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quinta-feira, 22 de abril de 2021

Marie Curie: o que o filme da Netflix deixou de contar sobre a cientista

Foto de divulgação do filme Radioactive, protagonizado por Rosamund Pike; a atriz está caracterizada em frente a uma lousa preenchida com elementos químicos
Marie Curie (Rosamund Pike) ensinando na Sorbonne em cena do filme Radioactive Radioactive/Netflix/Divulgação

Ela visitou o Brasil em 1926, foi a primeira mulher a fazer doutorado na França e a única a ganhar dois prêmios Nobel em campos científicos diferentes.

Protagonizado pela brilhante Rosamund Pike e com a participação especial de Anya Taylor-Joy, Radiactive (2019) foi lançado recentemente na Netflix. Dirigida por Marjane Satrapi, a biografia narra alguns dos principais feitos de Maria Salomea Skłodowska, a Marie Currie, que nasceu em Varsóvia, na Polônia, em 7 de novembro de 1867, e mais tarde se mudou para Paris, na França, para realizar seu doutorado. Um dos principais nomes da ciência mundial, a polonesa descobriu, em parceria com seu marido, Pierre Curie, dois novos elementos, o Rádio e o Polônio, e possibilitou um dos mais eficazes tratamentos contra o câncer, a radioterapia.

O filme entrega, mas deixa alguns fatos importantes de fora ou até subentendidos, o que é compreensível, levando em conta a escolha de roteiro do diretor. Para você conhecer ainda mais essa cientista e mulher fenomenal, separamos dez coisas sobre a icônica Marie Currie que o longa não te conta (ou te conta muito por cima):

1. Marie Curie é até hoje a única mulher na história a ganhar dois prêmios Nobel

Radiactive (2019) mostra que a cientista foi duas vezes vencedora do Nobel, uma vez de Física e outra de Química, e que em ambos os episódios precisou lutar contra adversidades instauradas pela sociedade patriarcal e sexista. O que o filme não deixa tão explícito é que ela é a única mulher na história da Ciência a realizar tais feitos!

2. Ela é também a única pessoa a ser premiada pelo Nobel em dois campos científicos diferentes

O químico Linus Pauling ganhou dois prêmios Nobel: um em 1954, de Química, por sua obra científica, e outro em 1962, pelo seu ativismo contra testes nucleares. Só que este segunda foi o Nobel da Paz. Não tira o método do norte-americano, considerado um dos cientistas mais importantes de todos os tempos, mas Marie Curie foi indicada e ganhou dois prêmios Nobel no campo da Ciência, tornando pioneira e única na história, entre homens e mulheres, a conquistar tamanha honraria.

3. A polonesa foi a primeira mulher a fazer doutorado na França

Em uma época em que estudar era algo raríssimo para as pessoas do sexo feminino, que eram forçadas a seguir as imposições sociais machistas caso não quisessem ficar mal faladas (como serem boa esposas, mães e donas de casa), Curie não só fez doutorado como foi durante ele que encontrou na radiação, baseada em estudos iniciais realizados por Henri Becquerel, sua tese de conclusão de curso. É importante lembrar que, como o filme mostra, Curie foi a primeira mulher a lecionar na Universidade de Sorbonne.

Foto em preto e branco da cientista Marie Curie andando de bicicleta com seu marido, Pierre, em Paris; eles posam para a foto em uma vilinha florida
Pierre e Marie Currie durante passeio de bicicleta em Paris, em 1895, fotografados por Albert Harlingue em um jardim no bairro de Sceaux Musée Curie ; coll. ACJC / Albert Harlingue, Cote MCP69/Divulgação

4. O pai de Marie também era da área de Exatas

Władysław Skłodowski era professor de física e matemática no ginásio em uma escola de Varsóvia, cidade em que moravam, mas foi demitido por defender a independência da Polônia e a falar abertamente sobre isso. Como da época parte do país pertencia à Rússia czarista, um regime que flertava bastante com o absolutismo, não era permitido ter certas opiniões, ainda mais quando ela eram contrárias ao imperador e a seu governo. Mais tarde, o pai de Marie chegou a abrir um escola, mas esta funcionava muito precariamente.

5. Marie Curie lutou contra a depressão

Radiactive (2019) dá indícios para o espectador de que a cientista tinha algum transtorno mental, cujo estopim foi a morte da mãe, a pianista Bronisława Skłodowska, que faleceu de tuberculose em 1878, quando Marie tinha apenas 11 anos. Desde então, a polonesa tinha aversão a hospitais, que foi onde teve que se despedir de sua mãe. Entretanto, o longa não deixa explícito que Curie lutou contra a depressão, principalmente durante o começo da adolescência, e que o estopim não foi apenas a morte da mãe, mas também a da irmã mais velha, que morreu de tifo quando Curie tinha 7 anos de idade.

6. A cientista não era ateia

Em uma das partes do filme disponível no catálogo da Netflix, Rosamund Pike, que interpreta a cientista polonesa, retruca a irmã, quando questionada sobre acreditar em vida após a morte, e diz que crê, sim, que a mãe esteja em um lugar melhor: em um buraco na Polônia, que é bem melhor que a França. Para muitos, essa fala dá a entender que a cientista era ateia, ou seja, não acreditava na existência de divindades. Contudo, Curie se considerava agnóstica, acreditando apenas naquilo que pode se provar, mas concordando ser impossível afirmar com certeza se Deus existe ou não.

7. Ela bem que tentou voltar para a Polônia

O filme dirigido por Marjane Satrapi falhou nessa questão. Parece que Curie nunca quis voltar para a Polônia, tendo encontrado na França, mais precisamente em Paris, sua casa. Em determinada cena, a irmã da cientista até sugere que ela retorne para Varsóvia, argumentando que lá todo mundo a amava, o que não era bem verdade. Marie cogitou voltar para seu país de origem, sendo que Pierre Curie, seu marido, estava até disposto a ir com ela e se tornar professor, só que a Universidade da Cracóvia se recusou a aceitá-la no papel de cientista, simplesmente porque ela era mulher. Então, no fim, apesar de tudo, a França ainda era um país, entre muitas aspas, mais “promissor”.

8. A polonesa não usou seu dinheiro apenas para ajudar os soldados de guerra

Uma cena de Radiactive (2019) mostra Curie oferecendo suas honrarias de ouro dos prêmios Nobel que recebeu em troca de ambulâncias e equipamentos para ajudar os soldados de guerra, que estavam tendo partes do corpo amputadas sem necessidade, por pura falta de recursos médicos. Nas duas vezes em que ganhou o Nobel, porém, ela distribuiu dinheiro para pessoas próximas que ela sabia que estavam precisando, inclusive muitos estudantes foram ajudados financeiramente pela Madame Marie, como era carinhosamente conhecida.

Foto em preto e branco da cientista Marie Curie durante visita ao Brasil; ela está rodeada de pessoas e o Pão de Açúcar aparece ao fundo
Marie e Irène Curie (de roupas totalmente pretas ao centro) no Rio de Janeiro, em 1926, posando com outros estudiosos em frente ao Pão de Açúcar Musée Curie ; coll. ACJC / Cote MCP1266/Divulgação

9. Marie Curie já esteve o Brasil

Em agosto de 1926, a cientista desembarcou em Belo Horizonte para participar de uma conferência sobre radiatividade na Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais. Naquela época, os primeiros paciente com câncer estavam sendo tratados com a “Curieterapia”, hoje conhecida como radioterapia, no Instituto de Radium de Belo Horizonte, primeiro hospital especializado no uso da radioterapia contra o câncer no Brasil. Ele atraiu a atenção da cientista, que durante sua passagem pelo Brasil visitou o local e doou duas agulhas de rádio, usadas no processo de irradiação dos tumores, para a instituição criada pelo médico Borges da Costa. Curie veio acompanhada de sua filha mais velha, Irène Joliot-Curie, que também fazia pesquisas sobre a radiação aplicada na medicina.

10. Ela morreu aos 66 anos, vítima da sua própria genialidade

O longa não mede esforços para mostrar o quanto a sociedade é oportunista e pensa apenas em lucro, com empresas lançando produtos “radiativos” apenas pelo hype, sem antes fazer questão de saber se era seguro ou não. Sem contar o fato de o ser humano usar as descobertas de Marie e Pierre para o mal, criando as horrorosas bombas atômicas. Mas o filme não conta como a cientista morreu – só que, provavelmente, foi por causa da radiação, já que Curie e mais um monte de gente que havia sido exposta a ela estavam sendo diagnosticadas com anemia e câncer. Marie Curie faleceu em 1934, aos 66 anos, vítima de uma leucemia gravíssima. Até hoje, as anotações e as coisas deixadas pela polonesa só podem ser manuseadas com proteção, por causa da radiação que continuam emanando. 

Clipping Radioactive: 10 coisas sobre Marie Curie que o filme da Netflix não conta, por Isabella Otto, 20/04/2021, Capricho

quinta-feira, 4 de julho de 2019

Jessica Jones 3: por que mulheres ambiciosas e poderosas têm que acabar presas ou mortas?

Trish Walker e Jessica Jones: fim do sisromance
Jessica Jones foi uma minissérie criada pela roteirista Melissa Anne Rosenberg e produzida através de uma parceria entre a Netflix e a editora Marvel Comics. Com o fim dessa parceria, a Netflix abandonou as séries de todos os super-heróis da Marvel: Punhos de Ferro, Luke Cage, Demolidor, o Justiceiro e, por fim, Jessica Jones, a última a cair (em junho agora). Dizem que pesou, para esse abandono, o anúncio de que a Disney encerraria seu acordo de licenciamento de conteúdo com a Netflix a fim de privilegiar sua própria plataforma de streaming. Como o contrato entre a Marvel e a Netflix estabelece que os personagens da parceria só podem reaparecer nas telas dois anos após o cancelamento das séries, se acontecer de voltarem, será em 2020 e 2021, pelo Disney + e/ou o Hulu. Esperamos que possamos rever alguns desses personagens novamente, em particular os de Jessica Jones.

Enquanto isso, vamos à analise da última e melhor temporada da melhor das séries da turma da Marvel-Netflix, lançada no último dia 14 de junho. Melhor temporada no que diz respeito aos aspectos distintivos da série, o clima neo-noir, cínico e pessimista, o trabalho detetivesco, misturado com thriller psicológico, e boas cenas de ação (onde brilha a personagem de Trish Walker, versão de tela da personagem das HQ, a Felina). Também permanece uma abordagem não maniqueísta da maioria dos personagens, como nas outras temporadas, que oscilam entre ações éticas e anti-éticas, legais e ilegais, e vários autoquestionamentos de ordem moral. O tratamento dos personagens homossexuais também acerta no ponto porque não é panfletário em momento algum. A homossexualidade é, como na realidade, um detalhe da vida desses personagens e não algo positivo ou negativo em si mesmo. Aparece até representante de outro grupo minoritário, uma trans, Gillian, como secretária de Jessica, que faz uma ponta nos primeiros episódios, mas se destaca por umas tiradas bem engraçadas.

