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segunda-feira, 20 de junho de 2016

O atentado à boate gay em Orlando foi um ataque homofóbico de terrorismo islâmico

O fla-flu esquerda-direita não atrofia os cérebros só no Brasil, associado ou não ao politicamente correto, ao multiculturalismo ou ao raio que os parta. O fenômeno é mundial. Por ocasião do horrendo ataque à boate LGBT em Orlando (12/06), nos EUA, esquerdistas e direitistas mundiais passaram a encaixar a complexidade do fenômeno em suas estreitas caixinhas narrativas. Os de esquerda buscaram reduzir o massacre a um ataque homofóbico assim por acaso cometido por um sujeito espiritual e inclusive praticamente (a confirmar) ligado ao famigerado Estado Islâmico. Ah! e, claro, a dissociar mais esse ataque contra ocidentais, em nome de Alá, da religião que o inspira. Tudo seria culpa apenas de extremistas islâmicos que não representam a massa de muçulmanos que é pacífica (até prova em contrário). Sem falar na responsabilização das armas de fogo pela tragédia, como se armas tivessem vida própria e pudessem sair por aí cometendo massacres. O que não quer dizer que concorde com a venda de armas, inclusive pesadas, como se comercializa coca-cola.

Os de direita passaram a reduzir o atentado a mais um ataque islâmico a ocidentais, onde a homofobia estaria apenas sendo usada como desculpa para desviar a atenção da raiz do problema. As notícias de que o criminoso também poderia ser homossexual, por ter sido visto antes do atentado na boate e por usar aplicativo de encontros para gays, alimentaram o reducionismo. Afinal, se o cara era gay, não se poderia identificar o crime como homofóbico. Não fosse um islâmico o autor do atentado, a versão direitista seria a da "apenas mais uma briguinha sangrenta e desta vez de grandes proporções 'entre eles'."
O crime de homofobia é aquele motivado pelo ódio à homossexualidade real ou presumida da vítima.
Primeiro, cumpre salientar que o cara poderia frequentar a boate exatamente para ver como melhor cometer o atentado. Segundo, mesmo que mantivesse relações sexuais com homens, com certeza tal fato não se dava tranquilamente em sua cabeça, considerando a visão islâmica sobre o tema (ver a propósito fala de um xeique no vídeo abaixo). Terceiro, o crime de homofobia não tem a ver exclusivamente com a orientação sexual do criminoso nem da vítima, embora, em geral, sejam héteros os criminosos e homossexuais as vítimas. O crime de homofobia é aquele motivado pelo ódio à homossexualidade real ou presumida da vítima. Pessoas heterossexuais podem ser vítimas de homofobia, bastando ser confundidas com homossexuais. Deixo dois exemplos, à guisa de ilustração: 'Não pode nem abraçar o filho', diz homem que teve orelha cortada e Mantida prisão preventiva de homem acusado de agredir irmãos gêmeos por considerá-los homossexuais. E pessoas homossexuais podem ser tão mal resolvidas e alienadas a ponto de odiar a si mesmas e a seus pares e apoiar gente como o homofóbico deputado Jair Bolsonaro.

Felizmente, não me senti só desta vez na análise não maniqueísta de mais essa tragédia provocada por um extremista islâmico. Não só aqui no Brasil como em outros países, ainda há aquelas e aqueles entre nós que pensam além das caixinhas de narrativas ideológicas e buscam ver a realidade como de fato se apresenta. Destaco abaixo o texto de uma colunista portuguesa, do site Observador, que vai bem ao encontro dessa perspectiva não reducionista. Como sabemos, o atentado de Orlando foi homofóbico e de terrrorismo islâmico. Ao fim do texto, deixo também o vídeo de um desses clérigos islâmicos, por ocasião de uma palestra que deu em Sanford, Flórida, em 2013, e sua ideia de matar homossexuais por compaixão (sic).  Em recente viagem à Austrália, o famigerado xeique teve que deixar o país pelas absurdas ideias que professa e corre o risco de ter seu visto cancelado. O exemplo australiano precisa ser seguido em todo o mundo civilizado.

Vários níveis de tragédia
Maria João Marques

Subimos mais um patamar de tontice: os atentados terroristas islâmicos já não são atentados terroristas islâmicos. O que significa que subimos também um degrau na ineficácia da contenção do terrorismo.

... impressionou-me particularmente desta vez ( sobre o atentado de Orlando), a tremenda propensão que tantas pessoas têm para catalogar um evento complexo e arrumá-lo numa caixinha pequenina onde fica reduzido a ocorrência monotemática.

O criminoso que matou em Orlando era muçulmano, avisou que fazia o atentado em nome do ISIS, declarou as imbecilidades do costume (estava tão incomodado com as mortes de inocentes provocadas pelo Ocidente no Iraque e na Síria que ia matar mais gente inocente como protesto), vários relatos colocam-no como simpatizante do extremismo islâmico, já tinha ido duas vezes à Arábia Saudita (esse país encantador e moderado). Mas não, o atentado de Orlando não é terrorismo islâmico, onde é que eu fui buscar esta ideia?

Só por acaso aquela criatura que matou gente em Orlando era muçulmano. Tal como só por acaso os atiradores do Charlie Hebdo e do supermercado judaico eram muçulmanos. Ou o casal que matou uma dúzia e picos em San Bernardino. Ou os terroristas do Bataclan. Ou mais outras dezenas de exemplos. Tudo acasos curiosos. Improbabilidades estatísticas a ocorrerem inexplicavelmente. De resto, tenho a certeza que todos comentaram com alguém ‘já sabe que houve um atentado terrorista islâmico em Orlando?’ e receberam de resposta ‘Terrorismo islâmico? A sério? Não estava nada à espera.’

Já era frequente ouvirmos a tontice ‘o islã não tem nada a ver com terrorismo’. Tem. Os muçulmanos não são psicopatas, evidentemente, e a maioria é pacífica. Mas a religião é belicosa e inaceitavelmente bárbara para os padrões civilizados europeus. Agora subimos um patamar de tontice: os atentados terroristas islâmicos já não são atentados terroristas islâmicos. Como combater um problema costuma começar pela identificação do problema, subimos também um degrau na ineficácia da contenção do terrorismo.

A criatura de Orlando – que podia ele próprio ser gay – atacou um bar LGBT. Ora este fato leva a dois tipos de reações. Uns dizem que afinal foi só um ataque homofóbico. O primeiro-ministro Costa, num deplorável tuite – que parecia tirado de um livro de autoajuda para pessoas com QI abaixo de 95 – já veio culpar a ‘homofobia’ pelo atentado. Uma alma da Isquierda Unida de Espanha concluiu que as mortes eram resultantes do ‘heteropatriarcado’. Viram? Afinal era só ódio a gays, nada de terrorismo islâmico. Aquelas tiradas sobre o ISIS foram um momento de humor, daquele afiado e seco, do criminoso antes de matar gente.

Se algum dia um muçulmano, declarando fidelidade a uma qualquer organização terrorista, entrar numa conferência de feministas e matar mulheres, vai ser só um ataque machista – ponto. O extremismo islâmico nem costuma acumular com ódio à igualdade dos sexos. Já a ocupação de uma escola em Beslan, por terroristas tchetchenos, também não teve nada de terrorismo islâmico. Segundo a lógica, foi contra as crianças. Vai-se a ver e era só algum jovem pai revoltado por ter de mudar as fraldas ao seu filho recém-nascido a meio da noite.

Outros recusam que o ataque a um bar LGBT tenha sido um ataque homofóbico. Como se espantasse alguém que o radicalismo islâmico (e o islã moderado, já agora) contenha homofobia. Como se o repúdio pelas liberdades sexuais do Ocidente – sobretudo das mulheres e dos homossexuais – não fosse uma pedra basilar do fundamentalismo muçulmano. Como se não pudesse ser simultaneamente homofobia e terrorismo islâmico. Os mortos de Orlando foram escolhidos por serem gays, não por serem uns americanos ao calhas. Este ataque homofóbico reforça a índole antiocidental do terror islâmico, não a anula.

Mas há espíritos que não aceitam que uma realidade possa ser complexa e multifacetada. Nem um atentado terrorista. Se formos então para manifestações mais insidiosas, como um mayor de Londres muçulmano a proibir anúncios nos transportes públicos com mulheres despidas, prevemos que vários cérebros curto-circuitem. De fato, cada vez mais as rígidas imposições islâmicas às indumentárias femininas se aproximam do puritanismo da esquerda progressista que clama contra a objetivação das mulheres.

Bom, nisto de islã, celebremos uma pequena redenção desta semana: os clérigos do Paquistão decretaram que os assassínios ditos de honra (de mulheres, claro) são anti-islâmicos. Está, assim, desfeita a magna dúvida sobre a bondade de regar de gasolina e a seguir incendiar uma mulher que casou com quem a família não aprovou.

