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Mulheres samurais

no Japão medieval

Quando Deus era mulher:

sociedades mais pacíficas e participativas

Aserá,

a esposa de Deus que foi apagada da História

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terça-feira, 5 de outubro de 2021

Jogos Heraeanos: as Olimpíadas das mulheres gregas

Uma escultura de bronze de uma atleta de c. 560 AC. Crédito: Caeciliusinhorto / Wikimedia Commons / CC BY-SA 4.0

Os Jogos Olímpicos são o evento esportivo mais espetacular e histórico do mundo. Os Jogos normalmente reúnem mais de cem países competindo em 35 esportes diferentes e 400 eventos.

Os Jogos Olímpicos modernos evoluíram a partir dos jogos antigos realizados no início do século 8 a.C. na cidade de Olímpia, na Grécia Antiga, de onde provém seu nome. Esta versão inicial da competição foi reservada exclusivamente para os homens, como uma demonstração de sua força, habilidade e resistência.

Mas os textos do antigo geógrafo grego Pausânias descrevem jogos também para mulheres, chamados Jogos Heraeanos,  realizados no século II d.C.

A História dos Jogos Heraeanos
Templo Olympia Hera
As ruínas do Templo de Hera em Olímpia. Crédito: Ingo Mehling / Wikimedia Commons / CC BY-SA 3.0
Existem bem poucos registros históricos dos Jogos Heraeanos, mas acredita-se que eles tenham ocorrido logo após os Jogos Olímpicos tradicionais, por volta de 776 a.C. Ambas as versões dos jogos foram realizadas no estádio de Olímpia.

Os Jogos Heraeanos, em homenagem à deusa grega Hera, aconteciam a cada quatro anos. Os jogos, associados à adolescência, eram considerados um rito de passagem das jovens para a idade adulta.

A competição inicialmente incluía apenas esportes de corrida. Os Jogos Heraenos não incluíam esportes de combate, que eram básicos nos jogos masculinos. Os Jogos Heraeanos incluíam:

Stadion: corrida de velocidade de curta distância na pista do estádio (177 metros)
Diaulos: duas corridas de velocidade consecutivas ao longo da pista do estádio (354 metros)
Hípios: quatro corridas consecutivas por todo o comprimento do estádio (708 metros)
Dolichos: uma corrida de resistência de 18 a 24 voltas ao redor do estádio (cerca de 5 quilômetros)

As vencedoras de cada corrida eram coroadas com folhas de oliveira, e os animais, sacrificados em nome de Hera. Os gregos acreditavam que as vencedoras seriam dotadas de força especial comendo a carne dos animais sacrificados.

As vencedoras também podiam dedicar retratos e estátuas a Hera e comemorar seus feitos atléticos inscrevendo seus nomes nas colunas do templo da deusa.

Mulheres vestindo o quíton

As mulheres dos Jogos Heraeanos competiam vestindo um quíton, uma espécie de túnica usada pelos antigos gregos, enquanto os homens participavam das competições completamente nus.

Tanto os jogos masculinos quanto os femininos foram interrompidos em 393 d.C., quando o imperador romano Teodósio proibiu os jogos pan-helênicos e outros festivais religiosos que eram celebrados na Grécia antiga.

A história de Cinisca e o atletismo das mulheres espartanas

As mulheres espartanas não eram forçadas a usar vestidos longos, um costume comum na maior parte da Grécia. Podiam usar túnicas curtas, uma característica da moda feminina local tida como símbolo da liberdade, força e agilidade pelas quais as mulheres de Esparta eram conhecidas.

A sociedade espartana se manteve firme na crença de que mulheres atléticas davam à luz a filhos fortes. Assim, as mulheres espartanas podiam andar a cavalo e viajar como quisessem bem como caçar e usar túnicas curtas.

Daí se acreditar que a maioria das participantes dos Jogos Heraeanos era espartana.

Cinisca, filha de Arquidamo II, Rei de Esparta, a primeira mulher a vencer os Jogos Olímpicos. Ela era a dona de uma carruagem que venceu a corrida de carruagem nos Jogos. Crédito: Sophie de Renneville / Wikimedia Commons / Domínio Público

Na verdade, Cinisca, filha de Arquidamo II, o rei de Esparta, foi a primeira mulher na história a vencer os jogos olímpicos masculinos.

Cinisca venceu as corridas de carruagem de quatro cavalos nos Jogos Olímpicos de 396 e 392 a.C, com carruagem de sua propriedade. Ela foi homenageada com uma estátua de bronze com sua imagem, e sua carruagem e seus cavalos foram exibidos no Templo de Zeus em Olímpia.

A inscrição na estátua diz:

Reis de Esparta, que são meu pai e irmãos, e
Cinisca, vitoriosa com uma carruagem de cavalos de patas velozes,
ergueram esta estátua. Eu me declaro a única mulher
em toda a Grécia que ganhou esta coroa.
Apelleas, filho de Kallikles, a esculpiu.

Tradução do grego antigo :

Σπάρτας μὲν βασιλῆες ἐμοὶ: πατέρες καὶ ἀδελφοί, ἅρματι δ’ὠκυπόδων ἵππων: νικῶσα Κυνίσκα εἰκόνα τάνδ’ ἔστασεν μόναν: δ’ἐμέ φαμι γυναικῶν Ἑλλάδος ἐκ πάσας τόν [-]: δε λαβεν στέφανον. Ἀπελλέας Καλλικλέος ἐπόησε.

