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terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Francisco Félix de Souza, ex-escravo, foi um dos maiores traficantes de escravos africanos

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Vida de Francisco Félix de Souza revela como negros negociavam negros
No mundo em preto e branco do atual movimento negro, somente brancos podem ser racistas porque o racismo contra negros é estrutural, tem desdobramentos sócio-políticos, econômicos e culturais que não afetam brancos por serem brancos. Com essa perspectiva, o juiz João Moreira Pessoa de Azambuja, da 11.ª Vara de Goiânia, absolveu um jovem negro da acusação, feita pelo Ministério Público Federal, de ter ‘praticado e incitado a discriminação de raça ou cor’ ao fazer ‘reiteradas declarações pregando, com incitação ao ódio, a separação de raças, inclusive citando mulheres negras que se relacionam com homens brancos (como nojentas)’. Claro que se trata de uma falácia tal ponto de vista, porque, no mínimo, negros podem ser sim racistas contra brancos em nível de discurso, em nível de injúria racial, como nesse caso. Negar essa realidade dá carta branca (sem ironia) para que negros possam cometer injúria racial impunemente.

O fato é que, na triste história da escravização africana ocorrida no Brasil, a divisão mocinho ou bandido que rege a mentalidade de ativistas do atual movimento negro vai encontrar sérias contestações provindas do passado. Uma dessas contestações reside na presença de traficantes de escravos que eram  ex-escravos. Aliás, um dos maiores traficantes de escravos foi Francisco Félix de Souza, ex-escravo baiano mercador de escravos, como relata o diplomata e historiador Alberto da Costa e Silva em seu livro Francisco Félix de Souza, mercador de escravos (Nova Fronteira/Ed. Unerj, 208 páginas). Na resenha de Carlos Haag que segue abaixo, o livro é tido como "um painel, cruel, de como negros africanos lucravam, e muito, traficando escravos para viver como reis e comprar armas."

Quando ativistas racialistas virem falar de reparação aos negros pela escravidão africana, bom  perguntar para qual descendente do Francisco Félix de Souza se deve entregar a fatura.
Francisco Félix de Souza, mercador de escravos por [Silva, Alberto da Costa e]
Francisco Félix de Souza se tornou um dos homens
mais ricos do mundo traficando seus irmãos de cor.
Os escravos do escravo
Vida de Francisco Félix de Souza revela como negros negociavam negros

Em Quincas Borba, Machado de Assis conta a história de Prudêncio, o escravo vítima de maus-tratos que, tão logo se vê liberto, compra seu próprio escravo para, ato contínuo, surrá-lo. Em tempos politicamente corretos, de idealização das vítimas, esse parece mais um exemplo do eterno niilismo do Bruxo. Infelizmente, a história mostra que a arte copiava a vida, como revela Francisco Félix de Souza, mercador de escravos (Nova Fronteira/Ed. Unerj, 208 páginas), do diplomata e historiador Alberto da Costa e Silva, a biografia do ex-escravo baiano mercador de escravos. Mais: o livro é um painel, cruel, de como negros africanos lucravam, e muito, traficando escravos para viver como reis e comprar armas.

A vida de Félix virou filme, Cobra verde, nas mãos de Werner Herzog, e um romance, O vice-rei de Udá, de Bruce Chatwin. Mas, graças a Costa e Silva, pela primeira vez o tema é tratado com apuro historiográfico. Sem deixar de lado o fascínio rocambolesco da sua vida: o pobre de Salvador que, na África, conseguiu poder, nobreza e uma fortuna calculada em US$ 120 milhões, que fez dele um dos três homens mais ricos do globo. Ao morrer, com 94 anos, ele deixou 53 mulheres, 80 filhos e 12 mil escravos.

Nascido provavelmente em 1768, Félix chegou à África em 1788 para ser comandante da fortaleza de São João Batista de Ajudá, que, no século 18, era o epicentro do mercado exportador de escravos do golfo do Benim (40% dos cativos que cruzaram o Atlântico vieram daquela região), o que lhe rendeu o epíteto de Costa dos Escravos. O tom trágico disso era que os responsáveis pela manutenção desse comércio eram outros negros que vendiam prisioneiros de guerra e condenados pela Justiça para mercadores europeus e brasileiros.

