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segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Morre Luiz Carlos Maciel, o principal pensador da contracultura no Brasil



Aos 79 anos, morre Luiz Carlos Maciel, jornalista e pensador da contracultura

Principal ensaísta e pensador da contracultura no Brasil, o jornalista, diretor teatral e roteirista Luiz Carlos Maciel morreu na manhã deste sábado (9), aos 79 anos, no hospital Copa D'Or (Copacabana), no Rio de Janeiro, onde estava internado desde 26 de novembro com um quadro de infecção. Maciel sofria, nos últimos meses, com o agravamento da doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC). Segundo a filha do escritor, Lúcia, o boletim médico apontou falência múltipla dos órgãos. Até o momento, não há informações sobre o velório.

O ensaísmo de Maciel articulou a contracultura brasileira com escritores e agitadores internacionais, anti ou extra-acadêmicos, e contribuiu para torná-la mais consciente de si própria, ao informar sobre ideias insurgentes e movimentos de vanguarda dos anos 60 e 70. Seus textos no "Pasquim", "Flor do Mal", "Última Hora" e "Fairplay" influenciavam adeptos do desbunde, esquerdistas menos ortodoxos e jovens aflitos para "cair fora" e encontrar um novo estilo de vida.

O espírito contracultural se manifestou em Maciel ainda na faculdade de Filosofia, em Porto Alegre (RS), onde nasceu em 15 de março de 1938. Aproximou-se do existencialismo de Sartre e do teatro do absurdo, encenando "Esperando Godot", de Samuel Beckett, com Lineu Dias, Mário de Almeida, Paulo José e Paulo César Pereio, do Teatro de Equipe. Autor do ensaio "Sartre, Vida e Obra" (1967), Maciel destacaria a relevância do filósofo francês em sua transição para a vida adulta, por despertá-lo para a liberdade e a responsabilidade.

Confiante na profecia do amigo Glauber Rocha de que a Bahia lideraria uma revolução cultural, ele decidiu mudar-se para Salvador e assumir uma cadeira de professor da Escola de Teatro, em 1959. Na capital baiana, dirigiu uma montagem elogiada da peça cabralina "Morte e Vida Severina" e foi o protagonista do homoerótico "A Cruz na Praça" (1959), o curta desaparecido de Glauber, que lhe confiaria, perto de morrer, os originais da peça "Jango: Uma Tragedya".

Em 1960, com uma bolsa da Fundação Rockefeller, Maciel partiu para o Carnegie Institute of Technology, em Pittsburgh, nos Estados Unidos. O mergulho na vida americana enriqueceu o repertório de autores e tendências comportamentais da futura e legendária coluna "Underground" no semanário humorístico "Pasquim", do qual tornou-se um dos fundadores a convite do jornalista Tarso de Castro. Entre 1969 e 1972, Maciel era o recordista de cartas da redação, como reconheceu o cartunista Jaguar, e passou a ser chamado de "guru da contracultura", um epíteto aceito a contragosto e fortalecido depois do texto "Conselhos a mim mesmo", em que recomendava: "1. Escuta o canto do ser. Ele tem mais de mil vozes. Olha a dança do ser. Ela tem mais de mil passos".

Na "Underground", e também em artigos para a grande imprensa, Maciel apresentou o zen-budismo de Alan Watts, os testes com LSD do escritor americano Ken Kesey, Timothy Leary e os benefícios terapêuticos das experiências psicodélicas, os odiados Hell's Angels, "Eros e Civilização" de Herbert Marcuse, a ação política do poeta beat Allen Ginsberg e o Gay Liberation Front da Califórnia (em confronto com Ginsberg).

Mais: o hipster segundo Norman Mailer, o Living Theatre, o romancista alemão Hermann Hesse, os Panteras Negras, Wilhelm Reich e a revolução sexual, Carlos Castaneda e os ensinamentos do bruxo Don Juan, as interpretações histórico-psicanalíticas de Norman O. Brown. Assimilou gírias dos desbundados e comentou as religiões orientais, o rock, o jazz, a antipsiquiatria, a anti-universidade, a liberação sexual, o feminismo de Yoko Ono, a maconha e o movimento hippie, além de fazer perfis de artistas como Bob Dylan, Jimi Hendrix, Richie Havens, Santana e —entrevistou-a no Rio, junto com Hélio Oiticica— Janis Joplin. Antecipou-se em décadas às campanhas nacionais contra políticas repressivas a usuários de drogas. Era uma florida revolução dentro da revolução cultural do Pasquim no jornalismo brasileiro.