Clipping The Heraean Games: When Greek Women Held Their Own Olympicspor Luisa Rosenstiehl, tradução de Míriam Martinho, Greek Reporter, 26/08/2021

terça-feira, 8 de setembro de 2020

Aserá, a esposa de Deus que foi apagada da História

Estátua da Deusa Asherah (אֲשֵׁרָה) - Reuben and Edith Hecht Museum - Universidade de Haifa, Israel
Deusa Aserá (ou Astaroth), esposa de Javé
A deusa mãe, mulher de Javé, teria sido excluída intencionalmente da Bíblia, no caminho para a construção paradigmática da hegemonia masculina. Em tempos anteriores ao monoteísmo patriarcal – instaurado no ocidente pelo judeu-cristianismo e responsável por semear as bases de uma consciência que enaltece os valores masculinos da conquista, expansão e exploração da natureza –, prevaleceu uma concepção religiosa da divindade como um casal: Deus Mãe e Deus Pai.

Segundo a pesquisadora da Universidade de Exeter Francesca Stavrakopoulos, originalmente, as chamadas grandes religiões abraâmicas também adoravam, junto com Javé, a deusa Aserá (chamada por vezes de Astaroth), uma divindade doadora, como a Ishtar babilônica, ou a Astarte grega, arquétipos da divindade feminina, como a Lua, a Terra e Vênus.

Stavrakopoulos baseou sua hipótese no estudo de antigos textos, amuletos e figuras encontrados na cidade de Ugarit, atual território da Síria, que refletem o modo como Aserá era adorada, junto com Javé, ou Jeová, como uma poderosa deusa da fertilidade. Há uma vasilha do século XIII, descoberta no deserto de Sinai, em Kuntillet Arjud, que registra um pedido de bênção ao casal divino. E existem várias inscrições similares, que fortalecem a tese de que o Deus bíblico teve uma esposa, de acordo com pesquisadora.

Conheça a esposa de Deus que foi riscada da história da Bíblia, segundo  pesquisadores | HISTORY
Javé e Aserá
São também significativas as escrituras bíblicas que mostram como Aserá era adorada no templo de Javé, em Jerusalém, ou a descrição de uma estátua da mesma deusa, que, segundo é narrado no Livro dos Reis, ficava situada no templo, zelada ritualmente por mulheres. A referência a “A Rainha do Céu” no Livro de Jeremias, poderia ser uma possível alusão à mesma divindade.

Stavrakopoulos concorda em suas conclusões com inúmeros estudos, que explicam como as edições seguintes da Bíblia – curadas sempre por homens – teriam sido infiéis às escrituras sagradas, para realizar uma operação de inteligência, uma programação neurolinguística da sociedade, com o objetivo final de manter no centro do poder a casta sacerdotal masculina, em detrimento e repressão do lado feminino da divindade.

Clipping Conheça a esposa de Deus que foi riscada da história da Bíblia, segundo pesquisadores, History Channel

Ver também

As Amazonas, além do mito 
Matriarcados: quando as mulheres é que mandam  

segunda-feira, 20 de junho de 2016

O atentado à boate gay em Orlando foi um ataque homofóbico de terrorismo islâmico

O fla-flu esquerda-direita não atrofia os cérebros só no Brasil, associado ou não ao politicamente correto, ao multiculturalismo ou ao raio que os parta. O fenômeno é mundial. Por ocasião do horrendo ataque à boate LGBT em Orlando (12/06), nos EUA, esquerdistas e direitistas mundiais passaram a encaixar a complexidade do fenômeno em suas estreitas caixinhas narrativas. Os de esquerda buscaram reduzir o massacre a um ataque homofóbico assim por acaso cometido por um sujeito espiritual e inclusive praticamente (a confirmar) ligado ao famigerado Estado Islâmico. Ah! e, claro, a dissociar mais esse ataque contra ocidentais, em nome de Alá, da religião que o inspira. Tudo seria culpa apenas de extremistas islâmicos que não representam a massa de muçulmanos que é pacífica (até prova em contrário). Sem falar na responsabilização das armas de fogo pela tragédia, como se armas tivessem vida própria e pudessem sair por aí cometendo massacres. O que não quer dizer que concorde com a venda de armas, inclusive pesadas, como se comercializa coca-cola.

Os de direita passaram a reduzir o atentado a mais um ataque islâmico a ocidentais, onde a homofobia estaria apenas sendo usada como desculpa para desviar a atenção da raiz do problema. As notícias de que o criminoso também poderia ser homossexual, por ter sido visto antes do atentado na boate e por usar aplicativo de encontros para gays, alimentaram o reducionismo. Afinal, se o cara era gay, não se poderia identificar o crime como homofóbico. Não fosse um islâmico o autor do atentado, a versão direitista seria a da "apenas mais uma briguinha sangrenta e desta vez de grandes proporções 'entre eles'."
O crime de homofobia é aquele motivado pelo ódio à homossexualidade real ou presumida da vítima.
Primeiro, cumpre salientar que o cara poderia frequentar a boate exatamente para ver como melhor cometer o atentado. Segundo, mesmo que mantivesse relações sexuais com homens, com certeza tal fato não se dava tranquilamente em sua cabeça, considerando a visão islâmica sobre o tema (ver a propósito fala de um xeique no vídeo abaixo). Terceiro, o crime de homofobia não tem a ver exclusivamente com a orientação sexual do criminoso nem da vítima, embora, em geral, sejam héteros os criminosos e homossexuais as vítimas. O crime de homofobia é aquele motivado pelo ódio à homossexualidade real ou presumida da vítima. Pessoas heterossexuais podem ser vítimas de homofobia, bastando ser confundidas com homossexuais. Deixo dois exemplos, à guisa de ilustração: 'Não pode nem abraçar o filho', diz homem que teve orelha cortada e Mantida prisão preventiva de homem acusado de agredir irmãos gêmeos por considerá-los homossexuais. E pessoas homossexuais podem ser tão mal resolvidas e alienadas a ponto de odiar a si mesmas e a seus pares e apoiar gente como o homofóbico deputado Jair Bolsonaro.

