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Mulheres samurais

no Japão medieval

Quando Deus era mulher:

sociedades mais pacíficas e participativas

Aserá,

a esposa de Deus que foi apagada da História

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terça-feira, 28 de janeiro de 2020

75% de todo o trabalho de cuidados não remunerado do mundo é feito por mulheres

Uma corrida desleal
Estudo da Oxfam mostra que a força de trabalho feminina é invisível para o mercado.

Há hábitos e rotinas que não escravizam, como usualmente. Em vez disso, devem ser mantidos, para que a hipótese de constância possa ampliar uma rede de pensamentos e boas informações. Todos os anos, um dia antes de começar o Fórum Econômico Mundial (21 a 24 de janeiro), reunião de líderes e empresários abastados, a ONG Oxfam publica um relatório mostrando uma das múltiplas faces de seu tema de abrangência: a desigualdade social.

Este ano não foi diferente. Ontem (19) à noite saiu do forno o relatório “Tempo de cuidar”, em que os estudiosos se debruçaram, mais uma vez, sobre um conteúdo que mostra o lado mais perverso do atual sistema econômico. Em resumo, 2.153 pessoas têm agora mais dinheiro do que os 4,6 bilhões de pessoas mais pobres do planeta.

Mas quando se reflete sobre desigualdade, nada pode ser resumido. O relatório traz múltiplas informações, e eu busquei me deter naquela que dá título ao estudo. Tenho pensado muito sobre o trabalho das cuidadoras, não só por causa de visitas regulares a uma clínica geriátrica onde está a mãe de um amigo, como porque moro num bairro que, felizmente, tem bastante cabecinhas brancas, e elas são muito bem cuidadas.

A tecnologia está nos proporcionando uma vida mais longa, e é preciso saber lidar com algumas privações que um corpo idoso oferece, oferecendo a ele mãos seguras que o amparem nos momentos de necessidade.

A questão é que esta é uma das faces da desigualdade que vem se perpetuando no tempo. O trabalho das mulheres que cuidam, não só dos idosos como das crianças, embora seja crucial para o desenvolvimento de um país – como imaginar um alto executivo sem alguém na retaguarda, cuidando de sua casa e família, dando-lhe tranquilidade para tomar decisões importantes? – vem sendo recorrentemente subestimado.

E o problema deve se agravar na próxima década conforme a população mundial aumenta e envelhece. Estima-se que 2,3 bilhões de pessoas vão precisar de cuidados em 2030 – um aumento de 200 milhões desde 2015. No Brasil, em 2050, serão cerca de 77 milhões de pessoas a depender de cuidado (pouco mais de um terço da população estimada) entre idosos e crianças, segundo dados do IBGE.

A Oxfam calculou que esse trabalho agrega pelo menos US$ 10,8 trilhões à economia e que a maioria desses benefícios financeiros reverte para os mais ricos, que em grande parte são homens, avalia o estudo.

No texto de apresentação à imprensa, a diretora executiva da Oxfam Brasil, Katia Maia, lembra que “milhões de mulheres e meninas passam boa parte de suas vidas fazendo trabalho doméstico e de cuidado, sem remuneração e sem acesso a serviços públicos que possam ajudá-las nessas tarefas tão importantes”.

A senhora é assistida por três cuidadoras e uma enfermeira na casa em que
mora sozinha em Bauru — Foto: Reprodução/TV TEM
As mulheres fazem mais de 75% de todo o trabalho de cuidado não remunerado do mundo e, frequentemente, segundo os dados do relatório da Oxfam, “elas trabalham menos horas em seus empregos ou têm que abandoná-los por causa da carga horária com o cuidado. Em todo mundo, 42% das mulheres não conseguem um emprego porque são responsáveis por todo o trabalho de cuidado – entre os homens, esse percentual é de apenas 6%”.
Esses dados foram veiculados, na abertura do Fórum, para os ricos e empoderados senhores que se reuniram na gélida cidade suíça de Davos. Será que desta vez, ao menos, sairá dali alguma resolução que possa ajudar a dar os primeiros passos num problema que há décadas está estagnado?

No apagar das luzes do século XX, o embaixador de carreira e representante do Irã nas Nações Unidas Majid Rahnema, compilou no livro “The post-development reader”, ainda sem tradução no Brasil, mais de trinta artigos de estudiosos do mundo todo, com o objetivo de oferecer aos estudantes dados que pudessem ampliar o conhecimento sobre os mitos e as realidades a respeito do desenvolvimento.

No artigo escrito por Pam Simmons, chamado “Mulheres no desenvolvimento, uma ameaça à liberação”, a autora conta que já em 1975, na Conferência das Mulheres convocada pelas Nações Unidas no México, fez-se a denúncia de que as mulheres têm sido recorrentemente ignoradas em todas as políticas desenhadas para o desenvolvimento. Quase meio século depois o não reconhecimento permanece.

Quem primeiro escreveu sobre este estado de invisibilidade das mulheres para o mundo do progresso foi a economista dinamarquesa Ester Boserup, em 1970. No livro “Woman´s Role in Economic Development” (O papel da mulher no desenvolvimento econômico”, em tradução literal), também sem tradução no Brasil, Boserup foca o trabalho na agricultura.

E questiona o pensamento estagnado (olhem aí o lado nocivo do hábito) que considera “natural” a divisão de tarefas de trabalho, sobretudo na agricultura, que leva em conta o sexo. E faz uma provocação, lembrando que em algumas culturas a carga de trabalho segue regras completamente diferentes daquela em que ao homem são destinadas tarefas ditas pesadas, como caçar, e às mulheres restam todo o trabalho restante, não só de limpar o ambiente como de cozinhar e organizar a casa.

Mas, em geral, de fato no mundo agrícola quem aprende a lidar com as máquinas é o homem, enquanto as mulheres permanecem fazendo o trabalho com as mãos. Ester Boserup se preocupa bastante com os países pobres, foca a situação das mulheres em locais, como na Índia, onde o trabalho feminino cresceu na construção civil porque são elas que se subjugam a fazer tarefas como carregar cimento na cabeça por baixos salários.

Mas cita também os Estados Unidos, onde o uso das máquinas vem sendo preferido ao uso de mãos humanas na agricultura, mas, em proporção, aumenta o número de mão de obra feminina - e mal paga – nos campos.

Não são dados contemporâneos, certamente, mas conhecer o trabalho de Ester Boserup dá a dimensão de quão ignoradas são as recomendações para que se tire da invisibilidade a mão de obra feminina no mundo. Uma nova visão é preciso, alertou Pam Simmons em seu artigo escrito há pouco mais de duas décadas.

Ela denuncia a opressão, feita por um poderoso grupo de homens, sobre as mulheres em todas as áreas, quer seja em países pobres como nos ricos. E fala às mulheres de países ricos: “É preciso combater a dominação ‘em casa’”.
No fim das contas, são os homens do Primeiro Mundo que possuem as maiores empresas, controlam as organizações internacionais, dominam os ‘think-tanks’ e visitam os bordéis nos centros de turismo do Terceiro Mundo e esperam deferência por parte de quem eles, financeiramente, ‘suportam’”, escreve ela.
Fazer contato é o caminho que pode começar a desestruturar esta dramática realidade. Para isto, Simmons se reuniu com outras mulheres e conseguiu facilitar a comunicação entre a força feminina de países pobres e ricos. Eis a conclusão de uma estudante indiana que participou do encontro:
Sempre pensei que os valores ocidentais eram bons para o povo do Ocidente e que os valores orientais eram bons para o povo do Oriente. Agora eu sei que os valores ocidentais não são bons para o povo do Ocidente”.
Muita coisa está fora da ordem, não só no mundo feminino, e não só no Ocidente, não só no Oriente. Por isso é preciso transpor fronteiras e espraiar mais e mais conhecimento, informação, dados, estudos. É no que acredito.

Clipping Mulheres fazem 75% de todo o trabalho de cuidados não remunerado do mundo, por Ameliza Gonzalez, G1, 20/01/2020

segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Socorro, seu Descartes, os contra-iluministas estão de volta


Estava lendo um texto sobre direita x esquerda de uma professora de filosofia (Direita ou gorgonzola,  Bruna Frascolla) onde a dita discorre sobre as semelhanças do populismo autoritário de esquerda e de direita em suas viagens alucinógenas.

Apesar do excesso de citações e ironias um pouco forçadas, estava até gostando do texto, principalmente quando a moça aponta, como eu mesma já pontuei, que ambas as visões atuais de esquerda e de direita são contra-iluministas, contra o racionalismo e a perspectiva científica de analisar o mundo. Não haveria "ideologia de gênero" sem a concomitante "identidade de gênero", né mesmo?

