema-direita, os populismos, os nacionalismos – é isso que leva às guerras, como a da Ucrânia, porque Putin é de extrema-direita e quer ressuscitar uma Rússia imperial. Éric Zemmour encarna o pior do pior na França. Zemmour é adepto da teoria racista da “grande substituição” e diz defender os valores ditos judaico-cristãos da Europa contra as “invasões islâmicas”. Por trás do seu racismo contra os árabes há também antissemitismo porque todo racista é também antissemita. Análises já feitas mostram como Zemmour repete o discurso de Édouard Drummont (jornalista que protagonizou, durante o caso Dreyfus, alguns dos mais virulentos ataques aos judeus franceses). Zemmour, evidentemente, tem vergonha da judeidade. Ele tenta reabilitar a colaboração do regime de Vichy na França com o nazismo, com a mentira de que o Marechal Pétain salvou os judeus franceses. Até Marine Le Pen abandonou essa tese infame.

ESP: Outro citado no seu livro é Michel Houellebecq. Nos anos 70, a senhora fez trabalhos de crítica literária. Como analisa a obra dele?

ER: Houellebecq faz parte de uma corrente literária muito particular existente na França. Nós a chamamos de literatura de abjeção porque ela tem uma olhar sobre o mundo em que tudo é abjeto, os personagens cultivam a abjeção e um horror de tudo. É uma literatura que se origina da extrema-direita. As primeiras obras de Houellebecq eram muito interessantes porque havia uma espécie de crítica muito violenta da sociedade de consumo e da classe média. Mas, nos três últimos livros, a partir de Submissão, fiquei impressionada com o empobrecimento literário, uma redução da literatura a engajamentos ideológicos. Essa é a pior coisa que pode acontecer à literatura. Com um engajamento político muito forte, não se faz boa literatura – e isso vale também para a extrema-esquerda. Faz-se boa literatura quando se sabe trabalhar com a forma. Eu penso que Houellebecq é cada vez menos um bom escritor. Ele se tornou um ideólogo da extrema-direita, que está perdendo seu talento.

Clipping Elisabeth Roudinesco critica identitarismo e excesso de terminologias que pautam o debate público, por Guilherme Evelin, O Estado de S.Paulo, Aliás, 19 de março de 2022  

terça-feira, 22 de março de 2022

Os longos 90 anos do sufrágio feminino no Brasil e algumas de suas protagonistas

I Congresso Internacional Feminista no Rio de Janeiro: evento contou com presença da sufragista americana Carrie Chapman Catt (ao centro, ao lado de Bertha Lutz) Arquivo Nacional
Estudar, trabalhar, votar, divorciar-se. As brasileiras do começo do século 19 não tinham nenhum desses direitos.

Até 1830, pra se ter ideia, a lei permitia que os maridos castigassem fisicamente as esposas, uma herança das Ordenações Filipinas, um conjunto de leis de origem espanhola adotada por Portugal e implantada no Brasil colônia.

Até 1962, as mulheres casadas precisavam de autorização formal dos maridos para trabalhar - o Código Civil de 1916 via a mulher como incapaz para realizar certas atividades.

Nas escolas, até 1854 as meninas aprendiam corte, costura e outras "prendas domésticas", enquanto aos meninos se ensinava ciências, geometria e operações mais avançadas de matemática. Depois que o currículo foi unificado no ensino básico, ainda foram necessárias várias décadas até que as mulheres tivessem acesso mais amplo às universidades, algo que só ocorreu depois de 1930.

O direito de votar veio em 1932 - com a promulgação do decreto nº 21.076 no dia 24 de fevereiro, há exatos 90 anos -, como mais um capítulo de uma história longa, que vai muito além do acesso às urnas.

Participantes do II Congresso Internacional Feminista no Recreio dos Bandeirantes (RJ): conquista do foto teve muitas protagonistas
Conheça, a seguir, 4 mulheres protagonistas desse processo.

Nísia Floresta, uma das precursoras dos movimentos de lutas por direitos das mulheres
Nísia Floresta: o acesso à educação

Uma das precursoras dos movimentos pela conquista dos direitos das mulheres no Brasil viveu um século antes da promulgação do voto feminino.

