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terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

“Direito negativo” e “direito positivo” como base da democracia americana



Fernão Lara Mesquita resume muito bem, em artigo no Esatadão, como funciona a democracia americana, baseada nos direitos negativos e positivos, no federalismo, na representação distrital pura e no recall ou retomada de mandatos. Destaco as definições didáticas dos chamados direitos de primeira, segunda e terceira geração (os negativos e os positivos), mas o artigo todo vale a leitura.

Direitos de primeira geração: “Direito negativo” é o de não ser submetido à ação coercitiva de outra pessoa ou do governo. Eles o têm por um direito natural, também dito de primeira geração. Fixa os círculos do espaço individual que as pessoas naturalmente sabem que não devem invadir: o do corpo, o do lar, o dos pertences, o da propriedade. 

Direitos de segunda geração: Decorrem dos primeiros como desdobramentos civis e políticos, ditos de segunda geração, o direito à vida, à liberdade de expressão, à liberdade religiosa, à legítima defesa, ao habeas corpus, a um julgamento justo, etc.

Direitos de terceira geração: Já os “direitos positivos”, ditos de terceira geração, são os que requerem a ação de uma terceira pessoa para serem exercidos por quem vai desfrutá-los. Enquanto um “direito negativo” proíbe alguém ou o governo de agir contra o seu beneficiário, um “direito positivo” obriga outras pessoas ou o governo a agirem em benefício do seu detentor. Incluem-se nesse departamento os direitos sociais e culturais, tais como à comida, à habitação, à educação, a um emprego, à saúde, à seguridade social, ao acesso à internet ou o que mais se quiser incluir na lista, que, no Brasil, por exemplo, é infindável.

A chave da moderna democracia americana
Trata-se da distinção que eles fazem entre ‘direito negativo’ e ‘direito positivo’

A chave para o entendimento do sistema institucional americano é a distinção que eles fazem entre “direito negativo” e “direito positivo”.

“Direito negativo” é o de não ser submetido à ação coercitiva de outra pessoa ou do governo. Eles o têm por um direito natural, também dito de primeira geração. Nasce com e pertence a todas as pessoas, e está garantido enquanto ninguém agir para violá-lo. A common law, o direito baseado na tradição que foi comum a toda a Europa, mas só sobreviveu na Inglaterra depois do advento do absolutismo monárquico que o nosso “direito romano” foi inventado para sustentar, fixa os círculos do espaço individual que as pessoas naturalmente sabem que não devem invadir: o do corpo, o do lar, o dos pertences, o da propriedade. Essa é a base do “direito negativo”. E desses círculos decorrem os seus desdobramentos civis e políticos, ditos de segunda geração, o direito à vida, à liberdade de expressão, à liberdade religiosa, à legítima defesa, ao habeas corpus, a um julgamento justo, etc.

Já os “direitos positivos”, ditos de terceira geração, são os que requerem a ação de uma terceira pessoa para serem exercidos por quem vai desfrutá-los. Enquanto um “direito negativo” proíbe alguém ou o governo de agir contra o seu beneficiário, um “direito positivo” obriga outras pessoas ou o governo a agirem em benefício do seu detentor. Incluem-se nesse departamento os direitos sociais e culturais, tais como à comida, à habitação, à educação, a um emprego, à saúde, à seguridade social, ao acesso à internet ou o que mais se quiser incluir na lista, que, no Brasil, por exemplo, é infindável.

Lá a Constituição da União, elaborada pelos “pais fundadores” iluministas, contempla exclusivamente os “direitos negativos”, o que, na medida em que ela subordina todas as outras leis, estabelece a prevalência destes sobre os “direitos positivos”. Diz, no preâmbulo, que todo o poder emana do povo, que o delega aos seus representantes eleitos por sufrágio universal e define nos seus sete artigos, pela ordem, o Congresso dos representantes do povo, a Presidência, o Judiciário, as relações entre os Estados e deles com a União e as regras para emendar a Constituição. As emendas da 1.ª à 8.ª garantem os já citados direitos de segunda geração que decorrem dos círculos de inviolabilidade do indivíduo. A 9.ª e a 10.ª (para encerrar a disputa de egos entre os convencionais de 1787, que queriam cada um enfiar um direito a mais) declaram que tudo o que não está formalmente proibido até ali “são direitos que pertencem ao povo ou aos Estados”. Todos os temas da alçada do “direito positivo” que recheiam de ponta a ponta a nossa Constituição federal lá ficam, portanto, restritos às Constituições estaduais e municipais.


E aí vem o pulo do gato.

Como todo “direito positivo” (artificialmente criado) implica uma violação do “direito negativo” (inato, natural) de não ser coagido a nada nem ter o que é seu apropriado pelos outros, eles só podem ser criados, nos países de common law, por contrato, isto é, se todas as partes envolvidas concordarem com isso numa votação. E como cada “direito positivo” tem um custo, o projeto que o propõe tem de incluir obrigatoriamente o seu esquema de financiamento: qual será a despesa, quem arcará com ela, como e quando ela será paga.

Ou seja, não existe a hipótese de se fazer caridade com dinheiro alheio. Quem se dispuser a tanto deve usar o seu próprio.

Correndo em paralelo com a diferenciação entre “direito negativo” e “direito positivo” está o princípio do federalismo, a mais forte garantia em países de dimensão continental e ampla diversidade de situações de que o sistema estará sempre voltado para servir ao indivíduo e jamais poderá acumular poder suficiente para voltar-se contra ele. Cada instância de governo - a municipal, a estadual e a federal - é definida em função do seu grau de proximidade do indivíduo e deve ser absolutamente soberana até o limite do alcance dele. Tudo o que diz respeito a uma única comunidade - a escolha do seu modelo de governo, policiamento local, saneamento, vias públicas, educação, saúde, proteção contra incêndios, normas de comércio, etc. - deve ser decidido e custeado por ela própria e mais ninguém, respeitadas as linhas básicas da Constituição. Só o que envolver mais de uma comunidade - estradas, transporte intermunicipal, circulação de bens, repressão ao crime, sistema penal, etc. - deve ficar a cargo dos governos estaduais. E somente o que não pode ser resolvido por um único governo estadual fica a cargo da União.

Acrescenta-se finalmente à fórmula um sistema preciso de representação dos eleitores em cada uma dessas instâncias de governo, o que se consegue com eleições distritais puras, em que cada distrito elege apenas um representante. Tudo começa pela eleição do conselho que vai dirigir cada escola pública entre os moradores de cada bairro do país. E daí vai subindo para os municípios, para os Estados, para a União. Sempre com cada representante, com base no endereço, sabendo exatamente quem é cada um dos seus eleitores. Sempre com cada representado guardando o poder de manter ou não o seu representante até o fim do mandato (recall ou retomada de mandatos), de obrigá-lo a tratar dos assuntos que ele indicar (leis de iniciativa popular), de impedi-lo de impor-lhe o que quer que seja (referendo das leis vindas de cima), de afastar juízes lenientes ou enviesados (com eleições periódicas de retenção ou substituição de juízes).

Com essas liberdade e flexibilidade, aos poucos o sistema foi evoluindo segundo a necessidade e a preferência de cada comunidade. O bairro vota - sim ou não - um melhoramento da escola a ser pago com um aumento temporário só do seu IPTU; a cidade, a contratação de mais policiais ou a construção de um novo hospital mediante um aumento temporário da taxa local de comércio; o Estado, uma nova estrada a ser paga pelos seus usuários mediante pedágio...

E fez-se a luz... sempre na medida e no preço exatamente desejados.

Fonte: O Estado de São Paulo, por Fernão Lara Mesquita, 26/02/2019

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Os 70 anos da Declaração dos Direitos Humanos

Eleanor Roosevelt
Declaração dos Direitos Humanos faz 70 anos
Confira a íntegra dos 30 artigos da declaração, documento mais traduzido do mundo e que foi elaborado por dois anos

Assinada há exatos 70 anos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos representa o reconhecimento de que os direitos básicos e as liberdades fundamentais são inerentes a todo ser humano e foi responsável por avanços na defesa desses direitos em diversas partes do mundo. 