Felizmente, não me senti só desta vez na análise não maniqueísta de mais essa tragédia provocada por um extremista islâmico. Não só aqui no Brasil como em outros países, ainda há aquelas e aqueles entre nós que pensam além das caixinhas de narrativas ideológicas e buscam ver a realidade como de fato se apresenta. Destaco abaixo o texto de uma colunista portuguesa, do site Observador, que vai bem ao encontro dessa perspectiva não reducionista. Como sabemos, o atentado de Orlando foi homofóbico e de terrrorismo islâmico. Ao fim do texto, deixo também o vídeo de um desses clérigos islâmicos, por ocasião de uma palestra que deu em Sanford, Flórida, em 2013, e sua ideia de matar homossexuais por compaixão (sic).  Em recente viagem à Austrália, o famigerado xeique teve que deixar o país pelas absurdas ideias que professa e corre o risco de ter seu visto cancelado. O exemplo australiano precisa ser seguido em todo o mundo civilizado.

Vários níveis de tragédia
Maria João Marques

Subimos mais um patamar de tontice: os atentados terroristas islâmicos já não são atentados terroristas islâmicos. O que significa que subimos também um degrau na ineficácia da contenção do terrorismo.

... impressionou-me particularmente desta vez ( sobre o atentado de Orlando), a tremenda propensão que tantas pessoas têm para catalogar um evento complexo e arrumá-lo numa caixinha pequenina onde fica reduzido a ocorrência monotemática.

O criminoso que matou em Orlando era muçulmano, avisou que fazia o atentado em nome do ISIS, declarou as imbecilidades do costume (estava tão incomodado com as mortes de inocentes provocadas pelo Ocidente no Iraque e na Síria que ia matar mais gente inocente como protesto), vários relatos colocam-no como simpatizante do extremismo islâmico, já tinha ido duas vezes à Arábia Saudita (esse país encantador e moderado). Mas não, o atentado de Orlando não é terrorismo islâmico, onde é que eu fui buscar esta ideia?

Só por acaso aquela criatura que matou gente em Orlando era muçulmano. Tal como só por acaso os atiradores do Charlie Hebdo e do supermercado judaico eram muçulmanos. Ou o casal que matou uma dúzia e picos em San Bernardino. Ou os terroristas do Bataclan. Ou mais outras dezenas de exemplos. Tudo acasos curiosos. Improbabilidades estatísticas a ocorrerem inexplicavelmente. De resto, tenho a certeza que todos comentaram com alguém ‘já sabe que houve um atentado terrorista islâmico em Orlando?’ e receberam de resposta ‘Terrorismo islâmico? A sério? Não estava nada à espera.’

Já era frequente ouvirmos a tontice ‘o islã não tem nada a ver com terrorismo’. Tem. Os muçulmanos não são psicopatas, evidentemente, e a maioria é pacífica. Mas a religião é belicosa e inaceitavelmente bárbara para os padrões civilizados europeus. Agora subimos um patamar de tontice: os atentados terroristas islâmicos já não são atentados terroristas islâmicos. Como combater um problema costuma começar pela identificação do problema, subimos também um degrau na ineficácia da contenção do terrorismo.

A criatura de Orlando – que podia ele próprio ser gay – atacou um bar LGBT. Ora este fato leva a dois tipos de reações. Uns dizem que afinal foi só um ataque homofóbico. O primeiro-ministro Costa, num deplorável tuite – que parecia tirado de um livro de autoajuda para pessoas com QI abaixo de 95 – já veio culpar a ‘homofobia’ pelo atentado. Uma alma da Isquierda Unida de Espanha concluiu que as mortes eram resultantes do ‘heteropatriarcado’. Viram? Afinal era só ódio a gays, nada de terrorismo islâmico. Aquelas tiradas sobre o ISIS foram um momento de humor, daquele afiado e seco, do criminoso antes de matar gente.

Se algum dia um muçulmano, declarando fidelidade a uma qualquer organização terrorista, entrar numa conferência de feministas e matar mulheres, vai ser só um ataque machista – ponto. O extremismo islâmico nem costuma acumular com ódio à igualdade dos sexos. Já a ocupação de uma escola em Beslan, por terroristas tchetchenos, também não teve nada de terrorismo islâmico. Segundo a lógica, foi contra as crianças. Vai-se a ver e era só algum jovem pai revoltado por ter de mudar as fraldas ao seu filho recém-nascido a meio da noite.