Como nada é perfeito, do lado negativo, temos erros de continuidade de alguns eventos, mas que não chegam a comprometer o conjunto da obra. Agora, complicado mesmo foi o fim da relação não homossexual mas homoafetiva, o sisromance entre Jessica Jones e sua irmã adotiva e melhor amiga Patricia (Trish) Walker. Esse relacionamento foi o eixo principal da série, ela girou em torno dele, com as personagens fazendo declarações mútuas de amor eterno, lutando uma pela outra, salvando uma e a outra de situações de perigo (lembra a Xena e a Gabrielle). As mães das duas personagens tinham até ciume dessa relação. Os fãs inclusive shipparam as duas com o nome Trishica, embora na real elas nunca tenham se tornado amantes (talvez devessem). Amantes elas sempre foram de homens (alguns bem discutíveis) em relacionamentos casuais ou temporários. Uma amostra desse sisromance pode ser vista nos vídeos abaixo das duas temporadas anteriores:



(Alerta de spoilers generalizados da segunda e terceira temporadas a partir daqui)
Jessica Jones e a mãe Alisa Jones 
Pausa para relembrar a segunda temporada

Entretanto, a relação das duas já tinha ficado abalada ao final da segunda temporada quando Trish mata a mãe de Jessica. Explicando, a segunda temporada se centrou na busca de Trish pela origem dos superpoderes de Jessica, encampada depois pela própria Jessica. Dessa busca, dois resultados decorreram:  
Jessica descobre não só o responsável pela sua superforça, Dr. Karl Malus,  como também que sua mãe, Alisa Jones, não morrera e que tinha superpoderes como ela (na verdade, era mais forte e mais colérica do que a filha). Daí decorrem vários dilemas para Jessica, durante a temporada, que oscila mais de uma vez entre entregar a mãe para a polícia ou conviver com ela, como forma de recuperar o tempo que não tiveram juntas. Já no fim da temporada, ela decide fugir com a mãe, embora perseguida pela polícia, crente de que poderia controlar os surtos de fúria de Alisa;
Trish passa a usar o inalador de seu ex-namorado da primeira temporada, Wilson Simpson, que servia para aumentar o desempenho físico e mental dos combatentes. Simpson estava usando o inalador pra ter forças para lutar contra o "monstro", na verdade a mãe de Jessica, que queria matar Trish para evitar que seguisse com as investigações sobre a IGH, organização paramilitar que fazia experimentações em soldados e pacientes graves. Quando a droga acaba, Trish sai no encalço de Karl Malus para que a operasse também de modo a conseguir superpoderes e lutar contra os bad guys da vida. Malus concorda em realizar o procedimento e prepara uma droga que tinha como um de seus componentes uma vacina contra cinomose felina, indicando que um dos componentes de sua fórmula era DNA felino.
A cirurgia é interrompida por Jessica exatamente quando Trish começa a ter convulsões e a soltar sangue pela boca na mesa cirúrgica. Jessica diz a Malus que ele estava acabado,  levando-o a explodir seu laboratório, não sem antes Jessica carregar Trish para fora do local. Jessica leva Trish para o hospital onde ela tem uma quase morte, ou um renascimento, mas se recupera o suficiente para ir matar Alisa ao ser informada que Jessica estava sendo cúmplice da fuga da mãe e que a polícia poderia matar as duas.
Com medo de perder Jessica para a mãe ou para o tiroteio da polícia, Trish se dirige para o parque de diversões Playland, em Westchester, pois sabia que aquele lugar tinha um significado especial para as Jones. Enquanto Jessica e a mãe, que decidira se entregar para a polícia a fim de  poupar a filha, conversavam num dos bancos da roda-gigante, Trish atinge Alisa na cabeça com um tiro. Chocada, Jessica pula do banco da roda-gigante, avança sobre Trish, pega seu revólver e aponta para ela, mas acaba poupando-lhe a vida porque a irmã lhe diz ter atirado para salvá-la, pois a polícia pretendia matar as duas (mãe e filha). Posteriormente elas se encontram na porta do escritório/apartamento de Jessica, Trish se desculpa pelo tiro, mas Jessica diz que não poderia ter sido ela a tomar aquela decisão. Que agora olhava para Trish e não via sua irmã mas sim a pessoa que havia matado sua mãe.
Trish se retira, secando uma lágrima dos olhos, mas, quando uma mulher sai do elevador de costas e esbarra nela derrubando seu celular, ela o ampara com o dorso do pé e fica com a impressão que talvez a cirurgia de Malus não tivesse fracassado afinal.
Resumo da terceira temporada

Trish Walker é baseada na personagem Felina das HQ
Na terceira temporada, vamos ver a evolução da personagem de Trish Walker que de fato desenvolveu poderes em decorrência da cirurgia feita com Malus. Na continuidade da cena em que apoia o celular com o dorso do pé, ela sai do elevador para a rua e, embora seja noite, vê tudo claro (gatos enxergam no escuro, não?). Daí por diante vemos Trish passar um ano aperfeiçoando suas habilidades felinas e adquirindo força e habilidade suficientes para pular de qualquer altura e cair sempre em pé (como um gato) e dar surras memoráveis em qualquer marmanjo (a personagem é inspirada na Felina das histórias em quadrinhos). Fora arranhar também, como faz no rosto do vilão dessa temporada, o serial killer Gregory Sallinger . O que não consegue é reatar com Jessica, pelo menos nos primeiros episódios, o que a deixa triste por não poder compartilhar sua experiência de iniciante no combate aos bandidos de Nova York.



Jessica fica logo sabendo das novas habilidades da amiga, pois a mãe de Trish, Dorothy, contrata a detetive para que encontre a filha, desaparecida havia dois dias. Ao investigar o paradeiro de Trish, Jessica a encontra invadindo o apartamento de um sujeito que investigava e depois saindo do local pela janela. Quando se falam sobre a novidade, Trish diz a Jessica que, se respondesse seus e-mails e chamadas, teria sabido antes. As duas trocam ainda outras palavras amargas e ásperas antes de se separar.

Do lado de Jessica, fora ter arrumado uma secretária, para agendar sua crescente popularidade como detetive super-heroína, tudo continua o mesmo. Permanece enchendo a cara e pegando desconhecidos em bares para levar pra cama. Nesta temporada, este último mau hábito vai lhe custar um baço e um grande amor. Erik, o cara que Jessica pega num bar e leva pra casa é um chantagista de criminosos. Um desses criminosos não aceita a chantagem e decide matar seu chantageador, seguindo Erik até o apartamento de Jessica. Quando a ficada ia se desenrolar, a campainha toca duas vezes, Jessica vai atender e é esfaqueada no baço no lugar de Erik. 

Por ser especialmente forte, Jessica sobrevive à facada, mas mal se recupera e já quer descobrir quem tinha sido seu atacante. A princípio pensa que fora o cara que Trish estava espionando quando a procurou, depois se dá conta que de fato o alvo do ataque tinha sido o boy que levara pra casa. Pressiona-o, ele revela que chantageava criminosos, de fato gente que ele sentia que era má, pois tinha o poder de perceber o lado dark das pessoas. Jessica vai então investigar as pessoas que ele tinha chantageado e chega, enfim, ao apartamento do esfaqueador, Gregory Sallinger, um sujeito de múltiplas formações (advogado, engenheiro, psicólogo, químico) e serial killer.

Gregory Sallinger, o serial killer
Para enfrentá-lo, Jessica decide pedir ajuda à Trish, embora se convença de que não como parceira, mas sim como arma secreta. Obviamente, Trish aceita, e elas começam uma luta de gato e rato contra o criminoso, onde quem perde no final é a gata (em duplo sentido). Após Jessica provocar o assassino, humilhando-o em uma aula de luta greco-romana, Sallinger decide retaliar e tortura e mata a mãe de Trish. Entretanto, quando Trish vai a seu encalço e esta prestes a matá-lo, Jessica aparece para impedi-la com o papo furado de que, se matasse Sallinger, Trish viraria a vilã da história. Dessa infausta decisão, decorre uma verdadeira tragicomédia de erros que leva as duas supers a terem que infringir a lei e até matar pessoas para impedir que uma e a outra fossem presas. Entre muitas peripécias, consumida pela dor e pela raiva, Trish vai ficando cada vez mais violenta contra os vilões com quem se depara, inclusive espancando e matando alguns, culminando na merecida morte de Sallinger. Jessica conclui que a irmã estava fora de si e decide entregá-la à polícia, como já fizera com a mãe na temporada dois. Trish tenta fugir de Nova York, mas Jessica a intercepta e a envia para a terrível Balsa (The Raft), a prisão de segurança máxima dos supercriminosos.

Trish Walker e Daenarys Targaryen: se muito poderosas, melhor enlouquecê-las
Análise da terceira temporada
Trish, vilã ou vítima? Ou do por que mulheres ambiciosas e poderosas têm que acabar presas ou mortas?

Maratonei a terceira temporada de Jessica Jones e nos últimos episódios fiquei dividida entre torcer para Trish escapar e me identificar com as razões de Jessica para querer detê-la. Fiquei tentando racionalizar toda a situação, mas o fato é que meu coração não engoliu a história. A produtora Melissa Rosenberg disse que começara a terceira temporada prevendo ainda uma quarta, mas que, no meio da  produção, ficou sabendo que a Netflix estava cancelando as séries da Marvel e que Jessica Jones seguiria as demais. Então, procurou chegar, em suas palavras, a um final satisfatório, a uma conclusão que sentisse como certa. Tenho a impressão de que o final da série só foi satisfatório para ela, não para os fãs, boa parte enlutada não só com o fim da Trishica como com o destino de Trish.

Verdade que o destino de Trish não foi tão improvável quanto o de Daenarys Targaryen em Game of Thrones. No caso da mãe dos dragões, a mudança da personagem de mocinha para vilã foi  abrupta, contrariando tudo que havia demonstrado numa série de 8 temporadas. Os showrunners disseram que os fãs é que não conseguiram ver os indícios do lado sombrio de Daenarys apresentados ao longo dos anos, mas o fato é que só convenceram a poucos. Daenarys sempre fora seguramente ambiciosa  e implacável com os inimigos, mas, ao mesmo tempo, solidária e compassiva com os desvalidos e inocentes. Da noite para o dia, transformaram uma personagem que se destacara como abolicionista, acabando com a escravidão em toda uma região, numa genocida que, a bordo de seu dragão, queimou uma cidade inteira, população civil, crianças, um monte de gente inocente. Tudo porque, em função das seguidas perdas que tivera recentemente, perdera também o juízo e o caráter e mudara da água para o vinho. A verdade é que, para justificar seu assassinato, era necessário vilanizá-la ao extremo. O fim de GoT, aliás, foi patético e risível em muitos termos.