Elaborada durante dois anos, numa época em que o mundo sentia os efeitos da Segunda Guerra Mundial e estava dividido entre países capitalistas e comunistas, foi pontuada por desacordos entre nações dos dois blocos até ser aprovada, em Paris, às 23h56 de 10 de dezembro de 1948. 

Com 30 artigos, a declaração é considerada o documento mais traduzido do mundo —para mais de 500 idiomas— e inspirou as constituições de vários Estados e democracias recentes.
Reunião em Paris da então recém-criada ONU que aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 10 de dezembro de 1948
Reunião em Paris da então recém-criada ONU que aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 10 de dezembro de 1948 - AFP
O texto condena a escravidão e a tortura, defende o asilo para indivíduos perseguidos e o direito à educação gratuita, à liberdade de reunião e à propriedade privada e proclama que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”, “sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação”.

Foi aprovado na 3ª Sessão da Assembleia Geral da ONU (Organização das Nações Unidas), que na época reunia 58 países. Entre os que 48 que votaram, houve unanimidade. 

União Soviética, Belarus, Ucrânia, Tchecoslováquia, Polônia, Iugoslávia, Arábia Saudita e África do Sul se abstiveram. Honduras e Iêmen não estavam presentes. 

A pedido do delegado polonês Julius Kitzsoctly, foram lidos todos os artigos. Silêncio significava consentimento da audiência. A leitura durou quatro horas.

A ex-primeira-dama dos EUA e então presidente da Comissão de Direitos Humanos, Anna Eleanor Roosevelt (1884-1962), atingiu o cargo de coordenadora da Declaração por votação direta, no começo dos trabalhos, em 1946, e teve papel decisivo na aprovação do documento.

Confira abaixo a íntegra do texto de introdução e os 30 artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos:


DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS


Adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (resolução 217 A III) em 10 de dezembro 1948.

Preâmbulo

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo,

Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da humanidade e que o advento de um mundo em que mulheres e homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do ser humano comum,

Considerando ser essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo império da lei, para que o ser humano não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão,

Considerando ser essencial promover o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações,

Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos fundamentais do ser humano, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos do homem e da mulher e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla,

Considerando que os Países-Membros se comprometeram a promover, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos e liberdades fundamentais do ser humano e a observância desses direitos e liberdades,

Considerando que uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da mais alta importância para o pleno cumprimento desse compromisso,

Agora portanto a Assembleia Geral proclama a presente Declaração Universal dos Direitos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade tendo sempre em mente esta Declaração, esforce-se, por meio do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universais e efetivos, tanto entre os povos dos próprios Países-Membros quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição.

​Artigo 1
Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.

Artigo 2
1. Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. 

2. Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania.

Artigo 3
Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.

Artigo 4
Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas.

Artigo 5
Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.

Artigo 6
Todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei.

Artigo 7
Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.

Artigo 8
Todo ser humano tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei.

Artigo 9
Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado.

Artigo 10
Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir seus direitos e deveres ou fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.

Artigo 11
1.Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa. 
2. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Também não será imposta pena mais forte de que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso.

Artigo 12
Ninguém será sujeito à interferência na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataque à sua honra e reputação. Todo ser humano tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques.

Artigo 13
1. Todo ser humano tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado. 
2. Todo ser humano tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio e a esse regressar.

Artigo 14
1. Todo ser humano, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros países. 
2. Esse direito não pode ser invocado em caso de perseguição legitimamente motivada por crimes de direito comum ou por atos contrários aos objetivos e princípios das Nações Unidas.

Artigo 15
1. Todo ser humano tem direito a uma nacionalidade. 
2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade.

Artigo 16
1. Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua dissolução. 
2. O casamento não será válido senão com o livre e pleno consentimento dos nubentes. 
3. A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado.

Artigo 17
1. Todo ser humano tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros. 
2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade.

Artigo 18
Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; esse direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença pelo ensino, pela prática, pelo culto em público ou em particular.

Artigo 19
Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.

Artigo 20
1. Todo ser humano tem direito à liberdade de reunião e associação pacífica. 
2. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação.

Artigo 21
1. Todo ser humano tem o direito de tomar parte no governo de seu país diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos. 
2. Todo ser humano tem igual direito de acesso ao serviço público do seu país. 
3. A vontade do povo será a base da autoridade do governo; essa vontade será expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto secreto ou processo equivalente que assegure a liberdade de voto.

Artigo 22
Todo ser humano, como membro da sociedade, tem direito à segurança social, à realização pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade.

Artigo 23
1. Todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego. 
2. Todo ser humano, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho. 
3. Todo ser humano que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social. 
4. Todo ser humano tem direito a organizar sindicatos e a neles ingressar para proteção de seus interesses.

Artigo 24
Todo ser humano tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho e a férias remuneradas periódicas.

Artigo 25
1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis e direito à segurança em caso de desemprego, doença invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle. 
2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social.

Artigo 26
1. Todo ser humano tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito. 
2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos do ser humano e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz. 
3. Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos.

Artigo 27
1. Todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios. 
2. Todo ser humano tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica literária ou artística da qual seja autor.

Artigo 28
Todo ser humano tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados.

Artigo 29
1. Todo ser humano tem deveres para com a comunidade, na qual o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível. 
2. No exercício de seus direitos e liberdades, todo ser humano estará sujeito apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática. 
3. Esses direitos e liberdades não podem, em hipótese alguma, ser exercidos contrariamente aos objetivos e princípios das Nações Unidas.

Artigo 30
Nenhuma disposição da presente Declaração poder ser interpretada como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades aqui estabelecidos.

Fonte: Folha de São Paulo, 10/12/2018

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

A única coisa consistente no discurso de Olavo de Carvalho são os palavrões


Não concordo com tudo que diz Ruy Fausto, neste longo artigo, mas concordo no essencial sobre o personagem caricato mas perigoso que chega ao poder via Bolsonaro:
Olavo de Carvalho é antes de tudo um mitômano, e o seu discurso é um tecido de disparates, uma enxurrada de embustes. 
Olavo tempera os seus argumentos com dois molhos essenciais: abraços e palavrões —a baixaria mais chula por um lado e, por outro, sorrisos, tapinhas nas costas, conselhos e confissões, em tom de colóquio entre amigos. Esses ingredientes estão presentes em toda fala de Olavo. 
Olavo de Carvalho é um óbvio embusteiro, mas o Brasil parece adorar a espécie. Lula sempre foi também um óbvio embusteiro, mas tem devotos até hoje. De fato, o Brasil ficou dividido entre os devotos da seita do São Lula Presidiário e da seita do São Bozo Pistoleiro.

Agora os devotos do São Bozo Pistoleiro chegam ao poder com perspectiva nada democrática. E o famigerado projeto Escola Sem Partido é sua ponta de lança contra um dos princípios básicos da democracia: a liberdade de expressão. Que todos os democratas, sejam de direita ou de esquerda, unam-se contra mais essa ameaça autoritária à democracia brasileira.

Única coisa rigorosa no discurso de Olavo são os palavrões, diz Ruy Fausto
Autor questiona ideias do guru de Jair Bolsonaro e sua aplicação em propostas e ações do presidente eleito e sua equipe

As boas almas acham que tudo vai se normalizando no Brasil depois da eleição de Jair Bolsonaro. A ordem é pacificar, reduzir as diferenças ou fazer oposição... Construtiva. Afinal, seria preciso manter a cabeça fria. E se as coisas não se passassem exatamente assim?
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Bolsonaro não era um candidato igual aos outros, aos que se apresentaram nas eleições de outubro ou em eleições anteriores, nem aos presidentes que se elegeram anteriormente. Exagero? “Complotismo”? Infelizmente, acho que não.