Outros recusam que o ataque a um bar LGBT tenha sido um ataque homofóbico. Como se espantasse alguém que o radicalismo islâmico (e o islã moderado, já agora) contenha homofobia. Como se o repúdio pelas liberdades sexuais do Ocidente – sobretudo das mulheres e dos homossexuais – não fosse uma pedra basilar do fundamentalismo muçulmano. Como se não pudesse ser simultaneamente homofobia e terrorismo islâmico. Os mortos de Orlando foram escolhidos por serem gays, não por serem uns americanos ao calhas. Este ataque homofóbico reforça a índole antiocidental do terror islâmico, não a anula.

Mas há espíritos que não aceitam que uma realidade possa ser complexa e multifacetada. Nem um atentado terrorista. Se formos então para manifestações mais insidiosas, como um mayor de Londres muçulmano a proibir anúncios nos transportes públicos com mulheres despidas, prevemos que vários cérebros curto-circuitem. De fato, cada vez mais as rígidas imposições islâmicas às indumentárias femininas se aproximam do puritanismo da esquerda progressista que clama contra a objetivação das mulheres.

Bom, nisto de islã, celebremos uma pequena redenção desta semana: os clérigos do Paquistão decretaram que os assassínios ditos de honra (de mulheres, claro) são anti-islâmicos. Está, assim, desfeita a magna dúvida sobre a bondade de regar de gasolina e a seguir incendiar uma mulher que casou com quem a família não aprovou.

Texto na íntegra aqui. 15/06/2016


sexta-feira, 20 de maio de 2016

Bancada da bíblia e da propina não pode governar o estado brasileiro

Bancada da bíblia e da propina fazendo culto em dependências do estado brasileiro
Toda vez que a gente ouve o papo furado do "o estado é laico, mas não ateu", deve-se traduzir a falácia por "nós achamos sim que o estado deve ser permeável a dogmas religiosos", naturalmente o oposto do que "estado laico" quer dizer.

O estado laico não é obviamente ateu porque nem nega a existência de deus nem persegue religiões nem religiosos. Estados ateus foram os estados comunistas que negavam a existência de deus e perseguiam religiões e religiosos, na base do famoso ditado "a religião é o ópio do povo". O estado laico, ao contrário, defende a liberdade de culto, o direito de cada pessoa ter sua fé sem ser perseguida ou molestada por isso.

No entanto, o estado laico também não é teísta, ou seja, ele nem afirma nem defende a ideia de deus nem pode ter seus princípios orientados por religião alguma. Por isso, o tal "sobre a proteção de deus" existente no preâmbulo da constituição brasileira de 88 não deveria estar lá, ainda que alguns afirmem não haver neste força normativa. O país pode ser majoritariamente cristão, mas também é multiétnico, multicultural, multirreligioso, e também agnóstico e ateu. E o estado representa a totalidade do povo brasileiro, não só os cristãos e teístas. Todos pagamos os mesmos escorchantes impostos que só servem para engordar os bolsos dos políticos corruptos. Todos contribuímos para o crescimento do país, portanto, o estado, que também sustentamos, têm que nos tratar a todos de forma igualitária, garantindo nossos direitos civis, ainda que à revelia de dogmas religiosos.


Entretanto, a tal bancada evangélica tem uma visão do estado bem diferente da consagrada pelo estado moderno. Uma visão bem próxima da dos petistas com quem se conluiaram na última década para atrasar o país. Acham que o estado deve ser a casa da mãe joana evangélica da mesma forma que os petistas acham que o estado deve ser a casa da mãe joana petista. Boa parte da bancada evangélica responde a processos por corrupção assim como os petistas (vide Eduardo Cunha). A maioria é picareta de pai,  mãe e parteira como os petistas. Se os petistas fala(ra)m em nome da justiça social apenas para chegar ao poder e se locupletar, os evangélicos falam em nome de deus, cristo e bíblia para fazer o mesmo. Tem como objetivo destruir a democracia, substituindo-a por um estado teocrático, fundamentalista e corrupto. 

Por isso, ainda nem nos livramos do PT no poder e já temos que nos preparar para mais um embate contra a bancada das trevas na política. Vale, portanto, assinar este abaixo-assinado (e outros que virão) que visa coibir a mistura de religião e estado que ameaça nossas liberdades individuais. Pastor confundir dependências do estado brasileiro com templo evangélico não pode ser.

STF: Pela cassação de todo político que usar religião no desempenho da função 

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Retrospectiva 2015: "Sobre o terrorismo islâmico: Porque o Islã é, sim, violento"

Porque o Islã é, sim, violento

Por Alex Antunes 

Psiquicamente violento, aliás, como qualquer religião; particularmente as monoteístas. O grande problema com essas religiões não é, como acusa a ciência, a crença irracional em dogmas não aferíveis. É situar a “verdade” fora de si mesmo, em algum código mais ou menos simplório, imutável e ditado por algum deus didático. E não é bem assim que as coisas funcionam.

O religioso autoritário projeta fora de si, num deus ou profeta x (coloque aí qualquer nome, incluindo Maomé, o gatilho da vez), um conjunto de regras que direciona e simplifica a sua relação angustiosa com a complexidade do mundo. Na verdade o que esse covarde está fazendo é se furtar à aventura mais empolgante da experiência humana: descobrir os fundamentos de sua própria ética.