No caso de Trish, sua virada de mocinha para "malvadona" não foi tão inverossímil quanto a de Daenarys, mas também nada satisfatória. Trish já demonstrara, na segunda temporada, que, para conseguir seus objetivos, podia ser meio ardilosa e seguir a máxima de que os fins justificam os meios. Inclusive em relação a si própria, já que quase morre, ao se colocar como cobaia do Dr. Malus, a fim de adquirir superpoderes. Fora ter matado a mãe de Jessica, embora Alisa tivesse intenção de assassiná-la desde o começo da segunda temporada e tivesse quase chegado às vias de fato quando Trish estava no hospital, sendo impedida por pouco pela filha. Trish tinha razões concretas para matar Alisa, mas a disputa pelo afeto de Jessica foi a principal razão do tiro. De qualquer forma, há que se salientar que ambiguidade moral sempre foi a regra no caráter de todos os personagens da série.

No caso de Trish, talvez o que tenha lhe faltado foi um pouco do ceticismo de Jessica quanto ao ser humano, e ela visse as coisas realmente muito só na base do bem versus o mal, onde claro, ela sempre estava do lado do bem. Apesar dessa mentalidade um tanto maniqueísta, Trish simplesmente assumiu o figurino comum aos super-heróis de sair dando umas porradas nuns meliantes, deixando os finalmentes para a polícia e os juízes. Mesmo após a morte da mãe, a qual não pode dar resposta imediata, o que fraturou algo em seu âmago, ainda manteve sua ira, embora incontida, estritamente contra os bad guys. Nenhum inocente morreu por suas mãos. Daí a rotulação da personagem como vilã no final da série ter sido exagerada e sua punição tão desproporcional.

Trish Walker/Felina
Trish, uma luta pela autodeterminação entre uma mãe abusiva e uma irmã prepotente

Na verdade, após rever a série, cheguei à conclusão de que Trish esteve muito mais para vítima do que para vilã da história, o que pode soar controverso para algumas pessoas. Em duas frases emblemáticas de sua saga existencial, Trish diz ao Dr. Malus, quando ele a alerta  sobre os riscos de fazer a cirurgia para adquirir superpoderes:
 Você sabe o que é se sentir impotente?”  
- Todo o mundo sabe” - ele responde.
- Nem todo o mundo teve uma mãe abusiva e uma irmã superpoderosa. Só quero ajudar pessoas que não podem se ajudar.”
De fato, a mãe de Trish, Dorothy Walker, viu no talento e na beleza da filha a possibilidade de sair da pobreza, comercializando-a desde pequena, emplacando-a num bem-sucedido programa infantil de TV, que intitulou de "É Patsy", e cafetinando-a, ao chegar à adolescência, para conseguir pontas em filmes e alavancar sua carreira como cantora. A intensa pressão exercida pela mãe levou a garota às drogas e a clínicas de reabilitação, a estas com ajuda da irmã adotiva Jessica Jones. Posteriormente, adotou o nome de Trish Walker e se tornou âncora de um também famoso programa de rádio.

Por sua vez, Jessica foi adotada por Dorothy, depois do acidente que matou sua família, mais para ficar bem aos olhos do público do que por qualquer preocupação real com a adolescente. Mal sabia ela que essa adoção criaria uma forte relação de amizade entre sua filha e a adotada e a levaria a uma morte trágica ao fim da temporada três que, ironicamente, a redimiu um pouco diante dos telespectadores. Nas palavras da própria Jessica, Dorothy foi a primeira vilã que teve que combater, para proteger a irmã, numa série de outros vilões, com Trish sempre no papel de "donzela em perigo" a ser salva pela super-heroína.

Vale enfatizar que essa situação desagradava Trish que, mesmo sem poderes, tentava uma relação mais igualitária com Jessica, buscando participar de suas investigações desde a primeira temporada, tornando-se exímia lutadora de Krav Maga inclusive. Após a conquista de seus superpoderes, quando as duas reatam para combater o assassino em série Gregory Sallinger, como Jessica continuasse a tratá-la de forma vertical, Trish critica com todas as letras a forma de tratamento desigual que recebia. E, de fato, nessa terceira temporada é Trish que efetivamente salva Jessica de uma armadilha mortal, criada por Sallinger, num tanque, em uma ferrovia, onde o assassino guardava pedaços dos corpos de suas vítimas. A relação das duas distensiona um pouco depois deste evento, mas se percebe a dificuldade que Jessica tem de lidar com uma Trish quase tão poderosa quanto ela. Por ser mais experiente como detetive, Jessica impõe sua vontade no desenrolar do caso contra Sallinger e sobre as ações de Trish (como se fosse possível botar cabresto em gato), cometendo erros que iniciarão uma cadeia de eventos incontrolável.

Erik Gelden, o boy que Jessica pega no bar e lhe dá de presente um serial killer
Pra começar foi Jessica que colocou o serial killer no caminho de Trish e de sua mãe. Vejamos:
Primeiro, com seu péssimo hábito de levar homens desconhecidos pra casa, trouxe um chantagista de criminosos, Erik, pra namorar, e o bandido que ele chanteagava pra soleira de sua porta. E o bandido era um serial killer.
Segundo, chama Trish, por quem ainda tinha sérias mágoas, para usá-la como sua arma secreta contra Sallinger porque ele era superqualificado, e ela não dava conta dele sozinha. Vale ressaltar que Trish teria ficado apenas como mais uma heroína de Hell's Kitchen, pegando alguns bandidos pra entregar à polícia, se não fosse esse infausto convite. 
Terceiro, após salvar Erik, junto com Trish, que fora sequestrado por Sallinger, Jessica tenta convencer o boy a testemunhar contra o assassino. Como Erik também era chantagista, Jessica diz que conseguiria que ele ficasse preso por um ano, no máximo, se testemunhasse. O cara diz que não poderia testemunhar porque, com seu poder de detectar os maus, o que lhe causava  intensas dores de cabeça, iria morrer de dor rodeado de criminosos na cadeia. Trish sensatamente pondera que ele ficaria na solitária e poderia partir para a condicional, em pouco tempo, mas o mané não aceita, e Jessica o paternaliza.  Trish diz então que ela não viesse mais lhe dar sermões sobre o que estava em jogo naquela situação. E o serial killer sai da cadeia.


Quarto, após descobrir o corpo da primeira vítima de Sallinger, em sua terra natal, Jessica o reencontra num centro comunitário, de volta a Nova York, onde ensinava luta greco-romana. Jessica luta com ele e o humilha, ainda por cima  perguntando se tinha sido com golpes como aquele, utilizados contra ela, que ele tinha assassinado Nathan Silva, sua primeira vítima. Sallinger naturalmente resolve retaliar a arrogância de Jessica logo depois, enviando-lhe falsas dicas de mulheres que supostamente iria matar (parecidas com ela) como manobra diversionista. Enquanto ela e Trish buscam os supostos alvos, Sallinger  engana a polícia que guardava seu apartamento e sai para matar a mãe de Trish, também mãe adotiva de Jessica. Jessica depois lamenta a insensatez de ter se vangloriado para cima de um assassino em série, mas já era tarde.

Quinto, quando Trish vai visitar a mãe e a encontra morta, toda esfaqueada, com sinais de tortura, naturalmente fica transtornada e parte para matar Sallinger. Invade seu apartamento, tira a máscara, pra que ele visse quem iria matá-lo, inicia uma luta com ele, rasga-lhe o rosto com as unhas, mas, quando estava prestes a dar o golpe final, Jessica aparece pra impedi-la com a ladainha moralista e absurda de que se o matasse ela se tornaria vilã como ele. Não convence e tem que nocautear Trish para poder tirá-la da cena, pois já se podia ouvir a polícia chegando.
Obviamente, se Trish havia chegado até ali, Sallinger tinha visto seu rosto, e, como Jessica sabia, o apartamento tinha câmeras, o mais lógico era tê-la deixado terminar o serviço. Àquelas alturas do campeonato, com a mãe de Trish, o cara já tinha matado nove pessoas (as vítimas conhecidas ao menos), escapado da cadeia e enganado os policiais que o guardavam para ir matar Dorothy. Ao deixar Trish matá-lo, Jessica impediria que ele a identificasse, daria um fecho emocional para a filha chocada e enlutada, e eliminaria um assassino perigoso das ruas. Depois, era voltar ao apartamento para procurar as câmaras escondidas e destruir imagens onde Trish pudesse estar (aliás, ela faz isso no penúltimo episódio). Mas era preciso garantir a sobrevida do vilão até o fim da série e cozinhar a filha de uma de suas vítimas em banho maria, não é mesmo?


Efeito bola de neve


A partir deste ponto a trama adquire efeito bola de neve, com os erros de Jessica se avolumando a cada momento. Com Sallinger vivo,  ainda no hospital, ele vai chantagear Jessica, com a imagem de Trish tentando matá-lo (as câmaras do apartamento flagaram a luta), dizendo que manteria a identidade da Felina em segredo se Jessica o livrasse da cadeia eliminando as provas de seu crime no corpo de Nathan Silva (lembrando ter sido a gênia Jessica que lhe falara sobre essa vítima). Jessica vai então destruir as provas no necrotério da polícia, ao qual tem acesso via um policial corrupto vítima das chantagens de Erik. Depois conta à Trish, escondida num quarto de hotel, o que fizera, e a gata entra em desespero, dizendo:
Você acabou de destruir minha única vitória numa longa e dolorosa lista de perdas".
Jessica responde que teve que decidir entre destruir Sallinger ou salvá-la e que decidiu salvá-la como fazia todo o dia. Se assim fosse, não teria impedido que Trish matasse o desgraçado, não é mesmo?. Ela, Jessica, não tinha matado Kilgrave, o supervilão da primeira temporada? A verdade é que Jessica, heroína à revelia para quase tudo, parecia ter fixação em bancar a heroína da irmã, sempre colocada no papel da donzela em perigo, como já comentado, e de hipossuficiente. Numa situação dessa magnitude, para o bem ou para o mal, quem tinha que tomar decisões era Trish, que estava inclusive conformada em ir para cadeia desde que Sallinger fosse preso. O paternalismo muitas vezes se disfarça de bondade quando, na verdade, visa dominar e desempoderar.

O paternalismo muitas vezes se disfarça de bondade mas visa desempoderar

⤶ Ponto de inflexão do roteiro (resumo dos episódios finais)

A partir daqui, a história tem seu ponto de inflexão, enquanto o efeito bola de neve só aumenta, porque Trish, embora mantenha as aparências com Jessica nos preparativos para o funeral da mãe, vai seguir seu próprio caminho, sua própria forma de lidar com a dor da perda de Dorothy naquelas trágicas circunstâncias. A Felina passa a se sobrepor à Trish radialista, âncora de shows. De cara, vai visitar Sallinger, no hospital, pra dizer que ele tinha feito acordo com Jessica e não com ela e que não viveria pra sempre cercado de guardas. Sallinger revida falando da foto que tirou da mãe de Trish sob tortura deixada num álbum de fotos no apartamento da vítima. Trish resgata a foto só pra agravar sua ferida emocional e decide que precisa partir pra cima dos vilões da cidade, como forma de purgar seu sofrimento e pagar sua dívida com a mãe.