O vencedor do pleito de 28 de outubro não oculta o seu projeto, mesmo se afirma respeitar a Constituição, o que pode ser lido de muitas maneiras. Ele diz quais são as suas convicções e, com os seus partidários, da cúpula ou da base, age. Deixa claro que quer “desmontar o sistema”. E, em setores fundamentais, não deixa dúvida sobre o que isso significa.

As universidades e as escolas devem ser submetidas pela proposta da chamada Escola sem Partido. Houve também o episódio da intervenção nas universidades, que o STF pôs em xeque. Os jornais, já sabemos, devem se comportar bem, se quiserem ter “subsídios”. 

Nada de publicar notícias sobre uma funcionária do presidente eleito que é surpreendida pela reportagem muito longe do seu trabalho. E nada de notícias sobre o uso abusivo de uma mídia eletrônica pelo candidato e pelo seu partido, na realidade, a ponta emersa de um iceberg. Nada de escrever coisas incômodas ao presidente. Ou então: nenhuma publicidade oficial e entrada barrada às entrevistas coletivas do novo presidente. 

O Judiciário? Uma parte está com ele. A manifestação de cem procuradores e promotores em favor da famigerada Escola sem Partido é um sintoma da maior gravidade. Parte do Judiciário assume com entusiasmo um projeto liberticida. 

Há também o projeto de revogar a chamada “PEC da bengala”, o que permitiria a Bolsonaro nomear quatro ministros do Supremo... Uma deputada eleita diz que isso é necessário, já que por razões “ideológicas” (sic!) o STF tende a barrar as brilhantes iniciativas do presidente (Escola sem Partido, excludente de culpabilidade etc.). 

A parte do Judiciário que não estiver com o novo poder, cuidado: o filho deputado, o “menino”, não deixou por menos. Não é necessário um jipe nem um sargento para fechar o STF. Militares a pé, dos dois graus inferiores da hierarquia (com o perdão deles), poderão fazer o serviço. 

E a Câmara? Não sabemos. Claro que a maioria dos deputados e senadores não é flor de muito bom cheiro. Mas as duas instituições, estas, há que preservá-las. O futuro ministro da Economia quer “prensar” uma delas, e parece que o verbo “tratorar” andou também circulando. 

O Congresso aprova aumento dos subsídios dos membros do Judiciário, contrariando a vontade do novo presidente? Organiza-se um abaixo-assinado com mais de 1 milhão de assinaturas. Claro que somos contra esse aumento. Mas que uso fará o novo poder desse abaixo-assinado? Serviria de arma para uma batalha contra um Congresso demasiado indócil para o gosto do presidente? 

Eduardo Bolsonaro, deputado eleito por São Paulo, aquele mesmo do “soldado mais o cabo”, recidiva com nova entrevista. Dois pontos-chave: se precisar prender 100 mil, diz ele, a propósito da projetada criminalização dos movimentos sociais, prenderemos... Mais claro ainda: seu projeto é o de “proibir” o comunismo, como na Ucrânia, na Polônia e na Indonésia (!). O que significaria, está dito quase com todas as letras na entrevista, pôr fora da lei o PT, o PC do B, e o PSOL. Nada menos...

A verdade é que não só podemos dizer que há um perigo real de que evoluamos para uma forma atípica de ditadura. Sem exagero, acho que o processo que nos levaria por esse caminho já está em andamento.

Para entender quem é Bolsonaro, vale a pena se debruçar sobre sua relação estreita com Olavo de Carvalho. Olavo de Carvalho é um misto de mau filósofo, de iluminado e de ativista, um militante da mídia que é seguido por centenas de milhares de adeptos. 

Católico fundamentalista, ele andou falando bem de certos regimes, como o de Viktor Orbán, na Hungria. Nesse país, as “instituições” foram em geral conservadas. Vota-se, há câmaras legislativas e tribunais superiores e ordinários. Entretanto, é muito difícil dizer que a Hungria seja hoje uma democracia. 

Orbán assegurou uma maioria confortável no tribunal superior, por meio de nomeações devidamente controladas. Pôs a mão nas escolas e nas universidades. Graças ao controle dos jornais e de algumas medidas na organização das eleições, ele garante um domínio estável sobre o país e impõe práticas restritivas em matéria de costumes. A alternância se tornou quase impossível.

Se há risco de que esse modelo venha a ser implantado do Brasil, é preciso reunir forças, discutir o mais possível, e, “not least”, não se esquecer de desmontar o discurso do adversário. Esse trabalho é da maior importância.



É com essa perspectiva, que dedicarei o que segue a Olavo de Carvalho, em especial à entrevista que o mentor e ideólogo de Jair Bolsonaro deu, duas semanas atrás, à revista Carta Capital. 

Vou passar por cima de tudo o que a sua fala tem de simples besteirol ou de puro sofisma: a escola de Frankfurt pregaria a guerra cultural através da propaganda do incesto e, por isso, Fernando Haddad, adepto da Escola de Frankfurt defenderia o incesto; a reza de Magno Malta por ocasião do discurso da vitória de Bolsonaro não mereceria crítica porque, afinal, é uma reza e não um ato pornográfico (ele não discute o essencial: a ocasião da reza). Há, ainda, o procedimento que consiste em reduzir relações muito diversificadas, que existem —ou não existem— entre certos elementos, a predicações idênticas ou a identidades, do tipo: candidato do PT remete a PT, PT remete a Foro de São Paulo, Foro de São Paulo remete a Farc, Farc remete a droga, candidato do PT remete a droga... Etc. 

(Ver o discurso do futuro chanceler Ernesto Araújo. A postagem do diplomata em seu blog Metapolítica 17 é uma joia: “Haddad é o poste de Lula. Lula é o poste de Maduro, atual gestor do projeto bolivariano. Maduro é o poste de Chávez. Chávez era o poste do socialismo do século 21 de [Ernesto] Laclau. Laclau e todo o marxismo disfarçado de pós-marxismo é o poste do maoismo. O maoismo é o poste do inferno”. 

O ministro diz apreciar divisas como “Deus, Família e Pátria”. A dos integralistas brasileiros —versão nacional do fascismo— era “Deus, Pátria e Família”. Já o programa do futuro ministro da Educação, como dá a entender Antonio Prata em coluna na Folha, é mais propriamente o programa de um ministro da Propaganda). 

A Escola de Frankfurt visaria o domínio cultural? Falso —devemos responder—, isso seria aproximar “a revolução contra o capital” de Gramsci do discurso de Adorno, cético quanto à práxis (naquela conjuntura, pelo menos) e impregnado da dialética do capital. 

As metonímias sofísticas: uma referência menor de um autor ou de uma “escola” (Horkheimer falou uma vez do incesto, e falou sem pregar o incesto, “nota bene”) se transforma em bandeira da “escola” ou do autor. Olavo de Carvalho é antes de tudo um mitômano, e o seu discurso é um tecido de disparates, uma enxurrada de embustes.

Olavo tempera os seus argumentos com dois molhos essenciais: abraços e palavrões —a baixaria mais chula por um lado e, por outro, sorrisos, tapinhas nas costas, conselhos e confissões, em tom de colóquio entre amigos. Esses ingredientes estão presentes em toda fala de Olavo. 

Já me ocupei do Olavo filósofo (em “Caminhos da Esquerda”, Companhia das Letras, 2017, pp 47-53). O que o personagem diz sobre Epicuro é besteira, o que escreve sobre Hegel é banalíssimo e ainda por cima errado, o que diz sobre Marx é superficial e também não bate, o que escreve sobre Adorno é falso...

Na realidade, a única coisa rigorosa no discurso de Olavo de Carvalho são os palavrões. Os palavrões cumprem por si sós duas funções: violência e familiaridade. Em vez de se pavonear com pitorescos filósofos de extrema direita da Europa central, Olavo deveria bater à porta de alguma universidade séria da Europa ocidental ou dos EUA. 

