8 de Março:

A origem revisitada do Dia Internacional da Mulher

Mulheres samurais

no Japão medieval

Quando Deus era mulher:

sociedades mais pacíficas e participativas

Aserá,

a esposa de Deus que foi apagada da História

Mostrando postagens com marcador direitos humanos. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador direitos humanos. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Fusionismo não: liberais e conservadores, cada um na sua!


Reproduzo abaixo texto publicado originalmente no site do Instituto Liberal por seu diretor, João Luiz Mauad, sobre a sempre polêmica união de liberais e conservadores contra o inimigo comum: o petismo ou a esquerda em geral. A essa união se dá o nome de fusionismo, como bem explica o autor. 

Particularmente, vejo essa união como uma parceria caracu, onde os liberais entram com a teoria econômica e de governo e os conservadores entram com a tradição (pra que serve mesmo isso?) e a péssima fama que merecidamente possuem. Não há vantagem nenhuma para os liberais nessa união. Pelo contrário, ela é marcada pela incoerência, tendo em vista que ninguém pode falar em defesa da liberdade em geral ao lado de notórios liberticidas como os conservadores. 

E as diferenças são mais do que as relativas à interferência do Estado no âmbito dos negócios e na vida dos indivíduos, como diz o autor. Para mim, a diferença fudamental é de espírito: o liberalismo é filho do Iluminismo, da idade da razão, da crença na capacidade humana de se superar, superar as limitações do meio-ambiente e evoluir sempre. O conservadorismo é o oposto. Acha que o ser humano é uma porcaria, imperfeito, que precisa de ajuda divina ou muita repressão para não sair fazendo bobagens.

Pra mim, conservadorismo de fato não passa de verborreia para disfarçar a visão de mundo dos frouxos de espírito. Dos frouxos, dos mesquinhos, dos tacanhos, dos sexualmente mal resolvidos, dos obscurantistas, dos pessimistas, dos imobilistas. São todos tropofóbicos (tem pavor de mudanças de qualquer tipo). Se borram tão facilmente que só aceitam mudanças (a cada século mais ou menos), se elas tiveram algo de permanência (sic). São contranatura portanto, pois contra a mais universal das leis universais que é a da perpétua mudança. Tudo muda inevitavelmente, queiram ou não os conservadores de todo o tipo.

Daí que concordo com o autor quando diz:
Para o sucesso da causa liberal, é essencial que saiamos com urgência da sombra dos conservadores. Precisamos acabar de uma vez por todas com essa “simbiose” e emergir como uma marca totalmente independente, equidistante de conservadores e progressistas, como queria Hayek, e não como um sub-produto do conservadorismo. Precisamos, acima de tudo, defender a liberdade sem ressalvas, deixando claro, sempre que necessário, que as nossas diferenças, muitas vezes são profundas e inconciliáveis.
Infelizmente, parece que somos minoria, eu e o autor. Os conservadores se comportam nos meios liberais como os petistas e socialistas em relação aos movimentos sociais: sempre cooptando e aparelhando. E da mesma forma que os movimentos sociais perderam a legitimidade na fusão com a velha esquerda, assim ocorre na parceria caracu entre liberais e conservadores. Quem perde são as ideias liberais. Pros conservadores, é um prato cheio.

Por que digo não ao fusionismo

Peço licença para meter a minha colher nesse debate entre Filipe Altamir e Filipe Rangel Celeti, sobre o fusionismo.

Resumidamente, fusionismo é uma corrente política nascida nos Estados Unidos que pretende unir liberais (lá chamados de libertários) e conservadores, com o intuito de enfrentar o inimigo comum de ambos: o esquerdismo (os liberais de lá). Politicamente, esta fusão deveria ficar sob o guarda-chuvas do Partido Republicano. Como este partido é majoritariamente conservador, não há como escapar da conclusão de que se trata de um acordo desigual, com os conservadores no controle, enquanto aos libertários sobra a alternativa de não atrapalhar.

No Brasil, embora o fusionismo seja algo bastante novo, de uns tempos para cá têm sido cada vez mais frequentes certos posicionamentos ditos “pragmáticos” que pedem a união de conservadores e liberais a fim de derrotar o inimigo comum: o petismo. Infelizmente, sempre que vejo conservadores defendendo tal arranjo, o corolário obrigatório é que os liberais abram mão, pelo menos temporariamente, de algumas de suas agendas.

Assim, em nome desse “algo maior”, deveríamos deixar de lado questões de direitos civis importantes, como a liberação das drogas, o casamento gay, a prostituição, a liberdade de imigração, a eutanásia, as pesquisas com células tronco, etc., e focar em questões de cunho exclusivamente econômico e político, onde haveria convergência de princípios e um inimigo comum.

O maior problema para a concretização dessa “união” não são as diferenças filosóficas, de valores, como alguns insistem em fazer crer. Como já expliquei anteriormente, nada impede que um verdadeiro liberal preserve valores conservadores, como tradição, prudência, família, etc. A diferença importante e, a meu juízo, inconciliável está na esfera política, principalmente em relação às visões, absolutamente incompatíveis, das duas correntes sobre a intrusão do Estado na vida dos indivíduos.

Em termos simples, como bem resumiu James Eyer, a diferença essencial entre o liberalismo e as demais filosofias políticas envolve especificamente a quantidade de autoridade que o governo deve ter sobre os assuntos privados. Grosso modo, os esquerdistas querem que o governo promova o bem, ou pelo menos aquilo que eles consideram bom, incluindo, entre outras políticas, cuidar da saúde e educação, promover ações afirmativas ou distribuir a renda de forma mais equânime. Para isso, esperam que o governo taxe pesadamente as empresas e os cidadãos de maior renda, além de regular os negócios e o comportamento das pessoas, na medida necessária para a promoção da indefectível “justiça social”.

Já os conservadores querem que o governo evite o mal, a degeneração dos valores e dos costumes, enfim, o comportamento imoral, ainda que este comportamento não traga nenhum dano ou perigo para terceiros e afete exclusivamente os próprios agentes. Embora os conservadores gostem de dizer que preferem um governo limitado, eles geralmente não resistem à implantação de programas governamentais e leis positivas que promovam a sua agenda moral.

Assim, tanto esquerdistas quanto conservadores acreditam, cada um a seu modo, ser missão dos governos tornar o mundo melhor, fornecer uma liderança moral e, last but not least, proteger as pessoas de si mesmas, seja em relação a sua saúde ou sua moralidade. E, concorde-se ou não com esses objetivos, todo cidadão será forçado a pagar pela sua implementação, seja com seu dinheiro ou com a sua liberdade. 

Os liberais, diferentemente das duas outras filosofias políticas anteriormente citadas, acreditam que a caridade é voluntária, a moral é pessoal (no sentido de que não deve ser legislada) e só o dano a terceiros deve ser considerado ilegal. Para os liberais, portanto, o auto-governo é um direito inalienável de cada indivíduo.

Para um conservador, por outro lado, a sociedade (a cidade, a comunidade ou seja lá que nome queiram dar ao coletivo), em grande medida, deve prevalecer sobre o indivíduo, a fim de manter o que chamam de “ordem natural”. Ocorre que nem sempre os desejos e objetivos do indivíduo estão em conformidade com os da comunidade. Permitir, por exemplo, o consumo de drogas, o casamento gay ou a prostituição significa quebrar certas tradições, razão pela qual a maioria dos conservadores denunciam essas bandeiras liberais como francamente imorais e defendem que os governos proíbam tais atividades. Olhando por este prisma, como enfatizou Jeremy Kolassa em artigo sobre o tema, não há como negar que conservadores e progressistas são dois lados da mesma moeda intervencionista. 

Mesmo na esfera econômica, o liberalismo e o conservadorismo diferem. Enquanto os liberais são pró-mercado, muitos conservadores são pró-negócios – vide as políticas de Bush, em 2008, para salvar empresas em dificuldade, como GM, Chrysler e outras. Se os liberais são contrários a quaisquer tipos de subsídios e privilégios a empresas estabelecidas, alguns conservadores adotam a política inversa, defendendo subsídios, proteções tarifárias e benefícios que aumentem a competitividade das empresas tradicionais estabelecidas e evitem a todo custo o impulso da destruição criadora. Afinal, não há nada mais conservador do que a manutenção do status quo.

A verdade é que a confusão entre conservadorismo e liberalismo (e ela existe de fato, gostemos disso ou não) costuma dificultar muito o discurso liberal, pois muitas vezes somos tachados de hipócritas pelas pessoas desinformadas, que acreditam que políticas e bandeiras conservadoras e liberais são sempre as mesmas, quando efetivamente quase nunca o são. 

Isso não quer dizer, evidentemente, que liberais e conservadores devam brigar permanentemente, que não possam aliar-se sobre determinadas questões. Se há uma agenda positiva em que conservadores e liberais concordam, devemos trabalhar juntos nela, por que não? Porém, para o sucesso da causa liberal, é essencial que saiamos com urgência da sombra dos conservadores. Precisamos acabar de uma vez por todas com essa “simbiose” e emergir como uma marca totalmente independente, equidistante de conservadores e progressistas, como queria Hayek, e não como um sub-produto do conservadorismo. Precisamos, acima de tudo, defender a liberdade sem ressalvas, deixando claro, sempre que necessário, as nossas diferenças, muitas vezes são profundas e inconciliáveis.

Por tudo isso, digo NÃO ao fusionismo, seja ele formal ou informal, ostensivo ou disfarçado.

Fonte: Instituto Liberal, João Luiz Mauad, 15/07/2014

quarta-feira, 16 de julho de 2014

O caso das tropas e blindados venezuelanos que cruzaram os céus brasileiros ilegalmente para ir massacrar a oposição na Bolívia


Conivência diplomática

Documentos vazados do Itamaraty revelam que, ao saber do envio de tropas e blindados venezuelanos para massacrar a oposição na Bolívia, em 2007 e 2008, o governo do PT preferiu abafar o caso
A autodeterminação dos povos significa que uma nação não pode se intrometer nos assuntos internos de outra. Neste ano, esse princípio foi usado, corretamente, para condenar a Rússia pela invasão da Crimeia e pelo envio de paramilitares para o leste da Ucrânia. Apesar de se apresentar como defensora do princípio da autodeterminação, a diplomacia brasileira se absteve, em reunião da ONU, de repudiar o intervencionismo do governo russo.

