segunda-feira, 21 de março de 2011

Vargas Llosa, polêmica na Argentina e o antídoto contra o populismo autoritário

Vargas Llosa
O escritor peruano Mario Vargas Llosa (clique aqui para ir até o site oficial do escritor), prêmio Nobel de Literatura de 2010, foi convidado a abrir a 37ª Edição da Feira do Livro de Buenos Aires (de 21 de Abril a 9 de Maio), um dos eventos culturais mais importantes da Argentina que reúne anualmente mais de um milhão de pessoas. Por ser liberal e crítico do governo da presidente Kirchner, o convite a Llosa foi seguido de grande polêmica, encabeçada pelo diretor da Biblioteca Nacional da Argentina, o sociólogo e filósofo marxista Horácio González, e apoiada por outros intelectuais esquerdistas e peronistas. Segundo o grupo, Llosa não deveria ser convidado uma por suas críticas ao atual governo argentino e outra por "sua posição politica liberal e reacionária, inimiga das correntes progressistas do povo argentino". 

Nas palavras de Nélson Motta, que escreveu uma crônica sobre o assunto chamada O tango do absurdo: Não é só um episódio pequeno e constrangedor para os portenhos, é uma concentração de sintomas das doenças crônicas da América Latina: o nacionalismo, o populismo e o autoritarismo, que antes eram de direita, agora são de esquerda, sempre em nome da Pátria. Como se houvesse um "autoritarismo do bem" e um "do mal", e as pessoas fossem divididas entre boas e más.
 
Pesquisando sobre a polêmica, acessei a página de um blogeiro argentino, chamada Monología, que transcreveu um texto de Vargas Llosa, onde, segundo este blogueiro, o escritor faz declarações que estariam na raiz do rechaço de certos intelectuais argentinos à sua presença na abertura da citada feira. Me identifiquei com o texto e decidi traduzí-lo para esta postagem. Nunca fui marxista, como o autor peruano, mas também tive uma formação de esquerda: sou filha da chamada Nova Esquerda que gerou todas aquelas mudanças sociais ocorridas da década de 50 em diante, como a contracultura, o hippismo, a revolução sexual e os novos movimentos sociais (a saber movimento negro, ecologista, feminista e homossexual). E como Vargas Llosa, em relação aos frutos do marxismo, tive também a triste oportunidade de ver esses movimentos sociais, alguns dos quais até fundei no Brasil, nascidos libertários, transformarem-se cada vez mais em agentes autoritários, sobretudo após serem cooptados e aparelhados pelo  Partido dos Trabalhadores (PT), particularmente depois de sua chegada ao poder. Toda a erosão desses movimentos, hoje mais correias de transmissão do petismo e das ideias nada democráticas da velha esquerda viúva do muro de Berlim, acabaram por me levar igualmente a uma aproximação da visão liberal com a qual venho desenvolvendo uma crescente afinidade.

Faço, portanto, minhas as palavras abaixo do ilustre ganhador do prêmio Nobel de Literatura de 2010. Apenas não concordo com o que diz sobre a democracia estar funcionando na América Latina, citando inclusive o Brasil como um dos exemplos onde esse funcionamento estaria acontecendo. Ao contrário do que ocorreu na Venezuela, onde houve uma tomada de poder claramente autoritária, no Brasil, o que temos visto é uma lenta corrosão da democracia, com o inchaço do Estado e seu crescente avanço sobre as liberdades individuais. Como esse processo se dá homeopaticamente, muitos não veem  que ele está ocorrendo, mas está.  Vargas Llosa fala exatamente do antídoto contra esses venenos. Boa leitura.

Como todas as épocas têm tido seus espantos, a nossa é a era dos fanáticos, a dos terroristas suicidas, antiga espécie convencida de que matando se ganha o paraíso, que o sangue dos inocentes lava as afrontas coletivas, corrige as injustiças e impõe a verdade  sobre as falsas crenças. Inumeráveis vítimas são imoladas a cada dia, em diversos lugares do mundo, por aqueles que se sentem possuidores de verdades absolutas.

Acreditamos que, com a derrubada dos impérios totalitários, a convivência, a paz, o pluralismo, os direitos humanos se imporiam e o mundo deixaria para trás os holocaustos, genocídios, invasões e guerras de extermínio. Nada disso aconteceu. Novas formas de barbárie proliferam atiçadas pelo fanatismo e, com as armas de destruição massiva, não se pode excluir a possibilidade de que qualquer grupelho de enlouquecidos redentores provoque um dia um cataclismo nuclear. Temos que sair em seu encalço, enfrentá-los e derrotá-los. Não são muitos, ainda que o estrondo de seus crimes retumbe por todo o planeta e nos angustie o horror dos pesadelos que provocam. Não devemos nos deixar intimidar por quem quer nos tirar a liberdade que conquistamos ao  longo do extenuante processo civilizatório.