Vejamos o que ele dizia sobre a Escola sem Partido. O entrevistador pergunta se convidar os alunos a filmar os professores para ver se eles propagam ou não “ideias subversivas” não representaria uma forma de censura à livre manifestação. Como faz com frequência, Olavo começa com um jogo de inversão, respondendo à pergunta mais ou menos do seguinte modo.

Censura? Quem censura não são aqueles que convidam os alunos a filmarem, mas são os professores que se recusam a ser filmados. Afinal, o ensino é uma atividade pública. Todos têm o direito de saber o que se passa na sala de aula. Por que os professores se recusam, por que não querem que todos tenham acesso ao conteúdo das suas aulas? Isso, sim, é censura. E se se empenham tanto na recusa é por uma das três razões seguintes. A comunicação pública de suas aulas revelaria: 1) que eles são comunistas; ou 2) que eles são incompetentes ; ou 3) que eles são pedófilos (sic, fim da referência).

Para responder de maneira convincente e rigorosa a essa argumentação sofística, é preciso começar pelas raízes. O ponto de partida é a sociedade brasileira e sua característica principal: uma sociedade que está no ranking das dez mais desiguais do mundo.

Em sociedades desse tipo, como naquelas em que se tem alternativa ou cumuladamente um poder brutalmente opressivo (por exemplo a russa do início do século 20), a intelligentsia (isto é, a intelectualidade preocupada com as injustiças que reinam no seu país) assume uma atitude crítica para com esse estado de coisas.

Quando se trata de professores, o que ocorre? Pode ser que algum imprudente faça proselitismo, mas isso parece ser raro. O que ocorre é que, ao falar do país, numa aula de história, geografia ou economia, ele deixa transparecer que se situa mais entre os críticos do que entre os que dizem sim ao statu quo.

Isso significa tomar partido? Essa atitude se configura como proselitismo partidário? Nada disso. Os professores reagem como seres humanos e cidadãos do país, como seres dotados de inteligência, de informação e de generosidade. 

Ora, é essa situação que os partidários da chamada Escola sem Partido não toleram. Eles querem obrigar os professores a ocultar seus sentimentos, o que é na realidade impossível e teria o efeito de prejudicar o nível do ensino. 

É evidente que, se não houver um mínimo de investimento emocional com verniz valorativo, o ensino de disciplinas como a história se torna impossível. Observemos o essencial: essa situação não configura de forma alguma uma “escola com partido”. Nem a recusa do controle indica uma atitude qualquer de censura por parte dos professores, como pretendeu Olavo. 

Ela remete simplesmente à liberdade elementar de exercer o seu trabalho, no caso de professor, expondo o conteúdo da sua “matéria”, com o investimento normal afetivo-valorativo que essa atividade exige. Assim, do lado do professor (fora os casos aparentemente raros de proselitismo, usados no entanto como se fossem a regra), não há nem “escola com partido” nem “censura”. 

E do outro lado? O que significa o convite a registrar a fala e a imagem do mestre cada vez que o aluno supuser que aquele toma posição política ou partidária? Considero sempre a situação dominante, que é aquela em que o professor, se não assume bandeiras, não se dispõe, entretanto, a inibir completamente suas simpatias pessoais —que, na maioria dos casos, vão na direção das causas progressistas. 

Assim, a cada vez que o aluno se convencesse de que o professor não estivesse sendo “neutro”, ele se poria a filmá-lo e, de volta para casa, encaminharia tudo para o pai. Este remeteria o vídeo às autoridades competentes —diretor da escola, polícia ou Ministério Público. 

Desse lado, haveria censura, ou anticensura, como quer Olavo? Claro que existe censura. No sentido de que quando o pai do aluno instrui o seu filho a filmar o professor (a narrativa começa por aí) e este procede à filmagem no momento em que lhe parece conveniente, não se está defendendo um direito elementar, como no outro caso.

Trata-se de reprimir o que representa, no caso geral, um verniz de expressão das convicções de quem ensina. Essa repressão não é, por isso, reivindicação de liberdade, mas ato de censura. Também não se diga que, sendo o ensino uma atividade de interesse público, é normal que todas as aulas sejam acessíveis ao público. Há acessibilidade e acessibilidade.

Em muitas circunstâncias as aulas são públicas. Mas a publicidade se faz com vistas ao interesse teórico das aulas e à transmissão do saber. Isso é completamente diferente da gravação que visa o controle policial do professor.

Porém imaginemos que este tenha de fato ultrapassado os limites. Estou convencido de que isso não ocorre com frequência e que tampouco esse seja o maior problema da educação brasileira. Mas, se ocorrer, o mal que poderia haver nisso é certamente muito menor do que aquele que se produz ao introduzir um dispositivo repressivo que ninguém controla, nem o pai nem o filho. 

Desencadeia-se uma caça às bruxas que leva ao pior: no limite, ao fascismo. Os professores ficam com medo de dar aulas (o que já está acontecendo), temem a presença dos alunos, o que afeta não o professor partidário, mas o comum dos mestres, que não é sectário e, na maioria dos casos, é sério e responsável. 

Hoje já não se dá aula no Brasil sem um estresse terrível, derivado da ideia de que um aluno poderia denunciar o professor porque este lhe pareceu animado demais ao falar, por exemplo, da queda do czarismo ou da revolução de 1848. 

A atitude da dupla pai de aluno/aluno, que o pessoal da “nova ordem” quer impor ao país, é assim repressiva, uma atitude de censura, não de contracensura. 

Desse modo, não só não se pode inverter os sinais como pretende Olavo de Carvalho (a censura seria, na realidade, reivindicação de liberdade, e vice-versa) mas também não teríamos nem mesmo uma espécie de “empate”, como se as duas causas tivessem a mesma legitimidade. 

Na realidade, não existe simetria no caso, e o julgamento que se impõe intuitivamente é, de fato, o mais rigoroso. A disposição de filmar o professor para registrar eventuais transgressões à neutralidade é alimentada por um impulso político, o de dizer amém ao statu quo —impulso que pode e deve ser chamado de partidário, no sentido de que, mesmo se ele não vier de um único partido, e no caso talvez venha, brota de uma filosofia política bem definida, a que visa conservar a situação presente com as suas violências e injustiças. O que significa: a suposta Escola sem Partido é, na realidade, escola com partido. 

Mas, se dizemos que há partido aí, não deveríamos dizer que também há partido no lado de lá? Não: se não há simetria quanto a “censura”, também não há quanto a “partido”. A não simetria se conserva quando passamos de um termo ao outro. É que a democracia, que inclui o direito de ser fiel às suas ideias (desde que não se trate de ideias liberticidas), não é propriamente simétrica a um projeto antidemocrático. A democracia é a regra definida pela Constituição. A ruptura da democracia é a transgressão dos institutos da Constituição. 

Olavo, no entanto, continua o raciocínio, enveredando por um caminho insólito (que vai ser o que ele seguirá, em declaração posterior, em que se reafirma partidário da Escola sem Partido quanto ao conteúdo, mas adversário dela na denominação e na tática). Ele diz que não pede neutralidade absoluta. Isso não existe; todas as pessoas tomam posição (fim da referência).

Há aí uma virada, que na sua essência —se nesse registro a essência fosse o decisivo— seria considerável. De fato, o interessante nessa suíte é que, levada a sério, ela poderia servir como ponto de partida para desconstruir a fala inicial, e foi este novo argumento que serviu como ponto de partida para a minha contra-argumentação.

De fato, o reconhecimento de que não há neutralidade absoluta corrói (ou começa a corroer) o dispositivo de justificação da censura, porque abre os olhos para a possibilidade e a realidade de um envolvimento discreto com valores, que é aliás a regra em aula sem proselitismo.