Em oposição ao machismo confesso de outros membros do "Pasquim", ele simpatizava com os gays, os hippies, as feministas e os tropicalistas. Perto de embarcar para o exílio em Londres, em 1969, o compositor Caetano Veloso recebeu de Maciel a tarefa de enviar artigos para o semanário, uma colaboração bem-vinda para quebrar o gelo político em torno do grupo baiano. Gilberto Gil e Jorge Mautner também seriam acolhidos por suas páginas no período. No final de 1970, o Exército prendeu a equipe do humorístico e Maciel teve a grossa cabeleira cortada na Vila Militar.

Cabelos crescidos, ele deixou o "Pasquim" em 1972, pressionado pelo humorista Millôr Fernandes, inimigo e substituto de Tarso na chefia. Antes da despedida, estimulado por Sérgio Cabral, criou e editou o nanico "Flor do Mal", ao lado de Rogério Duarte, Torquato Mendonça e Tite de Lemos. Imerso de vez no jornalismo, comandou a edição brasileira da revista "Rolling Stone", outra experiência de vida curta, e colaborou com veículos como "Correio da Manhã", "Jornal do Brasil", "O Jornal", "Fatos e Fotos" e "Veja". Na Folha, a pedido de Tarso, escreveu para o caderno "Folhetim". Na "Ilustríssima", em 2015 e 2016, publicou seus últimos textos na imprensa.

NOVA CONSCIÊNCIA

Os ensaios contraculturais de Maciel saltaram dos jornais para duas coletâneas populares nos anos 70: "Nova Consciência" (1972) e "A Morte Organizada" (1975), complementados adiante pelo volume "Negócio Seguinte" (1978). A tensão entre cultura e contracultura, poder e antipoder, liberdade e repressão, atravessa o seu pensamento. "Nunca ninguém defendeu teses irracionalistas em estilo tão calmamente lógico", definiu Caetano Veloso.

No livro "Geração em Transe - Memórias do Tempo do Tropicalismo" (1996), ele repassou a convivência com os três artistas que julgava centrais na contracultura brasileira: Glauber, José Celso Martinez Corrêa e Caetano, independentes entre si mas sincronizados em 1967, quando o filme "Terra em Transe", a montagem de "O Rei da Vela" e a canção "Tropicália" traumatizaram as sensibilidades estéticas.

No ciclo contracultural, o ensaísta conviveu e guardava afinidades com uma lista plural de agitadores: Rogério Duarte, Gilberto Gil, Torquato Neto, Plínio Marcos, Jorge Mautner, José Agrippino de Paula, Leila Diniz, Othon Bastos, Antonio Bivar, Leon Hirszman, Helena Ignez, João Ubaldo Ribeiro, Waly Salomão, Jorge Salomão, Jards Macalé e a trupe dos Novos Baianos. Aprofundou, em tempos recentes, a amizade com o diretor Gerald Thomas.

Em suas memórias, Maciel apresenta um aspecto biográfico pouco conhecido: seu trabalho no Laboratório de Interpretação Crítica do Teatro Oficina, um passo para os atores chegarem ao estilo interpretativo de "O Rei da Vela", a peça de Oswald de Andrade que lhe fora indicada pelo diretor e crítico italiano Ruggero Jacobbi e que ele recomendou ao diretor Zé Celso. Em 1968, Maciel se afastou dos palcos, na sequência do duplo veto da censura à sua direção de "Barrela", de Plínio Marcos, no Teatro Jovem, e "As relações naturais", de Qorpo-Santo, no Teatro Glauce Rocha.

Dizia-se polímata ou homem sem especialização. Chegou a dirigir o longa "Society em Baby-Doll", em 1965. Nos anos 80, enraizou-se na atividade de roteirista na Rede Globo, integrando a equipe do "Globo Repórter" e, dentro do núcleo de Daniel Filho, de especiais como "João Gilberto Prado Pereira de Oliveira" (1980), "Baby Gal" (1983) e "Chico & Caetano" (1986). Ainda trabalharia como roteirista na Rede Record, nos anos 2000. Condensou essa experiência no livro "O Poder do Clímax - Fundamentos do Roteiro de Cinema e TV", reeditado este ano pela Ed. Giostri. Aos 77 anos, viu-se pela primeira vez desempregado. No ano passado, foi convidado para ser consultor da série "Os Dias Eram Assim", da Globo, escrita por Angela Chaves e Alessandra Poggi. "O Sol da Liberdade" (Ed. Vieira & Lent), sua última coletânea, revisitou a vanguarda do Tropicalismo, filósofos como Heráclito, Nietzsche e Heidegger, o escritor americano de ficção científica Philip K. Dick e o filme "Matrix" (1999).