Defendamos a democracia liberal, que, com todas suas limitações, segue significando o pluralismo político, a convivência, a tolerância, os direitos humanos, o respeito à crítica, à legalidade, às eleições livres, à alternância de poder, tudo aquilo que nos tirou da vida selvagem e nos aproximou – ainda que nunca possamos alcançá-la – da formosa e perfeita vida da literatura, vida que só podemos merecer se a inventarmos, escrevermos e lermos. Enfrentando os fanáticos homicidas, defendemos nosso direito a sonhar e a fazer de nossos sonhos realidade.

Em minha juventude, como muitos escritores de minha geração, fui marxista e acreditei que o socialismo seria o remédio para a exploração e as injustiças sociais que grassavam em meu país, na América Latina e no resto do Terceiro Mundo. Minha decepção com o estatismo e o coletivismo e minha mudança para o democrata e liberal que hoje sou – que trato de ser – foi um processo longo, difícil e vagoroso gerado a partir de episódios, entre outros, como os da conversão da Revolução Cubana, que me entusiasmara a princípio, ao modelo autoritário e vertical da União Soviética; dos relatos dos dissidentes soviéticos que conseguiam escorrer pelas frestas das cercas do Gulag e da invasão da Tchecoslováquia pelos países do Pacto de Varsóvia. Minha transformação também ocorreu graças a pensadores como Raymond Aron, Jean-François Revel, Isaiah Berlin e Karl Popper, a quem devo minha revalorização da cultura democrática e das sociedades abertas. Esses mestres foram um exemplo de lucidez e coragem, quando a intelligentsia do Ocidente perecia por frivolidade ou oportunismo, pois não sucumbiram ao feitiço do socialismo soviético, ou, pior ainda, à orgia sanguinária da revolução cultural chinesa.

Desde então, não sem tropeços e escorregões, a América Latina vem progredindo, como dizia o verso de César Vallejo, embora haja ainda muito o que fazer. Temos menos ditaduras que antigamente. De fato, somente Cuba e sua candidata a imitá-la, a Venezuela, além de algumas pseudodemocracias populistas e ridículas, como as da Bolívia e da Nicarágua. Porém, no resto do continente, mal e mal, a democracia está funcionando, apoiada em amplos consensos populares, e, pela primeira vez em nossa história, temos uma esquerda e uma direita que, como no Brasil, Chile, Uruguai, Peru, Colômbia, República Dominicana, México e quase toda a América Central, respeitam a legalidade, a liberdade de crítica, as eleições e a renovação do poder. Esse é o bom caminho e, se perseverar nele, combater a insidiosa corrupção e seguir se integrando ao mundo, a América Latina deixará por fim de ser o continente do futuro e passará a ser o do presente.

É lamentável ver, contudo, que esses governos democráticos, em vez de se solidarizar com quem, como as Damas de Blanco (Damas de Branco) em Cuba, os resistentes venezuelanos, Aung San Suu Kyi e Liu Xiaobo, enfrenta destemido(a) às ditaduras que o(a) subjugam, mostrem-se ao contrário complacentes com seus verdugos.

Detesto toda forma de nacionalismo, ideologia e religião provincianos, de voo curto, que recortam o horizonte intelectual e dissimulam em seu seio preconceitos étnicos e racistas, já que convertem em valor supremo, em privilégio moral e ontológico, as circunstâncias fortuitas do mero local de nascimento. Junto com a religião, o nacionalismo tem sido a causa das piores carnificinas da História, como as das duas guerras mundiais e a sangria atual do Oriente Médio. Nada contribuiu tanto como o nacionalismo para que a América Latina se balcanizasse, sangrando em insensatas contendas e litígios e investindo recursos astronômicos para comprar armas em vez de construir escolas, bibliotecas e hospitais.

Não temos que confundir o nacionalismo e seu rechaço ao outro, perpétua semente de violência, com o patriotismo, sentimento saudável e generoso, de amor à terra onde a gente veio à luz, onde viveram nossos ancestrais e se forjaram os primeiros sonhos, a paisagem familiar das geografias, os seres queridos e as ocorrências que se convertem em ritos da memória e escudos contra a solidão. A pátria não são as bandeiras nem os hinos nem os discursos irrefutáveis sobre os heróis emblemáticos, mas sim um punhado de lugares e pessoas que povoam nossas recordações e as tingem de melancolia, a cálida sensação  de que, não importa onde estejamos, existe um lar para o qual podemos voltar.

2 comentários:

Lindo texto de Vargas Llosa. Bela postagem. Parabéns pelo blog. Abraço. Marília.

Fiquei tão feliz quando um anti populista liberal como o Llosa ganhou o Nobel. Confesso que sequer o conhecia na época. Mas ja agradeço a influencia que vem exercendo na literatura latino americana. Ja fiquei muito feliz com o blog pelos textos e agora outra bela surpresa.. as músicas ao lado.
Sou absurdamente fã de jazz. E cry me a river é um dos meu temas preferidos.
Parabens pelo blog!!

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