O "Penso, logo existo" do Descartes, em sua busca da verdade através da experimentação e dos fatos, foi substituído pelo "Sinto, logo existo" que hoje une esquerda e direita num romântico casamento de irracionalidade e bizarrices várias. Se eu sinto que sou um cachorro, uma gata, um dragão, um elfo ou um homem (eu que sou mulher), é o que vale. Se a maioria das pessoas não compra minha autopercepção, elas é que estão erradas. Se acho que a Terra é plana, que toda vacina faz mal, que existe mamadeira de piroca e restos de feto em garrafa de Pepsi, o que importa é que os meus frágeis argumentos e sentimentos não podem ser feridos e aferidos pela malvada realidade objetiva. Inclusive quero usar o poder de Estado para obrigar todo o mundo a concordar comigo, sob pena de cadeia e fogueira em praça pública para os novos hereges da Liberdade de Pensamento.


Então, retomando, estava até concordando com a fulana, quando ela me solta uma história de que "o patriarcado das feministas é tão ridículo quanto o globalismo", colocando ambos os termos no terreno da fantasia. Minha mãe, a mulher escreve textão e invoca Descartes num apelo de volta à racionalidade e à analise dos fatos, em vez do embalo alucinógeno das ideologias, e me sai com uma dessas?

Porque, pelamor, negar a existência do patriarcado é simplesmente como negar a existência do sol, a lei da gravidade ou as mudanças climáticas. Com exceção de alguns grupos étnicos, perdidos nos rincões do planeta, que vivem ainda em sociedades matriarcais, o patriarcado é hegemônico no mundo. Ninguém precisa ler livro feminista para sacar isso. É só abrir os olhos e ver. Quem controla o poder de Estado, com seu braços legislativo, executivo e judiciário, sem falar no braço armado? Os homens. Quem controla o poder econômico e financeiro, as grandes corporações que hoje dominam tudo? Os homens. Quem controla a ciência e a tecnologia? Os homens. Quem controla os meios de comunicação, as artes e a cultura em geral? Os homens. Isso sem falar que, em muitos países, as mulheres ainda sequer têm os direitos mais básicos de cidadania, são verdadeiras escravas. Então, como assim o patriarcado das feministas (das feministas?) é ridículo? O caso da filósofa (deve ser uma liberaleca, pelo visto) é o do peixe que não vê a água porque nela vive imerso.

Conclusão, a situação que vivemos hoje é dramática porque mesmos os liberais (os principais herdeiros do Iluminismo), que pensam pairar acima da psicodelia argumentativa da esquerda e da direita, vivem cuspindo no prato que Descartes lhes ofereceu. Também desprezam os fatos, acreditam na pseudociência da psicobiologia evolutiva (sic), em determinismo biológico, numa suposta naturalidade dos estereótipos de gênero, em identidade de gênero e, agora, ficamos sabendo, também que o patriarcado não existe (li ainda uma outra igualmente afirmando que a heterossexualidade obrigatória é invenção de feminista radical). Valei-nos nossa senhora das desamparadas da idade da razão, que esse mundo virou um hospício!!

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Para as esquerdas sobreviverem


Tinha visto o vídeo abaixo após a vitória do Trump, mas serve como uma luva para nossa situação atual. Se você quer que a extrema-direita dê as caras, que as múmias saiam de seus sarcófagos, não apoie a extrema-esquerda, mesmo quando ela vem travestida com seu usual (hipócrita da porra) bom mocismo.

A esquerda que hoje nós chamamos jocosamente de bolivariana bananeira, por causa da versão venezuelana do autoritarismo castrista, sempre foi autoritária, viúva eternamente chorosa do fim do comunismo do leste europeu. Mas a esquerda dos movimentos sociais nasceu libertária, uma grande esperança de mudança social a partir da própria sociedade e não de algum partidão. Entretanto, de seu surgimento na década de 60 do século passado até hoje, esses movimentos foram se degenerando e se tornando tão autoritários quanto seus primos da velha guarda. Primos com quem, pelo menos aqui no Brasil, se alinharam inclusive, a tal ponto de atualmente não passarem de correias de transmissão dos partidos mais retrógrados e anacrônicos da esquerda.

Hoje, com base no tal ofendidismo por qualquer coisa, os floquinhos de neve (como dizem os americanos) ou teteias de cristal (como digo eu) estão tentando criminalizar qualquer divergência que não caiba em sua agenda falsamente hipersensível. Chegamos ao ponto de ter que engolir a conversa surreal de que existem mulheres do sexo masculino e homens do sexo feminino sob risco, caso discordemos, de ir parar até na prisão (como já ocorre em alguns países). Sob a desculpa de que todo discurso divergente é discurso de ódio, quando discurso de ódio de fato é só aquele que incita diretamente à violência, de fato investem contra a liberdade de consciência, de pensamento, de expressão, de associação e de reunião, pilares da democracia.

Foram essas esquerdas que pariram o Trump nos EUA e o Bolsonaro aqui. Essa esquerda dos tais justiceiros sociais, que se alinhou à esquerda bolivariana bananeira, torrou o saco de todo o mundo, inclusive de quem não é de direita, mas não aguenta mais tanta arrogância e estupidez de gente que nunca mais se olhou no espelho.

A maior parte das pessoas que votou e deve votar no Bolsonaro não tem nada de fascista. É simplesmente gente que não suporta a ideia de ver o PT de volta ao poder (e tem toda a razão) e quer mudanças porque o país degringolou depois dos anos do petismo no poder. É gente que também está saturada de não poder falar nada sem ser acusada de um monte de coisa que não é. Por falta de alternativa, acabaram apoiando o truculento e autoritário Bolsonaro, apesar de, apesar de, apesar de.... porque quer alguma mudança nem que seja por vias tortas. Porque está com um sapo na garganta que precisa expelir.

As esquerdas precisam entender que não têm a verdade e a luz, precisam abdicar de sua visão autolaudatória e procurar convencer as pessoas de suas ideias em vez de atacá-las com todo tipo de injúria. Se quiserem sobreviver.


terça-feira, 21 de novembro de 2017

Radicalismo conservador envenena o Brasil

O discurso de ódio que está envenenando o Brasil
A caça às bruxas de grupos radicais contra artistas, professores, feministas e jornalistas se estende pelo país. Mas as pesquisas dizem que os brasileiros não são mais conservadores

Artistas e feministas fomentam a pedofilia. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o bilionário norte-americano George Soros patrocinam o comunismo. As escolas públicas, a universidade e a maioria dos meios de comunicação estão dominados por uma “patrulha ideológica” de inspiração bolivariana. Até o nazismo foi invenção da esquerda. Bem-vindos ao Brasil, segunda década do século XXI, um país onde um candidato a presidente que faz com que Donald Trump até pareça moderado tem 20% das intenções de voto.

No Brasil de hoje mensagens assim martelam diariamente as redes sociais e mobilizam exaltados como os que tentaram agredir em São Paulo a filósofa feminista Judith Butler, ao grito de “queimem a bruxa”. Neste país sacudido pela corrupção e a crise política, que começa a sair da depressão econômica, é perfeitamente possível que a polícia se apresente em um museu para apreender uma obra. Ou que o curador de uma exposição espere a chegada da PF para conduzi-lo a depor forçado ante uma comissão parlamentar que investiga os maus-tratos à infância.
“Isto era impensável até três anos atrás. Nem na ditadura aconteceu isto.”
Depois de uma vida dedicada a organizar exposições artísticas, Gaudêncio Fidelis, de 53 anos, se viu estigmatizado quase como um delinquente. Seu crime foi organizar em Porto Alegre a exposição QueerMuseu, na qual artistas conhecidos apresentaram obras que convidavam à reflexão sobre o sexo. Nas redes sociais se organizou tal alvoroço durante dias, com o argumento de que era uma apologia à pedofilia e à zoofilia, que o patrocinador, o Banco Santander, ante a ameaça de um boicote de clientes, decidiu fechá-la.
Não conheço outro caso no mundo de uma exposição destas dimensões que tenha sido encerrada”, diz Fidelis.
O calvário do curador da QueerMuseu não terminou com a suspensão da mostra. O senador Magno Malta (PR-ES), pastor evangélico conhecido por suas reações espalhafatosas e posições extremistas, decidiu convocá-lo para depor na CPI que investiga os abusos contra criança. Gaudêncio se recusou em um primeiro momento e entrou com um pedido de habeas corpus no STF que foi parcialmente deferido. Magno Malta emitiu então à Polícia Federal um mandado de condução coercitiva do curador. Gaudêncio se mostrou disposto a comparecer, embora entendesse que, mais que como testemunha, pretendiam levá-lo ao Senado como investigado. Ao mesmo tempo, entrou com um novo pedido de habeas corpus no Supremo para frear o mandado de conduçãocoercitiva. A solicitação foi indeferida na sexta-feira passada pelo ministro Alexandre de Moraes. Portanto, a qualquer momento Gaudêncio espera a chegada da PF para levá-lo à força para Brasília.
O senador Magno Malta recorre a expedientes típicos de terrorismo de Estado como meio de continuar criminalizando a produção artística e os artistas”, denuncia o curador.
Ele também tem palavras muito duras para Alexandre de Moraes, até há alguns meses ministro da Justiça do Governo Michel Temer, por lhe negar o último pedido de habeas corpus: 
A decisão do ministro consolida mais um ato autoritário de um estado de exceção que estamos vivendo e deve ser vista como um sinal de extrema gravidade”.
Fidelis lembra que o próprio Ministério Público de Porto Alegre certificou que a exposição não continha nenhum elemento que incitasse à pedofilia e que até recomendou sua reabertura.