Texto na íntegra aqui. 15/06/2016


quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Retrospectiva 2015: "Sobre o terrorismo islâmico: Porque o Islã é, sim, violento"

Porque o Islã é, sim, violento

Por Alex Antunes 

Psiquicamente violento, aliás, como qualquer religião; particularmente as monoteístas. O grande problema com essas religiões não é, como acusa a ciência, a crença irracional em dogmas não aferíveis. É situar a “verdade” fora de si mesmo, em algum código mais ou menos simplório, imutável e ditado por algum deus didático. E não é bem assim que as coisas funcionam.

O religioso autoritário projeta fora de si, num deus ou profeta x (coloque aí qualquer nome, incluindo Maomé, o gatilho da vez), um conjunto de regras que direciona e simplifica a sua relação angustiosa com a complexidade do mundo. Na verdade o que esse covarde está fazendo é se furtar à aventura mais empolgante da experiência humana: descobrir os fundamentos de sua própria ética.

Mas porque a sua própria ética não poderia ser exatamente a de Maomé (ou do deus cristão, judaico etc)? Poderia. Se ele não tivesse a expectativa de converter outras pessoas ao seu sistema, e oprimir os “infiéis”, ou seja, tentar aumentar sua zona de conforto, ao custo do desconforto moral dos outros.

Não é à toa que nas religiões monoteístas o ser superior é invariavelmente representado por uma figura masculina “forte”. Nas religiões politeístas, o arquétipo do patriarca existe, mas é um entre outros, incluindo deusas, deuses instáveis, insondáveis e truqueiros, ou seja, todo um catálogo de comportamentos humanos. O que tende à tolerância com comportamentos variados, e mesmo eticamente dúbios (fazem parte do jogo da vida – e não necessariamente de um polo “do mal” e inaceitável).

A onda de declarações “do bem” da comunidade islâmica, após o atentado ao Charlie Hedbo, não cola. Um exemplo da empáfia autoritária muçulmana em contextos em que não é justificável (ou em que é ainda menos justificável) é dado no caso do filme Femme De La Rue, da estudante belga Sofie Peeters, sobre o assédio nas ruas. E na reação do líder muçulmano local Abu Haniefa, que respondeu acusando Sofie de “provocar os homens” ao andar pelas ruas “nua como uma prostituta”, e “pintada como uma palhaça”.

Claro que Sofie no filme está vestida normalmente, e simplesmente anda em um bairro (de maioria muçulmana) da capital de seu país, enquanto é assediada. Como eu comentei aqui, me lembra a piada de um homem que faz um teste de Rorschasch, e é diagnosticado como obcecado sexual. Aí ele diz “me mostram um monte de imagem de safadeza (aquelas manchas disformes do teste), e querem que eu pense no quê?”. O autoritário moralista está sempre projetando no outro as suas patologias, mazelas e dificuldades no mundo.

O comportamento de parte da esquerda, acusando os cartunistas de mexerem com a sensibilidade religiosa dos outros, é absurdo. Eles, os cartunistas, foram (fomos) agredidos antes, por alguém que acha que tem acesso a um código moral superior. Como disse Stephane Charbonnier, o Charb, “Maomé não é sagrado para mim. Eu vivo sob a lei francesa, não sob a lei do Corão”. É quase uma obrigação para um francês consequente trollar a ideia de que Maomé (ou qualquer deus) dite um código moral rígido para a civilização européia.

O comportamento de outra parte da esquerda, abduzindo para si o Charlie Hebdo (“O ataque ao Charlie Hebdo é um ataque à extrema esquerda”) também não procede. Não há porque duvidar da sinceridade de gente de qualquer matiz político que se sentiu atingida pelo atentado. E a contracultura, território de origem do CH, não é monopólio da esquerda ortodoxa, mesmo que alguns dos cartunistas envolvidos tenham sido comunistas de carteirinha.

Basta lembrar que a última capa, no próprio dia do atentado, foi simpática ao escritor Michel Houellebecq, que é acusado de dar munição para a extrema direita francesa com seu livroSoumission. Charb e o Charlie estavam explorando, corajosamente, um território em que esquerda e direita ortodoxas se misturam, se confundem e não sabem o que fazer. Ele engloba, além da imigração, questões comportamentais e de direitos individuais, como gênero, sexualidade, consumo de substâncias postas na ilegalidade etc.

No filme Profissão De Risco, com Johnny Depp, inspirado na vida do traficante americano George Jung, quando é acusado de atravessar uma fronteira portando maconha, ele diz: “estou sendo sentenciado por atravessar uma linha imaginária carregando uma planta”. É esse grau de translucidez que tem que ser mantido quando os “seres superiores” e seus códigos morais esquisitões falam.

Todos os fundamentalistas (inclusive os fundamentalistas políticos) que querem impor a sua percepção de mundo a quem não está minimamente interessado nela exercem algum grau de violência, seja essa violência física ou psicológica. Como eu comentei ontem, neste texto, Atentado À Inteligência: “É claro que é direito dos muçulmanos (e de outros fundamentalistas) (…) serem ‘submissos’ a seu deus (ou concepção de sistema social). É nisso que o humor, ou o chiste, se converte num inimigo central dos fundamentalistas: ele é a farpa que esvazia o balão autoinflado dessa ‘autoridade moral’, dessa solenidade patética, dessa angústia pela infalibilidade – que é a mais humana das características. Assim como (…) os sistemas religiosos contenham sempre uns fragmentos de verdade, tomá-los como o todo da verdade será sempre um erro”.

E exigir isso dos outros, além de erro, é intolerável. Na verdade, o sufismo (a parte mística do Islã), assim como a cabala judaica e o cristianismo primitivo, tem tecnologias mágicas e espirituais fascinantes, e bastante funcionais inclusive. Mas essa parte da experiência religiosa se perdeu, se contaminou ou foi engessada na religião institucional e em seu viés político. Posto assim, não interessa se Jesus ou Maomé ou seja lá quem for foram figuras históricas e/ou grandes iniciados. Cabe é dar um sonoro f*-se a quem (pensa que) fala em nome deles.


Fonte: Blog do Alex Antunes, 11 de janeiro
Publicado originalmente em 21/01/2015

domingo, 25 de janeiro de 2015

Sobre o terrorismo islâmico: Nascer para a liberdade

Nascer para a liberdade
por Fernando Gabeira

O atentado ao “Charlie Hebdo” me colheu num trabalho no Maranhão. Tive tempo ainda de escrever um artigo geral sobre o tema. Deixei para domingo, dia mais ameno, algumas reflexões pessoais. Bruscas mudanças no mundo, às vezes, nos levam a examinar nosso lugar nele. Minha família veio do Líbano, um país com histórico de conflitos religiosos. Eram cristãos, minha avó tinha cruzes tatuadas na testa e no braço. Isso sempre me impressionou e, ao longo dos anos, novos conflitos religiosos me parecem uma tristeza que não tem fim.

Por várias razões criei uma certa resistência em estudar o Islã. Cheguei a discursar sobre o perigo do Islã político, porque, mesmo sem estudá-lo a fundo, sinto que a fusão do estado com a religião sempre termina em prisão, tortura e morte. Ainda mais com visão tão estreita sobre mulher e sexualidade. Agora vejo, de todos os lados, uma advertência para dissociar o Islã da violência, sob o perigo de parecer racista e islamofóbico.

Essa advertência se articula com outra, sutil: a de que as religiões não devem ser criticadas, que elas devem ficar fora do raio de alcance da liberdade de expressão. Esse é o problema. Vivemos num mundo democrático em que a blasfêmia não é um crime. O “Charlie Hebdo”, de uma certa forma, mostrava onde o terrorismo se nutria no Islã. Num dos desenhos na porta do paraíso, Maomé advertia: parem com as bombas, estamos em falta de virgens.

É uma maneira de enfatizar como a visão do martírio e suas recompensas inspiram homens-bomba. De todos os discursos, o que mais mexeu com minha intuição foi o do presidente do Egito, que não só denunciou as interpretações do Islã, mas afirmou que era necessária uma revolução religiosa para integrá-lo na pluralidade do mundo moderno. A capacidade do Islã de se rever no mundo, algo que os católicos fazem, sem traumas, com o Papa Francisco, pode ser uma luz no fim desse longo túnel.

Alguns sinais animadores existem tanto na Europa como nos Estados Unidos, onde parte da comunidade islâmica define o terrorismo como inimigo comum. O combate direto ao Estado Islâmico é dado por muçulmanos que arriscam suas vidas. O número de mortos em atentados é muito maior na região do que no Ocidente. Mesmo com a derrota do terrorismo ainda ficaria no ar um ponto em que é difícil separar o islamismo da violência. O total enlace do estado com a religião tende a transformar os infiéis em criminosos.