Procura Erik para tal, já que o chantagista conhecia muitos vilões e queria melhorar sua imagem com ela, pois não quisera denunciar o serial killer por seu sequestro. De quebra, estava ameaçado pelo policial Nussbaumer que permitira o acesso de Jessica ao necrotério da polícia, então viu na proposta de Trish uma boa forma de se livrar do incômodo. A ideia era apenas  Trish obrigar o corrupto a confessar seus crimes, através de algumas porradas, enquanto Erik o filmava. Foi o que aconteceu como também, acidentalmente, a morte do policial, causada por Trish quando lhe dá um pontapé nas costas, ele bate a cabeça na parede e morre. A Felina pega o distintivo do policial e eles fogem.

Na continuidade do efeito bola de neve, Jessica vai ser acusada pela morte do policial, pois tinha sido vista discutindo com ele quando fora chantageá-lo para conseguir acesso ao necrotério da polícia. Enquanto Jessica é presa, Erik e Trish decidem atacar outro vilão e ligá-lo ao caso do policial de modo a inocentar Jessica. O escolhido foi o empreiteiro Jace Montero que já promovera incêndios criminosos, com dezenas de vítimas, em prédios que depois adquirira. Trish invade seu escritório, no trailer em uma das obras que realiza, acusa-o dos vários crimes cometidos, ele a ataca com um cano, ela revida e acaba por matá-lo de pancada, vendo, em seu rosto, o rosto de Sallinger, como já acontecera quando batera no policial corrupto. A diferença é que a morte do policial fora acidental, aqui a morte do empreiteiro se deu porque Trish perdeu o senso de medida. De qualquer forma, deixa o distintivo do policial no colo de Montero e foge com Erik. Jessica é liberada da cadeia porque, quando o empreiteiro fora morto, estava presa, o distintivo do policial estava junto ao corpo, e a justiceira mascarada tinha sido vista nas redondezas do crime.



Como a bola de neve não para de crescer, a advogada Jeri Hogarth, que descobrira a identidade da justiceira mascarada, vai até o apartamento de Trish chantageá-la em troca de um favorzinho, dar um jeito em Demetri Patseras, sócio da fundação de uma amante de Jeri, Kith Lyonne, que o sujeito ameaçava com um processo. Trish se vê obrigada a engolir esse sapo, embora alerte Hogarth de que ela costumava realmente ir atrás dos vilões e das vilãs.

Por outro lado, Jessica volta para a casa e encontra Erik que lhe conta sobre o acontecido com Trish e de que ela já estava atrás de outro vilão. Não precisou muito para Jessica deduzir que Trish ia atrás de Sallinger no hospital e que precisava colocar o assassino na cadeia de qualquer forma, novamente para salvar a irmã. Jessica chega ao hospital a tempo de evitar a morte de  Sallinger, com Trish em seus calcanhares, depois vai com ele para seu apartamento (dele), onde destrói uma das câmaras que flagara a Felina em ação. Sob suas ordens, Erik e Malcom, com uma arma de choque, conseguem desacordar Trish, que espiava Sallinger no teto de um prédio em frente ao do criminos  e a levam para seu apartamento, onde fica acorrentada a uma coluna.

Nesse ínterim, Jessica arma para Sallinger, em seu escritório, levando-o a crer que a havia dopado e dominado, permitindo que ele inicie seu ritual de tortura, levando-o a confessar seus crimes, tudo para registro da câmara de Erik. Em seguida, o derruba e o imobiliza. Depois, vai com Erik para o apartamento do serial, faz uma limpa geral, incluindo as câmeras e o servidor onde poderiam estar imagens de Trish. Segue, então até Trish, informa que Sallinger havia sido preso pra sempre, que o segredo dela estava a salvo e que ela poderia voltar à rotina normal, apesar dos tantos pesares.

Embora ainda irada, Trish parece se conformar com a solução até que, de volta ao seu novo programa sobre roupas, uma colega de trabalho a abraça, diz o quanto sentia o que tinha acontecido e de como estava furiosa, apesar de Sallinger ter sido preso. Lamenta não haver pena de morte em Nova York, que Sallinger usaria o sistema a seu favor  porque era esperto (advogado) e indaga por que o serial killer não tinha sido morto num tiroteio. Foi como tentar apagar incêndio com gasolina. Trish vai atrás de Sallinger outra vez e, numa das melhores cenas da série, mata-o quando  era levado para julgamento. (Vale lembrar que Sallinger era defendido por Jeri Hogarth que costumava, no mínimo, aliviar para seus clientes).



Resumo do último episódio

Após a morte de Sallinger, Jessica fica dividida sobre o que fazer, embora as pressões para que entregue Trish à polícia venham de todos os lados. E a série está tão determinada a mandar Trish para a temida prisão de segurança máxima dos supercriminosos, a Balsa, onde se ficava na solitária em tempo integral, que apela até para uma visita de Luke Cage a Jessica para convencê-la a tomar essa decisão absurda. Ex-ficante de Jessica na primeira temporada, Cage que virara dono do Harlem's Paradise no final de sua série, clube onde também celebrava com contraventores, tinha mandado seu meio-irmão, bandidão de primeira categoria, para a Balsa e veio aconselhar Jessica a fazer o mesmo com Trish. Tinha sido duro, blá-blá-blá, mas necessário.

Apesar do ridículo da coisa, pois Trish tinha virado justiceira de vilões e não vilã, parece que convence Jessica (nada como um homem pra lhe dizer o que fazer) que começa a buscar Trish, encontra-a em seu apartamento, pede que ela se entregue, o que ela não aceita naturalmente. Engana Jessica e foge pela janela do banheiro. Se esconde em um dos edifícios de Jace Montero, liga para Jeri Hogarth sobre o acordo que tinham combinado e o favor que ela lhe pedira. Jeri, interessada em impressionar a amante,  dá-lhe o endereço de Demetri Patseras dizendo que ele era um monstro e não apenas um sonegador de impostos e um incômodo, e Trish vai atrás dele, espancando-o para que confesse seus crimes reais e imaginários. A filha do cara aparece, ele pede pra Trish não feri-la, ela diz que jamais o faria e foge.

Jessica convence Jeri Hogarth a ser isca para pegar Trish. Hogarth dá entrevista na TV dizendo que seu escritório tinha descoberto a identidade da justiceira e que sua prisão era iminente. Hogarth espera por Trish, mas quem aparece primeiro é sua amante, Kith Lyonne, que lhe diz que deveria estar horrorizada com a situação de Demetri Patseras, em situação crítica no hospital, mas de fato se sentia aliviada porque ele retirara o processo contra ela. Nessa hora, Trish aparece, diz "de nada", e se encaminha na direção de Hogarth, apontando que elas tinham um acordo que ela descumprira. Jessica aparece e joga Trish para o alto enquanto pede para Hogarth ligar para a polícia. Trish consegue escapar de Jessica e faz a amante de Hogarth de refém. Hogarth pega uma arma e aponta para Trish, dizendo para soltar sua namorada, que sairia dali como sua refém e conseguiria tirá-la do país. Até atira na perna de Jessica, de raspão, para possibilitar a fuga de Trish. Jessica joga a identidade de Trish na Internet. Hogarth consegue que Trish seja transportada num caixão, equipado com oxigênio para poder sobreviver a viagem, no avião de  um sujeito que exportava caixões para zonas de guerra. Jessica consegue localizar o aeroporto, mas quando está para abrir a tampa do caixão, Trish a empurra e foge para uma passagem do hangar, quebra a luz do corredor, pois enxergava no escuro, e golpeia Jessica que, no entanto, consegue jogá-la para fora desse espaço e parte para cima dela. Trish diz o óbvio:
Por que não me deixa simplesmente partir?
Jessica começa com uma baboseira sobre ter pensado que Trish havia assumido a persona atual - uma justiceira? - pelo que Sallinger tinha feito com ela, como efeito colateral de seus poderes, mas que de fato o que havia se tornado sempre tinha estado presente, que tinha visto esse seu lado quando matara sua mãe, que fora Dorothy que tinha incutido nela aquela determinação moralmente superior e hipócrita. Que ela pensava estar vingando sua mãe, mas que de fato havia se tornado como ela (Dorothy havia sido justiceira?). Jessica encurrala Trish que reage com uma faca, mas acaba derrotada por Jessica. Numa outra cena, Trish, já na cadeia, ouve as acusações contra ela e se assume como  a vilã que nunca foi. Jessica e ela ainda trocam um olhar quando Trish é levada para a Balsa (eu levantaria o dedo do meio pra ela). Depois, Jessica aparentemente larga tudo e se encaminha para pegar um trem a fim de sair de Nova York, mas acaba mudando de ideia.

A Justiceira (poster)
Justiceiros não são heróis nem vilões e de como as aparências enganam

Jessica Jones foi vendida como série feminista por ter uma protagonista, pelos temas apresentados e sobretudo pela relação de amizade entre Jessica e Trish (um sisromance), eixo principal das duas primeiras temporadas. Mas terminou como o oposto de tudo isso, numa relação tóxica entre as amigas que acabou encarcerando exatamente a personagem que lutava pela autodeterminação - nada mais feminista - que sempre lhe fora negada. Terminou também pintando como mocinha a responsável por toda a situação que levou à ruína da amiga enquanto hipocritamente dizia salvá-la.

Em múltiplos sentidos, o correto seria Jessica ter deixado Trish ir embora, por tudo que haviam sido uma para a outra, por ter sido ela Jesssica a colocar o assassino em série na vida de Trish, por Trish ter salvado sua vida da armadilha letal que lhe armara Sallinger, por ter sido sua arrogância (a de Jessica) a levá-lo a assassinar Dorothy, por não ter forçado Erik a depor contra o criminoso, e por ter impedido que Trish matasse o sujeito como devido com a desculpa esfarrapada de que, se o fizesse, ela viraria vilã. Logo ela Jessica que matara não só o vilão da primeira temporada, como outras duas pessoas, incluindo uma mulher inocente (sob comando de Kilgrave), mas continuara do lado dos mocinhos. Logo ela que até fugira com a mãe, imensamente mais perigosa do que Trish, só porque queria recuperar o tempo que não tinham tido juntas.

Quando Jessica encontrou a mãe, Alisa, na segunda temporada, esta já contabilizava seis mortes nas costas, algumas acidentais, outras premeditadas, incluindo mortes de inocentes. Alisa não matava os vilões da vida, matava qualquer um que estivesse em seu caminho, e não tinha maiores problemas em matar. Com sua força descomunal, bem maior do que a de Jessica, era candidata perfeita a passar o resto de seus dias na Balsa. Entretanto, Jessica, mesmo quando a coloca na cadeia pela primeira vez, barganha para que fosse mantida numa prisão comum, apesar dos riscos, e não levada para a Balsa. Assim poderia visitá-la. Quando a mãe foge da cadeia e a rapta, decide, contra a lei e a ordem,  não só ajudá-la a fugir como resolve fugir junto com ela, uma temeridade já que não poderia estar com Alisa em tempo integral, e ela poderia surtar a qualquer momento e matar mais um monte de gente.

