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sexta-feira, 31 de março de 2017

Nas sociedades atuais, corremos o risco de fazer da censura a resposta padrão para qualquer opinião que nos ofenda

Julie Bindel é escritora, jornalista e feminista inglesa
Julie Bindel é a polêmica escritora, jornalista e feminista inglesa que mantém coluna no jornal britânico The Guardian. No vídeo abaixo, ela fala de como o "ofendidismo" vem se tornando um instrumento de censura contra todas as pessoas que contradizem a opinião dos chamados "guerreiros da justiça social" ou "politicamente corretos". Como ela reflete, não é possível banir tudo que nos ofende. Vale mais a pena ouvir os argumentos de quem discordamos não só para expandir nosso conhecimento, com outras visões de mundo, como para estabelecer estratégias racionais de resistência contra o que repudiamos.

Fiz uma edição da transcrição do vídeo, realizada pelo pessoal do site Fronteiras do Pensamento, de onde retirei o texto que se segue, para melhor compreensão.  

Julie Bindel: "Desculpe, mas não podemos banir tudo que lhe ofende"

Bloqueado nas mídias por amigos ou páginas? Teve comentários apagados de sites? Teve fotos removidas do Facebook? E perfis banidos? Encontrou problemas ao tentar discutir pontos de vista na faculdade ou com colegas de trabalho?

Há quem diga que o grande desafio atual é aprender a se sentir ofendido, pois seria este o ponto de partida para compreender outras visões de mundo. É o caso dos escritores Salman Rushdie, Ian McEwan ou Julie Bindel, que argumenta, nesta fala ao The Guardian, que “estamos rapidamente nos tornando uma sociedade em que a censura é o novo normal".

Veja abaixo a transcrição e o polêmico vídeo sobre censura e liberdade de expressão na contemporaneidade:


"Lamento, mas não podemos banir tudo que lhe ofende.

Em janeiro, mais de meio milhão de pessoas assinaram um abaixo-assinado para impedir a entrada de Donald Trump no Reino Unido.

Em 2015, a Conferência da União Nacional de Mulheres Estudantes  debateu banir o “cross-dressing (vestir-se com roupas do sexo oposto)" como fantasia, já que poderia ofender pessoas transgênero.

Eu tenho sido proibida de participar de debates pelos sindicatos de estudantes de todo o país. Em um debate, estudantes furiosos afirmaram que ficariam traumatizados se forçados a repetir minhas terríveis opiniões transfóbicas. Acontece que nenhum deles leu nada do meu trabalho.

O que aconteceu com a liberdade de expressão? Estamos rapidamente nos tornando uma sociedade na qual a censura é o novo normal.

Movimentos políticos, como os dos direitos civis dos negros americanos e o feminista, fizeram enormes progressos pois foram capazes de responsabilizar as pessoas por suas falas e atos.

Impedir as pessoas de manifestar publicamente suas opiniões não faz com que essas opiniões desapareçam.

Banir Donald Trump do Reino Unido não vai impedir os americanos de votarem nele.

Impedir Roosh V (escritor masculinista e antifeminista americano) de entrar no país... [áudio Roosh V: “Se legalizarmos o estupro, as mulheres terão maior cuidado com seus corpos...] ...não muda em nada o fato de que, no Reino Unido, uma média de 85 mil mulheres são estupradas e 400 mil abusadas sexualmente todo ano. Censurá-lo só nos cega sobre a existência das ideias que ele articula.

Vamos ouvir os argumentos defendidos por aqueles de quem discordamos para que possamos expandir nosso conhecimento e demonstrar uma resistência racional a eles.

Esse problema da censura está ficando cada vez pior e pior. Corremos o risco de fazer da censura a resposta padrão para qualquer opinião que nos ofenda.

A não ser que alguém esteja infringindo a lei, por incitar o crime com suas palavras, acredito que crime de fato seja não escutá-lo.


Fonte: Fronteiras do Pensamento, por Julie Bindel/The Guardian, 12/02/2016

segunda-feira, 6 de março de 2017

O sequestro do termo "gênero": uma perspectiva feminista do transgenerismo

Transgenerismo: de volta à medicalização do comportamento humano
Já havia escrito sobre transgenerismo aqui no blog, com o texto Que conservadores e "progressistas" me desculpem, mas não existe criança "trans", ainda não muito consciente das dimensões dessa nova onda. Hoje, melhor informada e mais preocupada, pretendo abordar, sempre que possível,  os vários aspectos que configuram essa moda regressiva. Para começar, traduzi e editei o texto abaixo, da ensaísta americana Terri M. Murray, também mestre em Teologia, com especialização em ética cristã, e doutora em Filosofia, que escreveu o livro "Thinking Straight About Being Gay: Why It Matters If We’re Born That Way," (algo como "Visão hétero sobre ser Gay: Por que importa se nascemos desse jeito?").

Ressalvo que, neste texto, quando a autora fala em "queer", refere-se à comunidade de lésbicas, gays, bissexuais e drags e não aos adeptos da teoria queer.  "Queer" é um termo pejorativo, em inglês, usado contra homossexuais e outros indivíduos sexualmente não normativos. Significa esquisito, estranho, anormal. Já em fins dos anos 80, contudo, ele passou a ser assumido pelos próprios discriminados como identidade política, principalmente no contexto do surgimento da AIDS. A partir da década de 90, sobretudo de 1991 em diante, passa a ser adotado pelos acadêmicos que forjaram a chamada Teoria Queer, entre outros, Teresa de Lauretis, Michael Warner, Judith Butler, Eve Kosofsky Sedgwick, Lee Edelman. 

Por fim, embora tenha alguma divergência com a autora, concordo no geral com sua abordagem que me trouxe inclusive um novo dado sobre o tema. Ela faz um histórico a respeito da mudança do conceito de gênero, da visão progressista, dos tempos dos movimentos pelos direitos civis (meados do século passado até o novo milênio), para a visão regressiva atual. Aponta como o movimento transgênero sequestrou a linguagem e imitou a  postura política dos movimentos libertários anteriores, com intenção, contudo, oposta a desses movimentos (cavalo de Troia de uma política sexual regressiva). Aponta também para o retorno da medicalização do comportamento humano, trazida no bojo do transgenerismo, em particular no que se refere ao possível futuro da biotecnologia como ferramenta para eliminar homossexuais ainda no útero. E termina proclamando a volta ao conceito de gênero anterior como a via para nos livrar do possível futuro distópico que se avizinha. Não é uma leitura rápida, mas para sorver como um bom vinho. Degustem!

Terri M. Murray
O sequestro do termo "gênero":
uma resposta feminista ao transgenerismo 

Gênero costumava ser um conceito legal. Feministas fodonas como Simone de Beauvoir o usaram para distinguir o que você tem no meio das pernas (sexo) do que tem entre  as orelhas (gênero). Você nasceu com o primeiro; o segundo lhe ensinaram. O que colocaram entre suas orelhas (mente) chegou ali via doutrinação cultural patriarcal.

Mas essa concepção libertadora sempre teve variados opositores. Quando as mulheres começaram a ocupar papéis considerados masculinos ou posições consideradas tradicionalmente masculinas, os agentes do patriarcado recorreram à “natureza” para reforçar o sistema. Apelar para a "natureza" funcionava (e funciona) porque a paisagem cultural estava tão saturada de estereótipos (e continua) que eles pareciam (parecem) realmente naturais. Nesse contexto, foi fácil criar uma teoria biologicamente determinista para explicar porque o patriarcado não seria uma questão política mas sim uma necessidade biológica. Sociobiologistas, como E.O. Wilson, insistiram que a persistência do patriarcado se deveria ao suposto fato de a cultura ser assentada nos genes 😲.

Nada de novo nessa abordagem. Freud já havia postulado que as raízes da cultura patriarcal emanavam do pênis e da vagina (principalmente do todo-poderoso pênis). Tradicionalistas cristãos sempre vincularam os arranjos sociais patriarcais às funções reprodutivas, como visto na “Criação”, limitando os papéis sociais das mulheres aos de mãe e esposa. A transgressão e a punição de Eva por "deus" reforçaram mais ainda a subserviência da mulher ao marido. E São Paulo acrescentou uma pitada da autoridade do Novo Testamento a essa receita, declarando que as mulheres “deveriam se submeter aos maridos” assim como ao "senhor". A sagrada instituição do casamento era uma invenção humana, mas continha as intenções de “deus”.