Entre as pessoas chamadas à CPI do Senado também estão o diretor do Museu de Arte Moderna de São Paulo e o artista que protagonizou ali uma performance em que aparecia nu. Foi dias depois do fechamento do QueerMuseu e os grupos ultraconservadores voltaram a organizar um escândalo nas redes, difundindo as imagens de uma menina, que estava entre o público com sua mãe e que tocou no pé do artista. “Pedofilia”, bramaram de novo. O Ministério Público de São Paulo abriu um inquérito e o próprio prefeito da cidade, João Doria (PSDB), se uniu às vozes escandalizadas.

Se não há nenhum fato da atualidade que justifique esse tipo de campanha, os guardiões da moral remontam a muitos anos atrás. Assim aconteceu com Caetano Veloso, de quem se desenterrou um velho episódio para recordar que havia começado um relacionamento com a que depois foi sua esposa, Paula Lavigne, quando ela ainda era menor de idade. “#CaetanoPedofilo” se tornou trending topic. Mas neste caso a Justiça amparou o músico baiano e ordenou que parassem com os ataques.

A atividade de grupos radicais evangélicos e de sua poderosa bancada parlamentar (198 deputados e 4 senadores, segundo o registro do próprio Congresso) para desencadear esse tipo de campanha já vem de muito tempo. São provavelmente os mesmos que fizeram pichações recentes no Rio de Janeiro com o slogan “Bíblia sim, Constituição, não”. Mas o verdadeiramente novo é o aparecimento de um “conservadorismo laico”, como o define Pablo Ortellado, filósofo e professor de Gestão de Políticas Públicas da USP. Porque os principais instigadores da campanha contra o Queermuseu não tinham nada a ver com a religião. O protagonismo, como em muitos outros casos, foi assumido por aquele grupo na faixa dos 20 anos que durante as maciças mobilizações para pedir a destituição da presidenta Dilma Rousseff conseguiu deslumbrar boa parte do país.

Com sua desenvoltura juvenil e seu ar pop, os rapazes do Movimento Brasil Livre(MBL) pareciam representar a cara de um país novo que rejeitava a corrupção e defendia o liberalismo econômico. Da noite para o dia se transformaram em figuras nacionais. Em pouco mais de um ano seu rosto mudou por completo. O que se apresentava como um movimento de regeneração democrática é agora um potente maquinário que explora sua habilidade nas redes para difundir campanhas contra artistas, hostilizar jornalistas e professores apontados como de extrema esquerda ou defender a venda de armas. No intervalo de poucos dias o MBL busca um alvo novo e o repisa sem parar. O mais recente é o jornalista Guga Chacra, da TV Globo, agora também classificada de "extrema esquerda". O repórter é vítima de uma campanha por se atrever a desqualificar -em termos muito parecidos aos empregados pela maioria dos meios de comunicação de todo o mundo-, 20.000 ultradireitistas poloneses que há alguns dias se manifestaram na capital do pais exigindo uma “Europa branca e católica”.

Além de sua milícia de internautas, o MBL conta com alguns apoios de renome. Na política, os prefeitos de São Paulo, João Doria, e de Porto Alegre, Nelson Marchezan Jr., assim como o até há pouco ministro das Cidades, Bruno Araújo, os três do PSDB. No âmbito intelectual, filósofos que se consideram liberais, como Luiz Felipe Pondé. Entre os empresários, o dono da Riachuelo, Flávio Rocha, que se somou aos ataques contra os artistas com um artigo na Folha de S. Paulo no qual afirmava que esse tipo de exposição faz parte de um “plano urdido nas esferas mais sofisticadas do esquerdismo”. O objetivo seria conquistar a “hegemonia cultural como meio de chegar ao comunismo”, uma estratégia diante da qual “Lenin e companhia parecem um tanto ingênuos”, segundo escreveu Rocha em um artigo intitulado O comunista está nu.
Não é algo específico do Brasil”, observa o professor Pablo Ortellado. “Este tipo de guerras culturais está ocorrendo em todo o mundo, sobretudo nos EUA, embora aqui tenha cores próprias”.
 Um desses elementos peculiares é que parte desses grupos, como o MBL, se alimentou das mobilizações pelo impeachment e agora “aproveita os canais de comunicação então criados, sobretudo no Facebook”, explica Ortellado.
A mobilização pelo impeachment foi transversal à sociedade brasileira, só a esquerda ficou à margem. Mas agora, surfando nessa onda, criou-se um novo movimento conservador com um discurso antiestablishment e muito oportunista, porque nem eles mesmos acreditam em muitas das coisas que dizem”.
A pauta inicial, a luta contra a corrupção, foi abandonada “tendo em vista de que o atual governo é tão ou mais corrupto que o anterior”. Então se buscaram temas novos, desde a condenação do Estatuto do Desarmamento às campanhas morais, que estavam completamente ausentes no início de grupos como o MBL e que estão criando um clima envenenado no país.
É extremamente preocupante. Tenho 43 anos e nunca tinha vivido uma coisa assim”, confessa Ortellado. “Nem sequer no final da ditadura se produziu algo parecido. Naquele momento, o povo brasileiro estava unido.”
O estranho é que a intensidade desses escândalos está oferecendo uma imagem enganosa do que na realidade pensa o conjunto dos brasileiros. Porque, apesar desse ruído ensurdecedor, as pesquisas desmentem a impressão de que o país tenha sucumbido a uma onda de ultraconservadorismo. Um estudo do instituto Ideia Big Data, encomendado pelo Movimento Agora! e publicado pelo jornal Valor Econômico, revela que a maioria dos brasileiros, em cifras acima dos 60%, defendem os direitos humanos, inclusive para bandidos, o casamento gay com opção de adotar crianças e o aborto.
Em questões comportamentais, nada indica que os brasileiros tenham se tornado mais conservadores”, reafirma Mauro Paulino, diretor do Datafolha.
Os dados de seu instituto também são claros: os brasileiros que apoiam os direitos dos gays cresceram nos últimos quatro anos de 67% para 74%. Paulino explica que “sempre houve um setor da classe média em posições conservadoras” e que agora “se tornou mais barulhento”.

As pesquisas do Datafolha só detectaram um deslocamento para posições mais conservadoras em um aspecto: segurança. “Aí sim há uma tendência que se alimenta do medo crescente que se instalou em parte da sociedade”, afirma Paulino. Aos quase 60.000 assassinatos ao ano se somam 60% de pessoas que confessam viver em um território sob controle de alguma facção criminosa. Em quatro anos, os que defendem o direito à posse de armas cresceu de forma notória, de 30% a 43%. É esse medo o que impulsiona o sucesso de um candidato extremista como Jair Bolsonaro, que promete pulso firme sem contemplações contra a delinquência.

Causou muito impacto a revelação de que 60% dos potenciais eleitores de Bolsonaro têm menos de 34 anos, segundo os estudos do instituto de opinião. Apesar de que esse dado também deve ser ponderado: nessa mesma faixa etária, Lula continua sendo o preferido, inclusive com uma porcentagem maior (39%) do que a média da população (35%).
“Os jovens de classe média apoiam Bolsonaro, e os pobres, Lula”, conclui Paulino. Diante da imagem de um país muito ideologizado, a maioria dos eleitores se move na verdade “pelo pragmatismo, seja apoiando os que lhe prometem segurança ou em alguém no que acreditam que lhes vai garantir que não perderão direitos sociais”.
Apesar de tudo, a ofensiva ultraconservadora está conseguindo mudar o clima do país e alguns setores se dizem intimidados.
O profundo avanço do fundamentalismo está criando um Brasil completamente diferente”, afirma Gaudêncio Fidelis. “Muita gente está assustada e impressionada.”
Um clima muito carregado no qual, em um ano, os brasileiros deverão escolher novo presidente. O professor Ortellado teme que tudo piore “com uma campanha violenta em um país superpolarizado”.