Assim, Olavo como que introduz pelo menos parte do argumento do adversário, o que em princípio invalidaria o que ele disse no início. Só que Olavo o faz de tal maneira que se tem a impressão de que essa continuação não desmente o início, mas o confirma. Esse efeito se obtém simplesmente pela continuidade do seu discurso e pelo silêncio em torno da virada que nele se opera. 

Porém o prestidigitador segue, e a argumentação se completa —cereja no bolo— por uma afirmação que desarma o interlocutor. Depois de dizer que não quer neutralidade absoluta, porque ela não existe, ele acrescenta que não deseja censurar ninguém, pelo contrário, que ele quer que todas as opiniões se manifestem, quer o pluralismo. Nas condições atuais —ele explica—, quem pensa diferente não pode se manifestar (fim da referência). 

Nesse momento, o interlocutor vencido dirá aliviado, como num filme de Eisenstein com letreiros em inglês: “What a democrat!”. Ele quer o pluralismo, nada melhor, é isso mesmo que todos queremos, e os que dizem que ele é autocrata se enganam redondamente.

Só que... Essa cereja no bolo contradiz de novo a fala inicial (a censura aos professores impede o pluralismo), mesmo se ela é apresentada, ainda uma vez, como se não a desmentisse, mas a confirmasse. Ele não dá um pio sobre a dificuldade que existe aí: censura a professores contradiz a liberdade plural. 

O pretenso direito de filmar as aulas não terá certamente o suposto efeito democrático. Os que procederem às filmagens, como os que as ordenaram, continuarão visando denunciar os professores por proselitismo. Eles não adotarão a filosofia da transparência nem acreditarão nisso. E Olavo sabe disso. 

De resto, ele próprio não acredita nessa fábula que o faria passar por defensor de uma escola à sueca ou à finlandesa. Quanto à ideia de que ninguém pode abrir a boca numa discussão em aula, isso é falso —mesmo que seja verdade que é sempre mais fácil falar quando a maioria concorda consigo do que quando a maioria discorda. Enquanto Olavo finge que tira o corpo, para desarmar a crítica, a lei famigerada segue o seu curso. Ele sabe disso e vai falando.

O repórter pergunta a Olavo se se justifica o elogio que Bolsonaro fez do torturador Ustra. Olavo responde que Bolsonaro não defendeu a tortura, apenas disse que Ustra não era torturador. Isto é duvidoso, já que, na famosa votação do pedido de impeachment, Bolsonaro prestou homenagem a Ustra, referindo-se a ele como “o pavor de Dilma Rousseff”. O pavor de Dilma Rousseff? Mas se é pelo menos incerto que a recusa em imputar a prática da tortura a Ustra (ou a dúvida sobre essa imputação) tenha sido a justificação fornecida por Bolsonaro para elogiar o coronel, este é certamente o argumento de Olavo para justificar Bolsonaro.

Tentemos desenredar esse imbróglio. De que Ustra tenha sido torturador, não parece haver dúvida. Torturador e/ou chefe “omisso” diante da tortura (que, em matéria de violência, a responsabilidade direta e a indireta não são tão diferentes, foi afirmado pelo próprio Olavo ao discutir com um ex-guerrilheiro). O que não o impede de tentar eximir Ustra, insistindo no fato de que este foi condenado pelo STF só por omissão. 

As vítimas que sobreviveram contam como foi essa “omissão”. Ustra pôs, sim, a mão na massa e até mandou virem os filhos das vítimas para assistir ao espetáculo. Não há razão para duvidar desse tipo de testemunhas. Assim, não há problema a esse respeito, e, como vimos, o próprio Bolsonaro, prudente, parece evitar um desmentido direto da imputação.

A verdadeira questão é: pode-se elogiar um torturador? A qual nos leva à pergunta fundante ou fundamental: a tortura é admissível? Vê-se o sentido do passe de mágica de Olavo de Carvalho. Ao ser inquirido sobre o seu juízo a respeito do pronunciamento de Bolsonaro, ele substitui as perguntas pertinentes por uma pergunta que não tem interesse, porque a resposta é conhecida. 

Pois Olavo se arranja para dizer que seria essa pergunta desinteressante a que estaria na base da declaração de Bolsonaro. Pergunta a que este responderia afirmando que Ustra era inocente. De defensor de um torturador, Bolsonaro passa, assim, a desempenhar o papel de advogado de um inocente. 

Como isso foi possível (refazendo ainda uma vez o caminho)? Pela sub-repção das respostas pertinentes (é legítimo defender a tortura e os torturadores, ou então, é ilegítimo defender a tortura e os torturadores), através do método da substituição da pergunta. 

Uma vez posta a nova pergunta (Ustra torturou ou não torturou?), basta optar pela resposta que tem mais cara de generosa e respeitadora de direitos. Presunção de inocência, ou “in dubio pro reo”, o bom Bolsonaro teria declarado que não é verdade que Ustra torturou, defendendo assim um presumido inocente. Conclui-se que, longe de ser o ogro que se supõe —valha a velha sofística!—, Bolsonaro defende na realidade as boas causas e até os direitos do homem, Q.E.D. 

Olavo acha que houve tortura no Brasil, mas “pouca”. A ditadura militar não teria matado quase ninguém, e eu acrescentaria, nem —a frio— um bom número de prisioneiros de guerrilhas (nenhuma ética civil ou militar justifica, em quaisquer circunstâncias, a liquidação a frio de prisioneiros)? Quanto à exigência de que se exibissem “olhos furados”, “ossos partidos”, todo mundo sabe que os torturadores faziam questão de deixar um mínimo de marcas.

Na entrevista a Carta Capital, como também em seus livros, Olavo de Carvalho se declara adversário do fascismo. As pessoas não sabem o que é fascismo, diz. 

(A propósito: a tese de Olavo de que Hitler é de esquerda é pura charlatanice. Certo, o partido de Hitler, ou antes, aquele ao qual ele aderiu, se chamava Nacional Socialista, mas Hitler apreciava a hierarquia, detestava a igualdade, era inimigo mortal da Revolução Francesa e de toda a tradição socialista etc). 

Olavo acrescenta: eu até discuti com um fascista, o ideólogo fascista russo Aleksandr Dugin, amigo de Putin. Imaginem. Eu, que discuti com Dugin, sou chamado de fascista (fim da referência). 

Afinal, quem é Olavo, em termos políticos? Dados os limites de espaço, vou utilizar referências suficientes. Já falei da sua simpatia pelo regime de Viktor Orbán, na Hungria, e sobre o que representa esse regime. Um outro elemento essencial, um dado tão imediato que até o perdemos de vista, é o fato de que ele apoiou e apoia Bolsonaro. 

A declaração desse apoio pode ser encontrada no vídeo “Bolsonaro não é o verdadeiro candidato”. Nele, Olavo conta a história dos seus livros e termina declarando apoio ao capitão. Este não seria nem de direita nem de esquerda, já que é o único candidato que “não tem ideologia”, tem apenas opiniões (impostura evidente: o evangelho ideológico de extrema direita que o candidato pratica e prega é ideologia, sim, e muito mais perigosa do que qualquer grande ideologia, o liberalismo ou o socialismo democrático). 

Bolsonaro teria o mérito de ir contra todos os partidos (engano: apesar das aparências, isto não é mérito. Bolsonaro não está além dos partidos, está aquém deles; ele combate aquilo que, apesar de tudo, eles têm de positivo —o respeito à ordem democrática). 

Além do que, ele escaparia da dominação esquerdista (mitologia pesada: os partidos de esquerda não são de forma alguma dominantes e, bem ou mal, são os que defendem um mínimo de justiça social, coisa que o ideólogo detesta). 

Ao recomendar Bolsonaro, bom candidato, Olavo diz, entretanto, que preferia o caminho da formação de comitês de bairro (!). Vê-se que o filosofastro-ativista sonha com uma política de massa... Mas no meio dessa peça lírica, em que se alternam considerações teóricas ou pseudoteóricas com histórias pessoais da família ou de seus amigos, emerge o segredo. 