Dionísia de Faria Rocha, que se tornaria conhecida pelo pseudônimo Nísia Floresta Brasileira Augusta, nasceu em Papari, no interior do Rio Grande do Norte, em 1810.

Numa época em que a vida das mulheres estava circunscrita basicamente à esfera doméstica, como esposas e mães, Nísia foi um ponto fora da curva. Foi do Rio Grande do Norte para Pernambuco, para o Rio Grande do Sul, para o Rio de Janeiro.

Amantine Lupin (George Sand)
Viveu anos na Europa, onde transitava por círculos de intelectuais com nomes como Almeida Garret, Alexandre Herculano, Alexandre Dumas, Victor Hugo e Amandine Dupin - que se apresentava como George Sand, pseudônimo masculino que usava para assinar seus livros, algo que não era incomum naquela época.

Teve 15 livros publicados e escreveu uma tradução livre da obra Vindication of the Rights of Woman, da escritora inglesa Mary Wollstonecraft, intitulada Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens.

Vanguardista, Wollstonecraft chegou a publicar um livro em resposta aos escritos do filósofo Jean Jacques Rousseau, que afirmava, em Émile, ou da Educação, que a mulher, por ser intelectualmente inferior ao homem, deveria receber uma educação superficial, com ênfase maior na educação moral.

Ainda que não repetisse o discurso de rompimento da intelectual inglesa, Nísia defendia que as mulheres tivessem acesso à mesma educação que os homens.

Foi professora e fundou, em 1838, no Rio de Janeiro, um colégio para meninas com um currículo que ia bem além das aulas de corte, costura e boas maneiras previstas na lei. O programa do Colégio Augusto incluía latim, francês, italiano e inglês - tanto gramática quanto literatura -, geografia e história.

Apesar de não ter eliminado as aulas de "prendas femininas", o fato de dar às meninas instrução bem mais ampla que o comum da época fez da escola alvo de duras críticas dos jornais cariocas durante os 18 anos em que esteve em funcionamento.

Na edição de 2 de janeiro de 1847 do jornal O Mercantil, um comentário sobre os exames finais em que várias alunas haviam sido premiadas com distinção alfinetava: "trabalhos de língua não faltaram; os de agulha ficaram no escuro. Os maridos precisam de mulher que trabalhe mais e fale menos". O trecho foi destacado pela pesquisadora Constância Lima Duarte, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em sua tese de doutorado (Nísia Floresta: Vida e Obra).

As escolas praticamente não existiam no Brasil colônia, muito menos o ensino obrigatório - a educação estava nas mãos da igreja Católica, que em seus conventos e seminários lecionava a poucos alunos.

Com a vinda da Corte para o Brasil, em 1808, o ensino começa a se difundir no país, especialmente entre as famílias ricas, que costumavam contratar professoras estrangeiras (francesas e portuguesas, principalmente) para que ensinassem aos filhos dentro de casa.

A primeira grande legislação sobre educação só é promulgada depois da independência, em 1827, durante o período do Primeiro Império. É ele que estabelece que o ensino para meninos e meninas deveria ser diferenciado.

Em matemática, por exemplo, os cursos para meninas só deveriam cobrir as quatro operações básicas - somar, subtrair, multiplicar e dividir -; enquanto aqueles para meninos incluíam geometria, frações, proporções, números decimais. A lei só unificaria os currículos quase 30 anos depois, em 1854.

A pesquisadora Mônica Karawejczyk, que há 15 anos estuda a questão do voto feminino no Brasil, pontua que Nísia não chegou a defender o voto feminino.
Ela pedia outras coisas porque aquela era uma época em que a mulher não tinha direito a quase nada. Só em 1827 tiveram direito ao ensino primário, e mesmo assim não era igual [ao currículo masculino]."
A educação, entretanto, é um grande catalisador das transformações que aconteceriam nas décadas seguintes - e, por isso, o ativismo de Nísia e de outras mulheres nesse sentido é considerado fundamental para os avanços que vieram depois.
No momento em que a mulher tem acesso à educação, quando começa a ler, se instruir, começa a querer outras coisas: 'Por que ele tem direito e eu não tenho?', 'Por que ele pode fazer Medicina e eu não?' A partir daí, começa a haver uma maior conscientização sobre essas questões", ressalta a pesquisadora, autora do livro Mulher Deve Votar?: o Código Eleitoral de 1932 e a Conquista do Sufrágio Feminino Através das Páginas dos Jornais Correio da Manhã e A Noite.