Da elite africana a ex-escravos com espírito de aventura, é inegável a participação efetiva de irmãos de cor na comercialização de seres humanos em condições desumanas para trabalhos forçados.
O rei Guezo, por exemplo, recusou-se a assinar com os ingleses um tratado de abolição de escravos em Daomé, alegando que ‘fazê-lo seria mudar a maneira de sentir do seu povo, acostumado desde a meninice a considerar aquele comércio justo e correto’. Ele acrescentou que havia mesmo canções de ninar sobre a redução dos adversários ao cativeiro”, conta Costa e Silva.
Apesar da carência de recursos, Félix beneficiava-se de um esquema comercial comum a outros atravessadores de escravos: recebia-se o pagamento em negros adiantado dos africanos para entregar, no futuro, armas e outros artigos. O tempo dava a chance para o giro de capital com o agenciamento de cativos.
A correspondência dos traficantes quase não nos deixa perceber que a mercadoria de que trata são seres humanos”, explica o historiador. Diante de um mercado organizado como aquele, o brasileiro prosperou em Ajudá como intermediário e armazenador de negros, prática que agilizou a compra de escravos, pois esses eram embarcados no maior número possível e no menor tempo possível. Lucros certos e fartos.
Félix contou ainda com a sorte: se a proibição do tráfico para as colônias britânicas e os Estados Unidos reduziu o preço dos cativos, a liberalidade dos portos brasileiros permitia cobrar valores cada vez maiores por escravos. E o baiano era o fornecedor principal para o Brasil.
Em pouco tempo o brasileiro percebeu que poderia ganhar ainda mais se aventurando no transporte de negros: comprou vários navios (inclusive os negreiros que eram leiloados pelos britânicos após terem sido apresados) e chegou a encomendar fragatas aos EUA. Envolvido numa disputa dinástica entre dois irmãos pelo poder do reino de Abomé, Félix escolheu o lado do meio-irmão do rei, Guezo, que não apenas o livrou da prisão (o rei Adandozan decidira perseguir os mercadores estrangeiros) como, após assumir o trono, concedeu-lhe o título honorífico de Chachá (ainda hoje concedido aos descendentes do brasileiro), vice-rei de Ajudá e o monopólio na exportação de escravos. Félix era nobre e rico.

Em Ajudá construiu sua casa-grande assobradada num bairro que, pouco depois, passou a ser conhecido como Quartier Brésil. Quando saía pelas ruas, tinha direito a um escravo que o protegia do sol com um pára-sol, guarda armada, tamborete e uma escolta de músicos. Esperto, construiu uma rede de alianças com os microestados que povoavam a costa africana e chamou outros mercadores brasileiros de escravos em operação para sócios. Dessa forma, conseguiu vencer em tempos difíceis, com os ingleses policiando a costa em busca de depósito de negros.

Os europeus passaram a ver nele um interlocutor de prestígio e importância. Mesmo o vice-cônsul britânico no Daomé, John Duncan, ainda que lamentando o fato de Félix se dedicar ao comércio de escravos, chamava-o de “o homem mais generoso e mais humano das costas da África”. O Chachá queria se europeizar e mandou o filho caçula estudar em Portugal, anos após ter enviado o primogênito para o Brasil. Em sua casa reinava o luxo: a mesa era adornada com talheres de prata e louças monogramadas.

Ao receber o príncipe de Joinville para um almoço, saudou o nobre com salvas de 21 tiros de canhão. Certos costumes, porém, não perdia: adorava servir feijoada, feijão de leite de coco, sarapatel, moqueca de peixe e cozidos. Em 1846 foi condecorado por Portugal com a Ordem de Cristo como “benemérito patriota”. Félix foi o mercador negro mais bem-sucedido, mas não foi um caso isolado. Há muitos exemplos de brasileiros, vários negros, que, na esteira do Chachá e aprendizes do seu método de trabalho, se deram bem como escravagistas, como Domingos José Martins, rei do tráfico em Lagos, ou João José de Lima, comandante do mercado em Lomé, entre tantos outros.

Mas Félix era ainda o mestre.
Quando assinava uma letra, esta era aceita sem hesitação em Liverpool, Nova York, Marselha e outras praças. Dele dizia-se que a palavra bastava, não sendo necessário documento escrito para firmar um compromisso”, conta Costa e Silva.
Apenas a velhice corroeu o seu poder. Em 1844, aos 90 anos, com reumatismo, ele parecia, ao rei Guezo, ter perdido a antiga força mercantil e, aos poucos, foi deixado de lado no comércio de escravos. Mas teve tempo ainda de ser quase um dos pioneiros na substituição lucrativa do tráfico de negros pela exportação do óleo de palma ou azeite-de-dendê, que cada vez mais era usado como lubrificante e também como matéria-prima da incipiente mania européia de usar sabonetes para higiene pessoal.

O dendê sempre esteve associado aos negreiros, pois era um dos alimentos dados aos cativos durante a travessia do Atlântico.
Vendia-se azeite aos britânicos e franceses e, muitas vezes, era com mercadorias apuradas nesse comércio que se adquiriam escravos no interior para embarque nos navios negreiros”, explica o historiador.
Félix logo percebeu o alcance dessa hipocrisia e o potencial da mudança de um pólo de comércio, que em breve seria ilegal (sem falar nos riscos crescentes inerentes ao tráfico como doenças, perda de escravos, apreensão de navios etc.) para outro, ligado e inócuo.
Os mesmos grandes portos negreiros e as mesmas empresas dedicadas ao comércio de gente continuaram a comandar as transações com a África. Os navios negreiros foram readaptados para receber os barris de óleo e os seus capitães eram os mesmos que antes negociavam com escravos”, observa o autor.
Félix deixa de ser símbolo do “comércio odioso” para se transformar em capitalista empreendedor e criativo. A raiz dos dois homens é, infelizmente, a mesma.

Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.

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