Documentos confidenciais revelam que o Brasil tem a mesma postura de conivência em crises internas que envolvem os vizinhos da América do Sul. Em 2007, a Venezuela sobrevoou o espaço aéreo brasileiro para enviar soldados e viaturas militares para ajudar a Bolívia a massacrar protestos populares. Como os governos boliviano e venezuelano são ideologicamente afinados com o brasileiro, o caso foi abafado. Parte dessa história aparece em um relatório confidencial do Ministério da Defesa do Brasil. O texto narra a visita de militares e do ministro da Defesa Nelson Jobim à Venezuela entre 13 e 14 de abril de 2008.

O documento faz parte de um pacote de 397 arquivos surrupiados do sistema de e-mails do Itamaraty e disponibiliza-dos na internet por hackers, em maio passado. Segundo o relatório, após desembarcarem em Caracas, os representantes brasileiros se reuniram na manhã do dia 14 na casa do embaixador António José Ferreira Simões para acertar os ponteiros antes do encontro com o chanceler Nicolás Maduro, hoje presidente da Venezuela. Cada aparte dos presentes foi registrado no papel. Em determinado momento, o general Augusto Heleno, comandante militar na Amazónia, perguntou se os demais sabiam de aviões Hercules C-130 que transportavam tropas venezuelanas para a Bolívia. O embaixador Simões interveio: "Uma denúncia brasileira de presença de tropas venezuelanas na Bolívia pode piorar a situação".

Enquanto isso, o governo de Evo Morales continuava enviando tropas e milícias para lutar contra opositores no Estado de Pando, na fronteira com o Acre. Em dezembro de 2007, um cargueiro Hercules C-130 da Força Aérea Venezuelana tivera problemas técnicos e aterrissou em Rio Branco, no Acre, vindo da Bolívia. A Polícia Federal vistoriou a aeronave, não encontrou armas nem munição e permitiu que o avião seguisse para a Venezuela. Os documentos vazados mostram que isso era só a ponta do iceberg. Na conversa na casa do embaixador, o general Heleno afirmou que "há presença não apenas de venezuelanos na Bolívia, mas também de cubanos, com interesse operacional". Segundo o tenente-brigadeiro Gilberto Burnier, durante a crise, a Venezuela fez 114 voos. "Informavam que transportavam veículos comerciais, porém foi visto que transportavam viaturas blindadas para transporte de pessoal (VBTP) e outras viaturas militares", lê-se no documento.

No encontro com os venezuelanos, o ministro Nelson Jobim sugeriu que fosse criado um corredor aéreo para "sacar da agenda esse problema", ou seja, abafar o caso, pois a lei proíbe o sobrevoo de material bélico sobre o território nacional sem autorização. A proposta contava com o apoio do presidente Lula. Em agosto de 2008, o Diário Oficial da União publicou um memorando pelo qual os venezuelanos se comprometem a pedir autorização para cruzar o espaço aéreo brasileiro. A Venezuela, portanto, continuou enviando tropas e armas sem ser incomodada. Um mês depois, mais de quinze pessoas morreram em uma guerra campal em Pando. Alguns agentes da repressão, segundo denúncias de opositores, eram venezuelanos. Quem comandou a operação foi o atual ministro da Presidência da Bolívia, Juan Ramón Quintana, o mesmo que, posteriormente, em 2010, foi visto saindo com maletas da casa do narcotraficante brasileiro Maximiliano Dorado, em Santa Cruz de Ia Sierra.

Fonte: Veja, 09 de julho de 2014, por Duda Teixeira

terça-feira, 27 de maio de 2014

O verdadeiro embate dos dias de hoje é entre empreendedores e burocratas

Marcos Troyjo
Bom texto do economista e cientista social Marcos Troyjo sobre a questão "crescimento-desigualdade" que anda bombando sobretudo devido ao lançamento do livro do economista francês Thomas Piketty intitulado "Capital no Século 21". Destaco:


A principal tensão do mundo contemporâneo não advém do conflito distributivo entre capital e trabalho. O cabo de guerra é entre empreendedores e burocratas, seja na forma da grossa camada de gestores cujo intuito é a autopreservação ou nas inúmeras esferas estatais que esclerosam o dinamismo econômico.
Socialismo para milionários

Pego emprestado título de um livro de Bernard Shaw para esta coluna. A frase é perfeita para descrever o atual frenesi em torno da dualidade "crescimento-desigualdade".

Duas investidas recentes acirram o debate. A primeira é o Índice de Progresso Social (IPS), que busca aferir o desenvolvimento relativo dos países sem utilizar o referencial do PIB. A segunda, a acalorada recepção ao "Capital no Século 21", de Thomas Piketty.

A repercussão de ambos é multiplicada, na Europa e nos EUA, pelos traumas não curados da Grande Recessão –sobretudo as elevadas taxas de desemprego.

Tanto o IPS quanto o "Capital" de Piketty apontam para a prevalência do investimento social "para além do crescimento da economia". Convidam a retomar a questão da moralidade do capitalismo. Repisam (sobretudo em Piketty) a desproporção nas remunerações a capital e trabalho como principal obstáculo ao bem-estar social.

De acordo com esses apontamentos, a desigualdade, mal maior do capitalismo, poderia remediar-se com maior carga tributária e mais investimentos "no social".

Sem entrar demais nos altos e baixos do IPS ou de Piketty, minha percepção é que ambos devem interessar mais a países avançados do que a nações em desenvolvimento. É papo para ricos.

Dos países que ocupam as 20 primeiras posições do IPS (em que supostamente o PIB não conta), todos apresentam renda per capita anual superior a US$ 30 mil. Ainda assim, mesmo para os que já se desgarraram da armadilha da renda média, como sustentar amplo acesso a educação e saúde pública sem crescimento ao longo do tempo?

Nesse contexto, o atual debate sobre desigualdade reflete a binária consideração de "crescimento" ou "austeridade" como alternativas para países em crise de dívida soberana, caso da Europa mediterrânea em 2011.

Há mérito na crítica à inércia patrimonialista no Ocidente. As soluções tributário-distributivistas apontadas por Piketty, contudo, não tratam de questão –importante o suficiente para os ricos– e absolutamente essencial para países em desenvolvimento. Que padrão de economia política adotar para, ao final do dia, gerar excedentes que custeiem os trampolins sociais?

Decepciona, em Piketty, não ver referência a "empreendedorismo", "competitividade", "start-ups", "papel da inovação", ou à "destruição criativa" de Schumpeter.

A principal tensão do mundo contemporâneo não advém do conflito distributivo entre capital e trabalho. O cabo de guerra é entre empreendedores e burocratas, seja na forma da grossa camada de gestores cujo intuito é a autopreservação ou nas inúmeras esferas estatais que esclerosam o dinamismo econômico.

Para países como o Brasil, o grande desafio é encontrar seu próprio modelo de capitalismo competitivo que o permita pagar o preço da civilização.

Deixemos para amanhã manuais de instalação de um "Welfare State 2.0", como o IPS ou o tijolo de Piketty. Concentremo-nos, agora, nas lições de Acemoglu e Robinson em "Por que as Nações Fracassam".

Fonte: Folha de São Paulo, 16/05/2014

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Toda a igualdade vale a pena?

O debate sobre o conceito de igualdade, entre os seres humanos, é sempre motivo de polêmica e confusões. Alguns sustentam que deveria existir apenas a igualdade perante a lei, importante mas não suficiente para promover justiça a todos, já que não há igualdade social. Em outras palavras, condições sociais adversas criam grandes dificuldades para que a maioria das pessoas possa desenvolver realmente seu potencial como indivíduos. E inclusive vir a ter tratamento igualitário, não preconceituoso, perante a lei.

Propõe-se então a igualdade de oportunidades que alguns encaram como sinônimo de igualdade de resultados. Dependendo da abordagem, elas podem mesmo acabar sendo confundidas. Entretanto, quem haverá de se opor à educação universal, básica de qualidade para toda a população como uma forma de garantir um mínimo de igualdade de largada para todos?  E a saúde básica de qualidade? E a segurança mínima para todos?

E temos, por fim, a chamada igualdade de resultados, visão de boa parte da esquerda, que acha que todos devem ser iguais ipsis litteris à revelia da mãe natureza que nos faz muito diversos. Quer dizer, a não ser que se comece a produzir seres humanos em linhas de montagem, como latinhas de refrigerante, todos com o mesmo conteúdo e mesmo invólucro, a tal igualdade de resultados é contra-natura.

A natureza não distribui nada igualitariamente: nem a inteligência, nem o talento, nem a criatividade, nem a beleza, nem a personalidade, nem o temperamento, etc. Nada é ofertado para todos da mesma maneira. Bem pelo contrário, a natureza costuma ser bem arbitrária. Fora todas as outras variantes individuais que podem determinar a trajetória de uma pessoa durante a vida. Então, uma parte das diferenças econômicas que vemos, entre os seres humanos, é fruto do input de origem e não das injustiças sociais. Reconhecer essa verdade é um bom caminho para se combater injustiças sem criar outras nessa afã.

É sobre isso que discorre o texto abaixo, postado originalmente no site do Mises Brasil.

A igualdade econômica é imoral e atenta contra o “bem comum” 

por Lawrence W. Reed

"Pessoas livres não são iguais, e pessoas iguais não são livres".

Gostaria muito de saber quem foi a primeira pessoa a proferir essa máxima. Ela certamente está entre as maiores verdades de todos os tempos, uma que é ao mesmo tempo simples e repleta de profundos significados.

A igualdade perante a lei — por exemplo, ser julgado inocente ou culpado baseando-se exclusivamente em você ter cometido o crime, e não em sua cor, gênero ou crença — é um ideal nobre ao qual nenhuma pessoa de bom senso se opõe. Por isso, não é o tema deste artigo. A "igualdade" a que a frase acima se refere está relacionada à renda econômica e à riqueza material.

Colocando de outra maneira, portanto, a frase pode ser lida da seguinte forma: "Pessoas livres terão rendas distintas. Em arranjos nos quais as pessoas têm obrigatoriamente a mesma renda, elas não podem ser livres".

A igualdade econômica em uma sociedade livre é uma miragem com a qual os redistributivistas sonham — e frequentemente se mostraram muito dispostos a derramar sangue para implantá-la.

A questão é que indivíduos livres são indivíduos intrinsecamente diferentes entre si, de modo que não deveria ser surpresa nenhuma o fato de que eles terão rendas distintas. Nossos talentos e nossas capacidades não são idênticos. Nem todos nós trabalhamos com o mesmo afinco, com a mesma dedicação e com a mesma qualidade. Cada um de nós nasceu em famílias distintas, sendo que cada família possui suas vantagens e suas desvantagens. Também nascemos em diferentes vizinhanças, somos cercados por diferentes tipos de pessoas, recebemos diferentes tipos incentivos e temos diferentes graus de oportunidade.