Ao falar do que precisa ser feito no Brasil, diz inocentemente: é preciso pôr na ilegalidade o PT (e, acrescentemos, também o PSOL e o PC do B, é claro), porque é um partido ligado a um centro internacional. Nada menos do que isso (conforme a fala do filho de Bolsonaro). A quantos eleitores Olavo quer negar o voto, 50 milhões? 

A justificativa é de que o PT depende de um centro que seria o Foro de São Paulo. Tolice. A internacional comunista morreu há muito tempo. O tal Foro de São Paulo teve uma importância muito relativa. Não foi nenhum verdadeiro centro e hoje deve vegetar. Atualmente, o PSL talvez tenha mais contatos internacionais do que qualquer dos partidos de esquerda. 

Se Bolsonaro e os seus querem tirar da legalidade os partidos da esquerda, não é por temor ao “comunismo”. O “comunismo”, a rigor, não existe mais. Na sua forma autêntica, a do marxismo ortodoxo, nunca existiu; na sua caricatura stalinista restam, é verdade, governos como os de Cuba, Coreia do Norte ou Venezuela, respectivamente um Estado burocrático opressivo, um totalitarismo sangrento e um populismo corrupto que não hesita em abrir fogo contra manifestantes. 

É contra eles que vai a campanha de Olavo contra o comunismo? Também (os inimigos de nossos inimigos não são nossos amigos), mas de modo acessório. O que ele chama de “comunistas” são sobretudo as diversas tendências da esquerda democrática no mundo (social-democracia, esquerdas trabalhistas, esquerda cristã etc.). E são estas que ele de fato combate.

O projeto político de pôr na ilegalidade todos os partidos de esquerda caracterizaria que tipo de política? Fascista? Mas Olavo não se declara inimigo dos fascistas? 

Houve até aqui duas ondas autocráticas de direita, a da primeira metade do século 20 e a das primeiras décadas do século 21. Nas duas levas, temos uma variedade de casos, desde exemplares muito virulentos a formações menos brutais. 

Na primeira onda, estas últimas foram dominantes, e uma delas levou a um genocídio de proporções gigantescas. Mas o nazismo foi contemporâneo de governos menos radicais, como o autocratismo português e mesmo o franquismo, passada a guerra civil. 

Na segunda leva, há também uma variedade de modelos, porém não domina até aqui a forma genocida —das variedades modernas, a mais homicida é o governo de Duterte, nas Filipinas. O modelo que hoje parece dominante é o de Orbán na Hungria, que vai se impondo na Polônia (uma das referências de Eduardo Bolsonaro), na República Tcheca e na Eslováquia. 

Como denominar essa nova onda, e em particular como chamar a figura que corresponderia eventualmente ao caso brasileiro? Para a forma típica do regime de Orbán e de outros análogos, há o neologismo “democratura”, que é interessante e talvez convenha para designar igualmente a nova onda em geral, do mesmo modo que “fascista” nomeava um caso particular mas também, com frequência, o conjunto da primeira leva. 

Mas continuemos: Olavo diz que não é fascista e que até já discutiu com fascistas. Será que esse fato se ajusta à minha leitura? Ou eu estaria forçando a barra? Pois tome-se o modelo: Viktor Orbán. O regime de Orbán e do seu partido, o Fidesz, tem como adversário um outro partido, pequeno e mais ou menos neutralizado pelo Fidesz, porém existente. 

Esse partido é o Jobbik. Apesar de uma tentativa de “desdemonização“ recente, esse partido é notoriamente racista e antissemita; ele tem a sua própria “guarda”, com um núcleo “viril”, é acusado de violências e de homicídios contra a população cigana e simpatiza com Dugin. Assim, Orbán é, à sua maneira, adversário dos fascistas. Estes encarnam demasiado —mais do que seria “necessário” hoje— a primeira onda e, por isso mesmo, na segunda, só podem ser marginais.

É com legitimidade idêntica à de Orbán que Olavo pode se declarar antifascista ou antinazista. É a oposição entre a forma moderna e a forma antiga do autocratismo. Os neofascistas contra os fascistas. Contudo, não é preciso ser nazista nem fascista à antiga para dar o apito inicial para muitos horrores (ver Duterte, nas Filipinas).

Dirão talvez que exagero: não é certo que a ameaça se efetive. De fato não é certo que ela se efetive por inteiro. Entretanto, é certo e provado que o projeto político de Bolsonaro e de seu mestre Olavo vai no sentido indicado, que não é o da democracia; e que o projeto já está sendo implementado.

Em resumo, não se deve dar ouvidos aos “cientistas políticos” que nos garantem que as “instituições brasileiras” são “sólidas”. Hoje, menos do que destruir as instituições, os inimigos da democracia as ocupam e as cristalizam em seu proveito.

Entretanto, ainda é possível evitar que a tragédia se consume. Não há outro caminho senão o de denunciar o verdadeiro caráter do poder que vai se instalando no Brasil e o de tentar pôr em xeque, no limite das nossas forças, as suas jogadas sucessivas. Para os próximos dias e as próximas semanas, a urgência absoluta é dar parada ao seu primeiro lance, a —ó, quão funesta— lei da Escola sem Partido. 

(Com agradecimentos a meu amigo Arthur Hussne Bernardo, uma das primeiras pessoas a se dar conta, no Brasil, dos laços estreitos que unem Bolsonaro e Olavo. Este ensaio tem dívidas para com um artigo de Arthur, “O Bolsonarismo É um Olavismo”, que sairá em breve). 

Ruy Fausto é professor emérito do Departamento de Filosofia da USP e autor de “Caminhos da Esquerda” (Companhia das Letras).

Fonte: Folha de São Paulo, 30 de novembro

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Escola Sem Partido: projeto mal formulado, ineficaz, paranoico e obscurantista


Com a chegada de Bolsonaro à presidência, um dos grupos mais reacionários e obscurantistas que compõe a colcha de retalhos de seu governo, o tal Escola Sem Partido, está mais do que saidinho tentando emplacar sua visão fascistoide à educação brasileira sob a desculpa de impedir a doutrinação de esquerda nas escolas. O projeto está em discussão na Câmara Federal num cabo de guerra entre os obscurantistas que querem legalizar a ilegalidade e os professores e outros iluministas que a eles se opõem.

Desde que me inteirei dessa estrovenga macartista, passei a escrever sobre ela e a reproduzir artigos que também analisam o assunto. Vejam abaixo:




A coisa é tão absurdamente antidemocrática que até o ogro ultraconservador do Olavo de Carvalho se pronunciou contra ele (ver vídeo abaixo).

Reproduzo, agora, mais um texto e vídeo sobre assunto do comentarista da Jovem Pan Joel Pinheiro

Há doutrinação nas salas de aula?

Existe, de maneira geral, um viés ideológico na educação brasileira. Quem nunca teve um professor de esquerda? Eu tive vários, e dos que traziam suas convicções políticas para a sala de aula.

Alguns foram do perfil autoritário, que desestimulava o debate e exigia que os alunos “esquerdassem” na prova. Já outros foram professores incríveis, que estimulavam a discussão e incitavam os alunos a pensar por conta própria. A crença política era o material que animava o debate. Fui doutrinado? Se fui, não funcionou.

E eis que esse fato corriqueiro do nosso sistema —muitos professores serem de esquerda— virou o grande bode expiatório da precariedade de nossa educação.

Ninguém se preocupou em medir e conhecer a real extensão da tal doutrinação em sala de aula; mas os proponentes do projeto Escola Sem Partido (que se manifesta em diversas iniciativas e projetos de lei, uma das quais vem sendo debatida pelo Congresso) juram que se trata de um problema gravíssimo e que justifica colocar o Ministério Público para perseguir professores.

Não existe sequer um consenso mínimo do que seja “doutrinação”. Há todo um espectro de práticas que podem entrar na conta: desde um caso de abuso claro como o professor obrigar os alunos a fazer manifestação partidária para passar de ano, até práticas mais corriqueiras como usar um livro de autor “de esquerda” ou mesmo propor alguma análise que irrite algum pai de aluno.