Algumas feministas teimosas se recusaram a concordar com essa naturalização do patriarcado e seu concomitante determinismo biológico, em vez disso apontando a dominação masculina como resultado das instituições sociais, culturais, teológicas, acadêmicas e econômicas de nosso mundo. Existencialistas como Beauvoir abominavam ideias que tentavam explicar o comportamento humano como determinado por alguma "essência" fixa. Tanto ela quanto seu companheiro de longa data, Jean-Paul Sartre, insistiam que o caráter dos indivíduos é formado em resposta às circunstâncias que vivenciam e através das escolhas que realizam. Somos jogados nesse mundo, in situ, com nossa capacidade de livre-arbítrio, e nossas escolhas precisam ser tomadas inclusive frente a situações imutáveis como a do sexo biológico com o qual nascemos. Mas como as pessoas reagem a essas situações depende de cada uma particularmente. Embora seja óbvio que apenas mulheres possam engravidar, as implicações dessa capacidade são indeterminadas, e a atual divisão sexual do trabalho é apenas uma possibilidade de arranjo social entre várias outras.

Assim como as feministas de outrora, gays, lésbicas e bissexuais costumavam transgredir os estereótipos de gênero ensinados pela cultura patriarcal. A partir dos amplamente difundidos mitos de gênero heterossexistas, essas pessoas desviantes (queer) foram rotuladas de “sapatões”, “bichas”, "caminhoneiras", “viados” — nomes criados para estigmatizar qualquer indivíduo que se recusasse a agir e se vestir de acordo com os papéis de gênero sexistas e heterossexistas. Mas elas reagiram à intolerância dos criadores desses mitos, apropriando-se desses apelidos pejorativos e transformando-os em bandeiras de luta.
Dzi Croquettes
 Ao tornarem as normas de gênero uma forma de teatro, drag queens e kings mostraram que qualquer pessoa pode adotar e imitar os papéis de gênero independente de sua genitália particular, dessa forma expondo o fato de que o gênero não é algo natural, mas sim uma forma convencional de interpretação, como um figurino que se usa ou se tira (a la Judith Butler). Queers encarnaram o fracasso dos estereótipos de gênero em colar nas pessoas reais. Tudo isso era revolucionário porque desnudava a ficção conservadora de que todos os homens compartilham de uma personalidade heterossexual masculina diferente da das mulheres e vice-versa.
Na esteira das feministas, os queers começaram a apontar que somados aos mitos sociais sobre como meninos e meninas se sentem vem também a noção de que todas as pessoas são atraídas pelo sexo oposto. Boa parte da concepção de gênero é construída com base nos papéis heterossexuais e no heterossexismo. Os papéis sociais femininos e masculinos, culturalmente normativos (quer dizer, papéis de gênero), tornaram-se ritualizados como parte da cultura ocidental cristã que fetichiza e erotiza a diferença sexual.  Exagerar as diferenças entre mulheres e homens, mistificar o sexo oposto e tornar tabu os atos sexuais serve também para elevar a excitação de penetrar os mistérios do "outro" e transpor as barreiras que se opõe à realização sexual. Pressupor que a heterossexualidade é inata facilitou a bifurcação dos humanos em dois tipos opostos que se atraem mutuamente. Da mesma forma que as feministas rejeitaram a definição de “mulher” como ser oposto ao ideal masculino, os homossexuais se recusaram a ver a si mesmos como a versão defeituosa ou perturbada dos heterossexuais.

Tanto para as feministas quanto para os queers de fins do século passado, o natural havia sido reprimido pelo social. Ao mesmo tempo, porém, o "natural" também era produzido pelos pressupostos culturais e teológicos existentes. Ideias sobre gênero não são apenas resultado de observações empíricas; elas são as premissas das "pesquisas". Por isso, quando os indivíduos não se amoldam aos estereótipos de gênero, alegadamente estariam invertendo os papéis de gênero (supostamente fixos, reais) e não expondo-os como as ficções que de fato são. Se os indivíduos, quando observados, não se conformam realmente com as ideias sociais de gênero, então isso deveria valer como evidência de que as ideias sociais sobre gênero são furadas. Em vez disso, os papéis de gênero são pressupostos a priori, e as evidências em conflito com eles são interpretadas como sinais de "anormalidade" ou "desvio", não como uma indicação de que a pressuposta "norma" sempre foi falha. Há um problema de circularidade em toda a moldura conceitual onde as questões de gênero são "pesquisadas". O bestseller de John Gray "Homens são de Marte, Mulheres são de Vênus" é um bom exemplo dessa metodologia anticientífica.
O novo movimento transgênero não é uma extensão dos esforços anteriores para desconstruir a mitologia sexista e heterossexista. Não agrupa feministas e dissidentes de gênero numa frente solidária e unida em oposição à mitologia heterossexista e aos estereótipos sexuais. Ao contrário, divide e conquista o outrora poderoso movimento contracultural, sequestrando sua linguagem e imitando sua postura política para disfarçar intento oposto ao desse movimento. Embora numericamente reduzidos, os ativistas transgênero, promotores desse contra-ataque ao movimento contracultural, são figuras bem posicionadas no establisment e contam com apoio total da mídia na promoção de sua "causa" - outra coisa que os separa dos predecessores libertários dos anos 80 e 90.
Nos últimos anos, o termo "gênero" foi radicalmente redefinido por esse movimento reacionário que o tornou sinônimo de mero estado mental interior em oposição a seu significado original de "série de convenções (e restrições) sobre como mulheres e homens podem ser e o que podem fazer". Chrissie Daz está certa ao afirmar que alguma coisa fundamental se alterou na forma como o termo gênero passou a ser entendido no século XXI, com os novos ativistas transgênero representando uma grande mudança paradigmática em relação à concepção de gênero prevalente nos 40 anos anteriores. A princípio uma ideia empunhada pela esquerda liberal (social-democrata) contra as normas sociais sexistas e heterossexistas conservadoras, o termo "gênero" foi transformado numa arma do arsenal de uma política regressiva que não é somente sexista mas também homofóbica. 
O atual movimento transgênero reforça o mito de que homens e mulheres são espécies diferentes de seres humanos, não apenas reprodutiva mas mentalmente - com diferentes desejos, necessidades, atitudes e mentes distintas. Agora os porta-vozes do transgenerismo apoiam a naturalização conservadora tradicional de "masculinidade" e "feminilidade" como estados psicológicos inatos, intrínsecos ao ser humano desde o nascimento e provenientes de química cerebral ou de outras interações hormonais do corpo. A ideia progressista de que não há um jeito uniforme de meninas e meninos sentirem ou pensarem foi descartada. Em vez de lutar contra o rígido binarismo de gênero heterossexista (como sua retórica, aliás, sugere), os novos guerreiros transgênero assumem que seu inato senso de eu  ("identidade") é inerentemente "masculino" ou "feminino" antes de qualquer socialização. Aparentemente, julgam que a doutrinação cultural é insignificante. O termo "gênero" foi despolitizado, naturalizado e medicalizado de um só golpe.
Gênero agora é um conceito que aparenta fazer o tipo de trabalho político outrora associado ao movimento dos direitos civis. Na verdade, contudo, sua nova versão reverte a lógica que norteou os direitos civis no passado. Os ativistas dos direitos civis  apontavam que a discriminação baseada em diferenças biológicas como cor da pele ou sexo falhava em reconhecer a humanidade comum a todas as pessoas como agentes morais. Agrupar pessoas de acordo com traços físicos comuns negligencia o caráter e a individualidade das mesmas. Grupos humanos eram definidos por referência à cor de pele ou aos genitais, não por seu agenciamento humano, seu caráter ou comportamento. Assim as pessoas eram reduzidas a seus corpos (ou parte deles) enquanto seus atributos mais distintivos de intelecto e vontade (aspectos que deveriam fundamentar qualquer avaliação de caráter) eram negligenciados.

A "masculinidade" ou "feminilidade" da psique trans é tratada como uma condição
 inata semelhante à cor do cabelo ou à pigmentação da pele.
Os ativistas de gênero atuais não reivindicam ser tratados como indivíduos nem veem seu caráter como uma escolha. Eles enfatizam que pertencem a uma ‘minoria’ definida pela identidade de gênero ou por uma similar condição biológica que alegadamente teriam com outras pessoas. Enquanto os ativistas de direitos civis tornaram a biologia irrelevante, os ativistas dos direitos de gênero a colocaram num altar. A "masculinidade" ou "feminilidade" de sua psique é tratada como uma condição inata semelhante à cor do cabelo ou à pigmentação da pele. Assim sendo, como categoria de pessoas definidas por referência a uma suposta diferença biológica inata, eles não deveriam sofrer mais discriminação do que mulheres ou minorias étnicas. Entretanto, enquanto mulheres e minorias étnicas dos movimentos civis de meados do século XX estavam ansiosas por se desassociar das referências biológicas reducionistas de suas identidades, reivindicando não ser definidas a partir de sua genitália ou cor da pele, os ativistas transgênero de hoje reivindicam reconhecimento de sua alegada diferença "biológica", acreditando que o pertencimento a um grupo biológico particular os autoriza a ter direitos civis.