Fonte: El País, Xosé Hermida, 19/11/2017

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

O espantalho da "ideologia de gênero" e a passagem de Judith Butler pelo Brasil


Ideologia de gênero é um espantalho conservador, feito de tudo que os conservadores não gostam,  criado para espantar os pais das crianças quanto à educação sexual nas escolas e à educação igualitária para meninas e meninos. Ironicamente, os ideólogos de gênero são os próprios conservadores, pois são eles que educam as crianças a partir de estereótipos de gênero (modelitos rígidos e únicos de mulher e de homem). Gênero, como a autora do texto abaixo, Mariana Seifert Bazzo, identifica, é: 
"... a categoria analítica que surge a partir da década de 1960 (de fato já em meados da década de 1950), nos estudos de História, Sociologia, Psicologia Social, Direito, entre outros, como forma justamente de diferenciar o sexo biológico dos papéis sociais de homens e mulheres.
De forma geral, gênero é o termo que aponta o comportamento induzido nas crianças pela chamada educação diferenciada, como o nome já diz, educação que adestra meninas e meninos a partir da divisão arbitrária das características humanas em femininas e masculinas. Posteriormente, gênero se torna também parte do comportamento que as pessoas apresentam em sociedade a partir dos modelitos de mulher e de homem que aprenderam.

De forma específica, muita gente já teorizou sobre gênero, incluindo Judith Butler, mas o diferencial dela e dos teóricos queer, em relação à visão anterior, é que, para eles, não apenas gênero (o modelito de homem e de mulher criado por nossa sociedade) mas também o sexo passa a ser visto como construção social. E não se trata de sexo no sentido da visão que cada cultura ou a nossa própria cultura, através do tempo, teve e tem sobre sexo e sexualidade, mas sim sexo no sentido biológico do termo. Como coloca a autora do texto abaixo:
(Na teoria queer) critica-se a anterior diferenciação (sexo # gênero) e concebem-se ambos – sexo e gênero – como construções sociais, discursivas, históricas, alteráveis. Isto pôs em discussão a determinação biológica, genética e anatômica de homens e mulheres. 
Exatamente. Embora negue, com muito discurso pernóstico, Butler e os seus rejeitam sim a materialidade dimórfica da espécie humana. Fora que também, embora se apresente tão crítica da construção social de gênero, não quer abandoná-lo e chega a afirmar que não dá para se viver sem papeis de gênero (sic). No fim das contas, é paradoxalmente conservadora. Essa visão criou a mitologia que quer nos fazer acreditar na existência de mulheres do sexo masculino e homens do sexo feminino e que muito contribuiu para a criação do espantalho conservador da "ideologia de gênero". 

Encontrei o texto abaixo no site conservador Gazeta do Povo, da promotora de justiça Mariana Seifert Bazzo*, que resolvi reproduzir (editado para fins de atualização) porque foi a única abordagem conservadora minimamente honesta que li sobre a conturbada passagem de Butler pelo Brasil. Conturbada porque os conservadores agora deram para querer impedir exposições de arte e a presença de intelectuais em nosso país, um absurdo sem tamanho.


"Ideologia de Gênero'", ensino de gênero e violência contra mulheres e pessoas LGBT
A desigualdade de gênero é uma realidade, mas não é justificativa para atitudes que venham, com base em imposições ideológicas, a ferir direitos daqueles que sequer podem se defender

Com a notícia da vinda da filósofa norte-americana Judith Butler ao Brasil, para palestrar em evento no Sesc Pompeia (dias 7 e 9 de novembro), manifestações públicas de repúdio identificaram a Teoria Queer, criada por Butler, com (o que os conservadores chamam de) "ideologia de gênero" – combatida (por conservadores) nos planos nacionais, estaduais e municipais de educação no país. Essas manifestações partiram de grupos que colocam Butler como porta-voz de ideias que ferem direitos de crianças e adolescentes, fazendo alguns conceitos essenciais se perderem no meio do caminho, o que, não raramente, permite certa falta de senso crítico de quem opta por essa ou aquela posição. 

Primeiramente, é importante ressaltar que "ideologia de gênero" não se confunde com estudos ou ensino de gênero. De fato, a categoria analítica “gênero” surge a partir da década de 1960, nos estudos da História, Sociologia, Psicologia Social, Direito, entre outros, como forma justamente de diferenciar o sexo biológico daquilo que seriam os papéis sociais de homens e mulheres. A partir daí, fundamentalmente, começou a se revelar o que era ser homem e ser mulher na sociedade, em cada época da civilização, e como eram necessárias determinadas transformações sociais para que os dois tipos de sujeitos atingissem igualdade de direitos. 

A importância da categoria gênero a transformou em um termo utilizado por diversas legislações nacionais e internacionais, e isso muito anteriormente à discussão sobre os planos de educação no Brasil. Por exemplo, a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) prevê, em seu art. 8º, VIII e IX, a responsabilidade conjunta entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios na implementação de ações que tenham como diretrizes “programas educacionais com a perspectiva de gênero (...); o destaque, nos currículos escolares à equidade de gênero” (destaque nosso). 

A Teoria Queer, uma entre as diversas teorias sobre gênero hoje existentes, acabou por se projetar com a seguinte marca (explicada aqui de maneira absolutamente simplista): “o sexo como um efeito do gênero”, e não o contrário. Critica-se a anterior diferenciação e concebem-se ambos – sexo e gênero – como construções sociais, discursivas, históricas, alteráveis. Isto pôs em discussão a determinação biológica, genética e anatômica de homens e mulheres. Movimentos em todo o mundo entenderam que o uso dessa teoria, ou o que foi compreendido dela, pode vir a comprometer direitos de crianças, uma vez que a elas estaria sendo imposta, ideologicamente, a não diferenciação entre os sexos. 

A desigualdade de gênero é uma realidade. Os altos índices de violências contra mulheres e integrantes da comunidade LGBT são indiscutíveis, principalmente quando praticadas no âmbito doméstico e familiar, o que fortalece o papel da escola na prevenção desses crimes. Por esse motivo, legislações destinadas à proteção de direitos humanos obrigam a inclusão, nos currículos escolares, de temas de igualdade de gênero entre homens e mulheres e da não discriminação em virtude de orientação sexual ou identidade de gênero (comunidade LGBT). Isso não deve significar a imposição de uma "ideologia de gênero", supostamente baseada na complexa Teoria Queer, e a desconsideração do sexo biológico desde a certidão de nascimento de bebês. Também não deve provocar explicações incorretas a determinadas faixas etárias, gerando mal-estar psicológico em crianças. Finalmente, não é justificativa para atitudes – de pais, professores e outros profissionais que atuam na área da infância e juventude – que venham, com base em imposições ideológicas, a ferir direitos daqueles que ainda sequer podem se defender.

O debate deve ficar em aberto. A filósofa Judith Butler tem direito de proferir suas palestras em ambientes acadêmicos, sem censura ao seu pensamento. Pais, professores, médicos e outros profissionais da saúde, operadores do Direito, todos da sociedade devem estar atentos à boa resolução dessa equação: não inibir o ensino com a perspectiva de igualdade de gênero e respeito às diversidades de grupos minoritários e oprimidos, mas não permitir que determinados discursos sirvam como fundamento para violações de direitos fundamentais de crianças e adolescentes.

*Promotora de Justiça com atuação no Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Proteção aos Direitos Humanos Ministério Público do Paraná

Fonte: Gazeta do Povo,  02/11/2017

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Tereza de Benguela, a líder quilombola contra a escravidão

Tereza de Benguela
Com a ampliação da colonização portuguesa, foi criada a capitania de Mato Grosso, em 1748, e a povoação de Vila Bela, em 1752, às margens do rio Guaporé. Para lá foram levados escravos negros que atuavam em todos os níveis da vida econômica local: como mineradores, na criação de gado bovino, em pequenas iniciativas agrícolas, na caça e na pesca, e até como forças militares contra os vizinhos castelhanos, que também disputavam os territórios de fronteira. Como forma de resistência à escravidão, escravos que conseguiam fugir mergulhavam no interior das matas e dos rios e formavam quilombos, contra os quais a Coroa Portuguesa enviava bandeiras e expedições punitivas.

Um desses quilombos, de nome Quilombo de Quariterê (ou do Piolho), localizado próximo ao rio Piolho, ou Quariterê, no vale do Gauporé, foi liderado por uma mulher, após a morte de seu companheiro José Piolho. Tereza de Benguela (conhecida como Rainha Tereza) era seu nome. Ela criou um sistema político como uma espécie de parlamento, situado numa casa específica do local, onde deputados se reuniam em dias específicos, todas as semanas, para tomadas de decisões. Enquanto vivo, José Piolho, seu companheiro, foi o deputado de maior autoridade na casa, sendo seu conselheiro nas sessões que ela presidia.

Segundo documentos da época, o lugar abrigava mais de 100 pessoas, com aproximadamente 79 negros e 30 índios. Ali, era cultivado o algodão, que servia posteriormente para a produção de tecidos. Havia também plantações de milho, feijão, mandioca, banana, entre outros. Igualmente roupas e ferramentas eram fabricadas no local.