Leolinda de Figueiredo Daltro
Leolinda de Figueiredo Daltro: o primeiro partido feminino

Uma mulher que fez muitas dessas perguntas foi a baiana Leolinda de Figueiredo Daltro, que nasceu cerca de 50 anos depois de Nísia, em 1859.

Também professora, seu principal foco no âmbito do magistério eram os indígenas. Leolinda defendia que eles fossem incorporados à sociedade brasileira por meio do ensino laico, desligado da igreja - em uma época em que praticamente todas as iniciativas nesse sentido eram dominadas por agremiações católicas, como os jesuítas.

Após a proclamação da República, nos anos 1890, chegou a percorrer o interior do país por alguns anos alfabetizando comunidades indígenas.

Já separada do segundo marido e com 5 filhos - os quais sustentava com seu salário -, a própria forma como levava a vida afrontava os costumes da época. E foi experimentando as barreiras que se colocavam às mulheres pelo simples fato de serem mulheres que Leolinda se voltou para as questões de gênero.

Em setembro de 1909, foi impedida de apresentar um trabalho no primeiro Congresso Brasileiro de Geografia por ser mulher, relata a historiadora Eliane Rocha em sua tese de doutorado (Entre a Pena e a Espada - A Trajetória de Leolinda Daltro: 1859-1934). Por essa mesma razão, nunca foi nomeada oficialmente como "catequista leiga ou diretora de índios", cargos aos quais sempre almejou.
Ela percebeu que precisaria mudar as leis para poder se inserir no espaço público", destaca Karawejczyk, que também escreveu sobre Leolinda em sua tese de doutorado (As Filhas de Eva Querem Votar: dos Primórdios da Questão à Conquista do Sufrágio Feminino no Brasil).
Assim, morando no Rio de Janeiro, em 1910 ela funda o Partido Republicano Feminino (PRF), o primeiro com esse perfil montado no Brasil - e não formalmente reconhecido como partido, já que nem direito a voto as mulheres tinham ainda (uma das demandas, claro, do PRF).

Leolinda Daltro (segunda, da esq. para dir.) em evento do PRF, em foto publicada no jornal O Malho
Ela e todas aquelas mulheres começaram a frequentar as sessões parlamentares, vaiavam, aplaudiam. Elas tiveram muita coragem de se colocar e exigir esses direitos políticos", diz a pesquisadora.
Por causa do estilo confrontativo, Leolinda era constantemente chamada pelos desafetos - e por boa parte da imprensa - de "Pankhurst brasileira", uma referência a Emmeline Pankhurst, uma das fundadoras do movimento sufragista na Inglaterra.

Emmeline Pankhurst T
  • he Women's Library 
  • LSE Library
  • Líder do Women's Social and Political Union (União Social e Política das Mulheres, WSPU), a britânica é um dos nomes mais célebres do que ficou conhecido como suffragettes, grupo que tinha um estilo de atuação mais combativo.

    Para pressionar os políticos e chamar atenção da opinião pública, as suffragettes faziam ações que iam desde interromper discursos de autoridades até acorrentar-se a portões de prédios públicos e atear fogo nas caixas de correio.
    Evento da WSPU com lema da entidade ao fundo: 'ações, não palavras' ('deeds not words')

    No Brasil, as sufragistas do PRF eram constantemente alvo de campanhas difamatórias e ridicularizadas nos jornais, ligadas pela opinião pública ao que Karawejczyk chama de "mau feminismo" - em oposição ao "bom feminismo" que caracterizaria o grupo da geração posterior à de Leolinda, como Bertha Lutz (leia mais abaixo).