É até compreensível que, perante esse ponto de partida desigual, os progressistas queiram remediar a situação implantando políticas governamentais "corretivas". O que eles realmente não entendem é que a cura que eles propõem é muito pior do que doença. Qualquer tentativa de corrigir desequilíbrios nas famílias e nas vizinhanças irá gerar outras desigualdades que podem ser piores do que as originais.

Thomas Sowell certa vez disse que "Tentativas de se equalizar os resultados econômicos geram desigualdades maiores e mais perigosas de poder político". Ou, como concluiu Milton Friedman, "Uma sociedade que coloca a igualdade à frente da liberdade terminará sem as duas. O uso da força para alcançar a igualdade irá destruir a liberdade, e a força, introduzida com bons propósitos, irá terminar nas mãos de pessoas que irão utilizá-la para promover seus próprios interesses".

Ademais, mesmo se todos nós, magicamente e subitamente, passássemos a ter a mesma riqueza, já no dia seguinte voltaríamos a ser desiguais, pois alguns iriam gastar seu dinheiro e outros iriam poupá-lo.

Em uma economia de mercado, rendas distintas sempre serão uma realidade. E tem de ser assim. Essa diferença de renda ocorrerá em decorrência de fenômenos tão distintos quanto incontroláveis, como talento nato, ambição, energia, disposição, saúde, sorte, percepção correta quanto às demandas do consumidor, parceria com as pessoas corretas etc. Sendo assim, a igualdade econômica só poderá ser tentada (mas nunca alcançada) por meio de monstruosas e contínuas agressões empreendidas por funcionários do governo. O resultado mais provável será uma igualdade de miséria (muito embora os membros da elite política serão mais iguais do que o resto do povo). Igualdade a um nível decente de prosperidade é algo que está muito além da capacidade do estado, como bem ilustram Cuba e Coréia do Norte.

Para produzir uma mínima quantidade de igualdade econômica, os governos teriam de expedir as seguintes ordens (e estar disposto a impingi-las com pelotões de fuzilamento e agentes carcerários): "Não se sobressaia, não trabalhe com mais afinco do que seu vizinho, não tenha boas e novas ideias, não corra nenhum risco, e não faça nada de diferente em relação ao que você já fez ontem".

Em outras palavras, não seja humano.

Pessoas obcecadas com igualdade econômica — ou, para empregar um termo mais clínico, com o igualitarismo — tendem a fazer coisas estranhas. Elas se tornam invejosas. Elas passam a cobiçar o que é dos outros. Elas dividem a sociedade em dois grupos: vilões e vítimas. Elas gastam mais tempo e energia tentando derrubar e destruir uma pessoa bem sucedida do que se esforçando para se aprimorar, para se tornar uma pessoa melhor e, com isso, subir na vida. São pessoas ressentidas e rancorosas, e não é nada divertido estar perto delas. Quando tais pessoas eventualmente conseguem chegar ao poder, os estragos que elas fazem podem ser irreversíveis. Elas não mais apenas chamam a polícia; elas passam a ser a polícia.

Se a desigualdade econômica é uma opressão, punir o esforço, o mérito e o sucesso não é uma cura. Medidas coercivas que visam à redistribuição de riqueza farão apenas com que os espertos e os politicamente bem-relacionados enviem sua riqueza para o exterior ao passo que os desafortunados terão de arcar com o fardo do inevitável declínio econômico. Uma medida muito mais produtiva seria reduzir o imenso e burocrático aparato governamental — que, com suas regulações que impedem a livre concorrência, com sua inflação que destrói o poder de compra, com suas tarifas de importação que proíbem a aquisição de produtos bons e baratos do exterior — faz com que os pobres se perpetuem nessa condição.

Por outro lado, é fato que há algumas formas de desigualdade econômica condenáveis. Por exemplo, a desigualdade produzida por um capitalismo mercantilista, no qual o estado — por meio de agências reguladoras, tarifas de importação e subsídios — protege os grandes empresários, certamente é indesejável. Por isso, é importante fazermos uma distinção entre empreendedores econômicos e empreendedores políticos. Os primeiros criam valor para a sociedade; ao passo que os últimos simplesmente descobriram como transferir recursos de terceiros para seus próprios bolsos.

Em vez de apenas confiscar a riqueza dos mercantilistas — uma medida inócua que manteria intacto todo o aparato de redistribuição dos pobres para os ricos —, muito mais sensato seria abolir todos os arranjos que permitem o corporativismo, o que levaria à imediata bancarrota desses mercantilistas. Curiosamente, os progressistas de hoje parecem não se importar muito com esse arranjo.

Quando fazemos essa distinção entre mercantilistas e genuínos empreendedores, é possível ver a diferença entre produtores e parasitas. A desigualdade oriunda do empreendedorismo honesto, longe de indicar que algo está errado, significa que há um progresso generalizado na economia. Em um sistema no qual todos melhoram sua situação por meio da atividade criativa e das trocas voluntárias, algumas pessoas inevitavelmente irão se tornar ricas. Trata-se de uma característica natural do sistema — um sistema que recompensa empreendedores e investidores por terem sido bons administradores do capital.

Obviamente, quando tais pessoas não se mostram bons administradores do capital, elas quebram. Em outras palavras, pessoas que fazem investimentos ruins ou que não servem bem aos consumidores não permanecerão ricas por muito tempo — a menos que o governo decida intervir para salvá-las.

A menos que ela tenha enriquecido contratando advogados e lobistas em vez de pesquisadores e criadores, uma pessoa rica enriqueceu porque criou bens e serviços valiosos para seus consumidores. Sendo assim, a ausência de pessoas muito ricas é um péssimo sinal uma economia, especialmente para os pobres. Tal ausência, com efeito, indicaria uma das duas coisas a seguir: ou muito pouca coisa de valor foi criada (dificilmente haveria coisas boas e gostosas, como iPhones e trufas) ou o governo incorreu em uma predatória política de redistribuição de renda, destruindo os incentivos para as pessoas serem criadoras de valor e boas gestoras de capital.

No que mais, vale a pena enfatizar que diferenças na propriedade de ativos não significam uma igual diferença no padrão de vida, muito embora várias pessoas tenham esse fetiche. Por exemplo, a riqueza de Bill Gates de ser 100.000 vezes maior do que a minha. Mas será que ele ingere 100.000 vezes mais calorias, proteínas, carboidratos e gordura saturada do que eu? Será que as refeições dele são 100.000 vezes mais saborosas que as minhas? Será que seus filhos são 100.000 vezes mais cultos que os meus? Será que ele pode viajar para a Europa ou para a Ásia 100.000 vezes mais rápido ou mais seguro? Será que ele pode viver 100.000 vezes mais do que eu?

O capitalismo que gerou essa desigualdade é o mesmo que hoje permite com que boa parte do mundo possa viver com uma qualidade de vida muito melhor que a dos reis de antigamente. Hoje vivemos em condições melhores do que praticamente qualquer pessoa do século XVIII.

Sempre que você vir ou ouvir uma pessoa parolando sobre desigualdade, faça a si mesmo a seguinte pergunta: será que ela está genuinamente preocupada com os pobres ou está apenas indignada com os ricos? Eis uma maneira de descobrir a diferença: sempre que alguém reclamar sobre a desigualdade de renda, pergunte a ela se aceitaria que os ricos ficassem ainda mais ricos se isso, no entanto, significasse condições de vida melhores para os mais pobres. Se a resposta for "não", então ela está admitindo que está importunada apenas com o que os ricos têm, e não com o que os pobres não têm. Já se a resposta for "sim", então a tal desigualdade de renda é irrelevante. Em outras palavras, a preocupação deveria ser com a pobreza absoluta, e não com a pobreza relativa.

Em quase todas as discussões sobre desigualdade de renda, há uma básica dinâmica emocional atuando. Uma pessoa descobre que possui menos do que a outra, e passa ter a inveja. Já outra descobre que tem mais do que o resto, e passa se sentir culpada. Inveja, culpa e indignação. São realmente essas emoções primitivas que deveriam conduzir as políticas públicas?

Toda essa ideia de igualdade econômica não representa nenhuma genuína forma de compaixão. Quando é somente uma ideia, é fraca. Quando se torna política pública, torna-se um desastre em larga escala.


O fato de que pessoas livres não são iguais em termos econômicos não deve ser lamentado. Ao contrário, é motivo de regozijo. A desigualdade econômica, quando oriunda da interação voluntária de indivíduos criativos, e não de conexões políticas, é um testemunho do fato de que as pessoas estão sendo elas mesmas, cada qual colocando seus talentos e aptidões ímpares para funcionar de maneiras que são gratificantes para elas próprias e que geram bens e serviços valiosos para terceiros. Como diriam os franceses em um contexto mais diferenciado, Vive la difference!

Fonte: Instituto Ludwig von Mises - Brasil ("IMB")

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Integrante da luta armada afirma que muitos de seus companheiros até hoje não assumem que lutavam para impor uma ditadura de esquerda

Ex-guerrilheira faz autocrítica sobre sua participação na luta armada
Em destaque:

A luta armada foi a estratégia certa? Você faria tudo de novo?", pergunto-lhe.
Com a cabeça que tenho hoje, não. Terminamos derrotados, muitos de nós perderam a vida por nada", diz ela. 
Até hoje não fizeram a reflexão de que pregávamos uma ditadura de esquerda - que são terríveis. Muitos não queriam ver as denúncias que vinham da União Soviética sobre perseguições e mortes."
Foi esta reflexão sobre o comunismo que lhe inspirou a escrever o livro Um Cadáver ao Sol, que relata, segundo ela, como a ditadura comunista pode conduzir à "autodestruição".
A democracia ainda é o caminho para construir vielas de idealização. Pode não ser perfeito, mas é a melhor forma de governo".
'Muitos perderam a vida por nada', diz ex-guerrilheira que esteve presa com Dilma

Horas depois de ser presa e torturada na sede carioca do DOI-CODI, um dos órgãos de repressão mais temidos da ditadura, a jornalista Iza Salles conheceu um anjo em forma de monstro.

Após uma noite inteira de choques elétricos, ela foi deixada sobre um colchão cheio de buracos e percevejos na sala de tortura porque já não havia lugar nas outras celas.

Quando tentava pegar no sono, ouviu passos no escuro vindo do corredor. Certa de que não escaparia de um estupro ou da morte, fechou os olhos e começou a rezar.

Foi quando um soldado alto, de feições "amedrontadoras" – com manchas escuras por todo o rosto - se aproximou e lhe pediu seu cinto.