O quilombo resistiu da década de 1730 ao final do século. Tereza morreu, após ser capturada por soldados em 1770, não se sabe ao certo se por suicídio, execução ou doença. Depois de morta, teve a cabeça cortada e posta no meio da praça do quilombo que liderara, em um alto poste, como aviso aos outros quilombolas fugitivos. Os que conseguiram fugir ao ataque, contudo, reconstruíram o quilombo que sofreu outra carga, em 1791, até ser finalmente extinto em 1795.

Em homenagem à líder quilombola, o dia 25 de julho foi instituído como o Dia Nacional de Teresa de Benguela e da Mulher Negra.

Com informações de Geledés e “Negros do Guaporé: o sistema escravista e as territorialidades específicas” (de Emmanuel de Almeida de Frias Júnior)

segunda-feira, 6 de março de 2017

O sequestro do termo "gênero": uma perspectiva feminista do transgenerismo

Transgenerismo: de volta à medicalização do comportamento humano
Já havia escrito sobre transgenerismo aqui no blog, com o texto Que conservadores e "progressistas" me desculpem, mas não existe criança "trans", ainda não muito consciente das dimensões dessa nova onda. Hoje, melhor informada e mais preocupada, pretendo abordar, sempre que possível,  os vários aspectos que configuram essa moda regressiva. Para começar, traduzi e editei o texto abaixo, da ensaísta americana Terri M. Murray, também mestre em Teologia, com especialização em ética cristã, e doutora em Filosofia, que escreveu o livro "Thinking Straight About Being Gay: Why It Matters If We’re Born That Way," (algo como "Visão hétero sobre ser Gay: Por que importa se nascemos desse jeito?").

Ressalvo que, neste texto, quando a autora fala em "queer", refere-se à comunidade de lésbicas, gays, bissexuais e drags e não aos adeptos da teoria queer.  "Queer" é um termo pejorativo, em inglês, usado contra homossexuais e outros indivíduos sexualmente não normativos. Significa esquisito, estranho, anormal. Já em fins dos anos 80, contudo, ele passou a ser assumido pelos próprios discriminados como identidade política, principalmente no contexto do surgimento da AIDS. A partir da década de 90, sobretudo de 1991 em diante, passa a ser adotado pelos acadêmicos que forjaram a chamada Teoria Queer, entre outros, Teresa de Lauretis, Michael Warner, Judith Butler, Eve Kosofsky Sedgwick, Lee Edelman. 

Por fim, embora tenha alguma divergência com a autora, concordo no geral com sua abordagem que me trouxe inclusive um novo dado sobre o tema. Ela faz um histórico a respeito da mudança do conceito de gênero, da visão progressista, dos tempos dos movimentos pelos direitos civis (meados do século passado até o novo milênio), para a visão regressiva atual. Aponta como o movimento transgênero sequestrou a linguagem e imitou a  postura política dos movimentos libertários anteriores, com intenção, contudo, oposta a desses movimentos (cavalo de Troia de uma política sexual regressiva). Aponta também para o retorno da medicalização do comportamento humano, trazida no bojo do transgenerismo, em particular no que se refere ao possível futuro da biotecnologia como ferramenta para eliminar homossexuais ainda no útero. E termina proclamando a volta ao conceito de gênero anterior como a via para nos livrar do possível futuro distópico que se avizinha. Não é uma leitura rápida, mas para sorver como um bom vinho. Degustem!

Terri M. Murray
O sequestro do termo "gênero":
uma resposta feminista ao transgenerismo 

Gênero costumava ser um conceito legal. Feministas fodonas como Simone de Beauvoir o usaram para distinguir o que você tem no meio das pernas (sexo) do que tem entre  as orelhas (gênero). Você nasceu com o primeiro; o segundo lhe ensinaram. O que colocaram entre suas orelhas (mente) chegou ali via doutrinação cultural patriarcal.

Mas essa concepção libertadora sempre teve variados opositores. Quando as mulheres começaram a ocupar papéis considerados masculinos ou posições consideradas tradicionalmente masculinas, os agentes do patriarcado recorreram à “natureza” para reforçar o sistema. Apelar para a "natureza" funcionava (e funciona) porque a paisagem cultural estava tão saturada de estereótipos (e continua) que eles pareciam (parecem) realmente naturais. Nesse contexto, foi fácil criar uma teoria biologicamente determinista para explicar porque o patriarcado não seria uma questão política mas sim uma necessidade biológica. Sociobiologistas, como E.O. Wilson, insistiram que a persistência do patriarcado se deveria ao suposto fato de a cultura ser assentada nos genes 😲.

Nada de novo nessa abordagem. Freud já havia postulado que as raízes da cultura patriarcal emanavam do pênis e da vagina (principalmente do todo-poderoso pênis). Tradicionalistas cristãos sempre vincularam os arranjos sociais patriarcais às funções reprodutivas, como visto na “Criação”, limitando os papéis sociais das mulheres aos de mãe e esposa. A transgressão e a punição de Eva por "deus" reforçaram mais ainda a subserviência da mulher ao marido. E São Paulo acrescentou uma pitada da autoridade do Novo Testamento a essa receita, declarando que as mulheres “deveriam se submeter aos maridos” assim como ao "senhor". A sagrada instituição do casamento era uma invenção humana, mas continha as intenções de “deus”.

Algumas feministas teimosas se recusaram a concordar com essa naturalização do patriarcado e seu concomitante determinismo biológico, em vez disso apontando a dominação masculina como resultado das instituições sociais, culturais, teológicas, acadêmicas e econômicas de nosso mundo. Existencialistas como Beauvoir abominavam ideias que tentavam explicar o comportamento humano como determinado por alguma "essência" fixa. Tanto ela quanto seu companheiro de longa data, Jean-Paul Sartre, insistiam que o caráter dos indivíduos é formado em resposta às circunstâncias que vivenciam e através das escolhas que realizam. Somos jogados nesse mundo, in situ, com nossa capacidade de livre-arbítrio, e nossas escolhas precisam ser tomadas inclusive frente a situações imutáveis como a do sexo biológico com o qual nascemos. Mas como as pessoas reagem a essas situações depende de cada uma particularmente. Embora seja óbvio que apenas mulheres possam engravidar, as implicações dessa capacidade são indeterminadas, e a atual divisão sexual do trabalho é apenas uma possibilidade de arranjo social entre várias outras.

Assim como as feministas de outrora, gays, lésbicas e bissexuais costumavam transgredir os estereótipos de gênero ensinados pela cultura patriarcal. A partir dos amplamente difundidos mitos de gênero heterossexistas, essas pessoas desviantes (queer) foram rotuladas de “sapatões”, “bichas”, "caminhoneiras", “viados” — nomes criados para estigmatizar qualquer indivíduo que se recusasse a agir e se vestir de acordo com os papéis de gênero sexistas e heterossexistas. Mas elas reagiram à intolerância dos criadores desses mitos, apropriando-se desses apelidos pejorativos e transformando-os em bandeiras de luta.
Dzi Croquettes
 Ao tornarem as normas de gênero uma forma de teatro, drag queens e kings mostraram que qualquer pessoa pode adotar e imitar os papéis de gênero independente de sua genitália particular, dessa forma expondo o fato de que o gênero não é algo natural, mas sim uma forma convencional de interpretação, como um figurino que se usa ou se tira (a la Judith Butler). Queers encarnaram o fracasso dos estereótipos de gênero em colar nas pessoas reais. Tudo isso era revolucionário porque desnudava a ficção conservadora de que todos os homens compartilham de uma personalidade heterossexual masculina diferente da das mulheres e vice-versa.
Na esteira das feministas, os queers começaram a apontar que somados aos mitos sociais sobre como meninos e meninas se sentem vem também a noção de que todas as pessoas são atraídas pelo sexo oposto. Boa parte da concepção de gênero é construída com base nos papéis heterossexuais e no heterossexismo. Os papéis sociais femininos e masculinos, culturalmente normativos (quer dizer, papéis de gênero), tornaram-se ritualizados como parte da cultura ocidental cristã que fetichiza e erotiza a diferença sexual.  Exagerar as diferenças entre mulheres e homens, mistificar o sexo oposto e tornar tabu os atos sexuais serve também para elevar a excitação de penetrar os mistérios do "outro" e transpor as barreiras que se opõe à realização sexual. Pressupor que a heterossexualidade é inata facilitou a bifurcação dos humanos em dois tipos opostos que se atraem mutuamente. Da mesma forma que as feministas rejeitaram a definição de “mulher” como ser oposto ao ideal masculino, os homossexuais se recusaram a ver a si mesmos como a versão defeituosa ou perturbada dos heterossexuais.