Adotar a narrativa biológica determinista da condição trans (uma psique de gênero inata) requer que primeiro aceitemos as premissas conservadoras sobre gênero. Como vimos acima, uma coisa que vem incrustada no conceito de gênero é a heterossexualidade obrigatória de mulheres e homens. Assim, se a ideologia de gênero heterossexista define "mulher" como par erótico do homem, as lésbicas tendem a não se identificar com a ‘feminilidade’ (papel de gênero feminino), já que não se sentem atraídas por homens nem desejam ser objeto da atenção sexual masculina. Da mesma forma, gays acharão difícil se encaixar na masculinidade heterossexual e suas correspondentes suposições eróticas.
Uma vez que o conceito de gênero binário vem sendo renaturalizado e recolocado como um dos dois possíveis estados psicológicos dos seres humanos, as pessoas de sexo feminino que se identificam com o que se convencionou chamar de masculino e seu correspondente objeto de desejo ficam com a única opção de "se tornar" do sexo masculino. Se elas desejam "agir como homens", sendo biologicamente mulheres, é porque estão doentes (disfóricas). O mesmo para as pessoas de sexo masculino que sentem forte afinidade com os papéis normativos de gênero feminino e sua correspondente orientação sexual. Não por menos pessoas homossexuais andam tão confusas diante desse contexto.
Médicos especialistas em transgêneros identificam a disforia (insatisfação) de gênero como uma condição psicossexual anormal. Mas, se a disforia é realmente um efeito ou sintoma do mal-entendido da sociedade a respeito da bioquímica sexual natural, então a doença não é intrínseca ao paciente; ela  resulta do relacionamento entre o paciente e a cultura circundante. De fato, tanto o eugenista liberal Nicholas Agar quanto os bioeticistas cristãos Michael J. Reiss e Roger Straughan interpretam "doença" como um conceito socialmente construído ou “de certo modo, um relacionamento entre a pessoa e a sociedade”.
Os ativistas queer do passado, porém, argumentavam que é a natureza do próprio relacionamento - não a natureza do "paciente" - que faz o mesmo se sentir infeliz. Hoje, todavia, o desconforto social com a diferença foi reconceituado como uma anormalidade psicossexual da constituição do paciente. O "cérebro desordenado" do sujeito é visto como a causa de uma inaceitável interação do indivíduo com as organizações sociais. Como consequência política dessa concepção, desvia-se o foco da crítica das instituições sociais necessitadas de reforma para a reforma do indivíduo supostamente anormal. Ele precisa ser reformulado para se encaixar nas instituições.
Para citar um exemplo de como isso funciona na prática, basta considerar a situação das pessoas homossexuais no Irã. O Irã é uma teocracia sexista, intolerante e homofóbica, onde as leis fundamentalistas religiosas impõe um estrito status quo heteronormativo. A solução estatal para a homossexualidade nesse país se resume a duas possibilidades: (1) punir ou executar quem a pratica abertamente, ou (2) "encorajar" homossexuais a transicionar, cirurgicamente, para o sexo "correto" de modo que a pessoa se encaixe na norma heterossexual, a única norma que o Irã tolera. Consequentemente, o Irã tem o segundo maior número de cirurgias de redesignação sexual do mundo, perdendo apenas para a Tailândia. Tal fato se assemelha ao clareamento químico da pele das pessoas negras para torná-las mais aceitáveis numa sociedade racista, quando o que deveria ser feito é atacar o racismo. Trata-se de uma política regressiva. Em vez de rejeitar ou desconstruir o binarismo heteronormativo, a indústria médica está facilitando a "desconstrução" literal do indivíduo transgênero - literalmente desconstruindo seu próprio corpo -  de modo que ele se refaça na imagem heterossexista desejada. Isso é violência mascarada de compaixão.
Esse tipo de prática não é muito diferente da "medicina" de estilo soviético do início dos anos 70, quando o estado soviético usava de violência física somente como último recurso ao lidar com os dissidentes que começavam a pressionar por mais liberdade política. Investigações psiquiátricas e diagnósticos de doença mental (esquizofrenia geralmente) se tornaram o instrumento preferido para possibilitar o encarceramento dos dissidentes em hospitais psiquiátricos. À luz do relacionamento político conturbado entre o movimento pelos direitos homossexuais e as instituições políticas vigentes, a atual tendência de tratamento transgênero pode ser melhor analisada com base no argumento de Michel Foucault de que toda as categorias de desordens psicológicas são expressões de relacionamentos de poder na sociedade. De forma simplificada, Foucault vê a loucura não como própria do indivíduo mas sim como uma definição social desejada pela sociedade para o segmento não-conformista de sua população.

O "reconhecimento" clínico e médico aparentemente progressista e compassivo do "paciente" transgênero está na realidade reforçando o binarismo heteronormativo que por muito tempo causou sofrimento e alienação para uma grande variedade de pessoas homossexuais. Não precisamos nos opor a que adultos bem informados consintam em transicionar cirurgicamente para um corpo com o qual se sintam mais à vontade. Entretanto, progressistas não deveriam correr para abraçar esta opção acriticamente ou como a solução principal para os que sofrem com a chamada disforia de gênero.

Editado de comentários do facebook: cons e trans, farinhas do mesmo saco
Simplesmente não há como testar se a infelicidade de alguns com seu corpo é um subproduto da doutrinação dogmática de gênero ou uma condição inata, já que todas as culturas tem doutrinação de gênero, embora das formas as mais variadas. Não há um grupo de controle contra o qual se possa comparar indivíduos doutrinados pelos estereótipos de gênero. Mas a reivindicação dos transativistas de que algumas pessoas do sexo feminino são inerentemente "masculinas" enquanto outras de sexo masculino são inerentemente "femininas" assume o que precisa provar: a saber, que o gênero é natural e intrínseco à feitura psicossexual dos indivíduos em vez de uma série de ficções culturalmente em circulação que as pessoas internalizam. Embora não haja problema em aceitar a hipótese de que a orientação sexual possa ser inata, tal aceitação não nos compromete a comprar uma teoria essencialista de gênero. De fato, feministas e queers progressistas deram um tiro no pé ao abandonar a distinção natureza-cultura que o conceito de gênero anterior tão bem iluminou.

No contexto da narrativa determinista de gênero, torna-se difícil distinguir a pessoa homossexual da transgênero. Esta última é conceitualizada como alguém que tem uma psique feminina ou masculina presa no corpo "errado". Mas, "errado" de acordo com quem ou com o quê? Não importa se homossexual ou heterossexual, as normas de gênero binárias representam uma série de restrições de atuação para pessoas de sexo feminino e masculino. A própria homossexualidade representa uma boa razão para que algumas pessoas não se sintam à vontade em seus próprios corpos, dadas as expectativas sexuais erigidas junto com as normas de gênero heterossexistas. Mas algumas pessoas heterossexuais também consideram muito difícil se identificar com muitas das expectativas inerentes ao gênero que lhes designaram. Algumas pessoas simplesmente acham os conceitos de gênero muito alienantes e não conseguem se adaptar a suas generalizações sobre "mulheres" e "homens". Não são doentes por isso, apenas apresentam um sintoma de desconforto social. Todos os indivíduos são "encorajados" a acreditar que ficarão melhor e serão mais felizes se suas ideias sobre seus "eus" biológicos se encaixarem com as ideias culturalmente aceitáveis. E elas podem ser ainda mais felizes se transicionarem em vez de virarem crossdressers ou viverem com a constante rejeição que assombra os não-conformistas. Numa sociedade inclusiva, a opção de transicionar não deveria ser descartada, mas, de novo, igualmente não deveria ter precedência sobre a luta por novas reformas sociais. Sobretudo deveria ser uma decisão tomada apenas por  adultos que estão plenamente conscientes do papel que a cultura joga no entendimento que elas têm de si mesmas.