Então por que não deixar Trish simplesmente partir, ela que nunca havia matado ninguém inocente, só vilões, e que não era tão poderosa e perigosa que precisasse ser enviada para a Balsa? Por que não deixar que os próprios erros de Trish a condenassem no decorrer de sua vida que não seria, aliás, nada fácil mesmo escapando? Conviver com Trish, na mesma cidade, sabendo que ela continuaria sua saga justiceira contra os criminosos ficaria realmente impossível para Jessica porque a colocaria como cúmplice da Felina, já que sabia de sua real identidade. Dar-lhe a alternativa de se evadir para evitar a prisão, contudo, permitiria que Jessica lavasse as mãos sobre seu destino. Entretanto, ao que tudo indica, Jessica não suportava mesmo era a independência que Trish resolvera ter dela - causada inclusive por Jessica ter vetado o agenciamento da amiga na punição do assassino de sua mãe. Quando Trish procura Erik pela primeira vez pra obter o perfil de criminosos a quem trazer à justiça, essa necessidade de independência já estava lançada. Ele lhe sugere o policial corrupto Nussbaumer a ser abordado, mas diz que vai junto com ela porque, se algo lhe acontecesse, Jessica lhe arrebentaria a cara. Trish responde que Jessica não era sua mãe e que precisava fazer algo bom que se contrapusesse a toda a atrocidade vivida e só ela pudesse fazer.

Em um dos entreveros que as duas têm, já no último episódio da terceira temporada, Trish diz a Jessica que ela, Trish, não era mais seu problema, e Jessica responde que ela sempre seria seu problema. Pareceu papo de homem que não suporta o fim da relação e decide matar a mulher. Por que Trish seria sempre seu problema? Por que Jessica se considerava responsável pelos atos de Trish (?), e ela poderia futuramente matar alguém inocente? Mas como Jessica não teve o mesmo raciocínio em relação a mamãezinha que já havia matado vários inocentes? O supervilão Kilgrave acabou sendo um problema de Jessica realmente porque ela se tornou a única a ter imunidade contra seu poder mental e, portanto, a única capaz de detê-lo. No caso de Alisa, segundo a própria, Jessica era a única que conseguia acalmá-la, durante os surtos de raiva, e trazê-la de volta à realidade, impedindo-a de detonar deus e todo o mundo. Mas, no caso de Trish, por que ela haveria de ser seu eterno problema? Erik e Malcom tinham conseguido se aproximar de Trish sorrateiramente e derrubá-la com uma simples arma de choque. Imagine se policiais treinados não teriam condições de detê-la numa armadilha? Então, Jessica afirma que Trish sempre seria seu problema porque só ela Jessica se via como sua solução? A eterna salvadora de uma suposta donzela que agora não se via mais em perigo, que não se sentia mais impotente, que agora se sabia forte e autossuficiente?

Trish Walker
Trish não era mais problema de Jessica, era problema dela própria. Formatada pela mãe para ser uma celebridade, padrão de beleza (loura, olhos verdes, bonita, gostosa, malhada), situação financeira confortável, inúmeros fãs, queria, no entanto, algo mais significativo do que viver sob os holofotes do mundo midiático. Queria ter superpoderes para lutar contra os bandidos da vida e ajudar quem como ela sabia o que era se sentir impotente. Arriscou a própria vida para conseguir esses superpoderes. Conseguiu, mas deveria ter trilhado carreira solo, aprendendo com os erros e acertos, ou ir pedir assessoria a outros heróis do mundo da Marvel de sua cidade, que inclusive conhecera nos Defensores, como o Demolidor ou a namorada do chatíssimo Punho de Ferro, Colleen Wing, que ganhara também punho próprio e podia lhe ensinar kung fu (pra matar com menos sangue ao menos😉) e controle mental. Só especulando aqui.



Mas não, tinha que reatar o eterno caso mal resolvido com a irmã/amiga (sei) com quem sempre quis parceria, mais ainda depois da aquisição dos superpoderes. Deu no que deu. A morte brutal de sua mãe, a qual não pode dar resposta imediata porque Jessica decidiu por ela o que fazer, a transtornou (a quem não transtornaria?), transformando-a progressivamente de aprendiz de heroína em aprendiz de justiceira implacável, a exemplo de seu colega também da Marvel, Frank Castle, o Justiceiro (The Punisher). Como Trish que perdeu a mãe para um sádico, Castle, um soldado altamente treinado, teve toda sua família morta por uma trama mafiosa e, a partir daí, fora matar quem matara sua mulher e filhos, passou a matar todo o bandido que encontrava pela frente. A diferença com Trish é que Castle, à parte o número de mortes obviamente, no caso dele incontáveis, depois de aparição e prisão na série Demolidor, ganhou mais duas temporadas de série própria para sair detonando a sempre renovada bandidagem. Vemos que, mesmo no universo dos "vigilantes" da ficção, ainda não há igualdade entre mulheres e homens.




Outra diferença entre a aprendiz de justiceira Trish e Castle, essa fundamental, é que Castle é um homem independente, apesar de atormentado pela morte da família, que não tem caso mal resolvido com ninguém, dependência emocional de ninguém, não sente necessidade de provar nada a ninguém e não aceita que lhe imponham a pecha de vilão, embora possa ser rotulado como anti-herói. Daí ter escapado da prisão, ganhado nova identidade enquanto Trish pode ter sido enterrada viva por aquela que sempre disse querer lhe salvar e que, no fim, apenas lhe impôs de novo sua visão. Trish deixou de ser heroína, porque passou a fazer justiça com as próprias mãos, mas não caiu na categoria de vilã e sim de vigilante (na acepção inglesa da palavra). Heróis trabalham com as autoridades no combate ao crime. Os justiceiros combatem o crime por conta própria, usando de métodos às vezes tão brutais quanto os dos bandidos. Uma conversa entre o Demolidor (Matt Murdock) e o Justiceiro (Frank Castle) exemplifica as duas maneiras de pensar. Sendo o Demolidor o típico herói que trabalha contra o crime, mas não executa os bandidos,  dá sermão em Castle sobre as vidas que  tirava, impedindo-as de ser redimidas, e ele retruca: "Você se acha herói porque põe os bandidos na cadeia que daqui a pouco a 'justiça' coloca de volta nas ruas. Eu os ponho no chão, e eles nunca mais levantam". Não faltou, aliás, quem visse no antagonismo forçado que se estabelece entre Trish e Jessica uma versão fajuta do antagonismo entre o Demolidor e o Justiceiro.
Justiceiro e Demolidor: duas visões sobre como tratar os vilões

O fato é que a fronteira entre o bem e o mal, a justiça e a vingança, o justo e o injusto, a condenação pelo Estado (nem sempre justa) ou pelo indivíduo, não é tão nítida como pode parecer. Se os justiceiros se equilibram na corda bamba esticada sobre essa fronteira, os heróis não raro são forçados a romper esse maniqueísmo também. Os exemplos de heróis que mataram bandidos encheriam as páginas de um livro volumoso. Matar um bandido extremamente perigoso não faz de ninguém necessariamente um vilão ou uma vilã. Jessica teve que matar Kilgrave e não virou vilã por isso (matou outras duas pessoas também, incluindo uma mulher inocente à revelia). Trish poderia ter matado Sallinger e não teria se tornado vilã por isso.  Jessica condenou Trish por ter matado a mãe dela, Alisa, sob o argumento de que não cabia a Trish ter tomado uma decisão daquelas, não podia ter sido ela a fazê-lo. Jessica estava certa, mas esqueceu de seu próprio argumento quando decidiu, por Trish, o que fazer naquela situação limite que envolveu a trágica morte de Dorothy.

Dorothy Walker
No fim das contas, a relação de sororidade entre as irmãs adotivas, tão decantada como feminista, revelou-se um engodo, e a abusiva mãe de Trish, Dorothy, acabou, no fim das contas, se saindo melhor na fita da série do que Jessica. Se Trish não tivesse atendido ao chamado de Jessica para enfrentar o serial killer e sua mãe viesse a saber de seus superpoderes, como aliás ocorreu numa das poucas cenas divertidas da terceira temporada (ver vídeo abaixo), iria com certeza tentar capitalizar o novo talento da filha (já estava querendo), mas ambas estariam vivas e bem, com Trish apenas tentando estabelecer limites para a sua "velha". Aliás, num aparte, a terceira temporada ameniza um pouco a imagem  da tão complicada mãe de Trish, descrita de forma bem negativa, principalmente na primeira temporada. Durante seu velório, que estava lotado de gente (e até mesmo antes dele), várias pessoas se dirigiram a Trish e até a Jessica pra falar o quanto Dorothy havia lhes ajudado em suas carreiras, com dicas certeiras de que como crescer no show business. Apesar de seus defeitos, Dorothy era uma alavancadora de talentos, talentos que considerava um dom a não ser desperdiçado, e perseguidora incansável desse ideal.



Enfim, sou consequencialista, e meço a validade das ideias, posicionamentos e ações dos outros (e as minhas também) por suas consequências. Foi o que procurei demonstrar aqui para questionar a protagonista da série como a mocinha que fez o maior dos sacrifícios ao enviar a irmã "amada" pra a cadeia em prol do bem maior. Como visto, quais foram as consequências dos posicionamentos de Jessica nessa terceira temporada? Todas negativas. Quando conseguiu arrumar um pouco a casa, já era tarde. Seu pior erro, repetindo mais uma vez, foi ter impedido Trish de fazer justiça contra o serial killer, logo após a morte de Dorothy, sob a desculpa de que, se o fizesse, ela se tornaria   vilã também. As consequências dessa decisão resultaram no pretendido? Pelo contrário, não? Se Trish não virou vilã propriamente dita, deixou de ser heroína. Se Trish tivesse matado Sallinger, provavelmente teria pagado a dívida com sua mãe e, apesar de todo o trauma e luto, serenaria a alma, em vez de ficar vendo a cara do assassino no rosto de cada homem que golpeou posteriormente. E todos os eventos decorrentes dessa decisão errada de Jessica não teriam adquirido o efeito de bola de neve de erros que culminaram na perdição de Trish.

Não, eu não estou passando pano para as escolhas da própria Trish, que haveriam de lhe pesar algum dia de qualquer forma, mas apenas perguntando quem não ficaria transtornada ao encontrar a mãe morta sob tortura? Quem não ficaria transtornada em não poder justiçar o assassino sádico de sua mãe, tendo poderes para fazê-lo, porque uma outra pessoa decidiu por você que essa não seria sua melhor escolha? Essa inação questionava a  própria visão de Trish sobre o que era ser uma heroína. Ela se viu de novo às voltas com a impotência da qual tanto lutara para escapar. De fato, Trish precisava era ter  passado por uma terapia das bravas, terapia do luto, a fim de conseguir se reequilibrar. Merecia também uma chance de se redimir e de se recuperar, pois ainda tinha condições para tal, o que lhe foi negado ao ser mandada para um buraco no fim do mundo.

