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A pesquisadora Lise Eliot, autora do livro "Cérebro azul ou rosa" (Foto: Divulgação) |
Particularmente, acho altamente especulativo qualquer argumento que tente atribuir caráter natural aos estereótipos de gênero. Para que a gente pudesse realmente saber se as diferenças biológicas entre mulheres e homens implicam diferenças comportamentais precisaríamos erradicar a educação diferenciada que adestra meninas e meninos de forma totalmente distinta. Se meninas e meninos são educados de forma totalmente diferente (e reprimidos caso saiam dos modelitos rígidos de mulher e homem estabelecidos pela sociedade), obviamente tenderão a se comportar de forma diferente. Para uma abordagem verdadeiramente científica, teríamos que analisar crianças criadas sem educação diferenciada por várias gerações (não adianta pegar um único exemplo historicamente recente e efetuado num único país). Enquanto isso não ocorre, qualquer tentativa de estabelecer relação intrínseca entre sexo e gênero é bem especulativa e suspeita de, na verdade, tentar renaturalizar os estereótipos sexuais. A neurocientista abaixo fica num meio termo, talvez porque acredite, como disse em uma de suas respostas, que é preciso ir devagar com o andor porque o santo é de barro:
Como mãe, eu tentei quebrar o estereótipo de gênero tanto quanto possível. Mas você vai até onde é possível. As crianças pertencem a uma comunidade maior, e a definição de gêneros é muito importante na nossa sociedade. É um desafio.
Um desafio que devemos enfrentar sempre. Uma sociedade sem estereótipos de gênero será mais livre, mais igualitária e produzirá gente mais sã. Não haveria transgêneros não fosse a educação desigual dada a meninas e meninos. Não haveria gente pensando que tem algo errado com seu próprio quando de fato errado foi o adestramento de gênero que receberam.
Lise Eliot: "Pais devem evitar rotular os filhos de acordo com o sexo”
Pesquisadora americana defende uma educação além dos estereótipos de gênero, para que meninos e meninas possam desenvolver todo seu potencial
Não existem tantas diferenças no cérebro de meninos e meninas quanto pensamos, mostram pesquisas científicas. Por que então pais e professores reforçam tanto as diferenças? Lise Eliot, neurocientista da Universidade de Medicina e Ciência Franklin Rosalind, em Chicago, nos Estados Unidos, diz que a distinção sexual é inevitável na nossa cultura, mas, em excesso, pode prejudicar o desenvolvimento pleno das crianças.
Para ser feliz na nossa sociedade, você precisa de uma boa mistura de traços tipicamente masculinos e femininos. Você precisa ser forte, assertivo, mas também precisa ser atencioso e sensível”, afirma Lise, autora do livro Cérebro rosa, cérebro azul, que foi lançado recentemente no Brasil. “Se apenas criarmos as crianças de acordo com estereótipos, eles não terão a oportunidade de desenvolver toda a gama de habilidades.”
Lise é formada pela Universidade de Harvard e tem PhD pela Columbia, além de pós-doutorado na Faculdade de Medicina de Baylor. É casada e tem três filhos, uma adolescente de 15 anos e dois meninos de 13 e 10 anos. Em entrevista a ÉPOCA, ela fala das reais diferenças entre os gêneros e dá dicas para não cair na armadilha de achar que garotas nunca serão boas em matemática, e que os garotos não podem ler e escrever tão bem quanto elas na escola.
ÉPOCA – Muito se fala sobre as diferenças entre homens e mulheres. Mas existem, de fato, grandes diferenças no cérebro de meninos e meninas?