Mas porque a sua própria ética não poderia ser exatamente a de Maomé (ou do deus cristão, judaico etc)? Poderia. Se ele não tivesse a expectativa de converter outras pessoas ao seu sistema, e oprimir os “infiéis”, ou seja, tentar aumentar sua zona de conforto, ao custo do desconforto moral dos outros.

Não é à toa que nas religiões monoteístas o ser superior é invariavelmente representado por uma figura masculina “forte”. Nas religiões politeístas, o arquétipo do patriarca existe, mas é um entre outros, incluindo deusas, deuses instáveis, insondáveis e truqueiros, ou seja, todo um catálogo de comportamentos humanos. O que tende à tolerância com comportamentos variados, e mesmo eticamente dúbios (fazem parte do jogo da vida – e não necessariamente de um polo “do mal” e inaceitável).

A onda de declarações “do bem” da comunidade islâmica, após o atentado ao Charlie Hedbo, não cola. Um exemplo da empáfia autoritária muçulmana em contextos em que não é justificável (ou em que é ainda menos justificável) é dado no caso do filme Femme De La Rue, da estudante belga Sofie Peeters, sobre o assédio nas ruas. E na reação do líder muçulmano local Abu Haniefa, que respondeu acusando Sofie de “provocar os homens” ao andar pelas ruas “nua como uma prostituta”, e “pintada como uma palhaça”.

Claro que Sofie no filme está vestida normalmente, e simplesmente anda em um bairro (de maioria muçulmana) da capital de seu país, enquanto é assediada. Como eu comentei aqui, me lembra a piada de um homem que faz um teste de Rorschasch, e é diagnosticado como obcecado sexual. Aí ele diz “me mostram um monte de imagem de safadeza (aquelas manchas disformes do teste), e querem que eu pense no quê?”. O autoritário moralista está sempre projetando no outro as suas patologias, mazelas e dificuldades no mundo.

O comportamento de parte da esquerda, acusando os cartunistas de mexerem com a sensibilidade religiosa dos outros, é absurdo. Eles, os cartunistas, foram (fomos) agredidos antes, por alguém que acha que tem acesso a um código moral superior. Como disse Stephane Charbonnier, o Charb, “Maomé não é sagrado para mim. Eu vivo sob a lei francesa, não sob a lei do Corão”. É quase uma obrigação para um francês consequente trollar a ideia de que Maomé (ou qualquer deus) dite um código moral rígido para a civilização européia.

O comportamento de outra parte da esquerda, abduzindo para si o Charlie Hebdo (“O ataque ao Charlie Hebdo é um ataque à extrema esquerda”) também não procede. Não há porque duvidar da sinceridade de gente de qualquer matiz político que se sentiu atingida pelo atentado. E a contracultura, território de origem do CH, não é monopólio da esquerda ortodoxa, mesmo que alguns dos cartunistas envolvidos tenham sido comunistas de carteirinha.

Basta lembrar que a última capa, no próprio dia do atentado, foi simpática ao escritor Michel Houellebecq, que é acusado de dar munição para a extrema direita francesa com seu livroSoumission. Charb e o Charlie estavam explorando, corajosamente, um território em que esquerda e direita ortodoxas se misturam, se confundem e não sabem o que fazer. Ele engloba, além da imigração, questões comportamentais e de direitos individuais, como gênero, sexualidade, consumo de substâncias postas na ilegalidade etc.

No filme Profissão De Risco, com Johnny Depp, inspirado na vida do traficante americano George Jung, quando é acusado de atravessar uma fronteira portando maconha, ele diz: “estou sendo sentenciado por atravessar uma linha imaginária carregando uma planta”. É esse grau de translucidez que tem que ser mantido quando os “seres superiores” e seus códigos morais esquisitões falam.

Todos os fundamentalistas (inclusive os fundamentalistas políticos) que querem impor a sua percepção de mundo a quem não está minimamente interessado nela exercem algum grau de violência, seja essa violência física ou psicológica. Como eu comentei ontem, neste texto, Atentado À Inteligência: “É claro que é direito dos muçulmanos (e de outros fundamentalistas) (…) serem ‘submissos’ a seu deus (ou concepção de sistema social). É nisso que o humor, ou o chiste, se converte num inimigo central dos fundamentalistas: ele é a farpa que esvazia o balão autoinflado dessa ‘autoridade moral’, dessa solenidade patética, dessa angústia pela infalibilidade – que é a mais humana das características. Assim como (…) os sistemas religiosos contenham sempre uns fragmentos de verdade, tomá-los como o todo da verdade será sempre um erro”.

E exigir isso dos outros, além de erro, é intolerável. Na verdade, o sufismo (a parte mística do Islã), assim como a cabala judaica e o cristianismo primitivo, tem tecnologias mágicas e espirituais fascinantes, e bastante funcionais inclusive. Mas essa parte da experiência religiosa se perdeu, se contaminou ou foi engessada na religião institucional e em seu viés político. Posto assim, não interessa se Jesus ou Maomé ou seja lá quem for foram figuras históricas e/ou grandes iniciados. Cabe é dar um sonoro f*-se a quem (pensa que) fala em nome deles.