A fatwa, pena de morte para o escritor Salman Rushdie, foi decretada por autoridades religiosas. Na Arábia Saudita, o blogueiro Ralf Badawi foi condenado a mil chibatadas. Minha hipótese sobre o Islã é a mesma que tenho sobre o marxismo. Muita gente diz que o marxismo é perfeito, mas os equívocos foram obra do socialismo realmente existente. Não havia nada errado com o texto, mas sim com os intérpretes. Como textos corretos podem levar a interpretações tão violentas e autoritárias? Não haverá alguma coisa neles que, de certa forma, estimula massacres?

No passado, concordava com Sartre na sua benevolência com as ações terroristas na Argélia. E rejeitava a posição de Camus. Hoje, compreendo que errei. O próprio Camus, em “Os justos”, mostra que os terroristas que iam matar o arquiduque Francisco Ferdinando, há um século, adiaram o ataque porque havia crianças na carruagem. Agora, estamos diante de terroristas que não se importam com a presença de crianças, sob o argumento de que crianças são mortas no Oriente Médio.

Jornais americanos não publicaram os desenhos do “Charlie Hebdo”. Dizem que seu estilo é outro, não publicam material contra religião. Mas, depois do atentado, é um erro jornalístico. Aqui no Brasil, mesmo com a clavícula quebrada, saí exibindo o filme “Je vous salue, Marie”. Não gostava tanto do filme, no final estava até meio cansado dele. O que estava em jogo não era minha afinidade com o filme de Godard. Claro que uma coisa é o contexto de “Je vous salue, Marie”, Sarney e Igreja Católica. Outra, Maomé e os radicais islâmicos. Nesse sentido, tive sorte quando minha avó com a cruz na testa fez a mala e veio para o Brasil. Mas o Brasil, através do seu governo, me desaponta nesse drama de alcance mundial. Quando Dilma propôs um dialogo com o Estado Islâmico, na ONU, percebi que o governo vive numa outra época. A nota formal de condenação do atentado parece o exercício de um dever burocrático.

A família veio para o país certo, apesar do governo. Quantas vezes com o Minc e Sirkis fizemos manifestações pela paz com judeus e árabes juntos no Saara? Isso não quer dizer que não exista intolerância religiosa no âmbito nacional. Nem tentativas de associar o Estado à religião, o que enfatizei em artigo sobre as eleições no Rio. Olhando para trás, no momento de barbárie, vejo como a ideia da liberdade individual, livre de doutrinas políticas ou religiosas, é uma trincheira a se defender com todos os riscos. Embora os riscos não sejam tão altos aqui nos trópicos.

Fonte: Blog do Gabeira, artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 18/01/2014

sábado, 24 de janeiro de 2015

Sobre o terror islâmico: Ocidentalismo

Ocidentalismo
Demétrio Magnoli

Após os atentados em Paris, os ocidentalistas limparam a cena do crime, apagando as digitais do terror jihadista

Edward Said definiu o "orientalismo" como o empreendimento de construção de um Oriente (árabe-muçulmano) imaginário por intelectuais ocidentais. O Oriente dos orientalistas, originalmente exótico e indecifrável, converte-se ao longo do tempo na fonte do irracionalismo e do perigo. Hoje, ironicamente, o "orientalismo" ganha uma imagem espelhada no "ocidentalismo", que também é obra de intelectuais ocidentais. O Ocidente imaginário que eles descrevem configurou-se com o imperialismo e evoluiu na forma de uma máquina implacável de exploração econômica, opressão social e exclusão etno-religiosa. Esse Ocidente maligno, explicam-nos, é responsável por toda a violência do mundo, inclusive pelo terror jihadista.

Os ocidentalistas negam a existência de uma história não-ocidental. Na hora dos atentados do 11 de setembro de 2001, espalharam a fábula de que a Al Qaeda foi parida na maternidade da CIA. Diante dos atentados em Paris, limparam a cena do crime, apagando as digitais das organizações jihadistas. Os nomes da Al Qaeda no Iêmen e do Estado Islâmico não aparecem nas suas análises das carnificinas, atribuídas a pobres diabos oprimidos pelo Ocidente: "alguns radicais" (Frei Betto) ou meros "lobos solitários" (Arlene Clemesha) que não passam de "maconheiros cabeludos" (Tariq Ali).

Os ocidentalistas organizam sua narrativa em torno da verossimilhança e do silogismo, investindo na carência de informação histórica da opinião pública. Nas versões que difundem, a culpa pelos atentados recai sobre a guerra suja de George W. Bush (Ali), mesmo se a jihad começou antes dela, ou sobre o colonialismo francês na Argélia (Clemesha), mesmo se os jihadistas qualificam os nacionalistas argelinos como infiéis e blasfemos. A regra de ouro é descartar todos os fatos que não cabem no molde do "ocidentalismo". Uma "moral dos fins", típica de ideólogos, justifica a manipulação, a distorção e a pura mentira, que desempenham a função de "meios" incontornáveis.

Os ocidentalistas são cultores do relativismo moral: defendem o princípio "ocidental" da liberdade de expressão para si mesmos, mas juntam suas vozes às dos fundamentalistas religiosos para acusar o Ocidente de libertinagem. No Corão, inexiste a proibição da figuração de Maomé. Amparado apenas no cânone islâmico que proíbe o culto a seres humanos, o veto não passa de uma interpretação abusiva de elites político-religiosas consagradas ao controle social. Contudo, segundo os ocidentalistas, o "Charlie Hebdo" estava "provocando os muçulmanos com blasfêmias ao profeta" (Ali), numa "atitude muito ofensiva" (Clemesha). O atentado jihadista deve, portanto, ser entendido como "uma resposta a algo que ofendia milhares de fiéis muçulmanos" (Frei Betto). Na versão deles, os terroristas fizeram justiça, reagindo à inação dos governos ocidentais acumpliciados com os detratores do Islã.

Os ocidentalistas não se preocupam com a consistência argumentativa. Eles dizem que os terroristas alvejaram o "Charlie Hebdo" como reação às charges do profeta, mas calam sobre o ato de terror complementar, no mercado kosher. Depois dos cartunistas, os jihadistas foram atrás dos judeus, comprovando que não lhes interessa o que você faz, mas o que você é. Entretanto, o "ocidentalismo" nunca distingue motivos de pretextos, inspirando-se nos editoriais de jornais governistas controlados por Estados autoritários para persistir nas invectivas contra os cartunistas.

Os ocidentalistas são parasitas intelectuais das correntes minoritárias de intolerância, xenofobia e islamofobia do Ocidente. O primeiro-ministro Manuel Valls declarou que "a França está em guerra contra o terrorismo e o jihadismo, não contra o Islã e os muçulmanos". Angela Merkel disse que "o Islã é parte da Alemanha". A sorte do "ocidentalismo" é que existem Marine Le Pen e o Pegida.

Fonte: Folha de São Paulo - 17/01/2015

Sobre o terror islâmico: O papa boxeador e as liberdades gêmeas

O papa boxeador e as liberdades gêmeas

Carlos Graieb

Numa conversa com jornalistas nesta quinta-feira, durante uma viagem do Sri Lanka às Filipinas, o papa Francisco foi indagado sobre o massacre no jornal francês Charlie Hebdo. A primeira parte da resposta foi a esperada: ele repudiou o uso da religião para justificar atrocidades. A segunda parte fugiu um tanto do script. Francisco apontou um auxiliar e disse que, se ouvisse dele um palavrão contra sua mãe, seria natural que lhe aplicasse um murro. “Dou esse exemplo para mostrar que na liberdade de expressão há limites”, afirmou Francisco. Ele ainda lamentou que existam “provocadores” – gente que fala mal das religiões.

Pouco mais tarde, o Vaticano julgou prudente esclarecer que as declarações do papa boxeador foram feitas em tom “coloquial e amigável” e não pretendiam de maneira nenhuma incitar a violência. Seria mesmo absurdo comparar a pilhéria infeliz do papa com a fala dos clérigos radicais que dizem aos seus seguidores, com sangue nos olhos, que é um dever pegar em armas e aniquilar os infiéis. Francisco não chamou à Guerra Santa nem pregou a intolerância. Mas é fato que, ao dizer o que disse, ele se juntou ao coro dos que “compreendem” que alguém reaja com a força física quando zombam de uma crença religiosa. 

Há todo tipo de voz nesse coro. Há líderes religiosos, intelectuais e gente comum na internet. Há os tolos, os covardes, os de má fé. Falemos apenas dos "homens de boa vontade": aqueles que sinceramente acreditam que a sensibilidade dos religiosos merece uma proteção especial nos debates públicos — que ela deve ser posta a salvo dos espíritos sarcásticos ou debochados.