Tanto para as feministas quanto para os queers de fins do século passado, o natural havia sido reprimido pelo social. Ao mesmo tempo, porém, o "natural" também era produzido pelos pressupostos culturais e teológicos existentes. Ideias sobre gênero não são apenas resultado de observações empíricas; elas são as premissas das "pesquisas". Por isso, quando os indivíduos não se amoldam aos estereótipos de gênero, alegadamente estariam invertendo os papéis de gênero (supostamente fixos, reais) e não expondo-os como as ficções que de fato são. Se os indivíduos, quando observados, não se conformam realmente com as ideias sociais de gênero, então isso deveria valer como evidência de que as ideias sociais sobre gênero são furadas. Em vez disso, os papéis de gênero são pressupostos a priori, e as evidências em conflito com eles são interpretadas como sinais de "anormalidade" ou "desvio", não como uma indicação de que a pressuposta "norma" sempre foi falha. Há um problema de circularidade em toda a moldura conceitual onde as questões de gênero são "pesquisadas". O bestseller de John Gray "Homens são de Marte, Mulheres são de Vênus" é um bom exemplo dessa metodologia anticientífica.
O novo movimento transgênero não é uma extensão dos esforços anteriores para desconstruir a mitologia sexista e heterossexista. Não agrupa feministas e dissidentes de gênero numa frente solidária e unida em oposição à mitologia heterossexista e aos estereótipos sexuais. Ao contrário, divide e conquista o outrora poderoso movimento contracultural, sequestrando sua linguagem e imitando sua postura política para disfarçar intento oposto ao desse movimento. Embora numericamente reduzidos, os ativistas transgênero, promotores desse contra-ataque ao movimento contracultural, são figuras bem posicionadas no establisment e contam com apoio total da mídia na promoção de sua "causa" - outra coisa que os separa dos predecessores libertários dos anos 80 e 90.
Nos últimos anos, o termo "gênero" foi radicalmente redefinido por esse movimento reacionário que o tornou sinônimo de mero estado mental interior em oposição a seu significado original de "série de convenções (e restrições) sobre como mulheres e homens podem ser e o que podem fazer". Chrissie Daz está certa ao afirmar que alguma coisa fundamental se alterou na forma como o termo gênero passou a ser entendido no século XXI, com os novos ativistas transgênero representando uma grande mudança paradigmática em relação à concepção de gênero prevalente nos 40 anos anteriores. A princípio uma ideia empunhada pela esquerda liberal (social-democrata) contra as normas sociais sexistas e heterossexistas conservadoras, o termo "gênero" foi transformado numa arma do arsenal de uma política regressiva que não é somente sexista mas também homofóbica. 
O atual movimento transgênero reforça o mito de que homens e mulheres são espécies diferentes de seres humanos, não apenas reprodutiva mas mentalmente - com diferentes desejos, necessidades, atitudes e mentes distintas. Agora os porta-vozes do transgenerismo apoiam a naturalização conservadora tradicional de "masculinidade" e "feminilidade" como estados psicológicos inatos, intrínsecos ao ser humano desde o nascimento e provenientes de química cerebral ou de outras interações hormonais do corpo. A ideia progressista de que não há um jeito uniforme de meninas e meninos sentirem ou pensarem foi descartada. Em vez de lutar contra o rígido binarismo de gênero heterossexista (como sua retórica, aliás, sugere), os novos guerreiros transgênero assumem que seu inato senso de eu  ("identidade") é inerentemente "masculino" ou "feminino" antes de qualquer socialização. Aparentemente, julgam que a doutrinação cultural é insignificante. O termo "gênero" foi despolitizado, naturalizado e medicalizado de um só golpe.
Gênero agora é um conceito que aparenta fazer o tipo de trabalho político outrora associado ao movimento dos direitos civis. Na verdade, contudo, sua nova versão reverte a lógica que norteou os direitos civis no passado. Os ativistas dos direitos civis  apontavam que a discriminação baseada em diferenças biológicas como cor da pele ou sexo falhava em reconhecer a humanidade comum a todas as pessoas como agentes morais. Agrupar pessoas de acordo com traços físicos comuns negligencia o caráter e a individualidade das mesmas. Grupos humanos eram definidos por referência à cor de pele ou aos genitais, não por seu agenciamento humano, seu caráter ou comportamento. Assim as pessoas eram reduzidas a seus corpos (ou parte deles) enquanto seus atributos mais distintivos de intelecto e vontade (aspectos que deveriam fundamentar qualquer avaliação de caráter) eram negligenciados.

A "masculinidade" ou "feminilidade" da psique trans é tratada como uma condição
 inata semelhante à cor do cabelo ou à pigmentação da pele.
Os ativistas de gênero atuais não reivindicam ser tratados como indivíduos nem veem seu caráter como uma escolha. Eles enfatizam que pertencem a uma ‘minoria’ definida pela identidade de gênero ou por uma similar condição biológica que alegadamente teriam com outras pessoas. Enquanto os ativistas de direitos civis tornaram a biologia irrelevante, os ativistas dos direitos de gênero a colocaram num altar. A "masculinidade" ou "feminilidade" de sua psique é tratada como uma condição inata semelhante à cor do cabelo ou à pigmentação da pele. Assim sendo, como categoria de pessoas definidas por referência a uma suposta diferença biológica inata, eles não deveriam sofrer mais discriminação do que mulheres ou minorias étnicas. Entretanto, enquanto mulheres e minorias étnicas dos movimentos civis de meados do século XX estavam ansiosas por se desassociar das referências biológicas reducionistas de suas identidades, reivindicando não ser definidas a partir de sua genitália ou cor da pele, os ativistas transgênero de hoje reivindicam reconhecimento de sua alegada diferença "biológica", acreditando que o pertencimento a um grupo biológico particular os autoriza a ter direitos civis.

Adotar a narrativa biológica determinista da condição trans (uma psique de gênero inata) requer que primeiro aceitemos as premissas conservadoras sobre gênero. Como vimos acima, uma coisa que vem incrustada no conceito de gênero é a heterossexualidade obrigatória de mulheres e homens. Assim, se a ideologia de gênero heterossexista define "mulher" como par erótico do homem, as lésbicas tendem a não se identificar com a ‘feminilidade’ (papel de gênero feminino), já que não se sentem atraídas por homens nem desejam ser objeto da atenção sexual masculina. Da mesma forma, gays acharão difícil se encaixar na masculinidade heterossexual e suas correspondentes suposições eróticas.
Uma vez que o conceito de gênero binário vem sendo renaturalizado e recolocado como um dos dois possíveis estados psicológicos dos seres humanos, as pessoas de sexo feminino que se identificam com o que se convencionou chamar de masculino e seu correspondente objeto de desejo ficam com a única opção de "se tornar" do sexo masculino. Se elas desejam "agir como homens", sendo biologicamente mulheres, é porque estão doentes (disfóricas). O mesmo para as pessoas de sexo masculino que sentem forte afinidade com os papéis normativos de gênero feminino e sua correspondente orientação sexual. Não por menos pessoas homossexuais andam tão confusas diante desse contexto.
Médicos especialistas em transgêneros identificam a disforia (insatisfação) de gênero como uma condição psicossexual anormal. Mas, se a disforia é realmente um efeito ou sintoma do mal-entendido da sociedade a respeito da bioquímica sexual natural, então a doença não é intrínseca ao paciente; ela  resulta do relacionamento entre o paciente e a cultura circundante. De fato, tanto o eugenista liberal Nicholas Agar quanto os bioeticistas cristãos Michael J. Reiss e Roger Straughan interpretam "doença" como um conceito socialmente construído ou “de certo modo, um relacionamento entre a pessoa e a sociedade”.
Os ativistas queer do passado, porém, argumentavam que é a natureza do próprio relacionamento - não a natureza do "paciente" - que faz o mesmo se sentir infeliz. Hoje, todavia, o desconforto social com a diferença foi reconceituado como uma anormalidade psicossexual da constituição do paciente. O "cérebro desordenado" do sujeito é visto como a causa de uma inaceitável interação do indivíduo com as organizações sociais. Como consequência política dessa concepção, desvia-se o foco da crítica das instituições sociais necessitadas de reforma para a reforma do indivíduo supostamente anormal. Ele precisa ser reformulado para se encaixar nas instituições.
Para citar um exemplo de como isso funciona na prática, basta considerar a situação das pessoas homossexuais no Irã. O Irã é uma teocracia sexista, intolerante e homofóbica, onde as leis fundamentalistas religiosas impõe um estrito status quo heteronormativo. A solução estatal para a homossexualidade nesse país se resume a duas possibilidades: (1) punir ou executar quem a pratica abertamente, ou (2) "encorajar" homossexuais a transicionar, cirurgicamente, para o sexo "correto" de modo que a pessoa se encaixe na norma heterossexual, a única norma que o Irã tolera. Consequentemente, o Irã tem o segundo maior número de cirurgias de redesignação sexual do mundo, perdendo apenas para a Tailândia. Tal fato se assemelha ao clareamento químico da pele das pessoas negras para torná-las mais aceitáveis numa sociedade racista, quando o que deveria ser feito é atacar o racismo. Trata-se de uma política regressiva. Em vez de rejeitar ou desconstruir o binarismo heteronormativo, a indústria médica está facilitando a "desconstrução" literal do indivíduo transgênero - literalmente desconstruindo seu próprio corpo -  de modo que ele se refaça na imagem heterossexista desejada. Isso é violência mascarada de compaixão.
Esse tipo de prática não é muito diferente da "medicina" de estilo soviético do início dos anos 70, quando o estado soviético usava de violência física somente como último recurso ao lidar com os dissidentes que começavam a pressionar por mais liberdade política. Investigações psiquiátricas e diagnósticos de doença mental (esquizofrenia geralmente) se tornaram o instrumento preferido para possibilitar o encarceramento dos dissidentes em hospitais psiquiátricos. À luz do relacionamento político conturbado entre o movimento pelos direitos homossexuais e as instituições políticas vigentes, a atual tendência de tratamento transgênero pode ser melhor analisada com base no argumento de Michel Foucault de que toda as categorias de desordens psicológicas são expressões de relacionamentos de poder na sociedade. De forma simplificada, Foucault vê a loucura não como própria do indivíduo mas sim como uma definição social desejada pela sociedade para o segmento não-conformista de sua população.