Apavorada, ela obedeceu, sem entender de imediato que, ao se apoderar do acessório, aquele soldado com "cara de monstro" queria evitar que ela tentasse se enforcar em um momento de desespero.

Ainda com a respiração ofegante, Iza ouviu o homem dizer "calma, calma". E essa palavra foi repetida pelo mesmo soldado todas as vezes em que ele se aproximou dela naquela noite fria de junho de 1970.

São lembranças como essa que Iza tenta se apegar para não sofrer demais quando se recorda dos sete meses em que ficou presa no Rio de Janeiro e em São Paulo.

Ela diz que conceder a entrevista à BBC Brasil lhe obrigou a fazer uma viagem difícil.

"Durante muito tempo evitei pensar nesse período porque dói muito. E hoje, com a idade, fico emocionada", diz ela pelo telefone com a voz embargada.

Ana, Maria, Darci

Atualmente com 75 anos, Iza Salles foi integrante, no final dos anos 60, da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), um grupo de guerrilha de extrema-esquerda que tinha como um de seus comandantes o capitão do Exército Carlos Lamarca, que desertara.

O grupo realizou assaltos a bancos para financiar suas ações e montou um foco guerrilheiro na região do Vale do Ribeira, no Estado de São Paulo. Também esteve por trás do sequestro do embaixador suíço Giovanni Bucher no Rio de Janeiro, em 1970, que foi "trocado" pela libertação de 70 presos políticos.

A jornalista era do setor de inteligência da VPR. Editora do Segundo Caderno do jornal Diário de Notícias, ela ficava encarregada de passar à guerrilha informações de bastidores sobre o governo militar.

E se envolvia em ações mais arriscadas, como transportar dirigentes importantes da guerrilha do Rio para São Paulo. Entre 1967 e 1970, atendia pelos codinomes de Ana, Maria e Darci.
'Tarefas' de Paris

Seu interesse por política começou ainda no governo João Goulart, quando participava de manifestações e reuniões estudantis. Mas foi a partir de 1966, quando ganhou uma bolsa para estudar na Universidade de Sorbonne, na França, que passou a ter um envolvimento direto com a resistência à ditadura.

Em Paris, ela frequentava reuniões organizadas por exilados para debater planos para derrubar os militares. Um desses exilados era José Maria Crispim, militante comunista e deputado da Assembleia Constituinte em 1946. Crispim promovia encontros entre exilados e estudantes brasileiros que, posteriormente, retornavam ao Brasil com "tarefas".

"A gente voltava carregando na mala mensagens cifradas para companheiros e, principalmente, manifestos", relembra.

Iza voltou ao Brasil no final de 67 como membro do Movimento Nacionalista Revolucionário, fundado por sargentos rebelados, e que depois se transformou na VPR.

No início de 1970, o cerco começou a se fechar. Alguns de seus companheiros começavam a faltar a encontros marcados nos "pontos" clandestinos, sinal de que haviam "caído".

Em uma dessas ocasiões, ela recebeu um recado para "desaparecer" e entrar na clandestinidade. A partir daí, viveu escondida na casa de amigos até que decidiu fugir do país. Marcou uma passagem para a França, em 23 de junho, mesmo dia em que a seleção tricampeã voltaria do México.

Sua esperança era de que passaria despercebida pelos militares diante da euforia pela chegada dos jogadores. Ledo engano. Assim que saiu do campo de visão de sua família, que compareceu em peso ao Galeão para protegê-la, sentiu seus pés suspensos no ar.

"Dois brutamontes" pegaram-na pelos braços e, jogada no banco de trás de um carro, foi conduzida à sede do DOI-CODI, na rua Barão de Mesquita, zona norte do Rio.

Transferida um dia depois para a Vila Militar, em Deodoro, zona Oeste da cidade, ela saiu da cela pela primeira vez em 18 de julho, dia de seu aniversário, quando ganhou "de presente" um banho de sol.

Poucas semanas depois, a jornalista foi levada para São Paulo, onde respondia a um processo por ter levado um dirigente da VPR ao Estado.

Torre das donzelas

Iza Salles foi detida junto com
a então guerrilheira Dilma Rousseff
Na "Torre das Donzelas" do Presídio Tiradentes, hoje demolido, Iza ficou detida com dezenas de outras presas políticas, entre elas a presidente Dilma Rousseff.

"Lembro que ela ficava sempre muito recolhida, triste. Das (militantes) que estavam ali, ela era a presidente improvável, não se destacava ou mostrava liderança".

Iza e as companheiras passavam o tempo fazendo tricô ou jogando vôlei "para descarregar a raiva". Ao contrário do que se poderia imaginar dos carcereiros, muitos eram "generosos" e jogavam balas pelas grades das celas ou colocavam música alto do lado de fora para que as presas ouvissem.

A liberdade - que em seus sonhos na prisão caía do céu em forma de bombom de chocolate - só viria no final de 70.

A partir daí ela abandonou a luta armada e passou a optar por uma militância mais "consequente", passando a colaborar com os jornais de resistência Opinião e O Pasquim - tendo sido a única jornalista mulher a editar este último.

"Foi a única forma de continuar na luta", diz Iza, que no Pasquim, assinava como Iza Freaza.

Junto com Jaguar, Ziraldo, entre outros, ela comandou algumas das entrevistas mais célebres do semanário, entre as quais a do ex-presidente Jânio Quadros.

Revendo a luta armada

Em 1977, ela partiu para uma segunda temporada de estudos na França. A anistia parcial, dois anos depois, não foi suficiente para trazê-la de volta, o que aconteceria somente em 1984.

"A luta armada foi a estratégia certa? Você faria tudo de novo?", pergunto-lhe.

"Com a cabeça que tenho hoje, não. Terminamos derrotados, muitos de nós perderam a vida por nada", diz ela.

"Até hoje não fizeram a reflexão de que pregávamos uma ditadura de esquerda - que são terríveis. Muitos não queriam ver as denúncias que vinham da União Soviética sobre perseguições e mortes."

Foi esta reflexão sobre o comunismo que lhe inspirou a escrever o livro Um Cadáver ao Sol, que relata, segundo ela, como a ditadura comunista pode conduzir à "autodestruição".

"A democracia ainda é o caminho para construir vielas de idealização. Pode não ser perfeito, mas é a melhor forma de governo".

Fonte: Fernanda Nidecker, da BBC Brasil em Londres, 01/04/2014

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Bom testemunho para entender o que aconteceu em 64

Em outubro de 1965, militares deixaram claro
que não iriam devolver o poder aos civis

1964: um testemunho

Fernão Lara Mesquita

Para entender o que aconteceu em 64 é preciso lembrar o que era o mundo naquela época.

Um total de 30 países, parando na metade da Alemanha de hoje, havia sido engolido pela Rússia comunista por força militar. Invasão mesmo, que instalava um ditador que atuava sob ordens diretas de Moscou. Todos os que tentaram escapar, como a Hungria em 56, a Checoslováquia em 68, a Polônia em 80 e outros, sofreram novas invasões e massacres.

E tinha mais a China, o Vietnã, o Camboja, a Coreia do Norte, etc., na Ásia, onde houve verdadeiros genocídios. Na África era Cuba que fazia o papel que os russos fizeram na Europa, invadindo países e instalando ditadores no poder.

As ditaduras comunistas, todas elas, fuzilavam sumariamente quem falasse contra esses ditadores. Não era preciso agir, bastava falar para morrer, ou nem isso. No Camboja um quarto de toda a população foi executado pelo ditador Pol Pot entre 1975 e 1979, sob os aplausos da esquerda internacional e da brasileira.

Os países onde não havia ditaduras como essas viviam sob ataques de grupos terroristas que as apoiavam e assassinavam e mutilavam pessoas a esmo detonando bombas em lugares públicos ou fuzilando gente desarmada nas ruas.

As correntes mais radicais da esquerda brasileira treinavam guerrilheiros em Cuba desde antes de 1964. Quando João Goulart subiu ao poder com a renúncia de Jânio Quadros, passaram a declarar abertamente que era nesse clube que queriam enfiar o Brasil.

64 foi um golpe de civis e militares brasileiros que lutaram na 2.ª Guerra Mundial e derrubaram a ditadura de Getúlio Vargas, para impedir que o ex-ministro do Trabalho de Vargas levasse o País para onde ele estava prometendo levá-lo, apesar de se ter tornado presidente por acaso. Tratava-se portanto, de evitar que o Brasil entrasse num funil do qual não havia volta, e por isso tanta gente boa entrou nessa luta e a maioria esmagadora do povo, na época, a apoiou.

A proposta do primeiro governo militar era só limpar a área da mistura de corrupção com ideologia que, aproveitando-se das liberdades democráticas, armava um golpe de dentro do sistema para extingui-las de uma vez por todas, e convocar novas eleições para devolver o poder aos civis.

Até outubro de 65, um ano e meio depois do golpe, seguindo o combinado, os militares tinham-se limitado a cassar o direito de eleger e de ser eleito, por dez anos, de 289 pessoas, incluindo 5 governadores, 11 prefeitos e 51 deputados acusados de corrupção mais que de esquerdismo.

Ninguém tinha sido preso, ninguém tinha sido fuzilado, ninguém tinha sido torturado. Os partidos políticos estavam funcionando, o Congresso estava aberto e houve eleições livres para governador e as presidenciais estavam marcadas para a data em que deveria terminar o mandato de Jânio Quadros.

O quadro só começou a mudar quando em outubro de 65, diante do resultado da eleição para governadores, o Ato Institucional n.º 2 (AI-2) extinguiu partidos, interferiu no Judiciário e tornou indireta a eleição para presidente. Foi nesse momento que o jornal O Estado de S. Paulo, que até então os apoiara, rompeu com os militares e passou a combatê-los.

Tudo isso aconteceu praticamente dentro de minha casa, porque meu pai, Ruy Mesquita, era um dos principais conspiradores civis, fato de que tenho o maior orgulho.

Antes mesmo da edição do AI-2, porém, a esquerda armada já havia matado dois: um civil, com uma bomba no Cine Bruni, no Rio, que feriu mais um monte de gente; e um militar numa emboscada no Paraná. E continuou matando depois dele.

Ainda assim, a barra só iria pesar mesmo a partir de dezembro de 68, com a edição do AI-5. Aí é que começaria a guerra. Mas os militares só aceitaram essa guerra depois do 19.º assassinato cometido pela esquerda armada.

