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As mulheres são criativas e os homens são lógicos - um equívoco comum. |
O comportamento diferenciado de mulheres e homens é obviamente resultante da educação radicalmente diferente que meninas e meninos recebem desde o berço. Entretanto, muitos querem tapar esse sol com a peneira furada do determinismo biológico, ou seja, os comportamentos de homens e mulheres seriam diferentes por razões de ordem inata, fruto de cérebros femininos e masculinos e diferenças químicas e hormonais.
Míriam Martinho, 12/03/2017
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Gina Rippon |
Como o "neurossexismo" está impedindo o progresso da igualdade de gênero - e da própria ciência
À
procura de provas de que mulheres e homens aprendem, falam, resolvem problemas
ou leem mapas de forma diferente, algumas pessoas pensam ter encontrado nos
scanners cerebrais a resposta definitiva para sua busca. É fácil entender o porquê. Eles produzem mapas codificados, coloridos e brilhantes destacando
diferenças entre os sexos em várias áreas cerebrais, o que potencializa o
argumento de quem advoga escolas separadas para garotas e garotos ou treinamento
diferenciado por sexo para militares das forças armadas.
Seu poder, aliás, está
atrelado ao permanente debate sobre as diferenças comportamentais entre mulheres e homens. De marqueteiros e políticos a grupos de pressão, muitas pessoas fazem referências entusiásticas à "neurociência de ponta" em suas suposições
a respeito de diferenças sexuais.
A ideia de que o cérebro é responsável por diferenças ou desequilíbrios de sexo/gênero nos acompanha há bastante tempo. No século dezoito, cientistas descobriram que os cérebros das mulheres pesam em média cerca de 142 gramas menos do que os dos homens - descoberta que foi imediatamente interpretada como sinal de inferioridade feminina. Desde então, os cérebros das mulheres têm sido pesados, medidos e considerados insuficientes. Tal perspectiva se deve à crença no "determinismo biológico": a ideia de que as diferenças biológicas refletem a ordem natural das coisas com a qual não devemos nos intrometer para não colocar a sociedade em risco.
Infelizmente, essa
visão persiste ainda hoje sob o nome de neurossexismo. Neurossexismo é a prática
de alegar a existência de diferenças fixas entre os cérebros femininos e
masculinos, o que supostamente explicaria a inferioridade ou a inaptidão das mulheres para certos papéis. Ao apontar atividades
sexo-dependentes em certas regiões do cérebro - como as associadas à empatia, ao
aprendizado de idiomas ou ao processamento espacial - os estudos neurossexistas
têm possibilitado o florescimento de uma lista especializada de diferenças
comportamentais entre os sexos. Ela inclui coisas como "homens serem mais
lógicos do que mulheres" e "mulheres serem melhores no aprendizado de idiomas e
no cuidado dos outros em geral (criação de filhos, etc.)".
Um espectro de
diferenças sexuais
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Mulheres são de Vênus e homens de Marte, uma crença de longa data a ser repensada |
Hoje as técnicas de imagem do cérebro oferecem um perfil
cada vez mais detalhado da atividade cerebral, possibilitando o acesso dos
pesquisadores a enormes conjuntos de dados. Há pouco tempo também se descobriu
que nossos cérebros podem realmente ser moldados por diferentes experiências,
incluindo aquelas associadas com ser mulher ou homem. Esta descoberta inclusive
ilustra bem o problema da abordagem determinista biológica. Igualmente mostra
que, ao se comparar características cerebrais, é imprescindível contabilizar
variáveis como educação e o status socioeconômico das pessoas.
Psicólogos também começaram a apontar recentemente que
muitos dos traços psicológicos considerados como ou femininos ou masculinos existem de fato em um espectro. Um estudo atual revisitou um número desses
traços comportamentais e revelou que eles não se enquadram em apenas duas categorias binárias não-coincidentes e ordenadas. Mesmo as supostas
habilidades superiores dos homens em cognição espacial – uma convenção bem
estabelecida – vêm diminuindo com o tempo, até mesmo desaparecendo. Em certas
culturas, a situação é realmente oposta à que conhecemos.
