Ser extremista é fácil porque não exige muito esforço intelectual. Basta tratar as coisas na base do preto ou branco, arrumar algum bode-expiatório, para culpar pelas mazelas do país e da vida, e sair combatendo esse suposto inimigo. Nesses tempos de guerra, também não há lugar para dubiedades, vacilos. Então, quem não estiver do seu lado estará contra você. Incluindo aí a realidade. Daí que melhor acabar com ela.
Assim se encontra a situação em que vivemos no Brasil de hoje: como sempre digo, um fla-flu permanente entre esquerdistas e direitistas, onde “ou se torce apenas pelo cordão vermelho ou pelo cordão azul”. Sério que faz tempo não via tanta gente estúpida assim reunida. Até as recentes celebrações pela vida e obra de Nelson Mandela viraram pretexto para as duas torcidas vomitaram seu besteirol infindável.
Felizmente, contudo, há luz no fim do túnel: cada vez mais pessoas de bom senso se dão conta desse fla-flu e buscam, ainda tateando, uma saída para o contexto preocupante. Cito dois textos que questionam essa tendência de polarização imbecil. Tempo de radicais é do Pedro Doria e Párias do bom senso do Luiz Caversan. Apreciem, nesse caso, sem moderação.
O diálogo político se tornou impossível. Ninguém mais busca o meio termo. E parte da culpa é da internet
O incômodo é visível. Em sua coluna na Folha de S. Paulo, o veterano jornalista Luiz Caversan anunciou que pretendia tirar férias de Facebook. O radicalismo das pessoas na rede está intolerável. Em um artigo recente, Frei Betto foi outro a se queixar dos radicais à esquerda e à direita. Cá no GLOBO, ontem, Ricardo Noblat desdenhou do país onde, on-line, “se torce apenas pelo cordão vermelho ou pelo cordão azul”. Míriam Leitão foi uma das primeiras, uns domingos atrás. Os radicais, em sua opinião, pioram a qualidade do debate. A polarização política é um fenômeno muito mais nocivo do que parece. Não é um fenômeno apenas brasileiro. E, não à toa, coincide com a popularização da internet. A tendência, aliás, é de que piore.
Em Israel, a esquerda foi sufocada e o governo de direita se radicalizou como nunca na história do país. Na Espanha, da virada do século para cá, o espaço de diálogo entre eleitores do socialista PSOE e do PP praticamente se extinguiu. Idem nos EUA, onde republicanos e democratas não se entendem desde o dolorido embate eleitoral que culminou com a questionável eleição de George W. Bush, em 2000. Este período, entre finais dos anos 1990 e o início da década seguinte é marcado pelo surgimento dos blogs e, com eles, as caixas de comentários. A partir daí, o crescimento das redes sociais. Não há coincidência.
Polarização não ocorre apenas quando o centro desaparece. A coisa é mais complexa. É natural que todos tenhamos paixões por certos temas. Pode ser o casamento gay para um, educação para outro, política econômica na cabeça do terceiro. Duas ou três questões costumam nos ser caras. Para as outras, na maioria das vezes somos ambivalentes, no máximo simpáticos a uma opção.
Quando o ambiente se polariza, porém, as pessoas se alinham a um ou outro grupo ideológico. Sentem-se na obrigação de defender até aquilo que não lhes é caro. O resultado é que as possibilidades de diálogo desaparecem. Afinal, quando tudo é muito importante, ninguém cede. Acordos tornam-se inviáveis.
Jogue “polarização política” no Google, porém, e poucos artigos científicos aparecerão. O tema mais definidor da política brasileira no momento é pouco estudado. Talvez porque, polarizadas, as pessoas que se interessam por política andam mais preocupadas em derrotar o outro lado do que dar um passo atrás e perceber que há algo de errado.
Nos EUA, onde o número de cientistas é inacreditável e tudo se estuda, já há pistas fartas. A primeira é que, para a maioria das pessoas, nada mudou. A população continua onde sempre esteve, não se radicalizou. Quem se radicalizou foi o pequeno grupo de eleitores que mais acompanha política. Como é para este grupo que políticos costuram seus discursos, também eles tornam-se mais radicais. Um estudo do professor Markus Prior, da Universidade de Princeton, avaliou se houve mudança na imprensa nas últimas décadas. Não a descobriu na imprensa tradicional: a cobertura dos fatos, nos EUA, se dá por um ponto de vista de centro. Nas páginas editoriais há uma tendência ligeira à esquerda, mas pouca. Não é assim, lá, para a imprensa que surgiu mais recentemente: canais a cabo de notícias, por exemplo, além de sites e blogs. Aí é tudo extremo, à direita ou à esquerda.
A internet cria o que o ativista Eli Pariser, autor do livro The Filter Bubble, chama de bolha. Lá, as pessoas procuram apenas aqueles sites onde lerão o que reitera suas crenças. Quando comentam em comunidades nas quais todos concordam, só há uma maneira de se destacar. Ou seja, sendo mais puro ideologicamente.