Os cartunistas do Charlie Hebdo pagaram com a vida por discordar dessa ideia. Mas eles não discordavam por mero espírito de porco. Em 2012, em meio a um intenso debate que se desencadeou na França depois que outra série de charges do jornal fez chacota do islamismo e do profeta Maomé, Stéphanne Charbonnie – Charb, editor-chefe do semanário e um dos assassinados no ataque à publicação – perguntou: “Quando as religiões invadem o espaço da política, elas não se tornam alvo para críticas e charges, como acontece com os políticos?”

A pergunta pressupõe toda uma herança: a herança da separação entre Igreja e Estado, um dos esteios da cultura democrática que floresceu nos últimos duzentos anos.

É curiosa a formulação de Charb. Ele não aponta o dedo contra a religião propriamente dita, mas contra a religião “que invade o espaço da política”. Esse tipo de religião é aquele que nega que alguma esfera da vida humana possa existir à margem dos preceitos de um livro sagrado (ou, com mais frequência, daquilo que algum fanático alega ser a pregação de um livro sagrado). É a religião que mata para impedir a pesquisa científica, para eliminar os não-convertidos ou para construir um novo califado no século XXI.

Na formulação de Charb, a religião como questão da alma continua inteiramente preservada. E aqui é importante lembrar que a doutrina da separação entre Igreja e Estado não surgiu na Europa do século XVIII como inimiga da religião, mas, ao contrário, para proteger minorias de serem obrigadas a adotar uma fé contra a sua vontade. No mesmo século, ao promulgar sua constituição e sua Carta de Direitos, os Estados Unidos deram um passo além: lá, pela primeira vez, o direito de rezar para quem se quisesse, da forma como se quisesse, nasceu de um acordo entre os cidadãos, e não da outorga de um rei "benévolo”. 

O mundo moderno respeita e protege a fé porque inscreve nas constituições as liberdades de religião e de culto. Mas há uma contrapartida: a política tem de ser protegida de qualquer imposição da crença, seja ela uma crença específica ou o "espírito religioso” tomado de forma genérica. Isso não significa que argumentos de inspiração religiosa não possam ser usados no debate público. Significa apenas que eles estão sujeitos ao mesmo escrutínio, à mesma crítica e à mesma eventual erosão pelo humor que qualquer outro raciocínio derivado de uma doutrina política ou de uma “religião secular” (era assim que o intelectual francês Raymond Aron se referia às ideologias). Para garantir que seja dessa maneira, a liberdade de expressão também está inscrita nas constituições. São duas liberdades gêmeas, como fica evidente na primeira emenda à constituição americana — onde se estabelece um pacto feliz entre o espírito das Luzes e a Fé. 

Sociedades democráticas e pluralistas têm uma arquitetura engenhosa, mas delicada. Quem aceita que uma liberdade seja cerceada, logo pode se ver sem todas elas. As ditaduras de esquerda do século XX amordaçaram seus cidadãos e também lhes impuseram o ateísmo. Fascistas do Corão como os irmãos Kouachi, que invadiram a redação do Charlie Hebdo com seus rifles Kalashnikov e mataram doze pessoas, não são muito diferentes. Dizer que eles eram inimigos da liberdade de expressão é um pedaço da verdade. O mundo onde os irmãos Kouachi gostariam de viver só tem espaço para o comando autoritário da versão radical do islamismo que os seduzia. Eles eram também, e antes de mais nada, inimigos da liberdade de religião. Os homens de boa vontade que julgam correto silenciar os irreverentes e os debochados para não ferir a suscetibilidade dos crentes deveriam pensar sobre isso.
Fonte: Veja, 16/01/2015

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Sobre o terrorismo islâmico: Se tentasse virar Sonia num país islâmico o cartunista indulgente com assassinos não chegaria ao fim da primeira maquiagem


Se tentasse virar Sonia num país islâmico o cartunista indulgente com assassinos não chegaria ao fim da primeira maquiagem

por Augusto Nunes

O universitário Laerte Coutinho, com quem convivi por dois anos na Escola de Comunicações e Artes da USP, já refletia no traço e no conteúdo a influência do cartunista Georges Wolinski, uma das vítimas do ataque terrorista à redação do Charlie Hebdo. Discípulo aplicado de um mestre do humor anárquico, era impiedosamente irônico com qualquer tema ou personagem colocados na mira do seu lápis. A escolha do alvo passava ao largo de opções políticas, ideológicas ou religiosas. Tudo e todos podiam virar piada.

Nos anos seguintes, os charges, quadrinhos e cartuns que o transformariam em celebridade ficaram mais refinados e inventivos. Mas o profissional famoso foi essencialmente uma continuação do amador que admirava Wolinski até que, 2004, o cartunista que debochava da tribo dos engajados se apaixonou pela causa dos transgêneros. Passou a usar trajes femininos, concedeu-se o direito de acesso ao banheiro das mulheres e acabou virando “Sônia”. Assim começou a agonia do Laerte que conheci. A morte foi consumada pela reação de Sônia ao espetáculo do horror protagonizado em Paris por fundamentalistas islâmicos.

A perplexidade provocada pela execução do octogenário Wolinski talvez tivesse ressuscitado o cartunista que disparava charges em todas as direções se o discurso de adeus não fosse interrompido por Sônia antes que a temperatura chegasse ao ponto de combustão. “O ruim é que tudo isso vai fortalecer a direita”, advertiu a voz suave. No mundo binário em que vive a estranha entidade, só existem esquerda e direita. Se os franceses alarmados com o crescimento da comunidade islâmica são de direita, deve-se deduzir que é de esquerda, como Sônia, gente que metralha quem ousa ironizar figuras sagradas e morre acreditando que vai acordar num céu atulhado de virgens.

Nesta terça-feira, enquanto milhões de manifestantes se juntavam na portentosa ofensiva contra o primitivismo liberticida, a charge na segunda página da Folha confirmou que a mudança operada no autor foi muito além da troca de calças por saias. Assinada por um Laerte que já não há, a obra parida por Sonia se divide em dois quadrinhos. No primeiro, alguns vultos planejam numa sala da redação a edição seguinte, que se concentraria no monumento à boçalidade homicida. A dúvida sobre o que deveria ser destacado na capa é desfeita no segundo quadrinho, que reproduz a capa em que VEJA revelou que Lula e Dilma sabiam do que ocorria nas catacumbas da Petrobras.

O Laerte que não depilava o corpo enquadraria os carrascos. A ativista Sonia insinua que os colegas do Charlie Hebdo estariam vivos se fossem mais ajuizados. É sempre um perigo mexer com fanáticos que não sorriem. O desfecho sangrento seria evitado caso tivessem optado pela autocensura e proibido a entrada do profeta Maomé nas páginas do semanário. Em troca da sobrevivência, só perderiam a honra. O Laerte de antigamente estaria traduzindo charges ferozes a indignação com a tentativa de assassinato da liberdade de expressão ocorrida em Paris. Sônia ficou por aqui, concebendo o trucidamento simultâneo do jornalismo independente e da verdade.

A mão que rabiscou a vigarice obedece a uma cabeça em tumulto. Compassiva com matadores de humoristas, odeia a altivez da revista que, por cumprir sem medo a missão de informar o que efetivamente ocorreu, apressou o desmantelamento da quadrilha do Petrolão. Até terça-feira, o maior e mais abrangente esquema corrupto da história do Brasil havia merecido uma única e escassa charge da companheira Sônia. A primeira misturou a carnificina em Paris com a roubalheira na Petrobras para excluir Lula e Dilma do caso de polícia — e endereçar a quem noticia um crime a ironia que o extinto Laerte reservava aos criminosos.

Tudo somado, está claro que o cartunista já não sabe o que diz ou desenha. Laerte-Sônia ignora, por exemplo, como são as coisas no mundo islâmico. Nem desconfia que, se tentasse virar mulher por lá, não chegaria ao fim da primeira maquiagem.

Fonte: Veja, 15/01/2015

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Sobre o terror islâmico: O sagrado direito de blasfemar

O sagrado direito de blasfemar 

por José Nêumanne

As multidões, calculadas em quase 4 milhões de pessoas, que foram às ruas na França protestar contra o terrorismo fundamentalista islâmico, que fuzilou toda a redação do jornal satírico Charlie Hebdo, trazem a lume neste momento duas questões de alta relevância histórica para estancar o banho de sangue por ele causado.

É lamentável constatar que a mais de 13 anos da demolição das torres gêmeas em Nova York a civilização ocidental ainda não consegue lidar de forma competente e tranquilizadora contra os arroubos selvagens de grupos marginais de brutalidade acima de quaisquer limites. E com enorme capacidade de seduzir prosélitos não apenas em territórios do Islã, mas também em sociedades livres e prósperas. Os celerados que invadiram a redação e executaram quem nela estava eram cidadãos franceses aptos a produzir e compartilhar os bens de uma sociedade próspera e livre. Só que optaram por exterminar quem não comungava com eles uma causa exógena de fanáticos de uma crença de pessoas menos favorecidas em lugares remotos. Sua ascendência africana não altera o inusitado da opção sobre a qual urge refletir e debater antes de enfrentar.