    Leolinda "invadia espaços exclusivamente masculinos e expunha-se pessoalmente às críticas, sempre buscando chamar atenção para as desigualdades e injustiças", escreveu a historiadora Teresa Cristina de Novaes Marques, que há mais de 20 anos se dedica a pesquisar a história das mulheres, em um artigo na revista Gênero em 2012.

    Entre os exemplos, a pesquisadora cita o episódio do Congresso Pan-Americano realizado no Rio de Janeiro em 1906, em que a ativista levou consigo um grupo de sete indígenas para assistir ao evento.

    Nos anos 1920, Leolinda começa a se afastar aos poucos da vida pública. Isso não impediu, entretanto, que ela não apenas votasse nas eleições de 1933, como também se candidatasse a deputada federal - sem conseguir, contudo, se eleger.

    Bertha Lutz era filha do médico Adolfo Lutz
    Bertha Lutz: o primeiro congresso feminista

    A bióloga Bertha Maria Júlia Lutz tinha o estilo oposto do de Leolinda. Avessa ao conflito direto, preferia os pronunciamentos públicos, cartas à imprensa e a busca de apoio de lideranças masculinas - e fazia questão de deixar clara essa distância.

    A professora da Universidade de Brasília (UnB) Teresa Cristina de Novaes Marques conta que se surpreendeu quando começou a pesquisar no Arquivo Nacional os documentos da Federação Brasileira para o Progresso Feminino (FBPF) - fundada por Bertha - e não localizou uma menção a Leolinda, a não ser um pequeno obituário.
    Para mim era tão natural, eu achava que iria encontrar uma homenagem a dona Leolinda como sendo a precursora", comenta a historiadora, autora do livro Bertha Lutz.

    Mas ela [Leolinda] era uma pessoa tóxica para os propósitos da Bertha, porque atraía uma imprensa jocosa."
    Essas e outras nuances têm vindo à tona nas últimas décadas, à medida que mais pesquisadores se dedicam a reconstruir a história dos movimentos de luta pelos direitos das mulheres no Brasil e lá fora.

    Nascida em 1894, Bertha entra em cena em um momento em que o movimento feminista da América Latina vinha se internacionalizando e já estava integrado às redes europeias.

    Ela mesma tinha vivido em Paris, na França. Formou-se na prestigiosa Universidade Sorbonne e, em 1918, volta ao Brasil. No Rio de Janeiro, começa a trabalhar como assistente do pai, o célebre médico de ascendência suíça Adolfo Lutz, na seção de zoologia do Instituto Oswaldo Cruz.

    Em um período em que a Ciência é monopolizada por homens, ela teve dificuldade para se estabelecer como cientista - um dos fatores, inclusive, que a impele para a atividade política.
    A Bertha é uma pessoa estudada, mas não é uma pessoa de dinheiro - essa ressalva é importante. Então ela precisava trabalhar. Por que ela entra no feminismo? Porque quer ter uma oportunidade de trabalho digna para sua formação", destaca Marques.
    Em 1919, funda então a Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher (LEIM), que tinha, entre seus objetivos, articular a aprovação do sufrágio feminino.

    Em 1922, participa de uma grande conferência feminista em Baltimore, nos Estados Unidos, a Conferência Pan-Americana de Mulheres - onde se encontra com a sufragista americana Carrie Chapman Catt, com quem se correspondia por cartas e que elegeria como uma espécie de mentora.

    Naquele mesmo ano, a LEIM vira a Federação Brasileira para o Progresso Feminino (FBPF) e organiza o Primeiro Congresso Internacional Feminista do Brasil, no Rio de Janeiro.

    A ideia era marcar as celebrações do centenário da independência, para que elas e o evento tivessem uma projeção na imprensa", conta Marques.

    Àquela altura, a demanda pelo voto feminino estava longe de ser um assunto novo para os políticos brasileiros. Há décadas aparecia nas discussões do Legislativo, inclusive durante a Assembleia Constituinte que redigiu a primeira Constituição da República de 1891, quando prevaleceu a posição daqueles que eram contrários ao direito do sufrágio às mulheres.