Foi a esquerda armada, portanto, que deu o pretexto para a chamada "linha dura" militar tomar o poder e a ditadura durar 21 anos, tempo mais que suficiente para os trogloditas de ambos os lados começarem a gostar do que faziam quando puxavam gatilhos, acendiam pavios ou aplicavam choques elétricos.

A guerra é sempre o paraíso dos tarados e dos psicopatas e aqui não foi diferente.

No cômputo final, a esquerda armada matou 119 pessoas, a maioria das quais desarmada e que nada tinha que ver com a guerra dela; e os militares mataram 429 "guerrilheiros", segundo a esquerda, 362 "terroristas", segundo os próprios militares. O número e as qualificações verdadeiras devem estar em algum lugar no meio dessas diferenças.

Uma boa parte dos que caíram morreu atirando, de armas na mão; outra parte morreu na tortura, assassinada ou no fogo cruzado.

Está certo: não deveria morrer ninguém depois de rendido, e morreu. E assim como morreram culpados de crimes de sangue, morreram inocentes. Eu mesmo tive vários deles escondidos em nossa casa, até no meu quarto de dormir, e já jornalista contribuí para resgatar outros tantos. Mas isso é o que acontece em toda guerra, porque guerra é, exatamente, a suspensão completa da racionalidade e do respeito à dignidade humana.

O total de mortos pelos militares ao longo de todos aqueles 21 "anos de chumbo" corresponde mais ou menos ao que morre assassinado em pouco mais de dois dias e meio neste nosso Brasil "democrático" e "pacificado" de hoje, onde se matam 50 mil por ano.

Há, por enquanto, 40.300 pessoas vivendo de indenizações por conta do que elas ou seus parentes sofreram na ditadura, todas do lado da esquerda. Nenhum dos parentes dos 119 mortos pela esquerda armada, nem das centenas de feridos, recebeu nada desses R$ 3,4 bilhões que o Estado andou distribuindo.

Enfim, esse é o resumo dos fatos nas quantidades e na ordem exatas em que aconteceram, do que dou fé porque estava lá. E deixo registrado para os leitores que não viveram aqueles tempos compararem com o que andam vendo e ouvindo por aí e tirarem suas próprias conclusões sobre quanto desse barulho todo corresponde a sentimentos e intenções honestas.

Fonte: Estado de São Paulo, 07/04/2014, Fernão Lara Mesquita é jornalista. Escreve em www.vespeiro.com.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Esquerda autoritária tem dupla moral: quer punição para militares de uma ditadura extinta há 30 anos, mas apoia a ditadura comunista de Cuba e a tirania chavista na Venezuela


Nesses últimos dias, por ocasião dos 50 anos da deposição de Jango Goulart da Presidência da República, em 31/03/1964, oficializada em 02/04/1964, assistimos a um verdadeiro show de hipocrisia e vigarice intelectual da atual autodenominada esquerda socialista bolivariana. Está  bem claro, para quem não é analfabeto político, que essa esquerda não está apenas em busca da memória, da justiça e muito menos da verdade. Sua busca é por vendetta e sua intenção reescrever a História na base dos filmes de faroeste onde ela, esquerda, seria o mocinho e os militares os bandidos simplesmente. E essa visão distorcida e maniqueísta desse conturbado período de nossa história tem sido multiplicada pela imprensa, em geral, com raras exceções. Uma dessas exceções fica por conta dos textos do historiador Marco Antonio Villa que recentemente lançou o livro 
Ditadura à Brasileira. 1964-1985. A Democracia Golpeada à esquerda e à direita’. Villa aborda o período militar e as condições que o engendraram de uma forma mais objetiva e imparcial do que a vista nas páginas dos jornais nos últimos dias.

Na entrevista e texto abaixo, o historiador fala do regime militar e se dedica a apontar a hipocrisia dessa esquerda que tanto demoniza os militares e sua ditadura embora quisesse impor a sua ao país. Vale lembrar também que até hoje essas viúvas do Muro de Berlim continuam tendo como Meca a relíquia comunista dos Castro de Cuba. E que defendem a tirania de Nicolás Maduro, na Venezuela, embora esta em tudo se assemelhe à ditadura dos tempos dos generais. Um peso e duas medidas sempre.

“A ditadura foi do AI-5 até 31 de dezembro de 1978″, afirma Marco Antonio Villa
Em entrevista exclusiva ao Portal Vox, historiador comenta o livro “Ditadura à Brasileira”, o legado do positivismo e a Comissão da Verdade.

Portal Vox – “Ditadura à Brasileira” defende a tese de que o regime militar brasileiro não durou 21 anos, mas sim o período compreendido pelo Ato Institucional 5. Algumas resenhas sobre a publicação questionaram essa afirmação porque ela desqualifica a tortura praticada nos períodos entre 1964 e 1968 e 1979 a 1985. Você concorda com essa crítica?
Marco Villa – Digo que a ditadura foi do AI-5 (13 de dezembro de 1968) até 31 de dezembro de 1978. Com a entrada em vigência da Emenda Constitucional nº 11 a 1 de janeiro de 1979, que restabeleceu as imunidades parlamentares, não é possível falar em ditadura. Explicando melhor: de 1964 a 68 temos a realização, em 1965, de eleição em 11 estados para os governos estaduais. Eleições diretas, livres e com o antigo quadro partidário (UDN, PSD, PTB etc). Tivemos a enorme explosão musical (os célebres festivais), do teatro, literatura, inúmeras publicações editoriais no campo da política, especialmente. Além de eleições em novembro de 1966 e 1968 (aí já em outro quadro partidário). Deve ser lembrada a passeata dos cem mil (junho de 68), impensável em uma ditadura. De 1968 a 1978, obviamente, foi ditadura. Já de 1979 para frente, não. Tivemos a anistia de 1979 (que ditadura fez isso?), a eleição de 1982 (com a vitória oposicionista em estados chaves, como São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, a campanha das diretas). Tudo isso é possível em uma ditadura? Com relação ás torturas, estas, infelizmente, sempre existiram no Brasil. Teve vários casos entre 1964 e 1968, mas em quantidade infinitamente menor. E hoje as torturas continuam aí, só que em relação aos “presos comuns”.

Portal Vox -O Brasil de 1964 era politicamente repartido e estava estagnado social e economicamente. Esse cenário não foi uma exclusividade dos anos 1960. Mesmo após a redemocratização, o país viveu períodos semelhantes. Por que só em 1964 um golpe de Estado foi desencadeado?
Marco Villa – É que as contradições e a tensão política tinham atingido um nível nunca alcançado na história republicana. 

Portal Vox - Em geral, João Goulart é apresentado nas salas de aula como um político competente, vítima do destino e da direita. Como você avalia essa visão e a abordagem aplicada pelos professores do Ensino Médio quando abordam a ditadura brasileira?
Marco Villa – Puro panfleto, sem qualquer base histórica. Reconheço que sou dos poucos que tentam remar contra a corrente e apresentar o Jango histórico e não aquele construído pelos hagiógrafos.

Portal Vox -Tanto a direita pré-Vargas como o Partido Comunista Brasileiro demonstravam antipatia pela estrutura democrática. O positivismo é a resposta para essa divisão? Há resquícios do positivismo na política brasileira moderna?

Marco Villa – O positivismo é o fantasma que rondou o século XX brasileiro. A direita brasileira – da qual o getulismo é parte integrante – teve no positivismo o principal instrumento ideológico. E a esquerda brasileira também “bebeu” nesta fonte. Lembre-se que uma grande leva de militares nos anos 20, 30 e 40, de forma positivista, como Prestes, aderiram ao PCB.

Portal Vox - João Goulart bancou um ministro de Guerra que aceitou entregar uma carta de demissão assinada – algo pouco usual. Logo depois, aproveitou as insinuações de golpe militar de Carlos Lacerda para decretar o estado de sítio. O Brasil de 1964, na prática, conviveu com tentativas de golpe da esquerda, da direita e do presidente em exercício?

Marco Villa – Sim. A direita tinha vários golpes em preparação e a esquerda também. Demonstro isso no meu “Ditadura à Brasileira”, logo no primeiro capítulo.

Portal Vox - Quando Goulart saiu de cena, Castelo Branco foi submetido a uma eleição de via única. Tancredo Neves não aceitou votar. Juscelino Kubitschek, celebrado como um ícone da democracia, seguiu caminho diferente, concedendo apoio ao militar. O que explica essa controversa decisão?

Marco Villa – JK pensava garantir a eleição de outubro de 1965. Imaginava que venceria. Para ele, Castelo seria uma espécie de Lott. Em 1955, Lott garantiu a posse de JK com um golpe de estado (em novembro). Mas 1964 não repetiu 1955, como sabemos. Ou seja, a leitura da conjuntura foi absolutamente errada.

Portal Vox - O livro cita a concessão da liberdade cultural e o financiamento de projetos de arte como meios de aproximação entre a ditadura e a elite intelectual. O elo com a classe média era mantido apenas com o milagre econômico?

Marco Villa – O crescimento econômico garantiu apoio da classe média. Enquanto a economia cresceu, o regime teve apoio popular. A partir de 1979 houve a somatória da crise econômica e do enorme desgaste político do regime. O trágico governo Figueiredo representou muito bem este momento. 

Portal Vox - A ditadura sofreu uma tentativa de golpe arquitetada por Sylvio Frota, ministro do Exército entre 1974 e 1977. Outras ditaduras da América do Sul sofreram com “revoluções internas”?

Marco Villa – A derrota de Frota foi fundamental para que o Brasil não virasse a Argentina. O 12 de outubro de 1977 acabou sendo uma data essencial para o processo de distensão de Geisel. Se Frota tivesse vencido, a repressão anterior – que já tinha sido violenta – iria parecer brincadeira de criança.

Portal Vox - Em 2009, comentando as escaladas de Chávez e Fujimori, a Folha foi muito criticada ao classificar a ditadura brasileira como uma “ditabranda”. Na comparação com as ditaduras da América do Sul promovidas nos últimos 50 anos, a instituída no Brasil foi a mais moderada? Em que os regimes dos demais países diferiam do nosso?

Marco Villa – Ditabranda é uma expressão infeliz. É necessário entender – e o meu “Ditadura á Brasileira” desenvolve extensamente esta questão – que a ditadura no Brasil teve características distintas daquelas dos países do Cone Sul. Uma delas, por exemplo, foi sobre a presença do Estado na economia. No Brasil, o regime estatizou amplos setores da economia, na Argentina ocorreu o processo inverso. Isto deve ser explicado pela formação ideológica distinta dos exércitos brasileiro e argentino. E aqui voltamos à questão do positivismo e sua forte influência no Brasil. 