Desde o lançamento de Jessica Jones, sempre tive sentimentos ambíguos em relação à protagonista. Enquanto todo o mundo incensava a primeira temporada, eu mal consegui terminá-la, pelo saco de encarar aquela heroína sempre de porre, depressiva e promíscua. Fora o vilão, Kilgrave, tão vilão de história em quadrinhos que é como se não tivessem se dado ao trabalho de traduzi-lo para a tela. Só faltou a pele roxa como nas HQ. De positivo, só vi mesmo a presença de Trish, tão solar e oposta a de Jessica, e de sua relação amorosa com a irmã adotiva. E, claro, a morte do vilão no último episódio. Depois vi Jessica, no combo de super-heróis Os Defensores, e a achei bem menos chata e até engraçada em alguns momentos, o que me fez assistir a segunda temporada de sua série própria, muito mais interessante do que a primeira, como escrevi aqui.

Nesta terceira temporada, como comentei, oscilei entre tentar entender a decisão de Jessica de prender Trish, que numa primeira audiência me pareceu até aceitável, e em detestá-la, numa leitura mais aprofundada depois, por não assumir a responsabilidade que teve no tormento e queda da amiga e, por isso mesmo, não ter lhe dado a chance de escapar e, quem sabe, até de se reencontrar posteriormente. Se Trish chegou a matar a mãe de Jessica para não perdê-la, Jessica "matou" Trish por não aceitar sua autonomia fosse qual fosse. Se Trish resolvera bancar polícia, juíza e executora dos vilões da cidade, a santarrona  da Jessica fez o mesmo com a irmã. A ideia de que a prendeu porque tinha se tornado uma vilã violenta e incontrolável não cola de fato, como pode parecer à primeira vista (vide o tratamento diferenciado que deu para a mãe de fato violenta e incontrolável). Com quem não era vilão, Trish agia normalmente. O buraco dessa história é bem mais embaixo, mais complexo, como procurei descrever aqui. Passa por ressentimentos, invejas mútuas, rejeições e pela dinâmica de uma relação que se apresentava como de sororidade mas que escondia dependência, dominação e desempoderamento.

O que me consola é saber que Trish pelo menos venceu Jessica em sua própria série, pois, na terceira temporada, passou de coadjuvante a coprotagonista, sendo dela as melhores cenas de ação, de luta, de violência, de sofrimento, de dor. Pra mim, Jessica virou a coadjuvante. A atriz australiana Rachel Taylor, que representa Trish Walker, deu show de interpretação na pele dessa personagem tão determinada, contraditória (forte e frágil, justa e cruel) e intensa que merece voltar à vida das telas como heroína redimida ou justiceira mesmo (sim, mulheres também podem ser justiceiras). E os produtores de séries precisam parar de pirar, prender ou matar as mulheres ambiciosas e poderosas, que eles ou elas mesmos criam, a fim de impactar suas temporadas finais, sacrificando o desenvolvimento das personagens e da própria história. Já está começando a dar na vista e cansar a paciência e a audiência. Melhor, de vez em quando, fazer um final pelo menos meio feliz para elas e para nós.

N.E. Os spoilers deste texto se centram nas trajetórias das protagonistas da série, Trish e Jessica, e seus desenvolvimentos. Outros personagens da série também têm suas tramas paralelas que valem a audiência, com grandes performances como a da atriz Carrie-Ann Moss (Jeri Hogarth).

Elenco: Kristen Ritter (Jessica Jones), Rachel Taylor (Trish Walker), Eka Darville (Malcom Ducasse), Benjamin Wlaker (Erik Gelden), Sarita Chourdhry (Kith Lyonne), Jeremy Bobb (Gregory Sallinger), Carrie-Ann Moss (Jeri Hogarth), Rebecca de Mornay (Dorothy Walker), Aneesh Sheth (Gillian), Tiffany J. Mack (Zaya Okonjo)


Love can kill
Lennon Stella

I wasn't thinking when I told you to stay
It was just too hard to push you away
You don't know that you're in over your head
I'm afraid I'll pull you over the edge

I need you to go, don't fight me
Even though I wanna hold on tightly
Let me go
But you won't let me go

Too much love can kill
Get swallowed by the weight
No matter how you feel
My love, you are not safe
I need you

It's hard for me to say what needs to be said
Hurts to say it over, over again
Consequence of loving me can be cruel
You're gonna suffer now whatever you do

I need you to go, don't fight me
Even though I wanna hold on tightly
Let me go
But you won't let me go

Too much love can kill
Get swallowed by the weight
No matter how you feel
My love, you are not safe
I need you

quarta-feira, 22 de maio de 2019

Game of Thrones: de como estragar o final da série mais popular de todos os tempos

Daenarys, em estilo nazi, fala a seu exército no episódio final de GoT

Game of Thrones: de como estragar o final da série mais popular de todos os tempos

por Míriam Martinho

No site do Omelete, a resenha do final de Game of Thrones, por Camila Sousa (19/05), declara que o sentimento geral sobre a série é de que o final "apresentado em tela não foi construído de forma satisfatória". De que a série, assim como Lost e Dexter, começou bem e terminou decepcionante, perdendo-se na própria narrativa. Foi educada.

De fato, maratonei a série toda, enquanto assistia a última temporada, portanto, estou com a memória bem fresca, e não posso deixar de concordar com o dito acima. Para começo de conversa, desconstruíram a principal protagonista da série, Daenarys Targaryen (a quem ensinaram todos a amar),  principalmente a partir do quarto episódio da última e muito irregular oitava temporada.

Daenarys toma o controle da cidade escravista de Meereen
O perfil de Daenarys construído pela série até a temporada oito (um resumo de sua trajetória)

A história da rainha dos dragões é contada, durante a série, como uma trajetória de superações. Começa com Daenarys, jovem mulher, vendida para um bárbaro dothraki pelo próprio irmão, em troca de exército, conquistando o bruto e virando a Khaleesi (rainha) da horda. Quando o marido morre, ela o coloca numa pira funerária, com os três ovos de dragão que ganhara de presente e se une a eles em meio as chamas. Ao fim do rito, ressurge nua, incólume, e com três dragões bebês (Drogon, Viserion e Rhaegal). se empoleirando em seu ombro e a seu redor (episódio 10, primeira temporada). Os dragões são nomeados a partir do nome do falecido marido de Daenarys, Khal Drogo, e de seus dois irmãos, Viserys Targaryen e Rhaegal Targaryen.

Daí por diante, inicia-se sua saga repleta de conquistas, apesar de alguns reveses (cidade de Qahar, onde obtém um navio; cidades da Baía dos Escravos, Astapor, onde finge vender um de seus dragões em troca do exército dos Imaculados, a quem depois ordena que mate todos os senhores de escravos locais; cidade de Yunkai, onde também liberta escravos e agrega os mercenários dos Corvos Tormentosos a seu exército - o líder destes, Daario Naharis inclusive se torna seu amante - ; cidade de Meereen, a última cidade escravagista onde se instala e de onde tenta consolidar o fim da escravidão na região, renomeando a Baía dos Escravos de Baía dos Dragões.

Os traficantes e senhores de escravos locais se rebelam contra Daenarys e, quando ela estava assistindo lutas numa arena (fossa de Daznack) em Meereen, é atacada pelos Filhos da Harpia, grupo mascarado contrário às suas políticas abolicionistas. Drogon, seu maior dragão, aparece para tirar a mãe do cerco e, embora ferido, a leva pelos ares para a região do Mar Dothraki. De volta ao começo de sua saga, às voltas com os dothraki que a capturam, Daenarys põe fogo na tenda onde os Khals (chefes da tribo) tentavam decidir seu destino, entre ameaças de estupro e morte, mata-os queimados e ressurge das chamas. Ao vê-la emergir da cabana em fogo, os dothraki ajoelham-se diante dela, tornam-se parte de seu exército, e voltam com ela para Meereen. Em Meereen, Daenarys usa seus dragões para atear fogo na armada dos escravagistas que pretendiam derrubá-la e, depois, decide deixar Daario, como governante da cidade, para manter a liberdade da população e a paz local. Ruma então para Westeros em busca de reaver o Trono de Ferro, situado em Porto Real (na vida real, cidade de Dubrovinic na Croácia), usurpado dos Targaryens que haviam governado os 7 reinos por 3 séculos. Quando parte, seu exército e frota já estavam como no vídeo abaixo, ao som do mais belo tema musical da série (o da casa Targaryen).



O perfil de Daenarys permanece coerente na temporada 7

De volta à Pedra do Dragão, antiga residência dos Targaryens, Daenarys se reúne com três ilustres convidadas: Olenna Tyrell, Yara Greyjoy e Ellaria Martell. As três mulheres tentam convencer Daenerys a atacar Porto Real de imediato com todo o seu poderio, que a cidade cairia em um dia. Daenarys, assessorada por Tyrion Lannister (que matara o próprio pai, por isso era fugitivo), que se tornara seu consultor (Mão da Rainha) em Meereen, diz não querer ser rainha das cinzas, o que aconteceria se atacasse diretamente Porto Real. Daenerys explica às outras mulheres como pretende atacar Cersei Lannister: sitiando Porto Real com os exércitos de Tyrell e Martell e tomando o Rochedo Casterly, propriedade dos Lannister, com os Imaculados e os dothraki. Meio a contragosto, as aliadas concordam, mas Olenna, em conversa particular com Daenarys, lhe diz que não deveria escutar "homens inteligentes" como Tyrion, que ela havia se mantido viva por tanto tempo, ignorando-os. Disse ainda que os  senhores de Westeros eram ovelhas e que Daenerys tinha que ser quem de fato ela era: um dragão.


Infelizmente, Daenerys não ouviu a voz da sabedoria de suas aliadas, sobretudo de Olenna, e o resultado foi a prisão de Yara Greyjoy e Ellaria Martell e a morte de Ollena Tyrel pelos Lannisters e seus aliados. Pior, entra em cena Jon Snow, bastardo da casa Stark, que vem à Pedra do Dragão para extrair o vidro de dragão (uma das únicas matérias primas capaz de matar os caminhantes brancos, seres inumanos) e pedir que Daenarys se some a ele na luta contra os mortos-vivos do Rei da Noite, uma ameaça tão grande que qualquer outra luta entre os humanos deixava de fazer sentido. 

Daenarys acaba permitindo que Jon Snow extraia o vidro de dragão das cavernas de sua região, e Tyrion se sai com a brilhante ideia de capturar um zumbi para mostrar à irmã Cersei de modo a convencê-la a estabelecer uma trégua entre os humanos para lutarem todos contra os mortos do Rei da Noite. Jon Snow e outros vão em busca do tal espécime, ficam sitiados pelos caminhantes e seus mortos-vivos num ponto além da colossal muralha que separava o extremo-norte dos 7 Reinos e acabam salvos por Daenerys que, nesse resgate, perde um de seus dragões (Viserion) para o Rei da Noite. Começa aí sua série de perdas, acentuada pelo envolvimento amoroso que passa a ter com o sobrevivente Jon Snow no último episódio da sétima temporada.