Luiz Carlos Maciel, que dirige a peça "Boca Molhada de Paixão Calada", de Leilah Assunção, que estreia no Teatro Igreja.

Limitado pelo enfisema pulmonar, que se agravou este ano, Maciel sentava-se em posição de lótus, no gabinete, e passava os dias ouvindo Duke Ellington, o ídolo maior. Buscou em vão o raro LP "The Duke In São Paulo", um concerto gravado em 1968 no Teatro Municipal, jamais encontrado em seus garimpos no exterior. Sofreu com a perda de um pedaço de sua coleção de discos de jazz na última mudança de apartamento, mas pacificou-se ao lembrar de uma lição de Norman O. Brown: é preciso saber despedir-se para sempre. Nos últimos anos, publicava seus textos no Facebook e continuava a ler e discutir os mestres Heidegger, Sartre, Castaneda e Philip K. Dick.

Descontente com o impeachment de Dilma Rousseff e a ascensão da direita ao poder —com ela, a caretice, sua velha inimiga—, Maciel lamentou, em casa, duas semanas antes da internação hospitalar: "Conseguiram transformar o Brasil no país mais chato do mundo". Em seu último ensaio, "Memórias do Futuro" (inédito), pensado como introdução a um livro imaginário, o ensaísta defendeu um ponto de vista utópico: "A questão que nos confronta, hoje, é a necessidade de novas lembranças do futuro, de informação sobre nosso destino através de um processo semelhante ao que operou nos anos 60".

Filho de Logunedé, no Candomblé, Maciel aceitou os ensinamentos de Jesus e Buda, conheceu a Umbanda e o Santo Daime, absorveu o gnosticismo e preservou cautelas ateístas.

Ele deixa a viúva, Maria Cláudia, atriz, com quem estava casado desde 1976, os filhos Lúcia Maria e Roberto (do primeiro casamento com Yonne), quatro netos, 13 livros e oito gatos batizados com nomes de filósofos pré-socráticos. Arriscava-se à futurologia ao prever a manchete de sua morte: "Morre Luiz Carlos Maciel, o guru da contracultura".

Fonte: Folha de São Paulo, por Cláudio Leal, 09/12/2017

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Mulheres (esquecidas) na Ciência: Émilie du Châtelet

Um retrato de Émilie du Châtelet atribuída a Maurice-Quentin de La Tour.
Crédito: DeAgostini / Getty Images.
Ver vídeo sobre Châtelet ao final da postagem

Émilie du Châtelet: a mulher que a ciência esqueceu

Por Jessica Nunes

Um animado debate enfureceu a Europa do século XVIII sobre o que conduzia o movimento dos planetas. Na Inglaterra, Sir Isaac Newton e seus seguidores disseram que era a gravidade: a mesma força invisível que impulsiona uma maçã caindo também mantinha os planetas em seus caminhos maravilhosamente ordenados.

Do outro lado do Canal da Mancha. muitos Continentais preferiam a teoria de René Descartes que dia que um “éter” cósmico giratório, como um tornado celestial, empurravam os planetas em seu caminho.

Esta discordância é mais do que uma curiosidade histórica – ela foi afundo do que é necessário para uma proposta se qualificar como uma verdadeira teoria científica.

Um par improvável ajudou Newton a conquistar a vitória na Europa Continental: o mais conhecido e mais polêmico dramaturgo da França, Voltaire, e sua amante, a matemática Émilie du Châtelet. Seu trabalho científico inclui o que ainda é a tradução definitiva em francês do Principia de Newton. No entanto, após sua morte, ela foi praticamente esquecida. Se ela foi lembrada, suas realizações foram muitas vezes menosprezadas, perdida na sombra dos “grandes homens” de sua vida. Mas os historiadores modernos têm redescoberto Émilie, e sua história está inspirando novas gerações de matemáticas mulheres, inclusive eu.

Quando Émilie mudou-se para Cirey para se juntar a seu amante, as más-línguas se alvoroçaram.

Nascida em Paris em 1706, ela é sem dúvida a matemática mais glamorosa da história. Alta e aristocrática, apaixonada por suas atividades intelectuais e amorosas, ela era maior que a vida. Muito ousada para a maioria das pessoas da época: ambiciosa demais, intelectual demais, emocional demais, e sexualmente liberal demais. Feminista demais também: ela não brincou enquanto escrevia sobre sua luta para graduar-se em matemática e física (as mulheres eram impedidas de entrar em boas escolas, ficando sozinhas nas universidades): “Se eu fosse rei” escreveu, “Eu reformaria esse abuso em cortar metade da humanidade. Eu teria mulheres participando de todos os direitos humanos, e, acima de tudo, os da mente”.