Mesmo alertado pela ocorrência do atentado mais espetacular de todos os tempos, o de Nova York em 2001, o aparato policial armado pelos Estados Democráticos de Direito laicos e liberais ameaçados pela fé cega mostrou-se incapaz e insuficiente para deter outros mais corriqueiros, mas não menos surpreendentes, como o de Paris. A redação já fora atingida antes pelo mesmo tipo de fanatismo e sob idêntica alegação: a blasfêmia. No entanto, a dupla de facínoras, pesadamente armados, não enfrentou a menor resistência para entrar no prédio e, mesmo errando de andar, chegar ao objetivo, render uma funcionária, invadir o recinto de trabalho e promover a carnificina. Os assassinos encontraram a mesma facilidade para deixar o local, matar um patrulheiro na rua à queima-roupa e sair em fuga pela cidade indefesa.

A incompetência do Estado francês foi confirmada ao longo de toda a tentativa de fuga dos assassinos e reconhecida publicamente logo depois da execução dos terroristas. Por mais absurdo que pareça ao instinto de vingança que assoma a qualquer um a clamar pela morte imediata dos criminosos, a própria execução dos fanáticos, cercados numa gráfica nos arredores de Paris, confirma a inaptidão da força policial que os perseguiu. Capturá-los vivos era essencial por todos os motivos lógicos. O mais corriqueiro deles seria obter da dupla encurralada todas as informações possíveis sobre a organização a que pertenciam e a rede de sobreviventes encarregados de executar as ordens e os objetivos dela emanados.

Chega a ser patético apelar para raciocínios mirabolantes e hipóteses nem sempre plausíveis para reconstruir os passos que levaram os irmãos Kouachi ao local e ao êxito de seu intento absurdo. Tudo seria mais simples, embora não necessariamente fácil, se eles tivessem sido presos e processados na velha e boa forma da lei. Pois assim o quebra-cabeças poderia ser montado para esclarecer o ato criminoso ao longo do processo e tornar viável o planejamento da caça a outros eventuais membros das hordas vingadoras do profeta Maomé no Velho Continente.

O atentado de Paris deixou claro que as medidas preventivas de segurança precisam ser aperfeiçoadas, mas não alterou o conceito fundamental de que só se protege a liberdade com mais liberdade. A execução dos fugitivos na gráfica pode até ter livrado o Estado francês do vexame da exibição de sua incompetência. Só que isso deveria ser tornado público para que os erros capitais cometidos pela segurança no caso não sejam repetidos doravante. Aliás, eles não resultam exclusivamente da ancestral leniência francesa. O Ocidente, incluindo os EUA, deveria repensar compreensão e ação no combate ao terrorismo.

A questão positiva resultante do massacre da redação foi a mobilização popular em defesa não apenas da liberdade de expressão, enlutada, mas fortalecida com o tiroteio ocorrido a poucos quarteirões da Bastilha, cuja queda foi o marco inicial da Revolução Francesa, no século 18. Mas também do direito à vida. Os quatro reféns de Amedy Coulibaly no mercado kosher foram capturados por acaso, como quase todas as vítimas de atentados do gênero, em geral aleatórios.

Não foi, então, a censura à liberdade de opinar ou mesmo de satirizar Maomé que inspirou o atentado ao Charlie Hebdo, mas a tentativa tirânica de impor uma crença a quem professa outros credos ou não crê. Mais do que a livre expressão, perto da Bastilha foi atacada a liberdade de viver da forma como cada cidadão quer, o que é seu direito sagrado. Assim como o é o de blasfemar. Foi a percepção desta agressão totalitária que despertou a indignação do cidadão que ocupou as ruas, desarmado. Este, contrariando preceitos politicamente corretos de que também lhe exigem obediência, assumiu a identidade da vítima (Charlie) pacificamente, sem promover desordens. A compreensão deste novo momento do convívio humano em sociedade foi de tal forma completa que os franceses, que tendem em sua maioria a desconfiar da polícia, aplaudiram os agentes da lei, cuja ação em todo esse episódio ficou patente como sendo de escudo para as balas dirigidas a esmo contra qualquer transeunte que passasse.

A "grande marcha", denominação que lembra a chegada ao poder de uma ditadura brutal, a do comunismo chinês, expressou sua fé contra qualquer totalitarismo. Isso foi entendido por François Hollande, tido como fraco, e por Angela Merkel, conhecida como forte. Obama e Dilma (representada pelo embaixador Bustani) não compareceram ao ato, mas não fizeram falta. Neste instante crucial para o gênero humano, a Europa revelou-se autossuficiente para resgatar a civilização dos riscos de barbárie Sem o Tio Sam nem o PT.

*José Nêumanne é jornalista, poeta e escritor

Fonte: O Estado de São Paulo, 14 de janeiro de 2015

Sobre o terror islâmico: "A loucura é contagiosa"

"A loucura é contagiosa"

João Pereira Coutinho

Os terroristas franceses já devem estar com as suas 72 virgens no paraíso —e o leitor, no conforto do seu lar, sente que existe uma pergunta lógica, porém desconfortável, que ocupa espaço no seu crânio ecumênico. A saber: se o jornal satírico "Charlie Hebdo" nunca tivesse publicado cartuns ofensivos para a religião muçulmana, será que o massacre teria ocorrido?

Melhor ainda: por que motivo insistimos em "blasfemar" contra a fé dos radicais? Ganhamos alguma coisa com isso?

Para o leitor benemérito, se o Ocidente apagar o mundo islâmico dos seus radares, obedecendo caninamente aos preceitos da sharia, o mundo islâmico também apagará o Ocidente das suas armas. A Deus o que é de Deus, a César o que é de César –e a Alá o que é de Alá. Cada um no seu canto. Em paz e sossego.

Existem várias formas de lidar com essas perguntas ingênuas. A mais óbvia seria lembrar que o terrorismo islamita não precisa de nenhum pretexto para atacar um "modo de vida" que abomina no seu todo. Se não fossem os cartuns, seria outra coisa qualquer: aos olhos do fanatismo, os "infiéis" não pisam o risco apenas quando usam o lápis.

E, claro, silenciar a liberdade de expressão seria um suicídio civilizacional –e uma vitória para os assassinos.

Mas existe outra forma de responder às inquietações do leitor —e a história do século 20 continua sendo a melhor escola.

Daqui a uns dias, passarão 50 anos desde a morte de Winston Churchill. E um livro recente tem ocupado os meus dias: "The Literary Churchill", de Jonathan Rose (Yale University Press, US$ 25, 528 págs.), uma biografia do velho Winston lançada em 2014 que procura explicar o seu percurso político por meio dos textos que ele leu, escreveu e, naturalmente, representou como grande ator que era.

Um capítulo da obra, porém, merece atenção especial à luz do terrorismo na França: na década de 1930, com a memória da Primeira Guerra Mundial ainda fresca, a elite política (e conservadora) britânica tentava desesperadamente não embarcar em novo conflito contra a Alemanha.

E Lord Halifax, secretário de Relações Exteriores, era apenas um dos rostos dos "appeasers" (pacifistas, em português) que acreditou na possibilidade de manter a fera na sua jaula.

Halifax conheceu pessoalmente Hitler em 1937 e notou que o Führer nutria um ódio insano por dois temas em especial: o comunismo soviético (lógico) e, atenção leitor, a liberdade de expressão da imprensa britânica (ilógico?).

Para Hitler, e para o ministro da Propaganda alemã Goebbels, a imprensa britânica era o grande obstáculo para a paz. Por quê?

Ora, porque bastava ler a prosa antigermânica do "News Chronicle" ou do "Manchester Guardian" para concluir que os jornalistas britânicos não respeitavam a figura sagrada de Hitler, o "profeta" da raça ariana.

E quem diz "ler", diz "ver": no "Daily Herald" ou no "Evening Standard", Hitler não apenas era severamente criticado (por Churchill, por exemplo). Ele era igualmente ridicularizado nos cartuns de Will Dyson ou David Low (os Wolinskis da época).

Halifax, que nunca se notabilizou pela coragem, regressou à Inglaterra com a mesma ideia que o leitor ecumênico tem na cabeça: se ao menos a imprensa se comportasse"¦ Quem sabe? Talvez Hitler ficasse sossegadamente em Berlim, desenhando nas horas livres e constituindo família com Eva Braun.

Aliás, Halifax não ficou nas ideias: ele convenceu mesmo David Low a moderar os seus desenhos, coisa que o artista fez, mas só até Hitler invadir a Áustria em 1938.