O "reconhecimento" clínico e médico aparentemente progressista e compassivo do "paciente" transgênero está na realidade reforçando o binarismo heteronormativo que por muito tempo causou sofrimento e alienação para uma grande variedade de pessoas homossexuais. Não precisamos nos opor a que adultos bem informados consintam em transicionar cirurgicamente para um corpo com o qual se sintam mais à vontade. Entretanto, progressistas não deveriam correr para abraçar esta opção acriticamente ou como a solução principal para os que sofrem com a chamada disforia de gênero.

Editado de comentários do facebook: cons e trans, farinhas do mesmo saco
Simplesmente não há como testar se a infelicidade de alguns com seu corpo é um subproduto da doutrinação dogmática de gênero ou uma condição inata, já que todas as culturas tem doutrinação de gênero, embora das formas as mais variadas. Não há um grupo de controle contra o qual se possa comparar indivíduos doutrinados pelos estereótipos de gênero. Mas a reivindicação dos transativistas de que algumas pessoas do sexo feminino são inerentemente "masculinas" enquanto outras de sexo masculino são inerentemente "femininas" assume o que precisa provar: a saber, que o gênero é natural e intrínseco à feitura psicossexual dos indivíduos em vez de uma série de ficções culturalmente em circulação que as pessoas internalizam. Embora não haja problema em aceitar a hipótese de que a orientação sexual possa ser inata, tal aceitação não nos compromete a comprar uma teoria essencialista de gênero. De fato, feministas e queers progressistas deram um tiro no pé ao abandonar a distinção natureza-cultura que o conceito de gênero anterior tão bem iluminou.

No contexto da narrativa determinista de gênero, torna-se difícil distinguir a pessoa homossexual da transgênero. Esta última é conceitualizada como alguém que tem uma psique feminina ou masculina presa no corpo "errado". Mas, "errado" de acordo com quem ou com o quê? Não importa se homossexual ou heterossexual, as normas de gênero binárias representam uma série de restrições de atuação para pessoas de sexo feminino e masculino. A própria homossexualidade representa uma boa razão para que algumas pessoas não se sintam à vontade em seus próprios corpos, dadas as expectativas sexuais erigidas junto com as normas de gênero heterossexistas. Mas algumas pessoas heterossexuais também consideram muito difícil se identificar com muitas das expectativas inerentes ao gênero que lhes designaram. Algumas pessoas simplesmente acham os conceitos de gênero muito alienantes e não conseguem se adaptar a suas generalizações sobre "mulheres" e "homens". Não são doentes por isso, apenas apresentam um sintoma de desconforto social. Todos os indivíduos são "encorajados" a acreditar que ficarão melhor e serão mais felizes se suas ideias sobre seus "eus" biológicos se encaixarem com as ideias culturalmente aceitáveis. E elas podem ser ainda mais felizes se transicionarem em vez de virarem crossdressers ou viverem com a constante rejeição que assombra os não-conformistas. Numa sociedade inclusiva, a opção de transicionar não deveria ser descartada, mas, de novo, igualmente não deveria ter precedência sobre a luta por novas reformas sociais. Sobretudo deveria ser uma decisão tomada apenas por  adultos que estão plenamente conscientes do papel que a cultura joga no entendimento que elas têm de si mesmas.

Para compreender as implicações políticas iminentes da atual tendência de direitos transgênero, precisamos ter clareza de como seus conceitos centrais funcionam em relação aos direitos da mulheres e da população LGBI assim como em relação à eugenia liberal. Eugenistas transhumanistas/Liberais (Nicholas Agar, Julian Savulescu, James Hughes, Nick Bostrom, David Pearce, Gregory Stock, John Harris, Johann Hari, et al.) combinam biopolítica com economia de livre mercado para alcançar uma política social ostensivamente liberal sobre o uso da biotecnologia. Estes autoproclamados "eugenistas liberais" estão reivindicando o uso ilimitado ou desregulado da reprogenética. Eles diferenciam a reprogenética da eugenia considerando que esta última implica coerção estatal a pretexto de beneficiar pessoas. A primeira (reprogenética) seria voluntariamente buscada por pais com o objetivo de melhorar suas crianças de acordo com suas preferências. Esta seria uma eugenia "privatizada" ou de "livre mercado" (havendo naturalmente um incentivo financeiro para promover seu uso).
Dentro da aparentemente progressista barriga do Cavalo de Troia transgênero se esconde uma política sexual regressiva que está pronta para usar a medicina e a biotecnologia a fim de, primeiro cirurgica e quimicamente - e mais tarde talvez mesmo geneticamente - recolocar-nos nos papéis tradicionais do velho binarismo heterossexual. A engenharia social feita por meio da disciplina e da punição pode logo ser realizada via biotecnologia, tratamentos hormonais pré-natais e/ou edição de genoma.
Considerando a hipótese de uma causa biológica para a atração homossexual, eliminá-la certamente reduzirá o comportamento homossexual. Negar tal fato é fingir que atos sexuais voluntários não têm relação com a atração sexual involuntária. O exato propósito das intervenções reprogenéticas será, através da eliminação da predisposição biológica involuntária para o comportamento homossexual, eliminar o comportamento homossexual voluntário dos indivíduos. Isso acontecerá não por tirar o livre-arbítrio dos indivíduos mas sim por guiar biologicamente a direção para onde suas escolhas se encaminharão, onde serão  mais provavelmente expressas. Mas poderão ainda aquelas pessoas cuja orientação sexual principal é hétero se engajar em atos homoeróticos? Naturalmente. Mas isso passa ao largo da questão central. As intervenções reprogenéticas para proibir o desejo homossexual constituiriam uma forma de engenharia social, que não é terapêutica em qualquer sentido médico, visando restringir o comportamento do indivíduo (sem seu consentimento) aos objetivos de vida que os pais preferem. O futuro poderá trazer pessoas homossexuais que não se rebelem contra a doutrinação homofóbica dos pais nem saiam do armário porque simplesmente não desejarão fazê-lo.

O novo movimento trans (intencionalmente ou não) remove a única barreira que impede pais de serem capazes de presumir o consentimento implícito do paciente para essa espécie de "tratamento" eugenista de sua "condição" psicossexual. Para definir e mirar a orientação homossexual como uma condição médica passível de "tratamento" será necessário primeiro distinguir esse "tratamento" da violência médica homofóbica, que seria muito questionável. O que inviabiliza essa distinção é a suposição de que o paciente alegremente coincidiria com tal "tratamento". Em sua pressa para abraçar os "direitos transgênero", progressistas bem intencionados e pessoas homossexuais estão fomentando exatamente essa suposição. O movimento eugenista homofóbico tem buscado o santo graal da orientação sexual biológica com o objetivo de descobrir como mudá-la. Se algum dia realmente localizarem uma causa ou causas biológicas para a orientação homossexual, só lhes faltará, para poder curá-la, uma moldura conceitual que lhes permita a edição homofóbica do genoma ou o tratamento hormonal  pré-natal a fim de parecerem benevolentes. Como o "tratamento" será feito num feto, os especialistas precisarão patologizar a homossexualidade de tal forma que os pais acreditem que é como se tivessem o consentimento do paciente (prole) para sua "cura".

Mas eles só podem presumir tal coisa se os indivíduos com sexualidades não binárias consentirem em mudar a si mesmos. O movimento transgênero luta pelo reconhecimento de sua condição desviante como condição médica e reivindica o "direito" de seus integrantes, como pacientes, de ter acesso à assistência médica para transicionar de volta à definição de saúde socialmente conservadora.