Aos 26 anos, ela cativou Voltaire, que foi seduzido por seu cérebro, bem como pela sua beleza. Ele já era famoso como um plebeu arrogante com um humor perverso. Émilie, ao contrário, nasceu para a vida aristocrática; seu pai tinha sido chefe de protocolo na corte de Luís XIV em Versalhes. Ela tinha sido casada aos 18 anos com o Marquês du Châtelet, com quem ela logo teve três filhos. Tendo feito o seu dever para a linhagem de Châtelet, ela e seu marido, em seguida, viveram vidas relativamente separadas – uma situação comum nas famílias aristocráticas. Menos comum era a amizade notável que eles desenvolveram, de modo que, finalmente, o marquês apoiou não só a ambição incomum de Émilie, mas também sua relação passional com Voltaire. Ter um amante era comum na época dos casamentos arranjados, mas Émilie e Voltaire escandalizaram a sociedade quando eles foram morar juntos: casos amorosos extraconjugais deveriam ser flertes discretos, não casamentos alternativos. Curiosamente, o arranjo interno dos dois – e seus papéis como revolucionários newtonianos – eram tão interligados quantos os mistérios do cosmos que eles queriam explicar.

A atração de Voltaire por Newton nasceu da raiva do dramaturgo pelos conservadores e pelas elites francesas – algo que ele deixou claro em sua escrita satírica. No momento em que ele conheceu Émilie em 1733, sua propensão em perturbar pessoas poderosas já tinha o levado à Bastilha por 11 meses – e no final da década de 1720 ele foi forçado a se exilar por alguns anos. Exílio esse que se mostrou feliz, pois ele tinha ido para a Inglaterra, onde conheceu alguns dos principais discípulos de Newton – o próprio Newton já passava de seus 80 anos nessa época..

Londres estava alvoroçada com Newton, e quando o grande homem morreu em 1727, Voltaire compareceu ao seu funeral na Abadia de Westminster. Tal veneração oficial de um cientista era desconhecida na França de Voltaire, e o deixou muito impressionado. Tanto que ele escreveu uma série de ensaios sobre os ingleses: sua monarquia constitucional, relativa tolerância religiosa, a ciência newtoniana racional, e a nova geração de filósofos empiristas, especialmente John Locke, amigo e discípulo de Newton.

Voltaire publicou esses ensaios na Inglaterra. No início de 1734, ele disse a um amigo que estava adiando a publicação da versão francesa mais longa – Lettres Philosophiques – por medo do clero da corte francesa. A edição francesa incluiu uma crítica desfavorável dos escritos religiosos do matemático francês Blaise Pascal, e uma defesa da afirmação de Locke de que o pensamento pode surgir através de um mecanismo material – uma ideia que deixou os teólogos nervosos de ambos os lados do Canal por assumirem que Locke estava dizendo que não existiam coisas como almas imortais.

A confusão com o dogma religioso era perigoso. Mas o apoio que Voltaire encontrou nas ideias de Locke e de Newton também desafiou o orgulho nacional francês. Um de seus ensaios criticou os “cartesianos” que dominavam a Academia de Ciências de Paris. Estes homens – seguidores do filósofo do século XVII René Descartes – tiveram grande dificuldade com a teoria do movimento planetário de Newton. Como a gravidade do Sol poderia viajar através de milhões de quilômetros no espaço vazio para alcançar e influenciar os planetas? Eles pensaram que isso cheirava a pseudociência – como a astrologia ou a alquimia. Isso é irônico, em retrospectiva, porque hoje nós consideramos a teoria de Descartes como pseudocientífica, com seus vórtices giratórios de éter invisível arrastando os planetas em suas órbitas. Ninguém sabia do que era feito esse éter, ou por que ele girava como um tornado. Voltaire apontou a hipocrisia de acreditar em redemoinhos etéreos mágicos enquanto rejeitavam a atração gravitacional. Seu ensaio mostra que para muitos teóricos do século XVII, as regras sobre o que constitui uma teoria verdadeiramente científica ainda não tinha solidificado.