Depois disso, regressaram os cartuns antinazistas (que os "appeasers" continuavam a considerar "gratuitos" e de "mau gosto").

Curioso: Hitler devorava a Europa, pedaço a pedaço, em busca do seu "espaço vital". Mas as avestruzes britânicas acreditavam que tudo seria diferente se o lunático Adolfo tivesse sido tratado com "respeito" pelos jornais.

Churchill nunca mostrou respeito. E, quando finalmente assumiu o governo, em 1940, tratou Hitler com a dureza de sempre. A besta nazista foi derrotada em 1945.

Existe uma moral na história dessa história?

Existe, leitor ecumênico: não somos nós os culpados pela loucura dos outros. Imaginar o contrário, por medo ou ignorância, é simplesmente partilhar a loucura em que eles vivem.

Fonte: Folha de São Paulo, 13 de janeiro de 2014

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Sobre o terror islâmico: Os esquerdopatas

Os esquerdopatas

Denis Lerrer Rosenfield 

O inominável, mais uma vez, mostrou o seu rosto. A frieza dos atos, a meticulosidade em sua preparação e o símbolo a ser atingido estampam a maldade extrema enquanto característica do terror. No caso do assassinato de cartunistas e jornalistas do Charlie Hebdo e de policiais, do terror islâmico.

Os terroristas mostraram, em sua ação, extremo profissionalismo. Não são lobos solitários nem indivíduos que agem de forma amadora, levados por uma emoção intensa. Foram treinados com tal objetivo e veicularam em seu ato o islamismo radical que os alimenta. Um policial ferido foi friamente assassinado no solo, quando os terroristas já se retiravam. Cartunistas chamados pelo nome eram alvos previamente determinados e deveriam ser exterminados.

Visaram tudo o que o terror não pode admitir: a liberdade de imprensa, em sua forma particularmente irônica e satírica, a liberdade de expressão e o que caracteriza de modo geral uma sociedade democrática e livre. Ou seja, procuraram atingir tudo o que consideramos como a civilização, a humanidade no que produziu de mais nobre no que diz respeito às suas ideias e seus princípios. Nada foi deixado ao acaso: jornalistas libertários e, dentre eles, o mais renomado, Wolinski, um judeu. Certamente isto não escapou aos terroristas islâmicos.

Contudo nada é propriamente novo. Igual comoção não se produziu quando cristãos foram crucificados no Iraque pelo Estado Islâmico. Houve uma estranha condescendência, como se essas imagens fossem, de certa maneira, menos impactantes. É como se estivesse sendo dito que essas comunidades cristãs não deveriam estar onde estão, apesar de sua origem remontar a muitos séculos, algumas descendentes dos primeiros cristãos. O cristianismo, para alguns, seria uma forma de cultura ocidental que não deveria fazer parte deste mundo, como se, por definição, ele devesse ser de natureza muçulmana radical.

Nada muito diferente do que acontece com Hamas em sua luta pela destruição do Estado de Israel, que terminou contando com a simpatia de boa parte de jornalistas e intelectuais. Alguns mais extremistas chegaram a pregar, em artigos, seu apagamento do mapa. Augusto Bebel, social-democrata alemão do final do século 19 e início do século 20, dizia que "o antissemitismo era o socialismo dos idiotas". Poderíamos parafraseá-lo e dizer que "o antissionismo é o socialismo dos imbecis".

O Hamas nada mais é que uma corrente do islamismo radical nascida da Irmandade Muçulmana. São duas faces do mesmo movimento, apregoando os mesmos "valores e princípios", como se valores e princípios fossem tudo o que procura justificar o aniquilamento dos princípios mesmos, universais, da civilização ocidental. Qualquer concessão ao multiculturalismo nada mais é, aqui, que uma adesão politicamente correta ao terror.

O caso do Egito é particularmente significativo, mostrando precisamente as contradições de uma esquerda que termina optando pela submissão. Os militares egípcios, de confissão sunita, compreenderam muito bem a natureza do islamismo radical e se opuseram resolutamente a ele. Aliás, no contexto atual, a liderança religiosa sunita desse país condenou em termos veementes o atentado terrorista ao jornal francês.

Ora, esses militares deram um golpe na Irmandade Muçulmana, que tinha conquistado o poder pela via eleitoral para ali se perpetuar. Esse movimento islamita utilizou a tática bolivariana de subverter uma instituição democrática por meios eleitorais. Note-se que, nesse período, armaram o Hamas e deram-lhe cobertura para atacar Israel com meios militares mais poderosos, pela importação de armamentos e de fábricas próprias de mísseis e foguetes.

Os militares egípcios salvaram, na verdade, esse país de se tornar um Estado terrorista. O mais surpreendente é que foram condenados pela esquerda por serem não democráticos, embora se tivessem legitimado posteriormente em nova eleição. Chama a atenção o fato de que os que se opõem diretamente ao terror sejam condenados, como se essa forma de islamismo radical tivesse o direito de existir, entendido por eles como o direito de exterminar os diferentes.

A comunidade yazidi, no Iraque, sofreu destino semelhante, sendo perseguida e assassinada pelos membros do Estado Islâmico. A violência foi também extrema, não poupando jovens e mulheres, estupradas, escravizadas e prostituídas. Sua condição é igualmente inominável, porém, de certa maneira, parece chocar-nos menos por se situar numa terra longínqua, enquanto a França nos é bem próxima.

Trata-se de uma trajetória da maldade que encontra agora, na figura de jornalistas contestatários, uma espécie de culminação, a do terror que, nesta sua forma, se torna mais assustadora. Acontece que esse desfecho contou, em seus momentos anteriores, com a simpatia de vários setores à esquerda do jornalismo e da intelectualidade. Muitos dos seus atos, com essas suas outras faces, eram vistos como modos de luta contra os EUA, o "imperialismo", o capitalismo e outras bobagens do mesmo quilate. Outros ainda afirmavam a necessidade do multiculturalismo, do direito de diferentes culturas (aliás, direito ao terror, propriamente falando!).

Outros ainda procuram explicar o terror como uma suposta retroalimentação entre ele e a islamofobia, ou "justificar" tais tipos de ação como "respostas" à profanação da imagem de Maomé, como se os terroristas tivessem o direito de impor suas crenças aos países ocidentais, eliminando seus valores. Claro que sempre há uma frase ou pequeno parágrafo final condenando o ato, como se assim o jornalista ou "analista" pudesse ainda salvar a sua face, não se mostrando francamente adepto do terror, o que não cairia bem no contexto atual de condenação mundial desse ato.

São, na verdade, esquerdopatas, ou seja, dizendo a mesma coisa de outra maneira, pensam com as patas.

*Denis Lerrer Rosenfield é professor de filosofia na UFRGS 

Fonte:  O Estado de São Paulo, 12/01/15, denisrosenfield@terra.com.br

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Sobre o terror islâmico: Viva a falta de respeito, humor não é ofensivo

Viva a falta de respeito, humor não é ofensivo

por Gregorio Duvidier

Colunista da Folha defende cartunistas do jornal francês "Charlie Hebdo", que "morreram pela nossa liberdade"

Muitos dizem que charges eram islamofóbicas, porém embate não era entre franceses e não franceses, mas entre humor e fanatismo

Um dos problemas de morrer é esse: vão falar muita asneira a seu respeito. E você já nem pode se defender. Não bastou serem fuzilados, os cartunistas do "Charlie Hebdo" foram vítimas de um massacre póstumo.

Pessoas de todas as áreas de atuação lamentaram a tragédia, MAS (não entendo como alguém, nesse caso, consegue colocar um "MAS") lembraram que o humor que eles faziam era altamente "ofensivo".

Poucas coisas irritam mais do que a vagueza desse termo "ofensivo" quando usado intransitivamente. Ofensivo a quem? A mim, definitivamente, não era. "Eles não deviam ter brincado com o sagrado", alegam alguns. MAS (aqui sim cabe um "mas") o que define o humor é exatamente isso: a brincadeira com o sagrado.

Discordo de quem pede respeito pelo sagrado. Para começar, acho que a palavra respeito é uma palavra que não cabe. Uma vez, vi o Zé Celso pedir a um jovem ator que não o tratasse por "o senhor", mas por "você". O ator disse que não conseguia porque tinha muito respeito por ele. E ele respondeu: "Não me interessa o respeito. O que me interessa é a adoração.".

O espaço da arte não é o espaço do respeito, mas o espaço da subversão, ou então da reverência, do culto. Do respeito, nunca.

No mais, tudo é sagrado para alguém no mundo. A maconha, a vaca, a santa de madeira, o Daime, Jesus e Maomé: tudo merece a mesma quantidade de respeito, e de falta de respeito.

Esperava essa reação raivosa dos fanáticos religiosos. No Brasil, o fundamentalista prefere os meios oficiais: não usa metralhadoras, mas tem bancada no Congresso e milhões no exterior.