Na opinião de Pariser, aquela que já é uma tendência humana é amplificada pela maneira como a internet contemporânea funciona. Facebook e Google aprendem com aquilo que curtimos, clicamos, lemos, comentamos. Como querem nos ajudar a encontrar o que nos interessa, mostram mais do mesmo. E mais do mesmo é a reiteração da bolha. Lemos tanta gente com quem concordamos que o diálogo com os outros vai ficando mais difícil.
É uma febre. Depende de cada um escolher alimentá-la ou buscar o diálogo com quem discorda.
Fonte: Pedro Doria, O Globo, 26/11/2013
Párias do bom senso
No tempo de faculdade, em plena ditadura militar, havia, como se sabe, o que se convencionou chamar de movimento estudantil: diversas agremiações de tendências também diversas, mas todas pendendo à esquerda do espectro político, que faziam o que podiam (muito pouco na verdade) para se opor à opressão política, cultural, comportamental imposta pelo regime militar.
Você tinha que pertencer a alguma desses grupos (Libelu, Refazendo, Caminhando, outras menores e mais radicais...), caso contrário era identificado ou como inocente útil, jargão que definia quem ingenuamente se permitia ser manipulado pela ditadura, ou adesista mesmo, um perigo, posto que poderia eventualmente ser um delator, condição abominável quando pessoas eram mortas nos porões da polícia política.
De outro lado, os agentes da repressão, infiltrados ou não, entendiam que todos os que não fossem fiéis à ideologia fardada que regia o país eram subversivos em potencial, portanto precisavam ser identificados, monitorados, eventualmente punidos.
Não havia como querer ter um posicionamento público e ao mesmo tempo ser neutro, pensar diferente, procurar algo novo para você mesmo, era preto ou branco, ou o Brasil do AI-5 ou o Brasil do sonho revolucionário.
Quer dizer, até havia o comportamento derivado contracultura, que passou pelos movimentos beatnik, hippies e pós hippie, com pitadas do punk inglês então nascente e algum anarquismo. Era a pegada com a mais me identificava, embora fosse simpático e apoiasse tantas das posições dos grupos de esquerda, mas me recusasse a me alinhar incontinenti.
Grosso modo, quem não pertencia a nenhum dos grupos do movimento estudantil nem era adepto da ditadura, mas mantinha posições político-ideológica independentes acabava sendo tratado mais ou menos como pária.
Não adiantava você ser simpático a algumas posições da Libelu, mas gostar de certas propostas da Caminhando, tampouco frequentar ambientes do Refazendo sem levantar suspeitas.
Neste contexto, o bom senso cedia inexoravelmente ao "centralismo democrático", no qual você tinha que fazer o que a direção do grupo decidia. Ponto. Ou então vai ser de direita na vida, meu filho.
Em maior ou menos escala dependendo do grupo era assim, e talvez tivesse mesmo que ser assim, porque, como disse, do outro lado estava a farda, o camburão, o pau de arara, tortura, desaparecimentos, mortes.
Estou falando aqui de 1974/1980, ou seja, quase 40 anos atrás.
Nestas décadas que se seguiram houve de um tudo: o regime se abriu, a anistia chegou, os militares se foram, os exilados voltaram, houve a Constituinte, as eleições tornaram-se novamente diretas e legais, os comunistas também, acabou o bipartidarismo, teve Collor, teve impeachment, teve a transição mineira do Itamar, teve Sir-Ney, teve oito anos de tucanos, mais tantos anos de lulismo, o Brasil cresceu, a inflação de incontáveis dígitos se foi, veio o rótulo de emergente Bric, vive-se o estado democrático de direito tão sonhado durante tanto tempo.
PETRALHAS E TUCANÓIDES
Este resumo infiel e impreciso serve apenas para descrever um desalento, uma tristeza de constatar que depois de tudo isso cá estamos nós a viver sem nuances, sem meios termos, em meio a iras inconformadas, estimuladas sobretudo pela proteção covarde oferecida pelas redes sociais.
Mais uma vez, é preto ou é branco, é contra ou a favor, governo ou oposição, Dilma heroína, Dilma pulha.
Se você elogia qualquer coisa que o governo faça ou proponha, pobre de ti, será escorraçado como adesista, lulista, dilmista, petralha, canalha.
Se você faz crítica a alguma falha deste governo, danou-se: fascista, burguês, coxinha, tucanóide, daí para baixo.
Os ambientes de debate público, do botequim ao Face, tornaram-se o tanque onde se lava a roupa suja de uma história mal resolvida e de um percurso em que aparentemente muito pouco se aprendeu.
Assim como nos anos 70, quem ousa discordar é colocado à margem, como se fosse obrigado ou a ser revolucionário ou a ser fascista.
Não basta ter bom senso, não basta ser a favor do Brasil.
Mas a luta continua!
Fonte: Luiz Caversan, Folha de São Paulo, 28/09/2013