Fonte: Blog do Alex Antunes, 11 de janeiro
Publicado originalmente em 21/01/2015

segunda-feira, 22 de junho de 2015

E as rolas vão rolar: Boechat, Malafaia, homofobia e machismo


Depois da travesti crucificada na Parada LGBT de Sampa, a última polêmica, ocorrida na sexta (18), ficou por conta de um imbróglio envolvendo o jornalista Ricardo Boechat, da rádio BandNews FM, e o pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo.  Boechat, em seu programa matinal, afirmou “que é no âmbito de igrejas neopentecostais que estão acontecendo atos de incitação à intolerância religiosa”. Comentava sobre o caso da menina de 11 anos que foi atacada, no último dia 14, com uma pedrada, quando saia de um culto de Candomblé no Rio de Janeiro. Suspeita-se que tenham sido evangélicos os autores da agressão.

Malafaia, então, repondeu, via Twitter:
Avisa ao jornalista Boechat, que está falando asneira, dizendo que pastores incitam os fiéis a praticarem a intolerância. Verdadeiro idiota”.
Sabendo da tuitada, Boechat retrucou, em seu programa de rádio, sem poupar palavras. 
Ô, Malafaia, vai procurar uma rola, vai. Não me enche o saco. Você é um idiota, paspalhão, um pilantra, tomador de grana de fiel, explorador da fé alheia. E agora vai querer me processar pelo que acabei de falar que é o que você faz. Você gosta muito é de palanque. Eu não vou te dar palanque porque tu é um otário, tu é um paspalhão”.
[...]
...É o seguinte: é no âmbito de igrejas neopentecostais que estão acontecendo atos de incitação à intolerância religiosa, mais do que em outros ambientes. Em nenhum momento.... eu disse qualquer coisa que generalizasse esse comentário... Você é homofóbico, você é uma figura execrável, horrorosa. E que toma dinheiro das pessoas a partir da fé. Você é rico. Eu não sou rico porque tomei dinheiro das pessoas pregando a salvação depois da morte. O meu salário, os meus bens, o meu patrimônio vieram do meu suor, não do suor alheio. Você é um charlatão ....você é tomador de grana. Você e muitos outros. Não tenho medo de você, seu otário. Vai procurar uma rola, repetindo em português bem claro".
Malafaia sentiu o golpe e, em seguida, postou vídeo, em sua página no youtube, dizendo que iria processar o jornalista pela fala atravessada, além de comentar matéria sobre a demissão de Boechat do jornal O Globo, onde foi colunista. E terminou, desafiando novamente o jornalista: 
Então eu não tenho medo de você e está desafiado. Não é no seu programa não, porque eu não vou te dar esse mole. Em qualquer programa. Senta na mesa comigo que eu vou te engolir. Porque tu não tem argumento. Tu é bom sozinho, eu quero ver no confronto.
Os vídeos da treta entre os dois estão aí embaixo, primeiro o do Boechat, depois do Malafaia.

Nem é preciso dizer que o destempero de Boechat ganhou as redes sociais e as páginas de sites e blogs não tanto pelas várias verdades que disse sobre o execrável pastor mas sim por tê-lo mandado "procurar uma rola". A expressão, indiscutivelmente machista, é usada com frequência para tentar desqualificar as falas das mulheres que são mais assertivas, independentes, apresentando-as como "nervosinhas", "ranzinzas", "problemáticas", "mimizentas", "chatas", supostamente por falta de rola (ou de trepar). Claro, é absurdo insinuar que uma mulher (ou qualquer pessoa) age dessa ou daquela forma ou diz isso ou aquilo por falta de sexo. Trata-se, entre outras coisas, de uma forma de tentar silenciar as mulheres desconsiderando sua capacidade intelectual, sua racionalidade.

Ao mandar Malafaia "procurar uma rola", Boechat se dirigiu ao pastor, sobre o qual sempre pairou suspeitas de ser um gay mal resolvido (por certos trejeitos e afinadas de voz que costuma apresentar), como se fosse mulher, fazendo um outing atravessado do mesmo. Não que homens que apresentam características ditas femininas sejam necessariamente gays. Nem que homofóbicos sejam necessariamente gays mal resolvidos. Entretanto, quando essas duas características aparecem no mesmo perfil, há fundamento para se suspeitar que a figura seja um homossexual egodistônico, um gay que não se assume para si próprio (é inconsciente dos próprios desejos de tão reprimidos) e que persegue outros homossexuais como quem quebra espelhos para não ver a própria imagem. Nos EUA, é comum ativistas LGBT trazerem a público os casos homossexuais de muitos desses pastores evangélicos e políticos republicanos, ironicamente homofóbicos, que combatem os direitos homossexuais.

Concluindo, podemos dizer que, no cômputo geral, Boechat lavou a alma de muitos. Traduziu em público o que muita gente pensa sobre esse charlatão abominável chamado Silas Malafaia. Provocou também muitas risadas e memes (até eu entrei no clima). O que não impede que possamos analisar o uso da expressão "vai procurar uma rola", mesmo engraçada, por sua verdadeira natureza machista. Lamentável e inadvertidamente inclusive, Boechat referendou seu uso que deve aumentar. Criou assim uma faca de dois gumes.