Muitos (dentre os quais o pastor Marco Feliciano) já externaram o desejo de que o Porta dos Fundos "brincasse com islamismo pra ver o que é bom pra tosse". Até nisso temos complexo de vira-lata: nosso fundamentalismo tem inveja do deles.

O que nunca imaginei era que a mesma reação de "fizeram por merecer" partiria da própria esquerda. Muitos condenaram as charges como sendo islamofóbicas e lembraram que os imigrantes islâmicos já sofrem preconceito demais na França.

Mas esses imigrantes não eram os alvos, definitivamente, do humor do cartunistas assassinados. O embate não era entre franceses e não franceses, mas entre humor e fanatismo.

O traço infantil talvez confunda o leitor desavisado, mas é bom lembrar que as charges do "Charlie Hebdo" não tinham nada de ingênuas: eram facas afiadas na goela do ódio.

As coletâneas de capas do semanário sobre islamismo fazem parecer que esse era o grande tema do jornal. Não era. O jornal atirava para todos os lados, mas o alvo preferido era justamente a extrema direita de Le Pen --esse sim, islamofóbico.

Os chargistas que, mesmo ameaçados, não baixaram o tom, não devem ser tratados como pivetes malcriados que "fizeram por merecer", mas como artistas brilhantes que morreram pela nossa liberdade. Nosso dever é continuar lutando por ela, sem fazer concessões nem perder aquele ingrediente essencial: a falta de respeito pelo ódio.

A questão por trás disso tudo é a mesma de sempre: existe limite para o humor? A questão é complexa, mas a melhor resposta parece ser a seguinte: o limite está no objeto do riso. Rir de quem está por baixo é covarde, rir de quem está por cima é corajoso. Deve-se rir do opressor, e não do oprimido.

O problema é que essa resposta gera novas perguntas. Quem é o oprimido? Quem é o opressor? Muitas vezes, essa distinção não é clara.

Uma dica: quando surgir a dúvida sobre quem é o oprimido e quem é opressor, em geral, o indivíduo que foi fuzilado é o oprimido.

Fonte: Folha de São Paulo, 11 de janeiro de 2015

Sobre o terror islâmico: Raqqa, aqui

Raqqa, aqui

Por Demétrio Magnoli
Enquanto, na França, dezenas de milhares saíam às ruas para dizer "Eu sou Charlie", professores universitários brasileiros saíam de suas tocas para celebrar o terror. Não começou agora: é uma reedição das sentenças asquerosas pronunciadas na esteira do 11 de setembro de 2001. São sinais notáveis da contaminação tóxica de nossa vida intelectual e, especificamente, da célere conversão de departamentos universitários em latas de lixo do pensamento.

A mensagem dos franceses foi um tributo à vida e à civilização. "Eu sou Charlie" não significa que concordo com qualquer uma das sátiras do Charlie Hebdo. Significa que concordo com a premissa nuclear das sociedades abertas: a liberdade de expressão é, sempre, a liberdade daquele com quem não concordo. Isso, porém, nunca entrará na cabeça de nossos mensageiros da morte.

Seu discurso padrão começa com uma condenação ritual do ato terrorista: "É claro que não estou defendendo os ataques", esclareceu de antemão uma dessas tristes figuras, antes de entregar-se à defesa, na forma previsível da condenação das vítimas "justiçadas". "Não se deve fazer humor com o outro", sentenciou pateticamente Arlene Clemesha, que ostenta o título de professora de História Árabe na USP, para concluir com uma adesão irrestrita à lógica do terror jihadista. É preciso, disse, "tentar entender" o significado do ataque: "um atentado contra um jornal que publicou charges retratando o profeta Maomé, coisa que é considerada muito ofensiva para qualquer muçulmano".

Clemesha é só uma, numa pequena multidão acadêmica consagrada à delinquência intelectual. No mesmo dia trágico, Williams Gonçalves, professor de Relações Internacionais na Uerj, esqueceu-se do cínico aceno prévio para expor logo sua aguda visão sobre o "controle social da mídia" e, de passagem, candidatar-se a porta-voz oficial do Estado Islâmico: "Quem faz uma provocação dessas", explicou, referindo-se aos cartunistas assassinados, "não poderia esperar coisa muito diferente". O curioso, nas Clemeshas e nos Gonçalves, é que eles rezam pela mesma cartilha que Marine Le Pen, apenas com sinal invertido. O nome dessa cartilha é "choque de civilizações".

Na onda de islamofobia que varre a França, surfam dois lançamentos recentes. O livro "Le suicide français", do jornalista ultraconservador Éric Zemmour, alerta contra a destruição da cultura francesa por vagas sucessivas de imigração muçulmana. O romance "Soumission", de Michel Houellebecq, imagina a França governada por um partido islâmico no ano agourento de 2022. Segundo a gramática do "choque de civilizações", o Islã não cabe na França: um muçulmano só pode ser um francês se, antes, renunciar à sua fé. Os nossos Gonçalves e Clemeshas estão de acordo com isso –mas preferem que, para acolher os muçulmanos, a França renuncie a suas leis e a seus valores, entre os quais a laicidade do Estado. E, no entanto, apesar de Zemmour, Houellebecq, Clemesha, Gonçalves e Le Pen, milhares de muçulmanos franceses exibiram nas ruas os cartazes com a inscrição "Eu sou Charlie"...

Karl Marx escreveu cartas elogiosas a Abraham Lincoln. Leon Trostsky contou com a colaboração inestimável do filósofo liberal John Dewey para demolir as falsificações dos Processos de Moscou. Entre um evento e outro, o socialista August Bebel qualificou o antissemitismo como "o socialismo dos idiotas". Em outros lugares e outros tempos, o pensamento de esquerda confundiu-se com o cosmopolitismo e produziu as mais comoventes defesas das liberdades civis. No Brasil de hoje, com honoráveis exceções, reduziu-se a um pátio fétido habitado por "black blocs" iletrados, mas fanaticamente antiamericanos e antissemitas.

"Não se deve fazer humor com o outro", está escrito na lápide definitiva que cobre o túmulo do humor. Raqqa, a sede do califado, é aqui. "Eu sou Charlie".

Fonte: Folha de São Paulo, 10/01/2015

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Sobre o terror islâmico: A primeira vítima é o humor

A primeira vítima é o humor

por Eugênio Bucci

O atentado contra a redação da revista Charlie Hebdo, ontem, em Paris, deixou para trás 12 cadáveres, 10 feridos e uma perplexidade do tamanho do mundo. O alvo dos terroristas foi a piada, o deboche. A vítima foi o humor. Dez dos 12 mortos trabalhavam na publicação, entre elas o diretor, Stephane Charbonier, que também era chargista (os outros dois mortos eram policiais, que não conseguiram deter os assassinos em fuga). A Charlie Hebdo fazia humor sobre o Islã e vinha sofrendo ameaças e agressões. Ontem foi finalmente dizimada. Testemunhas contaram que os atiradores teriam dito que "vingavam o Profeta" enquanto disparavam contra os cartunistas. Movidos por uma verdade absoluta qualquer, eles pretendiam silenciar e exterminar a ironia.

O sinal que mora dentro disso vem carregado de trevas. Muitos apontaram aí um crime contra a liberdade de imprensa e, portanto, um atentado contra os direitos humanos (embora muitos se esqueçam, a liberdade, que aparece no primeiro artigo da Declaração dos Direitos Humanos de 1948, é parte integrante e inseparável de qualquer entendimento que se possa ter das garantias fundamentais que cimentam a ideia que acalentamos de civilização). Mas é pior do que isso. Nessa tragédia concentrada, a vítima não é a imprensa em geral, não é a imprensa genérica. Estamos falando aqui da imprensa que faz rir, que falta com o respeito, que destroça a impostura de seriedade tão comum nos demagogos. Estamos falando de uma imprensa ainda mais arredia, que zomba da circunspecção dos circunstantes e rechaça a impostação e os salamaleques das autoridades, sejam elas religiosas, civis, militares ou simplesmente imbecis. Desta vez a vítima é a sátira. A vítima é a ironia.

Nada pode ser mais expressivo e mais aterrorizante. Matando a ironia, cortando-a pela raiz (e pelo pescoço), os autores da carnificina pretendiam matar o próprio espírito da modernidade. Se existe um traço distintivo da modernidade, é a ironia, essa sofisticação cética do espírito humano que passa pela recusa do argumento da autoridade - e pela ridicularização, mais ou menos ostensiva, da figura empolada da autoridade. A ironia duvida do poder porque sabe que o sujeito, em público e em privado, não governa todos os seus atos e todas as suas palavras. Enquanto uns batem continência e outros se ajoelham, a ironia ri. Não leva o ego tão a sério assim. Não dá crédito ao superego. Quando argumentam que o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus, a ironia gargalha: se inventou esse tal de homem, Deus só pode ser mesmo um pastel. O melhor da ironia é rir de si mesma. Ela se sabe vã, embora se saiba também onipresente (mais onipresente do que Deus). Sabe-se presente, ainda que de forma involuntária, em tudo o que se move e em tudo o que fica parado na paisagem social e nas profundezas do psiquismo de cada um. Sem ironia o que é moderno fenece. Não há mundo moderno sem o arejamento da ironia e, no fundo, é exatamente esse arejamento que nos pode vacinar contra as catedrais do fundamentalismo e da intolerância, as forças malignas que nos tracionam para o passado.