E não para por
aí. O próprio conceito de cérebro “feminino” e “masculino” se mostrou falho. Um
estudo recente apontou que cada cérebro é realmente um mosaico de padrões
diferentes, alguns mais comumente encontrados em cérebros de homens e outros nos
de mulheres. Mas nenhum desses padrões pode ser realmente descrito como totalmente
masculino ou feminino.
Apesar disso, os velhos e disparatados argumentos neurológicos persistem. As pessoas parecem amar histórias de diferenças sexuais,
particularmente as que podem ser ilustradas com imagens cerebrais. Livros de
autoajuda, comerciais, artigos de jornal e a mídia social se amarram nessas histórias – mesmo naquelas que são contestáveis à primeira vista.
Tal
neurociência populista se baseia em geral numa ideia falsa do que a imagem dos
cérebros de fato mostra. Ela tende a se apresentar como uma espécie de “cinema
verdade”, oferecendo acesso instantâneo, em tempo real, a funções e estruturas
do cérebro claramente definidas. Entretanto, os mapas cerebrais são de fato
produtos finais de uma longa cadeia de manipulação de imagens e complexo
processamento estatístico, especialmente projetado para destacar diferenças.
Eles não nos dizem o que o cérebro de uma pessoa fará em qualquer
situação.
Embora seja fácil culpar a mídia ou
a indústria do marketing por esse populismo pseudocientífico, o fato é que essa
espécie de neurolixo é muitas vezes sustentada pela própria indústria das
imagens cerebrais. Pesquisadores muitas vezes erram, por descuido, ao não reconhecer o papel de variáveis mais amplas na concepção de um estudo ou na seleção de participantes. Termos
como “fundamental” ou ‘”profundo” são comuns em resumos de estudos sobre
diferenças sexuais, mesmo quando uma inspeção mais detalhada das tabelas de
dados revela somente minúsculos efeitos diferentes ou resultados
estatisticamente insignificantes.
Também há exemplos de
pesquisadores interpretando achados em termos de obsoletas diferenças estereotípicas. Por exemplo, eles assumem a superioridade espacial masculina ou a
maior proficiência linguística das mulheres antes mesmo da fase de escaneamento.
Além disso ser uma prática científica questionável, tais estudos alimentam o
neurolixo em circulação e mantém a crença de que, por mais inconveniente que
seja a “verdade”, mulheres e homens são imutavelmente
diferentes.
Desafiar o neurossexismo não é negar a existência de
diferenças sexuais, embora não faltem acusações nesse sentido. Por exemplo,
pesquisas em saúde mental apresentaram importantes diferenças entre os sexos na
incidência de condições tais como depressão, déficit de atenção e autismo.
Reconhecer tais diferenças possibilita a descoberta de tratamentos apropriados
para essas doenças.
Por outro lado, como conhecemos agora o quanto é falho o
conceito de cérebro “feminino” e “masculino” e inadequada aquela lista
especializada de diferenças psicológicas baseadas em sexo, nós precisamos parar
de enfatizar a categoria binária do sexo biológico como fonte de nossas
investigações. Pode levar tempo desconstruir crenças tão arraigadas, mas já é um
bom começo assegurar que cientistas, a mídia e o público em geral se tornem
conscientes do
problema.
Ver também Que és el neurosexismo
Temas correlatos: O sequestro do termo "gênero": uma perspectiva feminista do transgenerismo
As ‘Mentiras’ Científicas Sobre as Mulheres
Temas correlatos: O sequestro do termo "gênero": uma perspectiva feminista do transgenerismo
As ‘Mentiras’ Científicas Sobre as Mulheres
Tradução do original How ‘neurosexism’ is holding back gender equality – and science itself do site The Conversation por Míriam Martinho
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