Portal Vox - Em 17 de abril de 1980, o governo Figueiredo enquadrava Lula e mais dez dirigentes sindicais por desordem. Lançado em dezembro de 2013, “Assassinato de Reputações”, livro de Romeu Tuma Junior, cita o ex-presidente como informante da ditadura. Você acredita nessa informação?

Marco Villa – Não li o livro do Tuma. Mas é inegável que Lula recebeu um tratamento VIP quando foi detido por 4 semanas no DOPS. Ele mesmo conta isso em várias entrevistas que deu sobre o tema. 

Portal Vox - Na redemocratização, o país ficou dividido entre o PMDB e a Arena. É possível afirmar que a inabilidade política de Paulo Maluf, que tentou de todas as maneiras ser candidato a presidente, cooperou para a derrota da Arena tanto quanto o trabalho de Tancredo Neves?

Marco Villa – A candidatura Maluf acabou caindo como uma luva. Uniu a oposição, especialmente após a derrota da emenda Dante de Oliveira. Ele representava o que havia de pior no regime. Neste caso, por vias transversas, Maluf colaborou para a redemocratização do Brasil.

Portal Vox - No dia 22 de março, em São Paulo, centenas de pessoas se reuniram para reproduzir a “Marcha da Família com Deus”. Isso não acaba fortalecendo a esquerda?

Marco Villa – As marchas, hoje, não têm qualquer significado. Participaram uns gatos pingados. Fato, portanto, sem qualquer significação política. No Rio tentaram repetir o comício da Central: foram 150 pessoas ao ato! O Brasil vive um momento radicalmente distinto, ainda bem.

Portal Vox - Os partidos brasileiros costumam evitar o rótulo da direita. Isso é uma herança da ditadura ou imaturidade ideológica?

Marco Villa – É difícil saber porque a direita não quer saber de ser chamada de direita. Faria muito bem para o país um verdadeiro partido Liberal, por exemplo. Mas no Brasil a ideologia morreu – e faz tempo. Todo mundo quer um naco do poder. E só. Programa político, de direita ou de esquerda, ninguém quer saber.

Portal Vox - Em uma das reuniões da Comissão Nacional da Verdade, a “Internacional Socialista” foi executada. A esquerda criou uma visão excessivamente romântica a respeito de 1964?
Marco Villa –A Comissão da Verdade não deve chegar a nenhum resultado. Escrevi sobre quando ela foi criada. Sempre dou como exemplo positivo o que ocorreu na África do Sul. Nelson Mandela criou a Comissão da Verdade e Reconciliação. O objetivo não era vingança – e não faltam motivos para isso. Era que todos conhecessem o passado. E assim foi feito. Viu-se os dois lados e a população pode chegar - cada um – a sua interpretação do que tinha ocorrido. Mas no Brasil não tivemos um Mandela, tivemos Dilma.

Fonte: Portal Vox, 31/03/2014

Esquerda tinha ditaduras como modelo

Marco Antonio Villa

Durante a ditadura, a oposição de esquerda transformou a experiência dos países socialistas em referência de democracia. A ditadura do proletariado foi exaltada como o ápice da liberdade humana e serviu como contraponto ao regime militar. A falácia tinha uma longa história. Desde os anos 1930 brasileiros escreveram libelos em defesa do sistema que libertava o homem da opressão capitalista.

Tudo começou com URSS, Um Novo Mundo, de Caio Prado Júnior, publicado em 1934, resultado de uma viagem de dois meses do autor pela União Soviética. Resolveu escrevê-lo, segundo informa na apresentação, devido ao sucesso das palestras que teria feito em São Paulo descrevendo a viagem. À época já se sabia do massacre de milhões de camponeses (a coletivização forçada do campo, 1929-1933) e a repressão a todas os não bolcheviques.

Prado Júnior justificou a violência, que segundo ele “está nas mãos das classes mais democráticas, a começar pelo proletariado, que delas precisam para destruir a sociedade burguesa e construir a sociedade socialista”. A feroz ditadura foi assim retratada: “O regime soviético representa a mais perfeita comunhão de governados e governantes”. O autor regressou à União Soviética 27 anos depois. Publicou seu relato com o título O Mundo do Socialismo. Logo de início escreveu que estava “convencido dessa transformação (socialista), e que a humanidade toda marcha para ela”.

Em 1960, Caio Prado não poderia ignorar a repressão soviética. A invasão da Hungria e os campos de concentração stalinistas estavam na memória. Mas o historiador exaltava “o que ocorre no terreno da liberdade de expressão do pensamento, oral e escrito”, acrescentando: “Nada há nos países capitalistas que mesmo de longe se compare com o que a respeito ocorre na União Soviética”. E continua escamoteando a ditadura: “Os aparelhos especiais de repressão interna desapareceram por completo. Tem-se neles a mais total liberdade de movimentos, e não há sinais de restrições além das ordinárias e normais que se encontram em qualquer outro lugar.”

Seguindo pelo mesmo caminho está Jorge Amado, Prêmio Stalin da Paz de 1951. Isso mesmo: o tirano que ordenou o massacre de milhões de soviéticos dava seu nome a um prêmio “da paz”. Antes de visitar a União Soviética e publicar um livro relatando as maravilhas do socialismo – o que ocorreu em 1951 -, Amado escreveu uma laudatória biografia de Luís Carlos Prestes. A União Soviética foi retratada da seguinte forma: “Pátria dos trabalhadores do mundo, pátria da ciência, da arte, da cultura, da beleza e da liberdade. Pátria da justiça humana, sonho dos poetas que os operários e os camponeses fizeram realidade magnífica”.

A partir dos anos 1970, o foco foi saindo da União Soviética e se dirigindo a outros países socialistas. Em parte devido aos diversos rachas na esquerda brasileira. Cada agrupamento foi escolhendo a sua “referência”, o país-modelo. O Partido Comunista do Brasil (PCdoB) optou pela Albânia. O país mais atrasado da Europa virou a meca dos antigos maoistas, como pode ser visto no livro O Socialismo na Albânia, de Jaime Sautchuk. O jornalista visitou o país e não viu nenhuma repressão. Apresentou um retrato róseo. Ao visitar um apartamento escolhido pelo governo, notou que não havia gás de cozinha. O fogão funcionava graças à lenha ou ao carvão. Isso foi registrado como algo absolutamente natural.

O culto da personalidade de Enver Hoxha, o tirano albanês, segundo Sautchuk, não era incentivado pelo governo. Era de forma natural que a divinização do líder começava nos jardins de infância onde era chamado de “titio Enver”. As condenações à morte de dirigentes que se opuseram ao ditador foram justificadas por razões de Estado. Assim como a censura à imprensa.

Com o desgaste dos modelos soviético, chinês e albanês, Cuba passou a ocupar o lugar. Teve papel central neste processo o livro A Ilha, do jornalista Fernando Morais, que visitou o país em 1977. Quando perguntado sobre os presos políticos, o ditador Fidel Castro respondeu que “deve haver uns 2 mil ou 3 mil”. Tudo isso foi dito naturalmente – e aceito pelo entrevistador.

Um dos piores momentos do livro é quando Morais perguntou para um jornalista se em Cuba existia liberdade de imprensa. A resposta foi uma gargalhada: “Claro que não. Liberdade de imprensa é apenas um eufemismo burguês”. Outro jornalista completou: “Liberdade de imprensa para atacar um governo voltado para o proletariado? Isso nós não temos. E nos orgulhamos muito de não ter”. O silêncio de Morais, para o leitor, é sinal de concordância. O pior é que vivíamos sob o tacão da censura.

O mais estranho é que essa literatura era consumida como um instrumento de combate do regime militar. Causa perplexidade como os valores democráticos resistiram aos golpes do poder (a direita) e de seus opositores (a esquerda).

Fonte: Blog do autor e Estadão, 28 de março de 2014 | 17h 18 

segunda-feira, 31 de março de 2014

FHC analisa o regime militar e afirma que ainda não acreditamos na democracia


‘Ainda não temos crença na democracia’

Lamenta o intelectual que se escondeu da polícia, até ser pego pela política

Laura Greenhalgh

Era jovem, mas já prestigiado como acadêmico. Equilibrava-se entre ser socialista nos modos e marxista nas ideias. E fazia a cabeça da estudantada da Faculdade de Filosofia da USP. Daí o golpe se consumou e o professor Fernando Henrique teve que sumir. Vazou, como se diz hoje. "Quando os policiais chegaram na Maria Antonia (nome da rua onde ficava a faculdade, em São Paulo) para me prender quase levaram o (filósofo) Bento Prado, achando que era eu", comenta o ex-presidente ao lembrar de um tempo em que precisou pular de casa em casa, de cidade em cidade, às escondidas, até se fixar no Chile, para onde seguiram a mulher, Ruth Cardoso, e os filhos pequenos.

Na entrevista que se segue, o trigésimo-quarto mandatário brasileiro reflete sobre a ditadura e conclui que ela não chegou a desmontar o Estado regulador. "Falam tanto em neoliberalismo, mas nunca tivemos isso no País. Já liberalismo político, esse eu até gostaria que houvesse mais". A 50 anos do golpe que o levou para o exílio e aos 82 de idade,

Fernando Henrique, deixa passar uma nota de amargura: "Não estamos em condição de ensinar democracia a ninguém, porque há muito a aprender. Faltam-nos, sobretudo, crença na democracia e grandeza na vida política."



Onde estava quando tudo aconteceu, 50 anos atrás? 
Semanas antes do golpe, quando houve aquele comício da Central do Brasil, eu estava no Rio, onde vivia meu pai. Passei pelo comício e embarquei lá mesmo, rumo a São Paulo. Era 13 março. No trem estavam o (hoje ex-ministro) José Gregori, o (hoje ex-deputado federal) Plínio de Arruda Sampaio, com quem eu acabaria me reencontrando no exílio, e um rapaz chamado Marco Antonio Mastrobuono, que depois viria a casar com a Tutu, filha do Jânio Quadros. Viemos conversando ao longo da viagem sobre a situação. Ali ninguém era entusiasta do Jango, eu também não era. Embora meu pai fosse um militar nacionalista, que inclusive havia sido deputado pelo PTB.

Seu pai era um nacionalista. E o senhor?