Para compreender as implicações políticas iminentes da atual tendência de direitos transgênero, precisamos ter clareza de como seus conceitos centrais funcionam em relação aos direitos da mulheres e da população LGBI assim como em relação à eugenia liberal. Eugenistas transhumanistas/Liberais (Nicholas Agar, Julian Savulescu, James Hughes, Nick Bostrom, David Pearce, Gregory Stock, John Harris, Johann Hari, et al.) combinam biopolítica com economia de livre mercado para alcançar uma política social ostensivamente liberal sobre o uso da biotecnologia. Estes autoproclamados "eugenistas liberais" estão reivindicando o uso ilimitado ou desregulado da reprogenética. Eles diferenciam a reprogenética da eugenia considerando que esta última implica coerção estatal a pretexto de beneficiar pessoas. A primeira (reprogenética) seria voluntariamente buscada por pais com o objetivo de melhorar suas crianças de acordo com suas preferências. Esta seria uma eugenia "privatizada" ou de "livre mercado" (havendo naturalmente um incentivo financeiro para promover seu uso).
Dentro da aparentemente progressista barriga do Cavalo de Troia transgênero se esconde uma política sexual regressiva que está pronta para usar a medicina e a biotecnologia a fim de, primeiro cirurgica e quimicamente - e mais tarde talvez mesmo geneticamente - recolocar-nos nos papéis tradicionais do velho binarismo heterossexual. A engenharia social feita por meio da disciplina e da punição pode logo ser realizada via biotecnologia, tratamentos hormonais pré-natais e/ou edição de genoma.
Considerando a hipótese de uma causa biológica para a atração homossexual, eliminá-la certamente reduzirá o comportamento homossexual. Negar tal fato é fingir que atos sexuais voluntários não têm relação com a atração sexual involuntária. O exato propósito das intervenções reprogenéticas será, através da eliminação da predisposição biológica involuntária para o comportamento homossexual, eliminar o comportamento homossexual voluntário dos indivíduos. Isso acontecerá não por tirar o livre-arbítrio dos indivíduos mas sim por guiar biologicamente a direção para onde suas escolhas se encaminharão, onde serão  mais provavelmente expressas. Mas poderão ainda aquelas pessoas cuja orientação sexual principal é hétero se engajar em atos homoeróticos? Naturalmente. Mas isso passa ao largo da questão central. As intervenções reprogenéticas para proibir o desejo homossexual constituiriam uma forma de engenharia social, que não é terapêutica em qualquer sentido médico, visando restringir o comportamento do indivíduo (sem seu consentimento) aos objetivos de vida que os pais preferem. O futuro poderá trazer pessoas homossexuais que não se rebelem contra a doutrinação homofóbica dos pais nem saiam do armário porque simplesmente não desejarão fazê-lo.

O novo movimento trans (intencionalmente ou não) remove a única barreira que impede pais de serem capazes de presumir o consentimento implícito do paciente para essa espécie de "tratamento" eugenista de sua "condição" psicossexual. Para definir e mirar a orientação homossexual como uma condição médica passível de "tratamento" será necessário primeiro distinguir esse "tratamento" da violência médica homofóbica, que seria muito questionável. O que inviabiliza essa distinção é a suposição de que o paciente alegremente coincidiria com tal "tratamento". Em sua pressa para abraçar os "direitos transgênero", progressistas bem intencionados e pessoas homossexuais estão fomentando exatamente essa suposição. O movimento eugenista homofóbico tem buscado o santo graal da orientação sexual biológica com o objetivo de descobrir como mudá-la. Se algum dia realmente localizarem uma causa ou causas biológicas para a orientação homossexual, só lhes faltará, para poder curá-la, uma moldura conceitual que lhes permita a edição homofóbica do genoma ou o tratamento hormonal  pré-natal a fim de parecerem benevolentes. Como o "tratamento" será feito num feto, os especialistas precisarão patologizar a homossexualidade de tal forma que os pais acreditem que é como se tivessem o consentimento do paciente (prole) para sua "cura".

Mas eles só podem presumir tal coisa se os indivíduos com sexualidades não binárias consentirem em mudar a si mesmos. O movimento transgênero luta pelo reconhecimento de sua condição desviante como condição médica e reivindica o "direito" de seus integrantes, como pacientes, de ter acesso à assistência médica para transicionar de volta à definição de saúde socialmente conservadora.

Mesmo que alguns dos transicionados não venham a se tornar heterossexuais, terão de qualquer forma apoiado a noção heterossexista de que gênero é, para algum subconjunto de indivíduos, uma condição biológica interna que os faz se sentir mal. Como pacientes voluntários que aceitam a medicalização de sua infelicidade, eles terão jogado um importante papel na reformulação teórica de questões políticas como patologias clínicas. Embora os apoiadores dos trans sejam motivados por boas intenções, eles involuntariamente ajudam os conservadores sociais a vender uma agenda eugenista ao público, travestindo-a  de compaixão esclarecida ou tolerância pela diversidade.
Não há razão pela qual não possamos sentir compaixão por pessoas que se sintam presas num corpo biológico "errado". O perturbador não é como esses indivíduos se sentem.  Pelo contrário, a questão é como seus sentimentos estão sendo enquadrados ou interpretados, e isso se deve em parte aos contextos sociopolíticos nos quais seus sentimentos surgiram em primeiro lugar. Como Sarah Ditum argumentou, "a existência do sofrimento não é evidência de que o sofredor tenha clareza inquestionável da origem de seu sofrimento." Se as sociedades fossem organizadas em torno da ideia de que a sexualidade humana natural (atração) inclui tanto as variantes heterossexuais quanto as homossexuais, não somente isso ajudaria a eliminar o estigma associado aos intersexuais, como diminuiria significativamente a homofobia e (em grande medida) o sexismo. E como isso quebraria os mitos sexistas que alienam os que não se sentem "à vontade" com os papéis sociais designados para pessoas de seu sexo, provavelmente haveria também um aumento do bem-estar daqueles que atualmente sentem que estão presos no corpo "errado".
                  
Fonte do original: Culture on offensive: The Hijacking of Gender: A Feminist Take on Transgenderism Tradução: Míriam Martinho, São Paulo, 04/03/2017

Chimamanda Ngozi Adichie é uma escritora nigeriana. Aqui ela afirma o óbvio: "Não acho que seja uma boa coisa falar das questões das mulheres como se fossem as mesmas das questões das transfemininas (ou transmullheres) porque não acho que isso seja verdade. 

Uma transfeminina (ou transmulher) honestíssima afirma que as trans não são mulheres.

Também se opõe aos procedimentos de transição em crianças pelos danos que causam à saúde das mesmas.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Retrospectiva 2015: "Sobre o terrorismo islâmico: Porque o Islã é, sim, violento"

Porque o Islã é, sim, violento

Por Alex Antunes 

Psiquicamente violento, aliás, como qualquer religião; particularmente as monoteístas. O grande problema com essas religiões não é, como acusa a ciência, a crença irracional em dogmas não aferíveis. É situar a “verdade” fora de si mesmo, em algum código mais ou menos simplório, imutável e ditado por algum deus didático. E não é bem assim que as coisas funcionam.

O religioso autoritário projeta fora de si, num deus ou profeta x (coloque aí qualquer nome, incluindo Maomé, o gatilho da vez), um conjunto de regras que direciona e simplifica a sua relação angustiosa com a complexidade do mundo. Na verdade o que esse covarde está fazendo é se furtar à aventura mais empolgante da experiência humana: descobrir os fundamentos de sua própria ética.

Mas porque a sua própria ética não poderia ser exatamente a de Maomé (ou do deus cristão, judaico etc)? Poderia. Se ele não tivesse a expectativa de converter outras pessoas ao seu sistema, e oprimir os “infiéis”, ou seja, tentar aumentar sua zona de conforto, ao custo do desconforto moral dos outros.

Não é à toa que nas religiões monoteístas o ser superior é invariavelmente representado por uma figura masculina “forte”. Nas religiões politeístas, o arquétipo do patriarca existe, mas é um entre outros, incluindo deusas, deuses instáveis, insondáveis e truqueiros, ou seja, todo um catálogo de comportamentos humanos. O que tende à tolerância com comportamentos variados, e mesmo eticamente dúbios (fazem parte do jogo da vida – e não necessariamente de um polo “do mal” e inaceitável).

A onda de declarações “do bem” da comunidade islâmica, após o atentado ao Charlie Hedbo, não cola. Um exemplo da empáfia autoritária muçulmana em contextos em que não é justificável (ou em que é ainda menos justificável) é dado no caso do filme Femme De La Rue, da estudante belga Sofie Peeters, sobre o assédio nas ruas. E na reação do líder muçulmano local Abu Haniefa, que respondeu acusando Sofie de “provocar os homens” ao andar pelas ruas “nua como uma prostituta”, e “pintada como uma palhaça”.