Lise Eliot – É verdade que não identificamos muitas diferenças estruturais entre o cérebro dos meninos e o das meninas. As diferenças são muito sutis. Como eu destaco no livro, as principais diferenças psicológicas entre homens e mulheres não são programadas. Existe a noção popular de que homens e mulheres são programados para serem diferentes psicologicamente. Na verdade, não existem muitas evidências para isso. Particularmente no cérebro, muitas das habilidades que falamos – habilidades verbais, escritas, por exemplo – ão aprendidas. Nenhumas delas são traços de personalidade, estão presentes desde o nascimento. Todas são aprendidas. O melhor exemplo é a linguagem.
ÉPOCA – A maioria das diferenças são culturais?
Lise – Penso que sim, mas não estou dizendo que 100% delas são culturais. Nós realmente temos evidência que a testosterona pré-natal de certa forma afeta o cérebro masculino promovendo uma maturação um pouco mais lenta e um nível maior de atividade, o que provavelmente se traduz em violência física. Mas estas são diferenças relativamente pequenas nas crianças, e elas se tornam muito maiores principalmente por causa da forma como tratamos meninos e meninas, da forma como eles brincam com seus amigos. Nós vivemos em uma sociedade muito segregada por gêneros. Crianças pequenas interagem pouco com crianças do outro gênero. Mesmo adultos, em nosso tempo de lazer, exceto com nossos cônjuges, não passamos muito tempo com pessoas de outro gênero. Com quem você se relaciona influencia no que você é bom.
ÉPOCA – Quais são as principais diferenças?
Lise – As meninas são mais maduras que os meninos fisiologicamente. No nascimento, a diferença é de cerca de duas semanas. Nós sabemos que meninas falam mais cedo que os meninos. Elas dizem as primeiras palavras, em média, um mês mais cedo que eles. Então é uma diferença enorme. É uma diferença estatística e você precisa avaliar centenas de crianças para encontrar a diferença. Há exceções, claro. Na minha família, tenho uma menina e dois meninos. Meu filho mais velho falou mais cedo que os demais. Os meninos são mais ativos, eles correm mais do que as garotas. Mas não há diferenças em relação a isso na fase da gestação. Muitas pessoas pensam que os bebês que se movem mais podem ser meninos, mas isso não é verdade. Depois do nascimento, no primeiro ano de vida há uma pequena diferença no nível de atividade. Depois do primeiro aniversário, e principalmente quando eles têm dois ou três anos, meninos são mais ativos fisicamente. Estatisticamente, o menino médio é mais ativo que dois terços das meninas. Isso significa que a menina média é mais ativa que um terço dos meninos.
ÉPOCA – Quais são os mitos em torno de como as meninas “são”?
Lise – Entres os mitos, podemos citar o de que as meninas não são tão agressivas ou competitivas. Isso é totalmente inverídico. O que ocorre é que as meninas aprendem a fazer isso de forma mais secreta. Outro mito é que os meninos são menos emotivos e afetuosos, e não conseguem demonstrar muita empatia. Isso não é verdade. Meninos aprendem a não chorar, eles aprendem a parecer durões, especialmente se convivem apenas com outros meninos. A cultura masculina tende a suprimir emoções masculinas e a sensibilidade. Não é que os garotos nascem insensíveis a outras pessoas. Todas as crianças aprendem sensibilidade social. Elas aprendem quando recebem cuidados. Quando alguém alimenta você, você aprende a alimentar outros. É por isso que a maioria das pessoas educam seus filhos da mesma forma que seus pais. Para os garotos, esse comportamento não é valorizado como é para as garotas, principalmente entre seus amigos. As meninas tendem a ser mais atenciosas e gostar de animais fofos e bebês. Se um menino disser entre seus amigos: “Que fofo!”, os outros vão dar risada. Eles não veem jogadores de futebol fazendo isso.
ÉPOCA – Por que pais e professores devem prestar atenção às reais diferenças entre os gêneros?