Um socialista. Tivera contato com o comunismo nos anos 1950, mas àquela altura, depois do stalinismo, não sobravam ilusões. Também não tinha ilusão de que o Jango seria algo extraordinário ao País, porque ele era um populista e eu, um acadêmico. E, na universidade, tínhamos a convicção de que as mudanças viriam da luta de classes, não do populismo. Pois bem, chegando a São Paulo, encontrei um clima de grande agitação. Nessa época o Darcy (Ribeiro) já havia sido nomeado chefe da Casa Civil do Jango. E era muito amigo da minha família. Nós nos falamos algumas vezes por telefone naqueles dias e isso terminou me trazendo uma dor de cabeça tremenda, pois o aparelho do Darcy estava grampeado e fui grampeado, também.

O que aconteceu exatamente?
O Darcy um dia me disse que viria a São Paulo e eu comentei "vem com cuidado aí com o Grupo dos Onze" (grupo de resistência radical concebido em 1963 pelo então governador gaúcho Leonel Brizola). Disse aquilo por dizer, sem qualquer intenção, porque havia acontecido uma violência contra o ministro da Reforma Agrária do Jango, em São Paulo, algo assim. Esse comentário grampeado iria me complicar no futuro, quando fui processado na Justiça Militar. Mas, na noite do golpe, lá na Maria Antonia, havia mesmo muita confusão. Eu exercia certa influência sobre alunos e professores mais jovens, embora fosse jovem também - tinha só 33 anos, mas já fazia parte do Conselho Universitário. Muitos dos meus colegas achavam que o golpe era do Jango e dos generais leais a ele, o Amaury Kruel, o Osvino Ferreira Alves. A confusão era tanta que eu telefonei para o Luiz Hildebrando da Silva, que era da Medicina da USP e ligado ao Partidão, dizendo para ele vir até a Maria Antonia, pois estavam preparando um manifesto contra um golpe do presidente. E não um manifesto contra o golpe no presidente! Veja como estávamos perdidos na USP, isolados da vida política, mergulhados num marxismo teórico. Vou contar uma passagem estapafúrdia: naqueles dias soubemos que haveria uma resistência armada no Sul e então o Bento Prado, o (cientista social) Leôncio Martins Rodrigues, o Paulo Alves Pinto, que era sobrinho do general Osvino, e eu cogitamos tomar um aviãozinho no Campo de Marte para lutar no Sul. Ainda bem que não houve luta alguma (ri). Então, assim foi a minha última noite andando pela rua Maria Antonia. No dia seguinte, a polícia apareceu por lá para me prender. Quase levaram o Bento Prado, pensando que fosse eu.

Como escapou de ser preso na Maria Antonia?
Alunos meus ficaram nas esquinas, à espreita, para me avisar que a polícia estava lá, assim que eu me aproximasse. Acabei não indo à faculdade e naquela noite dormi na casa de um amigo, o cineasta Bráulio Muniz. Continuei me escondendo, daí fui para o Guarujá na casa do (fotógrafo) Thomas Farkas, com o Leôncio. E a Ruth (Cardoso), minha mulher, ficou aqui, tentando entender o que se passava. Ruth procurou o Honório Monteiro, que fora ministro do presidente Dutra e era meu colega no Conselho Universitário. O Honório tentou interferir a meu favor junto ao Miguel Reale, então secretário de Segurança. Mas o Reale respondeu que no meu caso não havia o que fazer, porque "esse professor Cardoso não é só teórico, mas prático também". Outro amigo, o (economista, museólogo e autor teatral) Maurício Segall, que já se ocupava de organizar fugas, achou que eu tinha que cair fora, não havia condições de ficar no País. Saí por Viracopos e fui para Argentina, para a casa de um ex-colega meu na França, que mais tarde viria a ser ministro do Kirchner, o José Nun. Tive convite para lecionar na Universidade de Buenos Aires, mas também convite para trabalhar na Cepal, no Chile. Preferi ir para o Chile. Meses depois Ruth veio ao meu encontro, com as crianças, e lá ficamos anos.

Voltou ao Brasil nesse período?
Duas vezes. Eu me encontrei em Paris com Antonio Candido, que dava aulas por lá, e ele me ajudou a voltar ao Rio para ver meu pai. Era 1965. Quando meu pai morreu, eu estava no Chile, mas já com passaporte validado, portanto voltei para o enterro. Houve uma missa com muitos oficiais e um deles chegou perto do meu irmão para dizer, referindo-se a mim: "Ou ele vai embora ou vai ser preso". Vim para a casa do empresário e editor) Fernando Gasparian, em São Paulo, dormi outra noite na casa do (sociólogo) Pedro Paulo Popovic, e regressei ao Chile. Acabei não sendo preso. Houve o processo contra mim na Justiça Militar, com acusações ridículas, entre as quais aquela envolvendo o telefonema grampeado do Darcy, e outras histórias vindas da universidade, de colegas que naquele momento dedo-duraram bastante, mas depois virariam ultra-esquerdistas. O general Peri Bevilacqua, neto do Benjamin Constant e homem ligado à minha família, foi quem me deu um habeas corpus anos depois. Mais tarde ele seria cassado, também. Pude devolver as medalhas do general para a família dele, quando estava na Presidência.

O que o senhor pesquisava na época do golpe?
O empresariado brasileiro. Foi minha tese de livre-docência, defendi em 1963 e publiquei-a no ano seguinte. Contestava a visão da esquerda de que havia uma aliança dos latifundiários com os imperialistas, contra a burguesia nacional e o povo. Isso era bobagem. Os empresários tinham ligação com o campo e não eram antiimperialistas, com exceção de dois ou três. A esquerda apostava no papel progressista da burguesia nacional e eu tinha uma visão crítica em relação a isso.

Disse que não se entusiasmava por João Goulart. Como o definiria?
Jango não era de assustar ninguém e hoje seria um político muito mais tranquilo do que qualquer um desses governantes populistas da América Latina. Mas, no contexto da Guerra Fria, e pelos contatos que tinha com os comunistas, representava o horror naquele momento. Vi isso acontecer de novo no Chile. Allende era um reformista e virou o belzebu. Enfim, Jango era um político brasileiro tradicional, populista, um latifundiário que nunca quis fazer revolução alguma. Levantava a bandeira das reformas de base e ninguém sabia exatamente o que eram. Olhando sociologicamente: tínhamos o mundo contingenciado pela Guerra Fria, porém o Brasil começava a se encaixar no eixo dos investimentos estrangeiros, desde o Juscelino. Havia crescimento industrial, forte migração campo-cidade e um Estado incompetente para atender às demandas de uma sociedade que crescia. Então, a população começou a se movimentar e ir para as ruas. Nós, acadêmicos, estávamos tão entretidos com os debates teóricos, que quando nos demos conta as ruas tinham entrado na universidade!

Qual era o projeto dos militares em 1964? Submeter o País a uma modernização imposta de cima para baixo?
Acho que nem tinham projeto. Setores pensavam de forma diferente e foram variando de posição até o final. O general Amaury Kruel (foi ministro da Guerra de Jango), por exemplo, foi um que variou até o momento do golpe. Mesmo o general Mourão, de Minas, não tinha noção do que deveria ser feito. Quem tinha? Os oficiais da Escola Superior de Guerra, o grupo do Castelo Branco. Esses sabiam que seria importante empreender no País a modernização conservadora. Mas, veja só, entregaram a economia ao (Otávio Gouveia de) Bulhões e ao (Roberto) Campos, que por sua vez saíram atrás da modernização capitalista - arrocho fiscal, arrocho salarial, tudo feito a machadinhas, o povo pagando um preço alto. Implantaram um programa austero, que deu na explosão econômica dos anos 70. Ora, quem fez isso não foram os militares, mas o Bulhões e o Campos. Havia necessidade de modernizar o capitalismo brasileiro. E, consequentemente, frear o avanço do setor estatal. Até porque o Juscelino já tinha feito o enganche do País com o setor produtivo global e os militares sabiam disso.

O senhor acha que o regime, no seu primeiro momento, tratou de sepultar o legado varguista?
O Castelo, talvez. A verdade é que os militares já estavam claramente divididos, e isso era visível no Clube Militar: havia o setor ultranacionalista e o setor democrático-liberal. Este se aproximava dos Estados Unidos. E o ultranacionalista, embora não engolindo os russos, achava que eles funcionavam como contra-peso ao poderio americano. Isso, evidentemente, tem a ver com as posturas "ser Getúlio" ou "ser anti-Getúlio", levando-se em conta que o Getúlio simbólico foi sempre o nacionalista-estatizante. É interessante notar como era o contexto da época: os militares nacionalistas-estatizantes, que nunca confiaram nas forças do mercado, eram chamados de esquerda, o que era exagero. E os democráticos-liberais eram vistos como direita, outro exagero.

Daí o regime foi se radicalizando.
Exato, foi radicalizando a tendência autoritária. Isso não foi pretendido no começo, mas foi se formando. E virou um monstro que, não fosse o (general Ernesto) Geisel ter-se oposto, justo ele, um nacionalista-estatizante, correríamos o risco de cair numa direita fascista. Uma direita que se justificaria pelo apego à ordem, e não pelo desenvolvimento capitalista. Cabe ainda muita pesquisa sobre o período, para analisar com objetividade e entender como tudo aconteceu ao largo de um intenso processo de industrialização e urbanização. São Paulo, em meados da década de 70, crescia 5% ao ano. Havia mais de cinco milhões de pessoas vivendo aqui. Tivemos um crescimento econômico que não correspondeu ao social. Isso começa a ser corrigido com a redemocratização e vem até agora. Penso que hoje, de novo, vivemos algo parecido. Não se tem mais a mobilidade rural-urbana do passado, mas uma intensa mobilidade social. As pessoas querem mais e o Estado não tem como dar. Instalados no poder, os militares trataram de providenciar uma fachada de legalidade ao regime. Chegaram a falar em "democracia relativa".De fato, eles nunca aceitaram que o regime não fosse visto como democrático.

Rejeitavam a ideia de fechar o Congresso. E mesmo impondo suas regras, queriam eleger o presidente. Isso faz diferença quando se compara ao que houve na Argentina e no Chile. Militares brasileiros disseram que o regime seria provisório, até que se purificassem as forças políticas, enfim, tinham essas ideias amalucadas. Os oficiais da linha dura, claro, não pensavam assim, eles de fato preocupavam-se com a ordem, a estabilidade do regime... Mas esse não era o pensamento da média do oficialato. Além disso, a ditadura foi perdendo apoios, tanto dos nacionalistas quando de setores democráticos. Nos anos 70, na Universidade de Yale, ouvi de Juan Linz, grande especialista em franquismo, uma frase que me marcou: "No Brasil, vocês não têm um regime autoritário. Têm uma situação autoritária". Por mais que buscássemos semelhanças entre os militares daqui com os chilenos e argentinos - e havia semelhanças, afinal, todos torturavam, o que é inexcusável - não havia o mesmo apego nem a mesma pretensão de uma nova ordem, algo também pregado pelo franquismo e o salazarismo. Estes acreditavam que para bem governar não era preciso ter o povo. Aqui se pensava que era preciso melhorar o povo para bem governar.