Claro que Sofie no filme está vestida normalmente, e simplesmente anda em um bairro (de maioria muçulmana) da capital de seu país, enquanto é assediada. Como eu comentei aqui, me lembra a piada de um homem que faz um teste de Rorschasch, e é diagnosticado como obcecado sexual. Aí ele diz “me mostram um monte de imagem de safadeza (aquelas manchas disformes do teste), e querem que eu pense no quê?”. O autoritário moralista está sempre projetando no outro as suas patologias, mazelas e dificuldades no mundo.

O comportamento de parte da esquerda, acusando os cartunistas de mexerem com a sensibilidade religiosa dos outros, é absurdo. Eles, os cartunistas, foram (fomos) agredidos antes, por alguém que acha que tem acesso a um código moral superior. Como disse Stephane Charbonnier, o Charb, “Maomé não é sagrado para mim. Eu vivo sob a lei francesa, não sob a lei do Corão”. É quase uma obrigação para um francês consequente trollar a ideia de que Maomé (ou qualquer deus) dite um código moral rígido para a civilização européia.

O comportamento de outra parte da esquerda, abduzindo para si o Charlie Hebdo (“O ataque ao Charlie Hebdo é um ataque à extrema esquerda”) também não procede. Não há porque duvidar da sinceridade de gente de qualquer matiz político que se sentiu atingida pelo atentado. E a contracultura, território de origem do CH, não é monopólio da esquerda ortodoxa, mesmo que alguns dos cartunistas envolvidos tenham sido comunistas de carteirinha.

Basta lembrar que a última capa, no próprio dia do atentado, foi simpática ao escritor Michel Houellebecq, que é acusado de dar munição para a extrema direita francesa com seu livroSoumission. Charb e o Charlie estavam explorando, corajosamente, um território em que esquerda e direita ortodoxas se misturam, se confundem e não sabem o que fazer. Ele engloba, além da imigração, questões comportamentais e de direitos individuais, como gênero, sexualidade, consumo de substâncias postas na ilegalidade etc.

No filme Profissão De Risco, com Johnny Depp, inspirado na vida do traficante americano George Jung, quando é acusado de atravessar uma fronteira portando maconha, ele diz: “estou sendo sentenciado por atravessar uma linha imaginária carregando uma planta”. É esse grau de translucidez que tem que ser mantido quando os “seres superiores” e seus códigos morais esquisitões falam.

Todos os fundamentalistas (inclusive os fundamentalistas políticos) que querem impor a sua percepção de mundo a quem não está minimamente interessado nela exercem algum grau de violência, seja essa violência física ou psicológica. Como eu comentei ontem, neste texto, Atentado À Inteligência: “É claro que é direito dos muçulmanos (e de outros fundamentalistas) (…) serem ‘submissos’ a seu deus (ou concepção de sistema social). É nisso que o humor, ou o chiste, se converte num inimigo central dos fundamentalistas: ele é a farpa que esvazia o balão autoinflado dessa ‘autoridade moral’, dessa solenidade patética, dessa angústia pela infalibilidade – que é a mais humana das características. Assim como (…) os sistemas religiosos contenham sempre uns fragmentos de verdade, tomá-los como o todo da verdade será sempre um erro”.

E exigir isso dos outros, além de erro, é intolerável. Na verdade, o sufismo (a parte mística do Islã), assim como a cabala judaica e o cristianismo primitivo, tem tecnologias mágicas e espirituais fascinantes, e bastante funcionais inclusive. Mas essa parte da experiência religiosa se perdeu, se contaminou ou foi engessada na religião institucional e em seu viés político. Posto assim, não interessa se Jesus ou Maomé ou seja lá quem for foram figuras históricas e/ou grandes iniciados. Cabe é dar um sonoro f*-se a quem (pensa que) fala em nome deles.


Fonte: Blog do Alex Antunes, 11 de janeiro
Publicado originalmente em 21/01/2015

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Surreal: cinco projetos de lei tramitando na Câmara querem impedir críticas a políticos

No Brasil, estamos entre os autoritários de direita e de esquerda. Cinco projetos de pmedebistas querem nos impedir de criticar políticos, transformando as críticas até em crime hediondo. É ler para crer e assinar contra rapidinho. Vejam o link do abaixo assinado ao fim do texto.

Deputados do PMDB querem censurar a internet e ler suas mensagens

Projetos 'Big Brother' tramitam na velocidade da luz na Câmara de Eduardo Cunha. O relato abaixo vai lhe parecer coisa de ficção. Mas não é.

A Câmara dos Deputados está tentando aprovar projetos de lei que vão intimidar eleitores que criticam os políticos na internet (quem nunca?), violando liberdades individuais, garantias constitucionais e o bom senso.

É uma inversão de valores que sabota a própria ideia de democracia, reforça a tentativa do Estado de dominar a sociedade, e cria um ‘Big Brother’ a serviço dos políticos e contra os cidadãos.

Cinco projetos de lei — tramitando na Câmara na velocidade da luz — aumentarão penas e, em alguns casos, podem transformar em crime hediondo ‘ofensas’ contra políticos na internet. A votação de um deles, na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), foi dia 30/09.

A autora do principal deles, o projeto de lei 1.589, de 2015, é a deputada Soraya Alencar dos Santos, do PMDB do Rio de Janeiro (um selo de qualidade, para quem conhece a política do Estado).

O projeto de Soraya reforma o Marco Civil da Internet para permitir que qualquer ‘autoridade competente’ — qualquer órgão público — possa requerer acesso aos dados de qualquer internauta, sem a necessidade de uma ordem judicial, como ocorre hoje.

Como se isto já não fosse arbitrariedade suficiente, o projeto prevê que a ‘autoridade’ poderá ter acesso também a todas as comunicações do usuário de internet, como as mensagens diretas trocadas no Facebook, Twitter e Whatsapp.

Eleita por Macaé, cidade petroleira do litoral do Rio de Janeiro, a deputada Soraya é desconhecida do Brasil, mas neste dia estava psicografando grandes nomes da História, como Josef Stálin, aquele grande democrata soviético, e J. Edgar Hoover, o poderoso chefe do FBI que invadia a intimidade de seus adversários.
Mas a deputada Soraya quer mais. Ela dobra a meta. Pela lei atual, ‘ofensas’ contra políticos — frequentemente verdades ditas sobre eles — só são investigadas e vão parar na Justiça se o ofendido for à delegacia prestar queixa. O projeto de Soraya acaba com esse incômodo — afinal, políticos como ela são pessoas ocupadas, que não podem perder tempo indo à delegacia.

Pelo projeto de lei, tanto a polícia quanto o Ministério Público poderão investigar qualquer ofensa na internet sem a necessidade de queixa prévia — ou seja, ficarão a serviço dos políticos, que assim poderão intimidar seus criticos na rede.

Para Ronaldo Lemos, professor de direito com doutorado pela USP e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade, “trata-se da maior ameaça à liberdade de expressão que o País já sofreu em muitas décadas.”

O Marco Civil da Internet é uma legislação avançada, que protege a liberdade de expressão dos usuários da rede, e está em linha com as melhores leis sobre o assunto em vigor no mundo. Em matéria de internet, é ele que faz o Brasil ser diferente da Rússia, Turquia e Arábia Saudita, países onde o Poder Executivo tem — por lei — o direito de intervir em conteúdos na internet. No Brasil, o Marco Civil estabeleceu que apenas o Poder Judiciário pode autorizar alguém a tocar em conteúdos na internet – exatamente o que os projetos querem mudar.

Com qualquer busca no Google, você descobrirá que o maior opositor do Marco Civil ao longo de sua tramitação foi o deputado Eduardo Cunha, que chegou à presidência da Câmara em grande parte graças à sua ascendência sobre o PMDB fluminense. Os projetos atuais, que deformam o Marco Civil, parecem um acerto de contas.

Dos cinco projetos de lei em tramitação que tratam da proteção da honra dos políticos, quatro são do PMDB. Três destes projetos aumentam penas para as ‘ofensas’ na internet, e dois tratam do chamado ‘direito ao esquecimento.’ Esta é outra inovação interessante, que atende bem aos políticos, e presta um desserviço à democracia. Se o ‘direito ao esquecimento’ for aprovado, permitirá ao político incomodado com análises criticas sobre sua ética ou performance exigir que estes comentários sejam retirados do ar. Simples assim. (É uma versão contemporânea do que os soviéticos faziam, removendo das fotos os membros do regime que caíam em desgraça.)