Lise – Para ser feliz na nossa sociedade, você precisa de uma boa mistura de traços tipicamente masculinos e femininos. Você precisa ser forte, assertivo, mas também precisa ser atencioso e sensível. Se apenas criarmos as crianças de acordo com estereótipos, eles não terão a oportunidade de desenvolver toda a gama de habilidades. Se tentarmos ignorar ou contrapor os estereótipos, nós damos a todas as crianças a oportunidade de serem artísticas, científicas, matemáticas, competitivas ou cuidadoras – todos esses traços delas podem ser apoiados ou suprimidos pela educação. Normalmente, garotas fazem artes e meninos, matemática. É muito difícil ver um garoto em numa sala de arte. Mas isso é ridículo. Desde quando um homem não poderia ser artista? Nós vemos agora uma explosão de garotas atletas, depois que esta oportunidade foi dada a elas, principalmente depois dos anos 1970. Atualmente, temos dez vezes mais mulheres nos esportes nos Estados Unidos. Fica claro que, com oportunidade, as crianças expressam suas habilidades. Se você realmente prestar atenção em meninas pequenas, elas são muito ativas. Elas não sabem que não podem correr por aí, procurar insetos e subir em coisas. É mais tarde que aprendem a ser como uma lady.
ÉPOCA – Que orientações você pode dar aos pais sobre a compra de brinquedos?
Lise – Acho que eles devem oferecer de tudo às crianças. Há muito o que aprender brincando com caminhões e há muito o que aprender brincando com bonecas. Os caminhões enfatizam habilidades físicas e mecânicas. As bonecas, as habilidades verbais, relacionais e de cuidado com os outros. Não queremos os dois tipos em meninos e meninas? Aos dois anos, meninos gostam mais de caminhões que as meninas, mas em famílias de mente aberta e irmãos dos dois gêneros, meninas podem ter mais interesse nesses brinquedos do que a média. Similarmente, meninos com irmãs podem ter mais interesse em bonecas, barbies e projetos de arte. O maior problema é que a maioria dos pais ainda estereotipa. Eu assisti a um programa de TV em que mostravam produtos incríveis para famílias e tudo era em rosa ou azul. Mesmo fora de casa, ensinamos que meninos e meninas são opostos. Eles aprendem essa ideia e, na hora de escolher os brinquedos, as crianças têm noção de gênero e querem se encaixar. Eles preferem coisas de um determinado gênero e evitam outras. Os pais deveriam evitar a rotulagem de gêneros o máximo possível.
ÉPOCA – Como os pais podem ajudar os meninos a ler e escrever melhor?
Lise – Pais devem ler para os meninos todos os dias, encontrar livros de que eles gostem, como um sobre caminhões, por exemplo, além de tudo o que fazemos mais com as meninas. Nós falamos mais com elas, e é bem conhecido que o vocabulário falado de uma criança está diretamente relacionado à sua habilidade de leitura. Precisamos falar mais com nossos filhos, ouvi-los e engajá-los em diálogos. É esperado que uma garota fale mais e, pelos meninos serem mais ativos, elas ficam menos tempo sentados conversando. Você tem de se esforçar mais com seus filhos, assim como tem de se esforçar para fazer a sua filha praticar mais esportes.
ÉPOCA – Como os pais podem ajudar as meninas a permanecer confiantes em matemática?
Lise – Isso está mudando rapidamente, pelo menos nos Estados Unidos. As meninas têm desempenho tão bom quanto o dos meninos até o ensino médio. Ao redor do mundo, a diferença entre os gêneros nessa disciplina está cada vez menor. Temos que continuar com as estratégias para as garotas que são valorizar o empenho delas, dar exemplos de vida, falar sobre mulheres que usam matemática em seus trabalhos e sobre o prazer disso. Francamente, precisamos ensinar a todos os nossos filhos que quem tem boas habilidades matemáticas pode ter acesso aos trabalhos mais bem pagos – em finanças, engenharia, ciências.
ÉPOCA – No futuro, teremos muitas mulheres engenheiras ou trabalhando com computação?