Mesmo que alguns dos transicionados não venham a se tornar heterossexuais, terão de qualquer forma apoiado a noção heterossexista de que gênero é, para algum subconjunto de indivíduos, uma condição biológica interna que os faz se sentir mal. Como pacientes voluntários que aceitam a medicalização de sua infelicidade, eles terão jogado um importante papel na reformulação teórica de questões políticas como patologias clínicas. Embora os apoiadores dos trans sejam motivados por boas intenções, eles involuntariamente ajudam os conservadores sociais a vender uma agenda eugenista ao público, travestindo-a  de compaixão esclarecida ou tolerância pela diversidade.
Não há razão pela qual não possamos sentir compaixão por pessoas que se sintam presas num corpo biológico "errado". O perturbador não é como esses indivíduos se sentem.  Pelo contrário, a questão é como seus sentimentos estão sendo enquadrados ou interpretados, e isso se deve em parte aos contextos sociopolíticos nos quais seus sentimentos surgiram em primeiro lugar. Como Sarah Ditum argumentou, "a existência do sofrimento não é evidência de que o sofredor tenha clareza inquestionável da origem de seu sofrimento." Se as sociedades fossem organizadas em torno da ideia de que a sexualidade humana natural (atração) inclui tanto as variantes heterossexuais quanto as homossexuais, não somente isso ajudaria a eliminar o estigma associado aos intersexuais, como diminuiria significativamente a homofobia e (em grande medida) o sexismo. E como isso quebraria os mitos sexistas que alienam os que não se sentem "à vontade" com os papéis sociais designados para pessoas de seu sexo, provavelmente haveria também um aumento do bem-estar daqueles que atualmente sentem que estão presos no corpo "errado".
                  
Fonte do original: Culture on offensive: The Hijacking of Gender: A Feminist Take on Transgenderism Tradução: Míriam Martinho, São Paulo, 04/03/2017

Chimamanda Ngozi Adichie é uma escritora nigeriana. Aqui ela afirma o óbvio: "Não acho que seja uma boa coisa falar das questões das mulheres como se fossem as mesmas das questões das transfemininas (ou transmullheres) porque não acho que isso seja verdade. 

Uma transfeminina (ou transmulher) honestíssima afirma que as trans não são mulheres.

Também se opõe aos procedimentos de transição em crianças pelos danos que causam à saúde das mesmas.

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Fernando Holiday, de token black a ponta de lança do reacionarismo

Eleito vereador no último pleito, Fernando Holiday, do Movimento Brasil "Livre" (MBL), um dos grupos que organizou as manifestações pelo impeachment de Dilma afirmou, em sua página do facebook: 
Meu primeiro pronunciamento feito aqui na minha página pós-eleição, além de divulgar os gastos finais de campanha, foi apoiar a medida do prefeito eleito João Doria de EXTINGUIR a secretaria de Igualdade Racial e LGBT. Precisamos diminuir o tamanho da máquina da prefeitura! Sou e serei a favor de qualquer redução de gastos ou estruturas burocráticas." 
Bem, Doria voltou atrás em sua fala sobre extinguir secretarias (não sei como ficará a situação agora) e, no caso da LGBT, nem poderia extingui-la porque sequer existe. Ao que tudo indica, Holiday não está a par desses detalhes, mais preocupado em jogar para sua plateia de reaças empedernidos.

Entretanto sua fala provocou engulhos em muitos, inclusive em mim. Me fez lembrar direto o personagem do filme Django Livre (de Quentin Tarantino), Stephen, interpretado magistralmente por Samuel Lee Jackson, o negro liberto que trabalha para o escravocrata Calvin Candie (Leonardo DiCaprio), em sua plantation, e é mais vil com os outros negros do que o próprio patrão. Claro que vão dizer que estou exagerando na analogia, pois não há como comparar as imbecilidades ditas por Holiday, num regime democrata, com as falas e ações escrotas de um agente do sistema escravagista. No entanto, o desprezo que o personagem de Jackson provoca nos espectadores do filme, em mim também naturalmente, não é muito diferente do que senti ao ler a fala de Holiday. Guardadas às devidas proporções, a motivação de ambos é sim a mesma. Adiante.


Naturalmente,  a performance de Holiday vem rendendo assunto nas redes sociais e já virou tema de postagens em blogs e sites tanto ditos de direita quanto de esquerda. No site Diário do Centro do Mundo, de esquerda, Marcos Sacramento escreveu texto intitulado Quantos mandatos Fernando Holiday do MBL cumprirá até tornar-se negro?, criticando Holiday, entre outras coisas, por ser contra cotas e por querer extinguir a secretaria de promoção da igualdade racial de São Paulo. O título e o texto são bem equivocados pois querem fazer crer que se uma pessoa negra não for favorável a cotas raciais ela não seria negra de fato. Ser negro então deixa de ser uma condição inata para se tornar um modelo específico de militância!? Eu, hein!

Do outro lado, blogueiros e colunistas de direita saíram em defesa do Stephen tupiniquim afirmando coisas do tipo: "A esquerda não consegue entender a existência de Holiday porque acredita ter o monopólio da defesa dos negros, pobres e “oprimidos” em geral. (Leandro Narloch)."  Ou "O negro, o gay, a mulher, nada disso importa. Não como indivíduo, ao menos. Só começam a importar quando servem de mascote para a esquerda, para sua agenda totalitária estatizante. E isso só acontece quando aceitam o papel de vítimas, de coitadinhos, clamando por intervenção estatal(Rodrigo Constantino)." Festival de clichezinhos direitosos repetidos ad nauseum.

Mas quem disse que o problema de Holiday  é não se encaixar nos parâmetros de esquerda que a militância seja negra ou LGBT define como corretos? Vamos lembrar que uma parcela do movimento negro sempre foi contra cotas raciais. Ativistas históricos do movimento foram contra a implementação das cotas. A autora deste texto foi e continua sendo contra cotas raciais. Acho um grande equívoco. Agora, porque sou contra a ala racialista que tem preponderado no Movimento Negro nos últimos anos, eu vou atacar o movimento negro em si mesmo, sair por aí dizendo que a luta contra o racismo é desnecessária, coisa de vitimistas, porque somos todos apenas "indivíduos"!!?? Querer extinguir secretarias que lidam com essa questão específica sob a desculpa esfarrapada de reduzir gastos ou estruturas burocráticas? Até parece que não existem outras instâncias governamentais bem mais supérfluas onde promover cortes, não é verdade? Essa gente subestima tanto assim a inteligência alheia?

O mesmo em relação ao movimento LGBT, feminista, qualquer outro. Minhas críticas ao movimento LGBT, do qual sou uma das fundadoras, são inúmeras, sobretudo pelo aparelhamento petista que sofreu nos últimos anos. Daí eu atacar o movimento em si mesmo, desqualificando toda uma história de lutas, na base da enorme falácia de que somos apenas "indivíduos" e não tem sentido a gente lutar em coletivos!!?? Esse papo furadésimo de contra "coletivismos" pra lá e pra cá que se ouve frequentemente no meio liberaleco-conservador!? Vale destacar que as únicas pessoas realmente julgadas como indivíduos neste mundo são os donos do poder, ou seja, os homens brancos, héteros, burgueses e cristãos (com algumas variações aí), os estereótipos do privilégio. O restante da humanidade é julgada por fazer parte de algum coletivo em primeiro lugar e não como indivíduo. E obviamente não foram as esquerdas que coletivizaram as pessoas e sim os próprios conservadores com seus preconceitos, discriminações e seu mundo de excludências. As esquerdas, quando muito, manipulam os coletivizados para seus propósitos.

Enfim, repetindo, o problema do Holiday não é ele não se encaixar nos parâmetros que a militância de esquerda criou para lidar com as questões relativas aos direitos humanos. O problema com Holiday é ele se encaixar nos parâmetros que a direita criou para combater os direitos humanos. Holiday poderia ser crítico dos movimentos sociais e buscar inclusive trazer novas propostas para os mesmos de uma perspectiva diferente da atual. Poderia promover até quem sabe uma benéfica renovação dessas expressões políticas através do diálogo crítico.  Mas o que ele quer é jogar para a plateia conservadora que o elegeu e que, como todo mundo sabe, é contrária aos direitos humanos. Holiday é mais do que um token black.* É um ponta de lança do reacionarismo que usa de sua negritude e suposta homossexualidade como fator divisionista das lutas por direitos humanos a fim de revertê-las e até mesmo impedi-las. Trata-se de um oportunista que surfou na onda antipetista e nas manifestações do impeachment de Dilma para se eleger encenando uma mistura de alborghetti, datena e ratinho com falsa indignação. Quer se dar bem na vida a qualquer preço. A História registra várias figuras como ele ao longo dos séculos. Os cristãos o celebram no sábado de Aleluia.


* Token Black é o nome que se dá ao membro de uma minoria historicamente discriminada inserido em qualquer ambiente adverso a sua especificidade apenas para que se crie a impressão de tolerância e ausência de preconceitos. 

Token Black é o nome do personagem da animação South Park exatamente por ser a única criança negra do desenho. 


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