    Ante as tentativas mal-sucedidas, a pressão foi crescendo com os anos. A partir da década de 1920, mulheres em diferentes regiões do país chegaram a entrar na Justiça para reivindicar o alistamento eleitoral - isso porque a legislação brasileira era ambígua, não afirmava expressamente que o voto era proibido às mulheres.

    Entre elas estiveram Diva Nolf Nazário e Adalzira Bittencourt em São Paulo e Celina Guimarães e Júlia Barbosa no Rio Grande do Norte, como relata Marques no livro O Voto Feminino no Brasil, disponível para download gratuito e com mais de 100 mil acessos desde que foi publicado.

    Em 1930, o Brasil assiste ao golpe de Estado que coloca Getúlio Vargas no poder. No ano seguinte, as representantes da federação conseguem uma audiência com o presidente e, finalmente, em 1932, o voto feminino aparece no decreto do novo Código Eleitoral, publicado em 24 de fevereiro.

    Naquele momento ainda não houve, contudo, popularização do voto. Tanto para mulheres quanto para homens, ele era restrito aos cidadãos alfabetizados, regra que, na prática, excluía boa parte da população pobre.

    Almerinda Gama Foto: CPDOC – FGV

    Almerinda Gama: feminismo sindicalista

    A datilógrafa e escritora Almerinda Farias Gama foi uma das filiadas da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF). Sua trajetória, contudo, foi bastante diferente da de Bertha.

    Ela veio de uma família com muitas mulheres. E mulheres que arrimam [eram o sustento da casa]. A tia era uma médica influente em Belém - então ela tinha exemplos de mulheres fortes", diz Marques, que orientou o mestrado da pesquisadora Patrícia Cibele da Silva Tenório sobre a ativista.

    Almerinda faz treinamento para ser datilógrafa e se aborrece quando começa a procurar emprego e percebe que repetidamente lhe oferecem salários inferiores aos pagos aos homens.

    Em busca de melhores condições, deixa o Pará e parte para o Rio de Janeiro, onde morava seu irmão. Lá, conhece o movimento feminista e se aproxima da FBPF, atraída por pautas como a de igualdade salarial defendidas pelas associadas.

    Entre as muitas funções que desempenhou na federação, era o "elemento de ligação" entre a entidade e a imprensa carioca, conta a pesquisadora.
    Ela era uma pessoa dinâmica. Não só datilografava, escrevia também - já escrevia na imprensa paraense. Então ela conhecia o pessoal da imprensa."
    Almerinda entrava nas redações e conversava com os jornalistas na esperança de convencê-los a publicar "notinhas" sobre a federação.
    E aquela simpatia que dona Almerinda era…as pessoas cediam", diz a historiadora.
    Em paralelo, teve uma trajetória importante como sindicalista. Ajudou a fundar e foi a primeira dirigente do Sindicato dos Datilógrafos e Taquígrafos do Distrito Federal. Como líder sindical, foi a única mulher a votar como delegada eleitora na Assembleia Nacional Constituinte de 1933.

    Em 1934, afasta-se da federação, entre outras razões, por achar que ela vinha perdendo seu caráter mais combativo, como relata Tenório em sua dissertação (A Vida na Ponta dos Dedos: A trajetória de Vida de Almerinda Farias Gama (1899-1999) - feminismo, sindicalismo e identidade política).

    A partir daí, segue trabalhando como datilógrafa e passa a atuar cada vez mais próximo dos sindicatos e de um núcleo do movimento negro em Madureira, no subúrbio do Rio.

    Perto dos 50 anos, Almerinda consegue finalmente erguer sua casa própria, no bairro do Méier, também no subúrbio do Rio - um espaço que acabou usando para acolher muitos migrantes e quem precisasse de "pouso" no Rio de Janeiro.
    Muita gente passou pela casa da dona Almerinda, que era uma casa de portas abertas", destaca Marques.
    A Bertha era uma pessoa que fazia política pelos canais tradicionais - escrevia, se manifestava, pedia audiência. A dona Almerinda fazia política com suas escolhas pessoais."
    Clipping 90 anos do sufrágio feminino no Brasil: 4 ícones da longa luta das mulheres pelo direito ao voto, por  Camilla Veras Mota, BBC News Brasil, 24/02/2022 

    terça-feira, 15 de março de 2022

    15% dos militares da Ucrânia são mulheres. Conheça suas histórias!