Na prática, a corda está no pescoço de todos os professores, que foram eleitos os grandes inimigos infiltrados da família e da ordem social.

Uma coisa é certa: qualquer que seja a extensão da doutrinação, ela tem menos poder do que no passado. Nunca o professor teve tão pouco poder em sala de aula. Ele está francamente acuado.

Os alunos hoje têm acesso a internet; trazem smartphones para a sala, se informam em diversas fontes e contestam as informações do professor em tempo real. O professor tem hoje menos credibilidade que o grupo de WhatsApp.

O Brasil acabou de votar em peso em candidatos de direita. Se houver mesmo toda essa doutrinação, ela não está funcionando. E não há evidência nenhuma de que o posicionamento político dos professores tenha qualquer papel nos maus resultados educacionais no Brasil.

O Escola Sem Partido funcionará como uma mordaça aos professores, que se sentirão permanentemente vigiados e passíveis de punição se demonstrarem qualquer preferência ideológica e política.

Outro efeito, menos comentado, é eliminar a educação sexual das escolas, aumentando a proliferação de DSTs, a gravidez adolescente e a violência contra LGBTs, que já não é baixa.

É o resultado da ascensão de uma direita não particularmente esclarecida que, ao perceber a dominância do pensamento de esquerda entre os professores, em vez de focar formar professores melhores e aprimorar os atuais, trata a própria educação como atividade suspeita.

É uma pena estarmos discutindo um projeto mal formulado, ineficaz, paranoico e obscurantista como o Escola Sem Partido quando há tantas brigas e iniciativas a serem compradas na educação. Formar melhores professores, comprar melhores livros didáticos, formular regras para a distribuição do Fundeb, pesquisar metodologias de ensino mais eficientes etc.

Diante de um desafio tão grande e de uma lacuna histórica tão gritante, perder tempo com discussões ideológicas e ainda enfraquecer o agente central da educação, o professor, é um desrespeito a todos os jovens brasileiros.

Fonte: “Folha de S. Paulo”, 13/11/2018, por Joel Pinheiro da Fonseca

 

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Sem sensibilidade social, aventura liberal radical de Paulo Guedes, pode arruinar reputação do liberalismo no Brasil

Economista Eduardo Gianetti afirma que desencanto político e econômico ajudou
na ascensão de candidato que classifica como 'ultradireita' Foto: Daniel Teixeira|Estadão

A reputação do liberalismo sempre foi ruim no Brasil. Com essa história de conservador ficar se dizendo liberal e apoiador do autoritário Bolsonaro, a ruína é certa. Destaco da entrevista:
Há riscos para a democracia? É possível responder afirmativamente, mas num sentido preciso. Uma definição estreita de democracia é a renovação periódica dos governantes em ambiente competitivo pelo voto universal e secreto. Isso não está em risco. Mas, sabemos que essa definição é compatível com práticas que comprometem a ordem democrática em sentindo pleno. Uma definição mais abrangente de democracia inclui o império da lei, o respeito à divisão de poderes, a liberdade de imprensa e de expressão, o respeito aos direitos das minorias e o respeito às oposições. Esses elementos suscitam dúvidas quanto a essa aventura na qual o Brasil está entrando, que é a eleição de Bolsonaro.

'Reputação do liberalismo no Brasil pode ser arruinada'
Para economista Eduardo Giannetti, plano 'neoliberal radical' do governo eleito pode não sair do papel, dado o histórico nacionalista de Bolsonaro

Diante do projeto “neoliberal radical” do futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, o economista Eduardo Giannetti se diz preocupado com o futuro do próprio liberalismo no País.
Temo que essa aventura neoliberal radical, se não tiver o mínimo de sensibilidade social, possa arruinar a reputação do liberalismo no Brasil por muito tempo", afirmou em entrevista ao Estado. Giannetti, porém, pondera que talvez esse programa de Guedes não chegue a ser implementado, dada a trajetória nacionalista e corporativista do presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL).
Responsável pelo programa econômico da candidata derrotada Marina Silva (Rede), ele diz ainda que o resultado dela nas urnas reflete a polarização “raivosa” da sociedade brasileira, que acaba excluindo pessoas que defendem convergências. Essa polarização no País o levou a estudar sociedades que passaram por movimentos semelhantes, como a República de Weimar, que levou a Alemanha ao regime nazista. “Há muitos paralelos, mas não estou dizendo que isso deve ser ipsis literis aplicado ao Brasil. Quando essa polarização se estabelece, destrói o processo democrático eleitoral e a possibilidade de diálogo.”

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Quais fatores explicam a derrota dos partidos tradicionais e a ascensão de um nanico como o PSL?

Há um bom tempo o eleitorado brasileiro busca sair da oposição entre PT e PSDB. Esse movimento se anunciou em 2014, quando, depois da morte do Eduardo Campos, aquela onda avassaladora levou Marina a liderar as pesquisas. Mas, ela foi atacada de modo violento pelo governo Dilma Rousseff e acabou não resistindo. Há um parentesco entre aquela onda da Marina, uma outsider à época, e o que ocorreu agora. A diferença é que se agravou o quadro institucional e econômico brasileiro. Tivemos a Operação Lava Jato, que revelou os descaminhos da relação entre público e privado na vida brasileira. Houve a recessão provocada pelo desastre do governo Dilma. Isso favoreceu o desencanto e a busca por um candidato que não pertencesse ao establishment. Além disso, o Bolsonaro soube utilizar de maneira competente as novas tecnologias da informação para alavancar sua campanha mesmo sem estrutura partidária. De certa maneira, o PT provou de seu próprio veneno. O que eles fizeram contra Marina em 2014, em termos de boatos, foi feito contra eles agora pelo Bolsonaro,usando as mídias sociais de uma maneira mais avançada.

Dá para colocar PT em 2014 e PSL em 2018 no mesmo patamar?

Não foi muito diferente. A diferença é que, em 2014, era o poder instituído contra uma candidata sem recursos. Ela acabou sucumbindo diante das mentiras. Disseram que ela ia acabar com o Bolsa Família e que a autonomia do Banco Central seria entregue aos banqueiros. Fizeram um verdadeiro linchamento do qual eu mesmo fui vítima, porque representava o lado econômico da proposta dela.

Há também uma onda internacional crescente do populismo de direita. O que explica esse movimento global?

Sem dúvida Bolsonaro é parte de um processo que tem tomado conta de muitas democracias. Domesticamente, outro elemento importante foi que, tanto PT quanto PSDB, cujos programas são, a grosso modo, social democrata, nunca estabeleceram uma atuação cooperativa. Cada um deles, quando esteve no poder, preferiu se aliar ao que há de mais sinistro na política brasileira (o Centrão) do que conversar para enfrentar a desigualdade e obter um crescimento sustentável. Essa não cooperação abriu espaço para aventureiros. Também beneficiou Bolsonaro a força do sentimento antipetista, a raiva da população diante do establishment político e o medo que a insegurança gera. Olhando de forma mais ampla, há um desencanto generalizado com a democraria representativa nesse mundo da tecnologia da informação, em que há cobrança por resultados imediatos, muito mais possibilidades de organização e de compartilhamento de raiva e medo. Esses dois sentimentos elegeram Bolsonaro. Ele soube melhor que qualquer um se apresentar como alguám capaz de atender à raiva e ao medo. O efeito Bolsonaro tem parentesco com o que aconteceu nos Estados Unidos, com Donald Trump. É um tipo de populismo de direita que hoje tem muito apelo e que funciona muito bem nas mídias sociais. E ele tem um parentesco também no seu lado autoritário e meio autocrático com as democracias de fachada, como são Rússia e Turquia.

Há riscos para a democracia?