Ainda que muitos desses projetos sejam o produto de deputados inexpressivos e de mentalidade provinciana — se não de má fé — e ainda que muitos possam ser enterrados pelo Senado (onde repousa a reserva de sanidade da classe política), eles revelam uma agenda oculta de setores específicos que tentam subordinar o cidadão a seus interesses mais particulares. O que estes políticos têm a esconder? Por que temem tanto a voz dos eleitores nos sites e nas redes sociais?

Nos últimos anos, o brasileiro perdeu a estabilidade econômica e precisou ter estômago forte para digerir as revelações da Lava Jato.

Mas o brasileiro não precisa perder mais essa.

Os eleitores do Rio de Janeiro podem ligar para a deputada Soraya — telefone do gabinete: (61) 3215-5352 — pedindo que ela explique para quem trabalha: para os eleitores ou para seus colegas de Câmara.


Talvez assim dê para garantir que, apesar de estarmos ‘quebrados’ e desiludidos, possamos (pelo menos) continuar reclamando de tudo isto que está aí.

***

Abaixo, os links para os projetos de lei em questão:




Fonte: Veja Mercados, por Geraldo Samor, 29/09/2015

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Cresce a consciência sobre necessidade de desburocratizar o país



77% dos brasileiros dizem que excesso de burocracia prejudica o crescimento econômico
Na avaliação da maioria da população, a burocracia aumenta os preços dos produtos e dos serviços e afeta mais as empresas do que os cidadãos

Os brasileiros acreditam que o excesso de burocracia aumenta os gastos públicos, estimula a corrupção e a informalidade e é um dos principais entraves ao crescimento econômico. Por isso, a redução da burocracia deve ser uma das prioridades do governo.  As conclusões são da pesquisa Retratos da Sociedade Brasileira - Burocracia, feita pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), em parceria com o Ibope

De acordo com a pesquisa, 77% dos entrevistados consideram o Brasil um país muito burocrático ou burocrático, e 62% dizem que a redução da burocracia deve ser uma das prioridades do governo. Entre os entrevistados, 74% concordam total ou parcialmente que o excesso de burocracia desestimula os negócios, incentiva a corrupção e a informalidade e faz o governo a gastar mais do que o necessário.


A pesquisa mostra ainda que 60% das pessoas concordam totalmente ou em parte que a burocracia afeta mais as empresas do que os cidadãos. Além disso, 75% afirmam que o excesso de burocracia eleva os preços dos produtos e serviços. Na região Sul, esse número aumenta para 84% e, no Sudeste, alcança 80%.


Baseados na própria experiência ou no que já ouviram falar, os brasileiros acreditam que os serviços ou procedimentos mais complicados são: em primeiro lugar, encerrar uma empresa, em segundo, abrir ou constituir uma empresa, em terceiro, comprar um imóvel, em quarto, fazer um inventário e, em quinto lugar, requerer aposentadoria ou pensão. Na sequência, vem tirar passaporte, conseguir licenças para construção ou reforma da casa e alugar um imóvel.  Os procedimentos considerados menos difíceis são: tirar o CPF, tirar a carteira de identidade, tirar carteira de trabalho, fazer o registro de nascimento e o de casamento.


Ajuda de especialistas

Na opinião da população, fazer a declaração do Imposto de Renda é o procedimento que mais requer ajuda especializada: 29% das pessoas contrataram um profissional ou empresa especializada para prestar contas à Receita Federal, e 12% pediram ajuda de parentes ou amigos. Em seguida, aparece o encerramento de empresa, procedimento para o qual 27% contrataram empresa especializada. O mesmo ocorreu com as pessoas que abriram uma empresa.

Entre os procedimentos em que os entrevistados menos precisaram de ajuda estão limpar o nome na Serasa ou no Serviço de Proteção ao Crédito, pedir o desligamento de serviços de água e luz, e receber direitos trabalhistas, como FGTS e seguro desemprego. Nesses três casos, mais de 90% das pessoas afirmaram terem feito o trabalho sozinhas.


Na avaliação de 77% dos brasileiros, os documentos de identificação, como carteira de identidade, CPF, carteira de motorista, título de eleitor e cartão do PIS-Pasep deveriam ser unificados. "A medida reduziria o excesso de documentos exigidos para que os cidadãos possam exercer seus direitos e deveres", diz a pesquisa da CNI. Entre as pessoas com renda familiar superior a cinco salários mínimos, 81% defendem a unificação dos documentos de identificação. O número cai para 70% entre os que têm renda familiar de até um salário mínimo, informa a pesquisa feita entre 5 e 8 de dezembro de 2014.


Fonte: O Povo, 29/07/2015

segunda-feira, 27 de abril de 2015

O PT declara guerra ao Brasil que está cansado de ser roubado

Corrupção diária, mas a rejeição ao PT é apenas uma reação da "direita"
O PT está em decadência, como os próprios petistas admitem, mas não quer largar o osso de jeito nenhum. O país assiste diariamente a escândalos de corrupção de bilhões de reais que têm, como protagonistas, petistas e os governos de Lula e Dilma, e, como coadjuvantes, seus aliados e empresários cumpanheros.

Entretanto, para os petistas, o problema não é a corrupção sistêmica que a máfia da estrelinha entranhou não só no estado brasileiro mas na sociedade brasileira em geral. O problema não é o estelionato eleitoral de Dilma Roussef e o caos econômico que ela infligiu ao país. Não, o problema é a "direita" que combate os iluminados petistas porque não quer que eles façam a revolução popular.

Destaco, do editorial abaixo do Estadão do dia 24/04, o seguinte trecho, onde deixo link para as teses do PT na íntegra.
Ao explorar a imagem da guerra para impor sua vontade aos adversários – inclusive o povo –, o PT reafirma seu espírito totalitário. A democracia, segundo essa visão, só é válida enquanto o partido não vê seu poder ameaçado. No momento em que forças de oposição conseguem um mínimo de organização e em que a maioria dos eleitores condena seu modo de governar, então é hora de “aperfeiçoar” a democracia – senha para a substituição do regime representativo, com alternância no poder, por um sistema de governo que possa ser totalmente controlado pelo PT, agora e sempre.
E posto ao fim do editorial, a fala do petista Valter Pomar em encontro de sua corrente, Articulação de Esquerda, sobre a conjuntura atual do partido e suas propostas de saída da crise. O vídeo ilustra, por assim dizer, o editorial do Estadão. Ambos valem - e muito - a leitura e audiência.

A Guerra do PT


O PT julga que está em guerra. É o que está escrito, com todas as letras, nas “teses” apresentadas pelas diversas facções que compõem o partido e que serão debatidas no 5.º Congresso Nacional petista, em junho.

De que guerra falam os petistas? Contra quem eles acreditam travar batalhas de vida ou morte, em plena democracia? Qual seria o terrível casus belli a invocar, posto que todos os direitos políticos estão em vigor e as instituições funcionam perfeitamente?

As respostas a essas perguntas vêm sendo dadas quase todos os dias por dirigentes do PT interessados, antes de tudo, em confundir uma opinião pública crescentemente hostil ao “jeito petista” de administrar o País. O que as “teses” belicosas do partido fazem é revelar, em termos cristalinos, o tamanho da disposição petista em não largar o osso.

“Precisamos de um partido para os tempos de guerra”, conclama a Articulação de Esquerda em sua contribuição para o congresso do partido. Pode-se argumentar que essa facção está entre as mais radicais do PT, mas o mesmo tom, inclusive com terminologia própria dos campos de batalha, é usado em todas as outras “teses”. Tida como “moderada”, a chapa majoritária O Partido que Muda o Brasil avisa que “é chegado o momento de desencadear uma contraofensiva política e ideológica que nos permita retomar a iniciativa”.

A tendência Diálogo e Ação Petista conclama os petistas a fazer a “defesa dos trabalhadores e da nação”, como se o Brasil estivesse sob ameaça de invasão, e diz que as “trincheiras” estão definidas: de um lado, a “direita reacionária”; de outro, os “oprimidos”. A chapa Mensagem ao Partido quer nada menos que “refundar o Estado brasileiro”, por meio de uma “revolução democrática” – pois o “modelo formal de democracia”, este que vigora hoje no Brasil, com plena liberdade política e de organização, “não enfrenta radicalmente as desigualdades de renda e de poder”.

