quinta-feira, 13 de abril de 2017

Como o "neurossexismo" está impedindo o progresso da igualdade de gênero - e da própria ciência

As mulheres são criativas e os homens são lógicos - um equívoco comum.
O comportamento diferenciado de mulheres e homens é obviamente resultante da educação radicalmente diferente que meninas e meninos recebem desde o berço. Entretanto, muitos querem tapar esse sol com a peneira furada do determinismo biológico, ou seja, os comportamentos de homens e mulheres seriam diferentes por razões de ordem inata, fruto de cérebros femininos e masculinos e diferenças químicas e hormonais.

Não é de hoje que religiosos e cientistas apelam para uma suposta natureza feminina a fim de tentar impedir as mulheres de desenvolverem seus potenciais individuais. No momento,  o instrumento da moda para tal finalidade é a neurociência e seus scanners cerebrais. Estes vêm sendo usados para tentar dar status de cientificidade aos velhos estereótipos de gênero e garantir "a crença de que, por mais inconveniente que seja a “verdade”, mulheres e homens são imutavelmente diferentes."

Para contestar essas crenças tão arraigadas, traduzi o texto abaixo da Gina Rippon que é professora de Neuroimagem Cognitiva da Aston University. Ela desconstrói os argumentos biologicistas, utilizados na área de neurociências, para assegurar que cientistas, a mídia e o público em geral se tornem conscientes das falácias que produzem. O link para o texto original se encontra ao final da tradução.

Míriam Martinho, 12/03/2017


Meninas e meninos são educados de forma radicalmente distinta, mas a pseudociência
vai procurar respostas para o comportamento diferenciado de mulheres e homens em
supostas químicas cerebrais e hormônios diferentes.


Gina Rippon
Como o "neurossexismo" está impedindo o progresso da igualdade de gênero - e da própria ciência

À procura de provas de que mulheres e homens aprendem, falam, resolvem problemas ou leem mapas de forma diferente, algumas pessoas pensam ter encontrado nos scanners cerebrais a resposta definitiva para sua busca. É fácil entender o porquê. Eles produzem mapas codificados, coloridos e brilhantes destacando diferenças entre os sexos em várias áreas cerebrais, o que potencializa o argumento de quem advoga escolas separadas para garotas e garotos ou treinamento diferenciado por sexo para militares das forças armadas.

Seu poder, aliás, está atrelado ao permanente debate sobre as diferenças comportamentais entre mulheres e homens. De marqueteiros e políticos a grupos de pressão, muitas pessoas fazem referências entusiásticas à "neurociência de ponta" em suas suposições a respeito de diferenças sexuais.

A ideia de que o cérebro é responsável por diferenças ou desequilíbrios de sexo/gênero nos acompanha há bastante tempo. No século dezoito, cientistas descobriram que os cérebros das mulheres pesam em média cerca de 142 gramas menos do que os dos homens - descoberta que foi imediatamente interpretada como sinal de inferioridade feminina. Desde então, os cérebros das mulheres têm sido pesados, medidos e considerados insuficientes. Tal perspectiva se deve à crença no "determinismo biológico": a ideia de que as diferenças biológicas refletem a ordem natural das coisas com a qual não devemos nos intrometer para não colocar a sociedade em risco.

Infelizmente, essa visão persiste ainda hoje sob o nome de neurossexismo. Neurossexismo é a prática de alegar a existência de diferenças fixas entre os cérebros femininos e masculinos, o que supostamente explicaria a inferioridade ou a inaptidão das mulheres para certos papéis. Ao apontar atividades sexo-dependentes em certas regiões do cérebro - como as associadas à empatia, ao aprendizado de idiomas ou ao processamento espacial - os estudos neurossexistas têm possibilitado o florescimento de uma lista especializada de diferenças comportamentais entre os sexos. Ela inclui coisas como "homens serem mais lógicos do que mulheres" e "mulheres serem melhores no aprendizado de idiomas e no cuidado dos outros em geral (criação de filhos, etc.)".