Cersei Lannister, bem mais esperta do que Daenarys e em coerência com seu perfil egoísta, se compromete a enviar tropas para o norte a fim de combater o Rei da Noite, mas depois declara para o irmão Jamie que mentira. Os Stark e a Targaryen que se matassem para derrotar o Rei da Noite porque se não conseguissem, com dragões e tudo, não seriam os exércitos dela que fariam diferença na batalha. E, se conseguissem, estariam enfraquecidos posteriormente para lutar contra ela pelo controle do trono de ferro.


Daenarys chega em Winterfell para lutar contra o Rei da Noite
 O perfil de Daenarys começa a mudar na oitava temporada

Mantendo o perfil solidário das outras temporadas, Daenarys ruma para Winterfell, lar da casa Stark, com Jon Snow, a fim de ajudar a humanidade na luta contra a extinção. Mas nem ela nem seu exército são bem recebidos pelos nortistas ou pela família Stark, o que, por si só já é um bocado estranho. Numa luta de vida e morte, contra um exército de zumbis, qualquer aliado deveria ser recebido com beijos, abraços e risos. Mas não, Daenarys não é bem recebida por Sansa Stark, já então Lady de Winterfell, que só pensa em causa própria e vê a mãe dos dragões como uma ameaça à soberania da região que sonhava independente. Daenarys, contudo, permanece diplomática até quando, diante de Jaime Lannister, assassino de seu pai, para não se indispor com os anfitriões, inclinados a perdoá-lo, permite que Jaime viva para lutar contra os mortos-vivos em vez de insistir em executá-lo por seus crimes.

No fim, não é ela que salva a humanidade nem seus exércitos nem exército algum e sim Arya Stark predestinada a fazê-lo. Arya consegue matar o Rei da Noite com sua adaga valiriana e simultaneamente todos os caminhantes e o exército de mortos-vivos se desfazem ou se amontoam no chão definitivamente mortos. Para Daenarys só restaram perdas: perdeu metade de seu exército, perdeu seu melhor e mais querido escudeiro Jorah Mormont, em defesa de sua rainha, e ficou sabendo que seu namorado, Jon Snow, era na verdade seu sobrinho Aegon Targaryen, filho de seu irmão Rhaegar Targaryen e de Lyanna Stark (irmã de Ned Stark que criara Jon como filho) e, em tese, seu potencial rival, por ser homem, pelo Trono de Ferro. 

Ainda em Winterfell, depois da cremação dos que morreram em combate e de jantar para celebrar os sobreviventes, Daenarys pede a Jon que não diga a ninguém, nem para suas irmãs (de fato primas), sobre sua real identidade porque a revelação viraria uma bola de neve colocando em risco seu objetivo de se tornar rainha dos 7 reinos. Mas Jon Snow, embora jure que não ia contar nada a ninguém, acaba por revelar a verdade a suas irmãs (primas), que rejeitam Daenarys, porque só pensam na própria família, desejam o norte independente de qualquer poder central e não querem alianças com ninguém (deveriam ter rejeitado a ajuda de Daenarys desde o começo, não?). De fato, Sansa queria ser Rainha de Winterfell e, para tal, precisava do norte autônomo, o que não seria possível com Danaerys no poder. Daí que, embora também tenha jurado guardar o segredo de Jon, interessada em minar Daenarys, Sansa conta a verdade para Tyrion que conta para Varys (outro dos conselheiros da rainha). Aí Varys já começa a cogitar Jon como rei e a dizer que se preocupava com o estado mental de Daenarys (com base no quê?).

Missandei é decapitada
No caminho para Porto Real, do qual nunca deveria ter se desviado, mais perdas para Daenarys. Seus navios com os Imaculados são atacados por Euron Greyjoy, aliado dos Lannisters, bem como um de seus dois dragões remanescentes, Rhaegal, é morto. Pior, Missandei, sua amiga e conselheira, acaba prisioneira de Cersei Lannister ao cair na água, após o ataque que naufragou o navio onde estava. Enquanto isso, Cersei também decide abrir os portões da Fortaleza Vermelha, onde reside, para o povo de Porto Real a fim de usá-lo como escudo contra Daenarys. Se a mãe dos dragões decidisse atacar a fortaleza, teria que matar milhões de inocentes e acabaria com sua imagem de "quebradora de correntes" (adquirida por sua luta abolicionista).

De volta à Pedra do Dragão, Daenarys discute com Varys e Tyrion, que temem um massacre em Porto Real, mas concorda com eles em, primeiro, exigir de Cersei rendição em troca de sua vida. Caso Cersei não aceitasse seus termos, pelo menos a população de Porto Real saberia que ela, Daenarys, havia feito de tudo para evitar um banho de sangue e que Cersei Lannister recusara. Saberiam ao menos a quem responsabilizar quando o céu lhes caísse sobre a cabeça.

Depois dessa decisão, em conversa com Tyrion, Varys demonstra claro interesse em trair Daenarys e apoiar Jon como rei porque tinha direito ao trono, era mais moderado que Daenarys, era homem, o que facilitaria o apoio dos lordes de Westeros ao rei. Tyrion apela para a ideia do casamento dos dois, Jon e Daenarys, mas Varys contesta dizendo que ela era muito forte para ele, ela o curvaria à sua vontade, como, aliás, já acontecia. Em seguida, temos a cena do ultimato a Cersei em frente à Fortaleza Vermelha e a exigência do retorno de Missandei aos seus. Cersei não só não aceita o ultimato como ainda ordena que Montanha, seu monstruoso guarda-costas, decepe a cabeça de Missandei que, antes de morrer, grita "dracarys", o comando para os dragões soltarem fogo nos inimigos.


Daenerys enraivecida toca fogo em Porto Real inteira
O perfil de Daenaerys deixa de ser coerente com o apresentado a série toda

Nos dois últimos episódios da série, vemos uma Daenarys enlutada pelas perdas de seus entes queridos, como Jorah Mormont, Missandei e Rhaegal, e ressentida pelas traições dos que a rodeiam.  Recapitulando, embora tivesse prometido que não contaria às irmãs sobre sua verdadeira origem, Jon Snow lhes disse a verdade. Mal intencionada, Sonsa contou para Tyrion que contou para Varys que passou a conspirar contra a rainha sob seu teto. Além de escrever recados pra todos os reinos dizendo que Jon era o verdadeiro herdeiro do trono de ferro, Varys ainda aparece em conversa com garota da cozinha do palácio dando a entender que estava tentando envenenar Daenarys. Tyrion o denuncia, e Daenarys o condena à morte por traição via fogo de dragão. Apesar de ter denunciado Varys, Daenarys alerta Tyrion que a próxima vez que lhe falhasse seria a última (porque Tyrion contara o segredo de Jon para Varys).

Nesse ponto vemos a quebra do perfil da rainha dos dragões que a série nos ensinou a amar, marcado pela empatia com as pessoas e por senso de justiça. Ao contrário da reunião que teve ao chegar à Pedra do Dragão, com Olenna Tyrell, Yara Greyjoy e Ellaria Martell, quando disse que não atacaria diretamente Porto Real com os dragões, pois não queria ser a rainha das cinzas, desta feita, agora com Tyrion e seu único fiel escudeiro remanescente, Verme Cinzento, Daenarys deixa claro que Cersei considerava sua piedade com os mais fracos sua fraqueza e que estava disposta a contestar essa ideia. Tyrion lhe recorda que os habitantes de Porto Real não eram diferentes dos escravos que Daenarys libertara em Meereen, que eram de fato reféns de Cersei e que não mereciam morrer. Afirma que diante do poderio bélico de Daenarys, por causa de Drogon, o exército e os aliados de Cersei deserdariam, e a rainha se renderia tocando o sino. Pede que a mãe dos dragões aguarde o toque dos sinos pra interromper o ataque, pois não haveria mais razão pra luta. Daenarys parece concordar e diz a Verme Cinzento que apronte as tropas e que aguarde seu sinal para atacar.

Montada em Drogon, Daenarys consegue, com habilidade, evitar os grandes arpões dos chamados Escorpiões (que já haviam matado Rhaegal) e toca fogo em toda a frota de Euron Greyjoy bem como nos Escorpiões em cima das muralhas da cidade, cujos portões também arrebenta abrindo espaço para a entrada de seu exército. Destrói também a Guarda Dourada que estava na frente das muralhas da cidade e se posta com Drogon, em cima de uma mureta dentro da cidade, aguardando o bater dos sinos. Os sinos tocam, mas, contrariando o perfil da personagem, o que se vê é o rosto enraivecido de Daenarys, de olhos dilatados, enquanto observa a Fortaleza Vermeha, morada de Cersei. Alça voo com Drogon na direção da Fortaleza, mas, no meio do caminho, vai botando fogo em toda a cidade, já rendida, matando milhares de inocentes. Se tivesse se dirigido apenas à Fortaleza Vermelha e a destruísse, com Cersei e seus aliados dentro, ainda faria sentido com sua trajetória de matar os vilões e poupar os inocentes. Quando passa a detonar a cidade inteira, porém, Daenarys se torna apenas mais uma nobre insensível em busca de poder. Pra maioria, teria ficado louca como seu pai que fora assassinado exatamente por querer por fogo em tudo e em todos.

Na cena mais absurda do final de GoT, o prisioneiro Tyrion ajuda a eleger o novo rei 
Fim de série cheio de inconsistências, incoerências, e até risível

A partir do ataque de Daenarys à população de Porto Real,  a série descamba de vez, com os personagens dizendo e fazendo coisas sem sentido. Ainda no quinto episódio, temos Arya Stark que chegara à cidade com Sandor Cleagane (o Cão) para matar Cersei sendo demovida da ideia, já dentro da Fortaleza Vermelha, pelo próprio Sandor com um discurso lacrimoso contra a vingança. Logo ela que não exitara em matar por vingança nenhum de seus alvos. Depois quase morre queimada ou soterrada pelo bombardeio de Drogon sobre a cidade, mas escapa num cavalo branco que milagrosamente aparece em meio a uma rua cheia de escombros.

Cersei fora informada, por seu principal conselheiro, que Daenarys já tinha destruído a frota de Greyjoy, a Guarda Dourada, todos os Escorpiões possíveis e imagináveis, mas insiste em ficar postada em frente a uma das janelas da Fortaleza Vermelha vendo a cidade queimar. Quando finalmente é convencida a escapar, a Fortaleza já estava desmoronando, e ela acaba morrendo soterrada com o irmão Jaime, que aparecera para resgatá-la, numa tentativa de escapar pelos porões do edifício já entupidos de escombros. Pelo menos a morte dos dois juntos fez sentido, já que seu amor, tóxico ou não, era de fato muito verdadeiro.