Da leitura das “teses” conclui-se que o principal inimigo dos petistas é o Congresso, pois é lá que, segundo eles dizem, se aglutinam as tais forças reacionárias. O problema – convenhamos – é que o Congresso representa a Nação, o povo. Se o Congresso resiste a aceitar a agenda do PT, então a solução é uma “Constituinte soberana e exclusiva”, cuja tarefa é atropelar a vontade popular manifestada pelo voto e mudar as regras do jogo para consolidar o poder das “forças progressistas” – isto é, o próprio PT.

Uma vez tendo decidido que vivem um estado de guerra e estabelecidos quem são os inimigos, os petistas criam a justificativa para apelar a recursos de exceção – o chamado “vale-tudo”. O principal armamento do arsenal petista, como já ficou claro, é o embuste. O partido que apenas nos últimos dez anos teve dois tesoureiros presos sob acusação de corrupção, que teve importantes dirigentes condenados em razão do escândalo da compra de apoio político no Congresso e que é apontado como um dos principais beneficiários da pilhagem da Petrobrás é o mesmo que diz ter dado ao País “instrumentos inéditos” para punir corruptos. Há alguns dias, o ex-presidente Lula chegou ao cúmulo de afirmar que os brasileiros deveriam “agradecer” ao PT por “ter tirado o tapete que escondia a corrupção”.

É essa impostura que transforma criminosos em “guerreiros do povo brasileiro”, como foram tratados os mensaleiros encarcerados. Foi essa inversão moral que levou o governador petista de Minas, Fernando Pimentel, a condecorar o líder do MST, João Pedro Stédile, um notório fora da lei, com a Medalha da Inconfidência, que celebra a saga libertária de Tiradentes. A ofensiva dos petistas é também contra a memória nacional.

Ao explorar a imagem da guerra para impor sua vontade aos adversários – inclusive o povo –, o PT reafirma seu espírito totalitário. A democracia, segundo essa visão, só é válida enquanto o partido não vê seu poder ameaçado. No momento em que forças de oposição conseguem um mínimo de organização e em que a maioria dos eleitores condena seu modo de governar, então é hora de “aperfeiçoar” a democracia – senha para a substituição do regime representativo, com alternância no poder, por um sistema de governo que possa ser totalmente controlado pelo PT, agora e sempre.

Análise de Valter Pomar no congresso da articulação de esquerda - corrente do PT.
 

domingo, 25 de janeiro de 2015

Sobre o terrorismo islâmico: Nascer para a liberdade

Nascer para a liberdade
por Fernando Gabeira

O atentado ao “Charlie Hebdo” me colheu num trabalho no Maranhão. Tive tempo ainda de escrever um artigo geral sobre o tema. Deixei para domingo, dia mais ameno, algumas reflexões pessoais. Bruscas mudanças no mundo, às vezes, nos levam a examinar nosso lugar nele. Minha família veio do Líbano, um país com histórico de conflitos religiosos. Eram cristãos, minha avó tinha cruzes tatuadas na testa e no braço. Isso sempre me impressionou e, ao longo dos anos, novos conflitos religiosos me parecem uma tristeza que não tem fim.

Por várias razões criei uma certa resistência em estudar o Islã. Cheguei a discursar sobre o perigo do Islã político, porque, mesmo sem estudá-lo a fundo, sinto que a fusão do estado com a religião sempre termina em prisão, tortura e morte. Ainda mais com visão tão estreita sobre mulher e sexualidade. Agora vejo, de todos os lados, uma advertência para dissociar o Islã da violência, sob o perigo de parecer racista e islamofóbico.

Essa advertência se articula com outra, sutil: a de que as religiões não devem ser criticadas, que elas devem ficar fora do raio de alcance da liberdade de expressão. Esse é o problema. Vivemos num mundo democrático em que a blasfêmia não é um crime. O “Charlie Hebdo”, de uma certa forma, mostrava onde o terrorismo se nutria no Islã. Num dos desenhos na porta do paraíso, Maomé advertia: parem com as bombas, estamos em falta de virgens.

É uma maneira de enfatizar como a visão do martírio e suas recompensas inspiram homens-bomba. De todos os discursos, o que mais mexeu com minha intuição foi o do presidente do Egito, que não só denunciou as interpretações do Islã, mas afirmou que era necessária uma revolução religiosa para integrá-lo na pluralidade do mundo moderno. A capacidade do Islã de se rever no mundo, algo que os católicos fazem, sem traumas, com o Papa Francisco, pode ser uma luz no fim desse longo túnel.

Alguns sinais animadores existem tanto na Europa como nos Estados Unidos, onde parte da comunidade islâmica define o terrorismo como inimigo comum. O combate direto ao Estado Islâmico é dado por muçulmanos que arriscam suas vidas. O número de mortos em atentados é muito maior na região do que no Ocidente. Mesmo com a derrota do terrorismo ainda ficaria no ar um ponto em que é difícil separar o islamismo da violência. O total enlace do estado com a religião tende a transformar os infiéis em criminosos.

A fatwa, pena de morte para o escritor Salman Rushdie, foi decretada por autoridades religiosas. Na Arábia Saudita, o blogueiro Ralf Badawi foi condenado a mil chibatadas. Minha hipótese sobre o Islã é a mesma que tenho sobre o marxismo. Muita gente diz que o marxismo é perfeito, mas os equívocos foram obra do socialismo realmente existente. Não havia nada errado com o texto, mas sim com os intérpretes. Como textos corretos podem levar a interpretações tão violentas e autoritárias? Não haverá alguma coisa neles que, de certa forma, estimula massacres?

No passado, concordava com Sartre na sua benevolência com as ações terroristas na Argélia. E rejeitava a posição de Camus. Hoje, compreendo que errei. O próprio Camus, em “Os justos”, mostra que os terroristas que iam matar o arquiduque Francisco Ferdinando, há um século, adiaram o ataque porque havia crianças na carruagem. Agora, estamos diante de terroristas que não se importam com a presença de crianças, sob o argumento de que crianças são mortas no Oriente Médio.

Jornais americanos não publicaram os desenhos do “Charlie Hebdo”. Dizem que seu estilo é outro, não publicam material contra religião. Mas, depois do atentado, é um erro jornalístico. Aqui no Brasil, mesmo com a clavícula quebrada, saí exibindo o filme “Je vous salue, Marie”. Não gostava tanto do filme, no final estava até meio cansado dele. O que estava em jogo não era minha afinidade com o filme de Godard. Claro que uma coisa é o contexto de “Je vous salue, Marie”, Sarney e Igreja Católica. Outra, Maomé e os radicais islâmicos. Nesse sentido, tive sorte quando minha avó com a cruz na testa fez a mala e veio para o Brasil. Mas o Brasil, através do seu governo, me desaponta nesse drama de alcance mundial. Quando Dilma propôs um dialogo com o Estado Islâmico, na ONU, percebi que o governo vive numa outra época. A nota formal de condenação do atentado parece o exercício de um dever burocrático.

A família veio para o país certo, apesar do governo. Quantas vezes com o Minc e Sirkis fizemos manifestações pela paz com judeus e árabes juntos no Saara? Isso não quer dizer que não exista intolerância religiosa no âmbito nacional. Nem tentativas de associar o Estado à religião, o que enfatizei em artigo sobre as eleições no Rio. Olhando para trás, no momento de barbárie, vejo como a ideia da liberdade individual, livre de doutrinas políticas ou religiosas, é uma trincheira a se defender com todos os riscos. Embora os riscos não sejam tão altos aqui nos trópicos.

Fonte: Blog do Gabeira, artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 18/01/2014

sábado, 24 de janeiro de 2015

Sobre o terror islâmico: Ocidentalismo

Ocidentalismo
Demétrio Magnoli

Após os atentados em Paris, os ocidentalistas limparam a cena do crime, apagando as digitais do terror jihadista

Edward Said definiu o "orientalismo" como o empreendimento de construção de um Oriente (árabe-muçulmano) imaginário por intelectuais ocidentais. O Oriente dos orientalistas, originalmente exótico e indecifrável, converte-se ao longo do tempo na fonte do irracionalismo e do perigo. Hoje, ironicamente, o "orientalismo" ganha uma imagem espelhada no "ocidentalismo", que também é obra de intelectuais ocidentais. O Ocidente imaginário que eles descrevem configurou-se com o imperialismo e evoluiu na forma de uma máquina implacável de exploração econômica, opressão social e exclusão etno-religiosa. Esse Ocidente maligno, explicam-nos, é responsável por toda a violência do mundo, inclusive pelo terror jihadista.