Lise – Com certeza. No caso da computação, não há nada sobre isso que esteja associado a traços masculinos. Não é como trabalhar com engenharia, que está ligada a construções. Existem diferenças físicas entre homens e mulheres, é mais fácil para um homem assumir um trabalho em construções. Você consegue ver a conexão entre um emprego desse tipo, a engenharia e a formação de um estereótipo. No caso da computação, é só sentar e digitar. Não há razão para não termos mais mulheres fazendo programação. O maior problema é o estereótipo: muitas meninas temem se tornar geeks. Meninos passam a maior parte do tempo brincando com seus computadores. Para eles, a computação é a sua zona de conforto. Para elas, existe uma barreira de gênero.
ÉPOCA – Por que as adolescentes são mais vulneráveis à depressão?
Lise – Eu pesquisei e isso, assim como outras pessoas, achei que estivesse relacionado aos hormônios, já que na puberdade elas têm níveis elevados de estrogênio e progesterona. A evidência para isso é muito fraca. Talvez haja algum impacto hormonal, mas, para pesquisas que olham para diferentes causas, baixa autoestima é a principal causa da depressão. E a principal causa da baixa autoestima é a imagem negativa sobre o próprio corpo. Nós colocamos tanto foco na aparência física nas garotas, desde quando elas são bebês, que as que não se parecem como modelos – a maioria de nós – se sentem mal consigo mesmas. Elas têm esse peso que os garotos simplesmente não têm. Eles querem ser fortes e maiores, mas a maioria deles não fica na frente do espelho e diz: “Eu odeio o meu corpo”. É muito difícil achar uma adolescente que não faça isso. Todo mundo que tem essa “bagagem” de autoimagem ruim está mais vulnerável.
ÉPOCA – Você poderia dar mais ideias para balancear as diferenças emocionais entre garotos e garotas na adolescência?
Lise – Nós precisamos, sempre que possível, ensinar as meninas a gostar dos seus corpos. Nós precisamos encorajá-las a praticar mais esportes. Garotas fisicamente ativas se sentem melhor com seus próprios corpos. Elas são mais saudáveis. Além disso, aprendem a lidar melhor com a competição, trabalho em grupo, o que é importante na hora de conseguir um emprego. No caso dos garotos, precisamos ensiná-los a expressar suas emoções, encontrar espaços para que possam chorar.
ÉPOCA – Você acredita que é mais difícil criar meninos ou meninas de forma equilibrada?
Lise – Eu tenho os dois. Os dois têm seus desafios. Certamente, quando os meninos são pequenos, a atividade física é um desafio. Mas eu tenho uma amiga que tem uma filha que parece um carro de corrida. Na adolescência, para mães e filhas pode ser perigoso. É mais difícil para garotas. Na verdade, depende da criança. Se você tem dois filhos do mesmo gênero... Meus dois garotos são tão diferentes quanto minha filha é.
ÉPOCA – Como suas experiências como mãe influenciaram seu livro?
Lise – Eu fiquei interessada no assunto quando eu já tinha um filho e uma filha, e estava grávida do terceiro. Naquela época, havia aquela discussão sobre cérebro masculino e feminino. Eu queria entrar na questão. Como mãe, eu tentei quebrar o estereótipo de gênero tanto quanto possível. Mas você vai até onde é possível. As crianças pertencem a uma comunidade maior, e a definição de gêneros é muito importante na nossa sociedade. É um desafio. Ao se aproximar da vida adulta, minha filha começou a entender isso e agradecer. Na faculdade, ela está envolvida com a questão LGB. Jovens universitários se esforçam para quebrar estereótipos. Esperamos que na próxima geração vejamos menos pessoas categorizadas pelo gênero e mais pela sua humanidade.
Fonte: Época, por Amanda Polato, 01/10/2013
Ver também: Estudo mostra que educar meninas e meninos de forma desigual é prejudicial às crianças.
Estudo descarta haver diferenças significativas entre os cérebros de mulheres e homens