É possível responder afirmativamente, mas num sentido preciso. Uma definição estreita de democracia é a renovação periódica dos governantes em ambiente competitivo pelo voto universal e secreto. Isso não está em risco. Mas, sabemos que essa definição é compatível com práticas que comprometem a ordem democrática em sentindo pleno. Uma definição mais abrangente de democracia inclui o império da lei, o respeito à divisão de poderes, a liberdade de imprensa e de expressão, o respeito aos direitos das minorias e o respeito às oposições. Esses elementos suscitam dúvidas quanto a essa aventura na qual o Brasil está entrando, que é a eleição de Bolsonaro.

Até então, nenhum desses componentes haviam sido ameaçados?

Algumas propostas do PT ameaçavam também. Por exemplo, a liberdade de imprensa e de expressão e mesmo a autonomia dos poderes. Agora, a ameaça é maior com Bolsonaro. O Brasil vai viver duas coisas. Primeiro, um teste das nossas instituições democráticas. Será que elas sobrevivem ao voluntarismo e a tudo que Bolsonaro manifestou no passado? É uma dúvida. O segundo ponto é uma aventura para nossa sociedade em uma agenda ultraconservadora no plano dos costumes, que ameaça direito de minorias, e que, se se materializar, vai ser um tremendo retrocesso do ponto de vista da convivência no Brasil. Há uma outra aventura na agenda neoliberal radical que a equipe econômica está propondo. Uma agenda com muito pouca sensibilidade para questões ligadas à equidade, a grupos sociais vulneráveis e que me fez lembrar uma história da da Revolução Russa. (À época), Max Weber era professor de Georg Luckács, o principal filósofo marxista do século 20. Weber disse para ele: "Temo que os russos arruínem a reputação do marxismo por um século.” Eu temo que essa aventura neoliberal radical, se não tiver o mínimo de sensibilidade social e de compromisso com a ideia de justiça, arruíne a reputação do liberalismo no Brasil por muito tempo.

Com base nessa análise, Bolsonaro deve ser chamado de presidente de ultradireita?

Não tenho a menor dúvida.

Em relação a essa agenda econômica liberal 'radical', acha que ele será realmente implementada? Bolsonaro já desautorizou Paulo Guedes.

Também tenho dúvidas em relação a essa agenda, porque ela é totalmente inconsistente com a trajetória do Bolsonaro durante sete mandatos na Câmara. Ele sempre votou ao lado dos corporativistas, dos nacionalistas e dos estatizantes. Os sinais são muito desencontrados e não está claro qual vai ser a resultante desses vetores em conflito. É muito estranha essa conversão (de Bolsonaro) às vésperas da eleição ao ideário neoliberal radical. Não sei se ele se dá conta das implicações disso nem o que vai prevalecer quando ele tiver de decidir. Em relação ao Paulo Guedes, me lembrei de uma frase que eu ouvi uma vez: "Os economistas podem ser mais ingênuos sobre a política do que os políticos sobre a economia". As intenções dele são boas, mas temo que não saiba onde está se metendo.

Em geral, como vê o programa dele? 

É um programa genérico. Tem pontos positivos, como a abertura econômica. Acho que eles têm ciência da gravidade da situação fiscal, mas subestimam a dificuldade de implementação. Quando vejo essa equipe dizendo que vai zerar o déficit primário em um ano, fico muito incrédulo. Isso é improvável, tangenciando o pensamento mágico. Essa ideia de usar receitas excepcionais, como a de privatizações, para cobrir rombos fiscais sem resolver o desequilíbrio das contas públicas é vender a prata da família para jantar fora. Você vai ter algum alívio, reduzindo a dívida no curto prazo, mas, se não equilibrar as contas, daqui a pouco estará na situação anterior – e já terá vendido a prata da família. Então, é preciso tomar cuidado. O problema essencial do Brasil é que os gastos obrigatórios estão crescendo em um ritmo acima do crescimento do PIB – é insustentável. Temos seis meses para apresentar um programa fiscal crível, que cria o mínimo de ancoragem fiscal. Caso contrário, vamos entrar em uma situação de inadimplência do Estado e colapso financeiro. Aí tem duas alternativas, ambas péssimas: calote ou inflação. Essa ancoragem fiscal depende de medidas que vão ter de ser tomadas no início do mandato. A reforma da Previdência é a primeira. Acho até muito boa essa ideia de já aprová-la agora.

O sr. tem estudado sociedades fortemente polarizadas, inclusive a República de Weimar, que deu origem ao regime nazista. Há paralelos com o Brasil?

Eu me interessei em entender como uma sociedade se divide e chega ao tipo de polarização raivosa a que o Brasil chegou. Há muitos precedentes na história. A França teve a Revolução Francesa; a Espanha, a Guerra Civil e a Alemanha, a República de Weimar – que, dentro de um arcabouço democrático, elegeu Hitler, num enfrentamento entre nazismo e bolchevismo. Há muitos paralelos, mas não estou dizendo que isso deve ser ipsis literis aplicado ao Brasil. Quando essa polarização se estabelece, ela não permite mais nada que não esteja em um dos pólos. Isso destrói o processo democrático eleitoral e a possibilidade de diálogo. Na Alemanha, você era bolchevique ou nazista. E a elite financeira e industrial alemã, com medo do bolchevismo, estava topando qualquer aventura. Encontrei declarações de banqueiros e industriais alemães dizendo que Hitler não era problema porque, depois de eleito, eles o domesticariam. A elite econômica topou qualquer coisa para impedir que se repetisse na Alemanha uma revolução comunista nos moldes da Russa.

A elite brasileira tem apoiado Bolsonaro, sobretudo porque ele tem Paulo Guedes.

Tem de fazer todas as mediações, não é uma coisa que você pode aplicar diretamente. Mas, no Brasil, já vivemos isso na eleição de Collor. Para impedir Lula, quase toda a elite embarcou numa aventura que terminou mal, com um impeachment.

O que cria essas sociedades divididas?

O descrédito nas forças políticas estabelecidas, no status quo. A recessão também, no caso da Alemanha. O deseprego havia aumentado e Hitler soube se apropriar do sentimento de medo e de raiva. Ele oferecia ordem para uma sociedade que estava à beira de uma situção caótica de desorganização e da total incerteza em relação ao dia seguinte. Isso em condições muito mais dramáticas que o caso do Brasil. Agora, os paralelos são fortes.

Há elementos fascistas em Bolsonaro?

Essa palavra tem de ser usada com algum critério. Mas, o que ele falou sobre mulheres, homossexuais e indígenas ultrapassa qualquer fronteira de um pensamento civilizado do século 21. São de uma agressividade desmedida e, para qualquer pessoa minimamente centrada, gera uma enorme apreensão.

Todas as sociedades que o sr. estudou acabaram em guerra?

Não, os EUA estão vivendo isso. Há estatísticas que mostram que, em 1980, 5% dos republicanos não queriam que seus filhos se casassem com democratas. Em 2010, eram 49%. É um tipo de polarização preocupante que mina a confiança, que é fundamental para a democracia. Confiança de que você pode conversar com seus oponentes e encontrar pontos de convergência que permitam alguma atuação cooperativa acima das paixões partidárias.

Com base nesses estudos, como dá para imaginar o futuro do Brasil?

Vai depender do governo recém-eleito, que poderá ou não construir um espaço de diálogo em prol de propostas comuns.

O que aconteceu com a Marina, que começou a corrida eleitoral bem, mas terminou na lanterna?

Se fixou na imaginação do eleitorado brasileiro a ideia de que ela é frágil. E essa polarização raivosa exclui o surgimento de uma força que prega o diálogo e a convergência. Ela foi vítima dessa dinâmica. Foi por isso que fui estudar essa popularização raivosa que tomou conta da sociedade.

​Isso significa que, por enquanto, o político que procurar a convergência não terá espaço?

Esses pólos têm gás para se manter por certo tempo.


Fonte: O Estado de São Paulo, Economia e Negócios, Luciana Dyniewicz, 04/11/2018

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