Quem disparou contra os desenhistas corrosivos da revista francesa alimenta, sim, a fantasia tanática de aniquilar a democracia, a liberdade, a modernidade e, principalmente, a nossa ideia profana e fugidia de felicidade. Quem quer que tenha cometido tamanha brutalidade quer castrar a imaginação e o prazer, nos semelhantes e em si mesmo.

Além de monstruoso em todas as suas faces, o ataque terrorista à revista Charlie Hebdo é também um alerta sobre o lugar da liberdade de imprensa em tempos em que a imprensa parece não ter lugar no mercado. Os jornalistas acostumaram-se a pensar que ser independente se resume a não depender econômica e politicamente do governo, do Estado, de um grupo particular de anunciantes, das igrejas e do lobby cada vez mais poderoso das ONGs aparentemente boazinhas. Bem sabemos que, no Brasil, muita gente não assimilou metade dessa lição elementar, mas, de todo modo, ela continua sendo boa e necessária. Só tem um detalhe: ela não é mais suficiente. As agressões à liberdade de imprensa não partem mais apenas de juízes desavisados que impõem censura prévia em sentenças mal fundamentadas ou de governantes maliciosos que cooptam veículos fragilizados com o dinheiro ilimitado da publicidade oficial. A violência contra o direito à informação e a liberdade de expressão já não vem somente da cobiça dos endinheirados ou da ganância dos donos do poder. Agora quem se lança contra o espírito livre da crítica são gigantescas estruturas paraestatais e abertamente criminosas. Para não irmos longe, em comunidades da Colômbia e do México são grupos paramilitares, a mando de traficantes ou de milícias, que assassinam profissionais de imprensa e impõem às redações o pior dos regimes de terror. Quanto à polícia e quanto à Justiça, estas, muitas vezes compradas, se limitam a ser morosas ou aéreas. É o seu modo de ser cúmplice.

Hoje, em suma, o Estado não é deletério apenas quando move ataques contra a imprensa livre. Ele é ainda mais deletério quando não sabe (ou não quer) defendê-la.

Em Paris, o presidente François Hollande acertou ao ir prontamente a público para liderar a indignação da sociedade contra o gesto inominável. Mas a reação ainda é tímida. Na França, como no Brasil, ainda são numerosos os políticos que não perceberam que não poderiam existir sem a imprensa que zomba deles. Mais, muito mais do que antes o Estado é chamado a defender não apenas o instituto da reportagem investigativa e das críticas mais ácidas, mas também a irreverência, a sátira e a caçoada. Se a democracia não despertar para esse compromisso, será sucedida por um mundo em que o riso, a ironia e o gozo transgressor serão proibidos. E a política também.

* Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP
Fonte: O Estado de São Paulo, 08 de janeiro

Sobre o terror islâmico: El islam como problema

Maurício Rojas
El islam como problema

A comienzos de junio Tony Blair publicó un artículo a propósito del asesinato del soldado británico Lee Rigby en una calle del sur de Londres que causó gran revuelo. Su título era Un problema dentro del islam y en sus párrafos más destacados decía lo siguiente:
No hay un problema con el islam... Pero hay un problema dentro del islam –de parte de los adherentes a una ideología que es una rama dentro del islam–. Y esto tenemos que ponerlo sobre la mesa y ser honestos acerca de ello. Por supuesto que hay cristianos extremistas y también judíos, budistas e hinduistas que lo son, pero me temo que esta rama dentro del islam no sólo abarca a unos pocos extremistas. En su núcleo existe una concepción de la religión y de la relación entre religión y política, que no es compatible con las sociedades pluralistas, liberales y tolerantes.
Para muchos fue una declaración escandalosa, lo que simplemente indica el grado de incapacidad de hablar con franqueza a que se ha llegado en lo referente al islam. Al poco tiempo vino la crisis egipcia, confirmando una vez más que el islamismo, es decir, lo que Blair considera la rama problemática del islam, "no sólo abarca a unos pocos extremistas". Sin embargo, si bien para muchos la constatación de Blair parece osada la verdad es que elude lo más importante y problemático, a saber, que aquella "concepción de la religión y de la relación entre religión y política, que no es compatible con las sociedades pluralistas, liberales y tolerantes" es, en realidad, la esencia misma del credo instaurado por Mahoma.

Cabe recordar que la idea distintiva del islam es que su libro sagrado, el Corán, es la palabra eterna, exacta e inmutable de Dios que Mahoma, con la mediación del arcángel Gabriel, sólo se limitó a recitar (Corán, Qu’rān, significa "la recitación" y la ortodoxia plantea que el texto, ya en árabe clásico, existió en Dios desde siempre). Esto crea un obstáculo mayor para cualquier intento de interpretación alegórica, matización o reforma del mensaje coránico. Pero lo decisivo es que este mensaje inmutable, complementado por los hadices o hechos y dichos del Profeta, no se refiere exclusivamente a cuestiones espirituales o supraterrenales, sino que aspira a regir directamente el conjunto de la vida social y espiritual. Ésta es la raigambre "totalizante" del islam, ya que excluye la existencia de un orden secular separado o no regido por la religión. Pero aquí también radica su matriz predemocrática, ya que no reconoce la soberanía legislativa del pueblo sino sólo la divina. Por ello, cuando los Hermanos Musulmanes dicen "El Corán es nuestra Constitución", están, de hecho, diciendo una obviedad para todo musulmán que siga tomando en serio los pilares mismos de su fe.

Si hacemos una comparación con el cristianismo y su evolución hacia una aceptación de la modernidad secularizada vemos dos notables diferencias que harán una evolución semejante mucho más difícil en el caso del islam. Por una parte, el cristianismo no es fundacionalmente totalizante (si bien tendería a serlo al ser adoptado como religión de Estado) y por ello no se articula originalmente como una religión que pretenda regir los asuntos de este mundo. "Dad al César lo que es del César, y a Dios, lo que es de Dios" y "Mi Reino no es de este Mundo" son dos magníficas síntesis bíblicas de esta distancia respecto del orden social y político terrenal. Por otra parte, a diferencia de Mahoma, Cristo no fue ni pretendió ser un jefe político-militar ni tampoco el creador de un orden social determinado. En suma, mientras que el cristianismo nació para resistir al mundo o incluso apartarse de él, el islam nació para conquistarlo y gobernarlo, para ampliar contantemente la "Casa del Islam" (Dār al-Islām) hasta absorber completamente ese mundo exterior llamado la "Casa de la Guerra" (Dār al-Harb).

Así y todo, el camino del cristianismo hacia una aceptación plena de una sociedad abierta no fue fácil. Su retirada hacia la esfera privada y la pérdida de su monopolio ideológico fue un proceso largo y desgarrador. También lo fue aceptar la crítica de sus textos sagrados, la autonomía de la ciencia y, sobre todo, la libertad del individuo para elegir sus formas de vida y, finalmente, creer o no creer. Nada semejante ha ocurrido dentro del islam y por ello su enfrentamiento con la modernidad –que no surge como en el mundo cristiano de una evolución interior sino que irrumpe como una fuerza exterior– ha sido tan difícil y traumático, provocando finalmente una fuerte reacción defensiva que propone la reislamización plena de la sociedad y la vuelta a la pureza de los orígenes, encarnada por esa utopía arcaica que es la umma o comunidad de los creyentes instaurada por Mahoma.

Este es el sentido estrictamente reaccionario del fundamentalismo islámico, pero lo que hay que entender es que el mismo no se deriva de una interpretación atávica o delirante del mensaje original de Mahoma, sino que fluye de la esencia misma de ese mensaje. En ello reside la dificultad que hay que saber reconocer y enfrentar, no para satanizar al islam sino para entender a cabalidad tanto su encrucijada actual como la fuerza del islamismo en sus diversas variantes.

El futuro dirá si el islam va a seguir siendo una "religión del recuerdo", es decir, de la fidelidad a la tradición (sunna) y al pasado, o si será capaz de evolucionar hacia una religión del futuro. Los que deseamos que prevalezca esta última alternativa debemos empezar por reconocer que existe un problema no sólo dentro del islam sino con el islam.

Fonte: Libertad Digital, 07/01/2015

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