Desconstruindo Daenarys num episódio lamentável do ponto de vista narrativo
No último episódio, então, o roteiro se torna até risível em certos momentos, fora a falta de emoção de sua uma hora e vinte minutos de existência. De verossímil, coerente e emocionante, só as lágrimas de Tyrion ao ver os irmãos, Jaime e Cersei, soterrados nos porões da Fortaleza Vermelha, e a reação de Drogon ao ver sua mãe morta, antes de carrega-la pelos ares. Porque claro, já se sabia de antemão, que alguém haveria de matar Daenarys após seu massacre de Porto Real.

Enquanto os três possíveis assassinos, Tyrion, Arya e Jon, caminham pela cidade destruída rumo ao local onde os exércitos de Daenarys estão reunidos, Daenarys chega a bordo de Drogon e caminha para se dirigir a seus homens do topo de uma enorme escadaria. As asas de Drogon batem atrás dela, fazendo-a parecer, por instantes, uma figura demoníaca (ver aos 02:02 do vídeo abaixo), numa estranha referência judaico-cristã em uma série sobre um mundo pagão. Quando se dirige a seu exército, a imagem faz clara alusão aos discursos proferidos por Hitler em cenários similares, embora não em ruínas. Comparações com o nazismo, em geral, são conhecidas como falácias ad hitlerum, quando alguém não tem mais argumentos razoáveis a apresentar e  quer apenas desqualificar o oponente.

Exatamente o que foi feito aqui pelos roteiristas. Uma personagem que se caracterizou a série inteira como libertadora de escravos e preocupada com os mais fracos e oprimidos, desde seu primeiro momento, chega ao final da história como uma tirana, comparada ao demônio e a Hitler. Se fosse Cersei no lugar de Daenarys, caracterizada como vilã desde sempre, nas mesmas circunstâncias, a comparação até procederia, mas, no caso de Daenarys, foi a maior forçação de barra que já se viu numa série.



Mas o festival de inconsistências e incoerências perfilam por todo o episódio. Tyrion vai preso por ter soltado o irmão, Jaime, a fim de que ele tentasse salvar Cersei e fugissem juntos. Foi considerado traidor, mas, ao contrário do que ocorrera com Varys, não é executado rapidamente. Fica na prisão para poder convencer Jon a matar Daenarys.

Arya diz para Jon que ele era uma permanente ameaça a Daenarys, pois ela sabia sua verdadeira origem, e que podia reconhecer uma assassina quando via uma. Logo Arya que aprendeu a matar desde criancinha, meteu-se numa sociedade de assassinos para se aprimorar na arte de matar e assassinou sem qualquer problema vários de seus desafetos.

Jon vai visitar Tyrion numa sala improvisada como cadeia. Antes de entrar, deixa suas armas com os Imaculados que guardam a cela. Tyrion lista uma série de razões pra que Jon mate Daenarys. Jon deixa a cela e vai se encontrar com Daenarys na sala do Trono de Ferro que subsistira ao ataque. Ao contrário do que ocorreu na frente da cela de Tyrion, cheia de guardas, não havia um só imaculado para guardar a rainha, como de costume. Apenas Drogon guardava a entrada do local, mas, como Jon era meio Targaryen, considerava-o família e o deixou entrar. Difícil é entender porque Daenarys ainda confiava em Jon, depois que não guardou o segredo de sua origem, como ela até suplicara.

Jon Snow mata Daenarys
Jon reclama com Daenarys que viu guardas Lannisters já rendidos sendo executados, que viu crianças pequenas incineradas e pediu clemência para Tyrion. Uma Daenarys irreconhecível diz que as execuções eram necessárias, que Cersei tinha usado inocentes para tentar paralisá-la, por isso precisava contestá-la, e que não podia poupar Tyrion porque ele a traíra, que não dava para ficar realizando pequenas clemências (sic). Daenarys tenta convencer Jon a participar do mundo novo que queria criar, eles se beijam, e ele a mata. Drogon chega para destruir o Trono de Ferro (porque a luta pelo poder é a fonte de todos os males) e levar o corpo da mãe para lugar desconhecido, mas poupa Jon por ser Targaryen também. Pelo menos, no caso do dragão há uma explicação plausível para  que não matasse Jon.

Porque nos outros casos, ninguém entende porque nem os Imaculados nem os dothraki executaram Jon e Tyrion imediatamente. Pelo contrário, no que parecem ser bons tempos depois da morte de Daenarys, tanto que há exércitos do norte ao redor de Porto Real, aparece Tyrion todo cabeludo, barbado e sujo sendo levado de algemas, por Verme Cinzento, para um encontro com os lordes e ladies de Westeros. Aí a situação descamba para o risível mesmo, pois um prisioneiro acaba decidindo, numa conversa muito mole, um novo rei (Bran Stark) de quem ele seria o novo conselheiro maior (de novo "Mão do Rei"). E Jon Snow, que também aparece posteriormente numa cela, todo esfarrapado e desgrenhado, é condenado de novo a ir para a Patrulha da Noite, onde vai poder viver entre os selvagens, como sempre quis. Será que alguém acha plausível um prisioneiro dizer para seu captor, no caso Verme Cinzento:  - "Olhe, não cabe a você decidir meu destino. Deixe eu eleger aqui, com as ladies e os lordes, quem será o novo rei, para ele decidir o que será de mim." É muita palhaçada.

No fim, Sansa sonsa, torna-se rainha de Winterfell, pois "convence" seu irmão Bran da importância do norte independente. Arya Stark vai em busca de novas terras ao oeste, ao menos uma conclusão válida para sua personagem. Jon volta para a Patrulha da Noite e depois segue com os selvagens para o norte do norte, e os 6 reinos passam a ser governados por Bran, o quebrado, e os coadjuvantes da série, como Brienne de Tarth, Sor Davos Seaworth, Samwell Tarly, Sor Bronn (aquele mercenário que lucrou com as guerras em geral) e claro Tyrion, cúmplice de regicídio.

Análise Final

Aproveitando que tinha maratonado a série enquanto via a última temporada, fiz esse resumo da trajetória da Daenarys Targaryen para demonstrar a incoerência da conclusão que deram para a personagem e também a fim de fazer um descarrego da irritação que o final da série me provocou. A questão nem é o fato da principal protagonista da série ter morrido. Em outras séries muito boas, como Breaking Bad, para citar um exemplo, o protagonista morre no final, mas toda sua trajetória, durante os episódios exibidos, leva naturalmente a essa possibilidade. Sua morte foi coerente com o estilo de vida do personagem, uma conclusão totalmente verossímil. Poderia citar outras.

No caso da Daenarys foi bem ao contrário. Repetindo, o caráter empático da personagem aparece já quando ela era só a Khaleesi de Khal Drogo, líder dos dotrakhi, e salva mulheres, de uma aldeia que os dotrakhis saquearam, de estupro e escravidão. Quando se instalou em Meeren, agora já como mãe dos dragões, chegou a prender dois deles nos porões da pirâmide onde vivia porque um camponês disse que eles haviam incinerado sua filha. Quando adquiriu os Imaculados, mandou que matassem todos os mestres de escravos, mas nenhuma criança. Quando voltou à Pedra do Dragão, disse a suas aliadas, como visto anteriormente, que não iria atacar Porto Real diretamente, com seus dragões e poderio bélico, porque não queria ser a rainha das cinzas. E, contrariando suas próprias prioridades, deixou a guerra com Cersei para ir ajudar Jon Snow em sua luta contra o exército do Rei da Noite. E isso já no terceiro capítulo da última temporada. É plausível acreditar, portanto, que praticamente da noite para o dia, Daenarys tenha se transformado de Dr. Jekyll em Mister Hyde, que tenha perdido a empatia pelos inocentes que sempre defendeu? Perdido seu costumeiro senso de justiça?  Essa virada não se sustenta.



Daenarys era a personagem mais interessante de Game of Thrones exatamente por essa empatia pelo próximo que a fez ser amada pelos escravos libertos e outros que a seguiram e lhe valeu tantos fãs. Registre-se que não libertou escravos só para agregá-los a seus exércitos. Fez questão de deixar um governante em Meereen para garantir que a escravidão não voltaria à ex-baía dos escravos.

Qual dos outros nobres das casas dos 7 reinos tinha qualquer preocupação com seus súditos? Suas preocupações sempre giravam exclusivamente em torno dos seus parentes (inclusive para matá-los, se estivessem atrapalhando) e de seus projetos de poder, buscados a qualquer preço e da forma mais violenta possível. Daenarys combinava a força natural de ser imune a chamas e mãe de dragões com uma consciência muita clara de contra quem podia usar essas forças, como traficantes e senhores de escravos, exércitos inimigos e pessoas que a atacavam. E inclusive conseguia ser até misericordiosa com quem a traía, como foi o caso de Jorah Mormont que, nos seus tempos de Kahleesi, passara informações sobre ela para o rei Robert Baratheon, então rei dos 7 Reinos. Em Winterfell, após a derrota do Rei da Noite, Daenarys inclusive legitimou o bastardo de Robert, que sempre fora um simples ferreiro, como Gendry Baratheon, lorde da Ponta Tempestade. É plausível, portanto, acreditar que, por estar enlutada pela perda de amigos queridos e de seu dragão Rhaegal e por querer contestar a suposta fraqueza que Cersei via em seu coração gentil (como lhe dissera certa feita Jorah Mormont), Daenarys virasse do avesso e saísse matando população civil, crianças, mulheres e idosos?

A série teria que ter tido uns quatro episódios a mais, pelo menos, para explicar semelhante mudança de personalidade de forma convincente. Como ficou, deu a nítida impressão de que simplesmente uma mulher tão ambiciosa e poderosa como Daenarys tinha que morrer. Nem casar com Jon Snow seria solução, embora ela quisesse, porque, na opinião de Varys, ela era muito forte pra ele, iria dobra-lo à sua vontade. Daí inventarem uma mudança de caráter repentino da personagem que a fizesse cometer um desatino e justificasse seu assassinato. Aliás, falando no assassino, Jon Snow que sempre pareceu viver a contragosto, meio sem propósito e guiado por amargo senso de dever, virando Comandante da Patrulha da Noite sem querer, Rei do Norte sem querer, voltando a vida pela mão de uma feiticeira (chegou a pedir que não o trouxesse de volta, caso morresse de novo), só serviu para Daenarys como Dalila para o Sansão. Desde que o conheceu e, por ele se apaixonou, a vida de Daenarys desandou.

Moral da história para as mulheres: se você é ambiciosa, tem um objetivo claro na vida, grande potencial de atingir o que deseja por suas qualidades pessoais, por sua força e determinação, não deixe de lado suas prioridades para cuidar das de nenhum boy (ou mesmo girl) engraçadinho. Ele pode lhe retribuir com uma facada no peito num final de romance tão sem sentido e decepcionante como foi o de Game of Thrones. A gente se sente meio lesada por ter assistido.

N.E. Mal tinha terminado o tragicômico episódio final de Game of Thrones e a HBO já estava divulgando trailer da de Westworld, uma série de ótima qualidade que a gente espera não dure tanto a ponto de estragar como GoT.




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