A matemática foi crucial para a abordagem de Newton. Não que Voltaire estivesse no topo das sutilezas matemáticas que mostraram o quão superior a teoria de Newton era – ele precisaria da ajuda de Émilie para isso. Mas essa ajuda teria de esperar porque em abril de 1734, a editora francesa de Voltaire lançou o Lettres na França sem a sua permissão. Um mandado de prisão foi emitido e Voltaire passou a se esconder. Émilie se enfureceu com seus amigos pelo tratamento injusto que a França deu ao seu maior escritor. Seus apelos às autoridades, assim como os de seu marido e outros amigos aristocráticos, deu frutos. Voltaire foi autorizado a voltar para a França, onde viveu sob uma espécie de prisão domiciliar em no château de Cirey, em Champagne.

Quando Émilie se mudou para Cirey para se juntar a seu amante, as más-línguas se alvoroçaram, com ódio, porque ela tinha se atrevido a desrespeitar as regras do decoro. Ela e Voltaire começaram a transformar Cirey em uma academia informal onde estudavam, escreviam, discutiam filosofia e hospedavam intelectuais livres-pensadores. Era um arranjo idílico, embora às vezes Voltaire sentia que não estava trabalhando duro o suficiente em sua poesia e peças teatrais. “Muitas vezes”, disse ele, “a ceia, Newton e Émilie me levam embora”. Ele estava se referindo aos seus preparativos para uma popularização séria das ideias de Newton, que se chamaria Elementos da Filosofia de Newton.

Émilie levaria esse projeto ainda mais longe em um “comentário” de 180 páginas que ela anexou à sua tradução do Principia de Newton. Isto incluiu um guia do leitor relativamente acessível para os principais argumentos na teoria gravitacional do movimento planetário de Newton. Também descrevia as aplicações da teoria de Newton por seus eminentes amigos matemáticos e, por vezes tutores, Alexis Clairaut e o arrojado Pierre-Louis Moreau de Maupertuis, bem como uma atualização sobre a teoria da gravitação das marés de Newton por seu colega, o matemático suíço Daniel Bernoulli. O apêndice de Émilie também incluiu sua própria reformulação de algumas das provas mais importantes da linguagem do cálculo do Principia. Newton (e independentemente o matemático-filósofo alemão Gottfried Leibniz) inventou o cálculo – a matemática que descreve e prediz como as coisas mudam, como a posição de uma maçã que cai ou um planeta no céu. Mas, aparentemente, Newton sentiu que o cálculo era novo demais para convencer as pessoas da validade de sua radical teoria gravitacional . Em vez disso, ele estabeleceu a maior parte de seus argumentos com provas geométricas engenhosas mas idiossincráticas – o tipo de abordagem lógica, rigorosamente aperfeiçoada pelos gregos antigos. Émilie re-escreveu algumas dessas provas usando a notação dy/dx que havia sido desenvolvida por Leibniz.

A fama de Émilie entre os intelectuais europeus não veio de sua tradução do Principia, mas a partir de um trabalho anterior de ciência popular – chamado Institutions de Physique (Fundamentos de Física) – no qual ela corajosamente tentou integrar o trabalho de Newton e Leibniz. A opinião científica naquele tempo tenderam a favorecer tanto o inglês quanto o alemão. Não foi apenas sobre nacionalismo, foi também um debate sobre o que constitui uma teoria da natureza. Newton focou em fornecer explicações testáveis para o que podemos observar no Universo, enquanto Leibniz enfatizou questões filosóficas sobre a natureza da existência. O brilhantismo de Émilie estava em sua capacidade de compreender as sutilezas da teoria de Newton e filosofia de Leibniz.

Voltaire, por outro lado, estava extasiado com Newton e não se preocupou muito com Leibniz – ele e Émilie permaneceram em desacordo sobre a questão. Em sua novela, Candide, ele iria satirizar a filosofia de Leibniz sobre o “melhor mundo possível” – tentativa de Leibniz de conciliar a bondade de Deus com o sofrimento e o mal no mundo.

Em meados da década de 1740, no entanto, o trabalho de Emilie no Principia estava mais próximo a seu coração – traduzir 500 páginas de Latim e geometria complexa, e verificar e re-verificar suas provas de cálculo, foi árduo. “Eu nunca fiz esse sacrifício para a razão, por isso eu tenho que ficar aqui e terminar este livro. É um trabalho horrível, para o qual é necessário uma cabeça e uma constituição de ferro”, ela lamentou. No entanto, tanto ela como Voltaire estavam seduzidos pela lógica de Newton. Mostrando quão profundamente a mente humana pode penetrar os mistérios da natureza, Newton deu aos seus discípulos esperança de que a razão iria triunfar sobre a superstição, dando início a uma abordagem racional, secular, não só para a “filosofia natural”, mas também para a política e para a ética.

Artigo traduzido de Cosmos MagazinePor Robyn Arianrhod

Fonte:  Universo Racionalista, 08/11/2015

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