    Irina Sergueieva, primeira mulher voluntária a ser admitida nas forças de defesa territorial da Ucrânia- Sergei Supinsky - 11.mar.22/AFP
    Mulheres ucranianas, antes vetadas no Exército, combatem russos na linha de frente
    Elas são 15% dos militares do país; voluntárias que lutaram no Donbass em 2014 pressionaram por reconhecimento e mudança na lei  Por Flávia Mantovani

    Quando lutou contra separatistas russos na região do Donbass em 2014, a ucraniana Andriana Susak cobria a cabeça com uma balaclava para esconder seu gênero, já que mulheres estavam proibidas de combater. Hoje oficial do Exército, ela exibe abertamente nas redes sociais o uniforme camuflado cheio de insígnias —e posta como homenagem fotos de outras militares que não têm medo de mostrar o rosto.

    Até 2016, as Forças Armadas da Ucrânia não aceitavam mulheres em posições de combate, pois eram regidas por leis da era soviética, que proibiam a elas funções que afetassem a saúde reprodutiva. No Donbass, Susak se registrou como costureira voluntária, mas desafiou os comandantes e foi para a linha de frente. Quando engravidou, em 2015, permaneceu nas trincheiras até os cinco meses de gestação.

    Ela é uma das retratadas no documentário "Batalhão Invisível" (2017), sobre seis pioneiras que lutaram no front como voluntárias no leste da Ucrânia, registrando-se como cozinheiras, secretárias e enfermeiras. Dirigido por três mulheres, o filme foi parte de uma campanha mais ampla que contribuiu para que a Ucrânia passasse a permitir, em 2016, o alistamento feminino em 62 posições de combate.

    Hoje, elas são ao menos 32 mil, de acordo com números do fim de 2021, ou 15% de todo o Exército ucraniano —proporção aparentemente maior do que a dos oponentes russos; em maio de 2020, o ministro da Defesa de Moscou disse que havia cerca de 41 mil mulheres alistadas, 4,2% do total.

    O perfil das mulheres nas Forças Armadas de Kiev é variado, segundo Anastasiia Banit, do Instituto para Programas de Gênero, ONG responsável pelo documentário "Batalhão Invisível" e por outras iniciativas em prol de militares ucranianas.

    Quando a Rússia atacou a Ucrânia em 2014, nosso Exército não estava pronto, então precisava de muitos voluntários, o máximo possível. É por isso que muitas pessoas comuns que não tinham nada a ver com a esfera militar, mulheres também, ingressaram", diz.

    Soldadas em Kyiv. As mulheres ucranianas têm se tornando presença crescente no exército desde 2014. AP
    Havia mulheres jovens e velhas, com experiências profissionais extraordinárias em tempos de paz ou sem experiência nenhuma, com filhos e sem, casadas e solteiras. Estamos aqui para dar apoio a todas."
    Segundo ela, nos últimos seis anos, o contingente feminino dobrou. Mudanças na legislação, impulsionadas pelos movimentos de veteranas, contribuíram para tanto.

    Em 2018, o governo aprovou uma lei que garante às mulheres direitos iguais aos dos homens nas Forças Armadas. Em 2019, elas passaram a poder estudar em academias militares, nas quais são treinadas para serem oficiais, e no mesmo ano aquelas que lutaram no leste ucraniano em 2014 foram reconhecidas como veteranas, com acesso a benefícios sociais. Em 2020, os uniformes militares passaram a contar com roupas de baixo femininas, em vez das masculinas que eram padrão.