Mesmo com o avanço da visão monetarista na economia, inclusive nos anos Delfim Netto, até que ponto o regime terá mudado o perfil regulador do Estado brasileiro?
Nunca mudou completamente. O que se chamou de regime neoliberal nunca houve no Brasil. O Roberto Campos foi fundador do BNDES. O Delfim foi intervencionista em vários momentos. Celso Furtado nem se fala. Eu próprio sempre achei que o Estado deveria regular muita coisa. Aqui nunca houve um pensamento econômico liberal, de fato. Pensamento político-liberal eu até gostaria que tivesse mais, mas econômico-liberal nunca teve. O Estado sempre desempenhou um papel forte. O que é razoável, desde que o Estado não extrapole, como frequentemente tende a fazer. O que nos falta é liberalismo político.

Como se traduz isso?
Crença na democracia. O que se tem hoje? Pensamento corporativista. Os grupos se organizam e defendem seus interesses. Não aceitam regras de competição. E tem que ter, porque não há competição sem regra. Aqui, quando o Estado intervém, é justamente para evitar a competição.

Em novo livro, o pesquisador Daniel Aarão Reis levanta a seguinte questão: quando de fato terá terminado o regime militar? Em 1979, quando são revogados os atos institucionais, ou em 1985, quando o poder volta para as mãos dos civis? Enfim, quando a ditadura termina?

Só a partir de 1985. Nossa transição seguiu a opinião vencedora, diga-se de passagem, do Geisel, de que o País deveria viver uma abertura lenta, gradual e segura. Na época houve muita discussão a respeito e eu dizia o seguinte: o regime autoritário resiste como uma fortaleza. Nós, a oposição, estamos cercando a fortaleza. Esse negócio só vai ruir quando houver uma ruptura interna que se some à externa. Porque daí tem a infiltração. Esse momento aconteceu, a meu ver, pela primeira vez, quando o general Euler (Bentes Monteiro) aceitou ser candidato à presidência da República, pelo MDB, em 1978. Era uma facção deles que se descolava. Ulysses Guimarães fora inicialmente resistente a apoiar a candidatura do Euler. Queria o Magalhães Pinto, tendo o Severo Gomes (ex-ministro e mais tarde senador) como vice. Mas até o Severo preferia o Euler! Severo e eu ouvimos do Euler, pela primeira vez, que ele poderia aceitar ser candidato, quando então fomos falar com o Ulysses.

E qual foi a reação dele?
Ulysses me ouviu direitinho, embora Severo estivesse inquieto. Depois me chamou no canto: "O que o senhor acha mesmo deste general, professor?" Respondi "olha, dr. Ulysses, nós já deveríamos tê-lo apoiado há muito tempo". Ele fechou a cara: "Mas o senhor não sabe que São Paulo é civilista?". Disse que sabia, mas que não poderíamos perder o primeiro racha dos militares. Entendi que se não houvesse um racha naquela couraça, a situação não principiaria a mudar. E tudo foi um pouco assim. A Anistia acabou passando, mas não da maneira que queríamos, a liberdade de imprensa foi voltando, veio o Movimento das Diretas Já, mas fomos derrotados no Colégio Eleitoral, o Tancredo foi eleito pelo voto indireto, daí veio o Sarney, que era um elemento da transição, no entanto soube entender o momento histórico, enfim, tudo veio de forma lenta e gradual. Eu mesmo fui eleito senador pela oposição no tempo do Figueiredo, em plena ditadura. A ruptura final só vai se dar na eleição do Collor, quando o presidente passa a ser eleito pelo voto direto. Aí, sim, é outro momento.

Ou seja, a recomposição democrática foi se valendo das fraturas do regime.
Sim. E muita gente foi mudando, também. Severo Gomes e Teotônio Villela, por exemplo. Foram homens do regime e se transformaram em ícones da oposição. O próprio Ulysses votou a favor do Castelo Branco.

Anos antes, em 1973, Ulysses já havia procurado o grupo de intelectuais fundadores do Cebrap, entre eles, o senhor, para buscar apoio à sua anti-candidatura presidencial. Como foi esse momento?
Eu havia publicado um artigo no jornal Opinião, dizendo que era chegada a hora de intervir no processo. Que os intelectuais não podiam mais ficar pensando na guerrilha, trancados em casa. Que seria melhor fazer a luta possível, nas ruas. Daí o Ulysses foi ao Cebrap, ainda na rua Bahia, em Higienópolis, achando que éramos um grupo político, quando éramos apenas um grupo de pesquisadores, com posições críticas ao governo. Ele nos convidou para escrever o que seria um programa de governo do MDB. Expliquei que teria que consultar os colegas, e alguns toparam: Chico de Oliveira, Maria Ermínia, Bolívar Lamounier, Paul Singer, Francisco Weffort, eu....fizemos um livrinho de capa vermelha, um projeto social-democrata que foi a mãe de todos os programas que viriam a aparecer depois.

Como era esse programa de oposição, elaborado em plena ditadura?
Dizia coisas óbvias. Não ficava só no campo político, tratava de economia, de dívida externa, e daí entrava na questão da mulher, do negro, do índio, dos sindicatos. Foi um momento que marcou a minha aproximação com o MDB. Eu me lembro que Weffort e eu fomos a Brasília nos encontrar com aquelas "raposas", Amaral Peixoto, Nelson Carneiro, o próprio Tancredo, e nós, assustadíssimos, achando que eles não iriam aceitar o documento. E eles não estavam nem aí, só queriam um programa. Toparam na hora.

Foi difícil para o senhor entrar de vez na política?
Eu tinha um viés muito acadêmico, como já disse, mesmo contanto com o background político da minha família. Aos 37 anos, eu era um catedrático da USP, aposentado pelo AI 5. E fiz o quê, então? Escrevia nos jornais alternativos da época, o Opinião e o Movimento. Só entrei no MDB em 1977, porque o Ulysses pediu expressamente para eu ser candidato ao senado. Queria que eu disputasse para ampliar a base, porque indiscutivelmente seria eleito o Franco Montoro. E só quando Montoro virou governador de São Paulo é que eu assumi a vaga de suplente no Senado. Até aí minha relação no mundo política era com o Ulysses, com o João Pacheco Chaves, com o Pedro Simon, que tinha um grupo de estudos bem ativo no Sul.

Aceitar um jogo político engessado no bipartidarismo foi uma questão intrincada para os opositores do regime?
Sim, isso nos dividiu. Muitos diziam que não era possível participar, pois se tratava de uma oposição consentida. Eu estava convencido de que deveríamos usar as armas disponíveis. Até porque a situação muda. O MDB mudou e acabou funcionando como oposição verdadeira.

Nossa capenga estrutura partidária vem dessa época?
Quer que eu diga uma coisa? Não sei se vem só lá de trás. Acho que o problema é mais profundo. Falta uma visão consistente do que seja o jogo democrático entre nós. Aqui, o que conta é o governo, o Estado. E democracia é organização do povo. Do jeito que vamos, com 30 partidos e 39 ministérios, ficou inviável. O custo é a paralisação da máquina pública, como bem disse a ex-ministra Gleisi Hoffmann, numa entrevista recente. Passamos do presidencialismo de coalizão para o presidencialismo de cooptação, essa é a verdade. Eu mesmo fiz coalizões. Mas o limite dos acordos era votar reformas. Agora, não. O que temos é uma amálgama para dividir o poder e o butim do Estado. Isso não dá governabilidade.

Por quê?
Como o nosso sistema tem sempre esse elemento autoritário, que é a medida provisória, o governo se mantém e o Congresso fica cada vez mais achatado. Ora, a população que o sistema político vem perdendo legitimidade a olhos vistos. Enquanto a economia foi bem, essa crise não foi percebida. Agora, quando a economia não vai bem e tudo balança, ela aparece. Quando a presidente propõe um plebiscito, por exemplo, a ideia não se segura um mês porque não foi costurada, nem discutida e nem está atrelada a uma agenda política verdadeira. Estamos nos aproximando de uma situação delicada. Uma coisa são as flutuações econômicas, outra coisa é a paralisação da administração e do sistema político. Isso gera a separação entre sociedade e governo.

O senhor diria que estamos indo nessa direção?
Sim, e corremos riscos. Um deles é a perda da capacidade de olhar o futuro e tomar decisões. Outro é o de provocar uma irritação popular incontrolável - e daí, como resolver? As demandas estão crescendo, o Estado não toma decisões, não entende que boa parte do que faz pode ser passado para o setor privado, e faltam lideranças. Eu diria que, hoje, não temos o que ensinar sobre democracia. Temos é que aprender. Por exemplo, como é que a democracia convive com as redes sociais? Isso não está claro. Falta ouvir mais, estudar mais e dar espaço para a criatividade. Não podemos dizer que um partido, o PT, seja o culpado por tudo o que estamos vivendo. Até porque tudo é mais grave do que isso.

Em que pese a animosidade atual entre o seu partido e o PT, lá trás o senhor determinou que se fizesse uma transição transparente do seu governo para o do presidente Lula, em 2002.
Lula reconheceu isso de público recentemente, falando a empresários em Ribeirão Preto. Decerto imaginou que eram favoráveis a mim... Lula sabe o que fiz. Sempre tive preocupação institucional, daí o cuidado em transferir o poder, fincando bons fundamentos. Uma coisa que sempre me irritou na vida foi me chamarem de "neoliberal", esse qualificativo que não vale nada. Meu governo foi o oposto ao neoliberalismo. Fizemos ajuste fiscal, estabelecemos regras para a economia, aumentamos o salário mínimo, tocamos a reforma agrária, os programas sociais, demos prioridade à educação....e, diante do que foi feito, os governos posteriores ao nosso puderam avançar. Mas hoje não se preocupam em dar sustentabilidade ao que se construiu. Na vida política brasileira falta pensamento, falta interconexão e, no fundo, no fundo, falta grandeza. Você não vê ninguém dizendo vamos juntar forças e melhorar o País. Você só vê gente dizendo vamos juntar forças para ganhar eleição. Muito bem, ganha e faz o que depois? Como é que vai ser governar em 2015? Eu não sei.

Fonte: O Estado de São Paulo, 28/03/2014

Compartilhe

Twitter Delicious Facebook Digg Stumbleupon Favorites