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Manifestação religiosa na Câmara, contra supostas ofensas à fé cristã, fere sim o princípio do Estado laico

Conservadores, sobretudo os religiosos estão em cruzada contra qualquer proposta que questione sua visão de mundo onde as desigualdades e as exclusões são tidas como coisas naturais. E particularmente os evangélicos têm um plano de tomada do Estado brasileiro tão nociva e autoritária quanto a do PT. Não é de hoje que deputados-pastores usam espaços dos governos municipais, estaduais e federais para realização de rezas e cultos num total desrespeito à laicidade do Estado. Seguem comentário do historiador Marco Antonio Villa sobre o assunto e texto sobre a cruzada conservadora contra o que eles chamam de ideologia de gênero, ironicamente a educação diferenciada conservadora. "Gênero" é apenas o termo dado ao padrão de comportamento imposto às crianças, com base numa separação arbitrária das características humanas em "femininas" e "masculinas", por esse tipo de educação.


Católicos e evangélicos em cruzada contra a palavra gênero na educação
Grupos religiosos fazem ofensiva para evitar que a palavra entre nos planos de educação

O Brasil aprova um novo plano que quase dobra a verba para a educação

Grupos religiosos estão em uma cruzada nas câmaras municipais brasileiras para evitar que a palavra "gênero" passe a fazer parte dos planos municipais de educação, o conjunto de metas que as prefeituras terão que adotar pelos próximos dez anos e que estão sendo votadas em vários pontos do país neste ano. Em São Paulo, a pressão surtiu efeito e o termo desapareceu, na última quarta-feira, das 34 páginas que estão sendo discutidas desde 2012.

A pressão repete o que já foi visto no ano passado, durante a discussão do Plano Nacional de Educação, em Brasília, quando olobby religioso, liderado especialmente pelos deputados evangélicos, também suprimiu a palavra do texto final. É apenas mais um exemplo da mobilização de grupos religiosos para fazer valer suas posições nas discussões relacionadas a inclusão e direitos humanos no Brasil. Na própria quarta, deputados cristãos tomaram o plenário da Câmara, presidida pelo evangélico Cunha, para protestar. Rezaram um Pai Nosso diante dos holofotes durante a votação da reforma política por considerarem absurda a imagem de uma transexual crucificada durante a Parada Gay em São Paulo, no último domingo

O argumento contra a palavra "gênero", tanto no ano passado como neste ano, é que a inclusão, ainda que dentro do contexto da criação de regras para a "promoção da igualdade", confere um caráter ideológico ao tema, em oposição ao uso da palavra "sexo", uma alusão biológica. Os que odeiam a palavra afirmam que querem evitar a inclusão nas escolas do que chamam de "ideologia de gênero", que pressupõe que cada indivíduo tem o direito de escolher o próprio gênero, sem ser definido, necessariamente, pelo sexo biológico.

"A expressões gênero ou orientação sexual referem-se a uma ideologia que procura encobrir o fato de que os seres humanos se dividem em dois sexos. Segundo essa corrente ideológica, as diferenças entre homem e mulher, além das evidentes implicações anatômicas, não correspondem a uma natureza fixa, mas são resultado de uma construção social", explica Dom Fernando Arêas Rifan, bispo da Administração Apostólica Pessoal São João Maria Vianney (Rio de Janeiro), em uma nota publicada pela Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). "Os que adotam o termo gênero não estão querendo combater a discriminação, mas sim desconstruir a família (...) e, deste modo, fomentam um estilo de vida que incentiva todas as formas de experimentação sexual desde a mais tenra idade", continua.

Além de Dom Fernando, também se manifestaram contrariamente à "ideologia de gênero" ao menos outros três religiosos: o bispo do município de Frederico Westphalen (RS), Antônio Carlos Rossi Keller, o padre Paulo Ricardo, popular pároco da arquidiocese de Cuiabá (MT) que oferece aulas no YouTube sobre a doutrina católica e tem quase um milhão de seguidores no Facebook, e o cardeal Dom Odilo Pedro Scherer, arcebispo metropolitano de São Paulo, que em nota divulgada no última segunda-feira disse que "as consequências de tal distorção antropológica na educação poderão ser graves". "Os legisladores [devem evitar] a ingerência do Estado no direito e dever dos pais e das famílias de escolherem o tipo de educação dos filhos", completou.

As manifestações dos religiosos impulsionaram uma série de protestos em câmaras municipais do país, onde o tema está sendo discutido. O que, por sua vez, desencadeou reações de movimentos feministas e LGBTs (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais), transformando as casas legislativas em uma batalha de gritos.

Em Campinas, uma das cidades mais importantes do Estado de São Paulo, é discutido o "Projeto de Emenda à Lei Orgânica Anti-ideologia de Gênero", que proíbe que sejam realizadas legislações sobre o tema na cidade. Na Câmara houve beijaço de manifestantes gays contrários à lei ao lado dos que seguravam cartazes que diziam "não à ideologia de gênero", "pelo direito natural da família". "Que tragédia! A mãe gerou uma criança e agora essa criança cresceu e não quer que ninguém mais seja homem nem mulher. A emenda que fizemos é a emenda do amor, a emenda da fraternidade, que trata de homem e de mulher", explicava aos manifestantes em uma audiência no final do mês passado o vereador Campos Filho (DEM), ex-secretário da Arquidiocese de Campinas e ligado a padres locais. A questão também é calorosamente discutida em Guarulhos (Grande São Paulo) e em Maceió (Alagoas).