Um espectro de diferenças sexuais

Mulheres são de Vênus e homens de Marte,
uma crença de longa data a ser repensada 
Hoje as técnicas de imagem do cérebro oferecem um perfil cada vez mais detalhado da atividade cerebral, possibilitando o acesso dos pesquisadores a enormes conjuntos de dados.  Há pouco tempo também se descobriu que nossos cérebros podem realmente ser moldados por diferentes experiências, incluindo aquelas associadas com ser mulher ou homem. Esta descoberta inclusive ilustra bem o problema da abordagem determinista biológica. Igualmente mostra que, ao se comparar características cerebrais, é imprescindível contabilizar variáveis como educação e o status socioeconômico das pessoas.

Psicólogos também começaram a apontar recentemente que muitos dos traços psicológicos considerados como ou femininos ou masculinos existem de fato em um espectro. Um estudo atual revisitou um número desses traços comportamentais e revelou que eles não se enquadram em apenas duas categorias binárias não-coincidentes e ordenadas. Mesmo as supostas habilidades superiores dos homens em cognição espacial – uma convenção bem estabelecida – vêm diminuindo com o tempo, até mesmo desaparecendo. Em certas culturas, a situação é realmente oposta à que conhecemos.

E não para por aí. O próprio conceito de cérebro “feminino” e “masculino” se mostrou falho. Um estudo recente apontou que cada cérebro é realmente um mosaico de padrões diferentes, alguns mais comumente encontrados em cérebros de homens e outros nos de mulheres. Mas nenhum desses padrões pode ser realmente descrito como totalmente masculino ou feminino.

Apesar disso, os velhos e disparatados argumentos neurológicos persistem. As pessoas parecem amar histórias de diferenças sexuais, particularmente as que podem ser ilustradas com imagens cerebrais. Livros de autoajuda, comerciais, artigos de jornal e a mídia social se amarram nessas histórias – mesmo naquelas que são contestáveis à primeira vista.

Tal neurociência populista se baseia em geral numa ideia falsa do que a imagem dos cérebros de fato mostra. Ela tende a se apresentar como uma espécie de “cinema verdade”, oferecendo acesso instantâneo, em tempo real, a funções e estruturas do cérebro claramente definidas. Entretanto, os mapas cerebrais são de fato produtos finais de uma longa cadeia de manipulação de imagens e complexo processamento estatístico, especialmente projetado para destacar diferenças. Eles não nos dizem o que o cérebro de uma pessoa fará em qualquer situação.

Estereótipos de gênero
Lidando com o neurolixo

Embora seja fácil culpar a mídia ou a indústria do marketing por esse populismo pseudocientífico, o fato é que essa espécie de neurolixo é muitas vezes sustentada pela própria indústria das imagens cerebrais. Pesquisadores muitas vezes erram, por descuido, ao não reconhecer o papel de variáveis ​​mais amplas na concepção de um estudo ou na seleção de participantes. Termos como “fundamental” ou ‘”profundo” são comuns em resumos de estudos sobre diferenças sexuais, mesmo quando uma inspeção mais detalhada das tabelas de dados revela somente minúsculos efeitos diferentes ou resultados estatisticamente insignificantes.

Também há exemplos de pesquisadores interpretando achados em termos de obsoletas diferenças estereotípicas. Por exemplo, eles assumem a superioridade espacial masculina ou a maior proficiência linguística das mulheres antes mesmo da fase de escaneamento. Além disso ser uma prática científica questionável, tais estudos alimentam o neurolixo em circulação e mantém a crença de que, por mais inconveniente que seja a “verdade”, mulheres e homens são imutavelmente diferentes.

Desafiar o neurossexismo não é negar a existência de diferenças sexuais, embora não faltem acusações nesse sentido. Por exemplo, pesquisas em saúde mental apresentaram importantes diferenças entre os sexos na incidência de condições tais como depressão, déficit de atenção e autismo. Reconhecer tais diferenças possibilita a descoberta de tratamentos apropriados para essas doenças.

Por outro lado, como conhecemos agora o quanto é falho o conceito de cérebro “feminino” e “masculino” e inadequada aquela lista especializada de diferenças psicológicas baseadas em sexo, nós precisamos parar de enfatizar a categoria binária do sexo biológico como fonte de nossas investigações. Pode levar tempo desconstruir crenças tão arraigadas, mas já é um bom começo assegurar que cientistas, a mídia e o público em geral se tornem conscientes do problema.


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