Os ocidentalistas negam a existência de uma história não-ocidental. Na hora dos atentados do 11 de setembro de 2001, espalharam a fábula de que a Al Qaeda foi parida na maternidade da CIA. Diante dos atentados em Paris, limparam a cena do crime, apagando as digitais das organizações jihadistas. Os nomes da Al Qaeda no Iêmen e do Estado Islâmico não aparecem nas suas análises das carnificinas, atribuídas a pobres diabos oprimidos pelo Ocidente: "alguns radicais" (Frei Betto) ou meros "lobos solitários" (Arlene Clemesha) que não passam de "maconheiros cabeludos" (Tariq Ali).

Os ocidentalistas organizam sua narrativa em torno da verossimilhança e do silogismo, investindo na carência de informação histórica da opinião pública. Nas versões que difundem, a culpa pelos atentados recai sobre a guerra suja de George W. Bush (Ali), mesmo se a jihad começou antes dela, ou sobre o colonialismo francês na Argélia (Clemesha), mesmo se os jihadistas qualificam os nacionalistas argelinos como infiéis e blasfemos. A regra de ouro é descartar todos os fatos que não cabem no molde do "ocidentalismo". Uma "moral dos fins", típica de ideólogos, justifica a manipulação, a distorção e a pura mentira, que desempenham a função de "meios" incontornáveis.

Os ocidentalistas são cultores do relativismo moral: defendem o princípio "ocidental" da liberdade de expressão para si mesmos, mas juntam suas vozes às dos fundamentalistas religiosos para acusar o Ocidente de libertinagem. No Corão, inexiste a proibição da figuração de Maomé. Amparado apenas no cânone islâmico que proíbe o culto a seres humanos, o veto não passa de uma interpretação abusiva de elites político-religiosas consagradas ao controle social. Contudo, segundo os ocidentalistas, o "Charlie Hebdo" estava "provocando os muçulmanos com blasfêmias ao profeta" (Ali), numa "atitude muito ofensiva" (Clemesha). O atentado jihadista deve, portanto, ser entendido como "uma resposta a algo que ofendia milhares de fiéis muçulmanos" (Frei Betto). Na versão deles, os terroristas fizeram justiça, reagindo à inação dos governos ocidentais acumpliciados com os detratores do Islã.

Os ocidentalistas não se preocupam com a consistência argumentativa. Eles dizem que os terroristas alvejaram o "Charlie Hebdo" como reação às charges do profeta, mas calam sobre o ato de terror complementar, no mercado kosher. Depois dos cartunistas, os jihadistas foram atrás dos judeus, comprovando que não lhes interessa o que você faz, mas o que você é. Entretanto, o "ocidentalismo" nunca distingue motivos de pretextos, inspirando-se nos editoriais de jornais governistas controlados por Estados autoritários para persistir nas invectivas contra os cartunistas.

Os ocidentalistas são parasitas intelectuais das correntes minoritárias de intolerância, xenofobia e islamofobia do Ocidente. O primeiro-ministro Manuel Valls declarou que "a França está em guerra contra o terrorismo e o jihadismo, não contra o Islã e os muçulmanos". Angela Merkel disse que "o Islã é parte da Alemanha". A sorte do "ocidentalismo" é que existem Marine Le Pen e o Pegida.

Fonte: Folha de São Paulo - 17/01/2015

Sobre o terror islâmico: O papa boxeador e as liberdades gêmeas

O papa boxeador e as liberdades gêmeas

Carlos Graieb

Numa conversa com jornalistas nesta quinta-feira, durante uma viagem do Sri Lanka às Filipinas, o papa Francisco foi indagado sobre o massacre no jornal francês Charlie Hebdo. A primeira parte da resposta foi a esperada: ele repudiou o uso da religião para justificar atrocidades. A segunda parte fugiu um tanto do script. Francisco apontou um auxiliar e disse que, se ouvisse dele um palavrão contra sua mãe, seria natural que lhe aplicasse um murro. “Dou esse exemplo para mostrar que na liberdade de expressão há limites”, afirmou Francisco. Ele ainda lamentou que existam “provocadores” – gente que fala mal das religiões.

Pouco mais tarde, o Vaticano julgou prudente esclarecer que as declarações do papa boxeador foram feitas em tom “coloquial e amigável” e não pretendiam de maneira nenhuma incitar a violência. Seria mesmo absurdo comparar a pilhéria infeliz do papa com a fala dos clérigos radicais que dizem aos seus seguidores, com sangue nos olhos, que é um dever pegar em armas e aniquilar os infiéis. Francisco não chamou à Guerra Santa nem pregou a intolerância. Mas é fato que, ao dizer o que disse, ele se juntou ao coro dos que “compreendem” que alguém reaja com a força física quando zombam de uma crença religiosa. 

Há todo tipo de voz nesse coro. Há líderes religiosos, intelectuais e gente comum na internet. Há os tolos, os covardes, os de má fé. Falemos apenas dos "homens de boa vontade": aqueles que sinceramente acreditam que a sensibilidade dos religiosos merece uma proteção especial nos debates públicos — que ela deve ser posta a salvo dos espíritos sarcásticos ou debochados.

Os cartunistas do Charlie Hebdo pagaram com a vida por discordar dessa ideia. Mas eles não discordavam por mero espírito de porco. Em 2012, em meio a um intenso debate que se desencadeou na França depois que outra série de charges do jornal fez chacota do islamismo e do profeta Maomé, Stéphanne Charbonnie – Charb, editor-chefe do semanário e um dos assassinados no ataque à publicação – perguntou: “Quando as religiões invadem o espaço da política, elas não se tornam alvo para críticas e charges, como acontece com os políticos?”

A pergunta pressupõe toda uma herança: a herança da separação entre Igreja e Estado, um dos esteios da cultura democrática que floresceu nos últimos duzentos anos.

É curiosa a formulação de Charb. Ele não aponta o dedo contra a religião propriamente dita, mas contra a religião “que invade o espaço da política”. Esse tipo de religião é aquele que nega que alguma esfera da vida humana possa existir à margem dos preceitos de um livro sagrado (ou, com mais frequência, daquilo que algum fanático alega ser a pregação de um livro sagrado). É a religião que mata para impedir a pesquisa científica, para eliminar os não-convertidos ou para construir um novo califado no século XXI.

Na formulação de Charb, a religião como questão da alma continua inteiramente preservada. E aqui é importante lembrar que a doutrina da separação entre Igreja e Estado não surgiu na Europa do século XVIII como inimiga da religião, mas, ao contrário, para proteger minorias de serem obrigadas a adotar uma fé contra a sua vontade. No mesmo século, ao promulgar sua constituição e sua Carta de Direitos, os Estados Unidos deram um passo além: lá, pela primeira vez, o direito de rezar para quem se quisesse, da forma como se quisesse, nasceu de um acordo entre os cidadãos, e não da outorga de um rei "benévolo”. 

O mundo moderno respeita e protege a fé porque inscreve nas constituições as liberdades de religião e de culto. Mas há uma contrapartida: a política tem de ser protegida de qualquer imposição da crença, seja ela uma crença específica ou o "espírito religioso” tomado de forma genérica. Isso não significa que argumentos de inspiração religiosa não possam ser usados no debate público. Significa apenas que eles estão sujeitos ao mesmo escrutínio, à mesma crítica e à mesma eventual erosão pelo humor que qualquer outro raciocínio derivado de uma doutrina política ou de uma “religião secular” (era assim que o intelectual francês Raymond Aron se referia às ideologias). Para garantir que seja dessa maneira, a liberdade de expressão também está inscrita nas constituições. São duas liberdades gêmeas, como fica evidente na primeira emenda à constituição americana — onde se estabelece um pacto feliz entre o espírito das Luzes e a Fé. 

Sociedades democráticas e pluralistas têm uma arquitetura engenhosa, mas delicada. Quem aceita que uma liberdade seja cerceada, logo pode se ver sem todas elas. As ditaduras de esquerda do século XX amordaçaram seus cidadãos e também lhes impuseram o ateísmo. Fascistas do Corão como os irmãos Kouachi, que invadiram a redação do Charlie Hebdo com seus rifles Kalashnikov e mataram doze pessoas, não são muito diferentes. Dizer que eles eram inimigos da liberdade de expressão é um pedaço da verdade. O mundo onde os irmãos Kouachi gostariam de viver só tem espaço para o comando autoritário da versão radical do islamismo que os seduzia. Eles eram também, e antes de mais nada, inimigos da liberdade de religião. Os homens de boa vontade que julgam correto silenciar os irreverentes e os debochados para não ferir a suscetibilidade dos crentes deveriam pensar sobre isso.
Fonte: Veja, 16/01/2015

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