    Hoje, algumas bases militares possuem consultoras de gênero, que trabalham para convencer oficiais mais conservadores a seguirem políticas de equidade em seus batalhões. Mas casos de discriminação persistem: em agosto, o Ministério da Defesa queria que as mulheres marchassem em um desfile de salto alto, em vez de botas. Parlamentares de oposição e grupos feministas protestaram.
    Os saltos sempre foram incluídos nos uniformes militares femininos na Ucrânia, mas só agora vemos que as pessoas começam a entender como esses elementos estereotipados são desnecessários", afirma Banit. "Alguns postos ainda são proibidos. Elas enfrentam o sexismo de chefes e companheiros, às vezes da família e da sociedade. Tivemos avanços, mas livrar-se de preconceitos em uma esfera tão masculina é uma longa jornada."
    Segundo ela, até recentemente a ONG vinha trabalhando para prevenir a violência sexual no Exército, com a criação, por exemplo, de um atendimento virtual para apoio psicológico e canal de denúncia para casos de assédio, violência ou abuso sexual. Hoje, a equipe lida com necessidades mais emergenciais, que surgiram após a invasão russa do fim de fevereiro.

    No fim de 2021, quando a Rússia começou a mobilizar tropas na fronteira, o Ministério da Defesa ucraniano pediu que mulheres de 18 a 60 anos se alistassem, e muitas receberam treinamento militar. Cursos de autodefesa em cidades do leste também passaram a ser mais procurados por mulheres.

    A agência de notícias Reuters acompanhou uma mãe de 44 anos, gerente de uma construtora, e uma estudante de direito de 23 que passavam os fins de semana aprendendo tiro, artes marciais e primeiros socorros em um desses cursos na cidade de Kharkiv. Segundo o instrutor, um veterano de guerra, a demanda pelas aulas aumentava a cada novo indício de agressão russa.

    Primeira voluntária a ser contratada como militar na Ucrânia, em 2017, a tenente Irina Sergueieva hoje treina novos combatentes em uma garagem subterrânea em Kiev. Em entrevista à AFP, ela contou que nos primeiros dias após a invasão russa, muitas mulheres —e homens também— se ofereceram para pegar em armas e defender o país, mas sem entender de fato o que teriam que enfrentar.
    Percebi que muitas dessas jovens estavam romantizando um pouco tudo isso", afirmou, complementando que teve que dizer a algumas delas, "gentilmente", que 'não, você pode não ser preparada para isto'."

    Primeira-dama ucraniana, Olena Zelenska
    Em um conflito marcado pela forte propaganda nas redes sociais de ambos os lados, mulheres também têm sido exibidas como heroínas em posts. A primeira-dama ucraniana, Olena Zelenska, homenageou-as com a foto de uma militar em uma trincheira, em sua conta com 2,5 milhões de seguidores no Instagram.

    Antes da guerra, escrevi que a Ucrânia tem 2 milhões de mulheres a mais do que homens. Essa estatística agora assumiu um significado totalmente novo, porque significa que nossa oposição também tem um rosto feminino", escreveu.
    Outro exemplo é o vídeo-selfie de uma soldado não identificada que viralizou no Twitter. Caminhando, com a luz do sol ao fundo, ela se emociona e diz:
    Ainda estou viva, o sol está brilhando, os pássaros estão cantando. Tudo vai ficar bem. Longa vida à Ucrânia".
    A comoção gerou também notícias falsas, como a de que a miss Ucrânia Anastasiia Lenna teria se juntado ao Exército para lutar contra os russos. O boato ganhou força quando viralizou uma foto que ela publicou nas redes segurando uma arma. Depois, ela própria postou um vídeo esclarecendo que a arma era de airsoft, hobby que já tinha sido mencionado.
    Não sou uma militar. Sou apenas uma mulher, um ser humano normal", disse, acrescentando que a intenção era "inspirar as pessoas" e "mostrar que as ucranianas são fortes, confiantes e poderosas".
    Para Anastasiia Banit, o melhor Exército é aquele "com profissionais que realmente querem proteger seu país e sabem o que estão fazendo", independentemente do gênero.
    Cortar as mulheres desse campo significa diminuir o número de membros potencialmente habilidosos e valiosos. O Exército que inclui mulheres é a única maneira que um Exército deve ser."
    Clipping Mulheres ucranianas, antes vetadas no Exército, combatem russos na linha de frente, por Flávia Mantovani, FSP 12/03/2022

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