Na capital paulista


Na capital paulista, a palavra gênero aparecia em seis metas do Plano Municipal de Educação, enviado para a Câmara ainda em 2012 pelo então prefeito Gilberto Kassab (PSD). Entre elas, a 6.5, que obriga o município a "fomentar a implementação de políticas de prevenção à evasão motivada por preconceito e discriminação à orientação sexual ou à identidade de gênero e étnico-racial, criando rede de proteção contra formas associadas de exclusão". O texto já havia sido aprovado em duas comissões, entre elas a de educação, sem polêmicas. Até que, na segunda audiência pública promovida pela comissão de finanças, grupos religiosos iniciaram a pressão. A aprovação nesta comissão seria o último passo antes da votação no Plenário.

"A partir da segunda audiência veio esse grupo de algumas igrejas católicas e evangélicas que pede a retirada da tal ideologia de gênero do texto", explica o vereador Toninho Vespoli (PSOL), relator do projeto na comissão de educação. "Até então, eu nunca tinha escutado esse termo. Eles afirmam que as crianças seriam tratadas de forma assexuada, podendo inclusive usar os mesmos banheiros, independentemente do sexo. Mas não é nada disso. Trazemos uma discussão de direitos humanos, de acabar com o preconceito e o machismo e de evitar que as crianças sejam oprimidas no ambiente escolar. Não dá para ignorar o conflito que já existe por causa da homofobia", ressalta o vereador. "Há toda uma visão conservadora se colocando no debate educacional e que não possibilita a discussão da diversidade", desabafa o vereador Paulo Fiorilo (PT), relator do texto na comissão de finanças.
“É um retrocesso para os direitos humanos”
Para a Maria Elisa Brandt, doutora em sociologia e especialista em políticas públicas do Governo de São Paulo, a palavra gênero é necessária para se dar visibilidade para a discriminação. 
Pergunta. O que significa a retirada da palavra "gênero" dos planos de educação?
Resposta. É um retrocesso para os direitos humanos que está sendo promovido pelo pensamento conservador e pelas bancadas religiosas intolerantes dos legislativos brasileiro. A expressão que os conservadores têm usado, "ideologia de gênero", é uma falsa noção, porque o conceito de gênero não tem um cunho ideológico e, sim, sociológico. Gênero é uma palavra cunhada para lidar com as relações de poder e discriminação que sempre existiram, em torno das identidades e papéis associados ao masculino e feminino para além do sexo biológico para dizer que existe a discriminação contra o feminino. Isso foi uma construção de direitos humanos discutida em diversas conferências da ONU e o Brasil assinou compromissos em relação a isso. Eles venceram no Plano Nacional de Educação, mas agora os Estados e municípios têm a chance de retomar o debate.
P. Os políticos que defendem a retirada dizem que a discriminação de gênero está contemplada ao se falar em coibir qualquer forma de discriminação.
R. Esse é um argumento para se dar invisibilidade, é um subterfúgio criado por pessoas que acham que ser gay é uma doença. É preciso, justamente, visibilizar todas as formas de discriminação. Fazer a lista e colocar no texto. A escola é um espaço de construção da identidade. Por isso é importante que ela assuma que a sociedade é racista, sexista, homofóbica e crie regras para que seja um espaço mais tolerante. Esse é o único meio de gerar pessoas melhores no futuro. Em todas as idades se tem condições de se fazer um tratamento respeitoso dessas questões.
Nesta quarta-feira, quando haveria a votação do texto na comissão, militantes, de ambos os lados, se aglomeraram dentro e fora do plenário, aos gritos. Os vereadores, entretanto, decidiram derrubar o relatório de Fiorilo, que mantinha a palavra "gênero". No lugar, resolveram apoiar um substitutivo do vereador Ricardo Nunes (PMDB), que retirou as sete menções à palavra —e a única à transgênero— que existiam no plano. A meta 6.5, por exemplo, virou: "Fomentar a implementação de políticas de prevenção à evasão motivada por preconceito e discriminação étnico-racial, criando rede de proteção contra formas associadas de exclusão". O texto agora seguirá para votação final no plenário, que deve começar na próxima semana.

"Recebi uma carta de Dom Odilo e cerca de 10.000 emails da população que pediam a retirada da palavra. É um plano municipal de educação, voltado para crianças de zero a 14 anos. Como vamos pedir para alguém na escola falar de diversidade sexual e de diversidade de gênero? Como falar com crianças de zero a 14 anos sobre a opção sexual dela?", questiona Nunes. "Alterei itens para que se obrigue o município a implementar [onde antes dizia fomentar] políticas de combate à qualquer forma de preconceito. A escola tem que combater o preconceito e não fazer um plano que interfira na orientação sexual da criança. Educar é papel da família", ressalta ele.

A pesquisa nacional mais recente sobre o assunto, feita pela pela Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas) a pedido do Governo federal em 2009, mostra que 93,5% dos 18.500 alunos, pais e funcionários de escolas públicas brasileiras entrevistados apresentavam algum tipo de preconceito em relação ao gênero. Outra, feita pela Unesco em 2004, apontou que 39,6% dos meninos entrevistados não gostariam de ter um colega homossexual.

Segundo o coletivo Grupo Gay da Bahia, que coleta dados sobre homicídios de LGBTs, o Brasil é o campeão mundial deste tipo de assassinatos. Casos de ataques gratuitos a homossexuais não são raros no país. Um dos mais famosos aconteceu em plena avenida Paulista, em 2010, quando um grupo atacou um estudante de jornalismo com bastões de lâmpadas fluorescentes, chutes e socos; era o segundo ataque deles contra gays na região. Quatro dos cinco agressores estavam em idade escolar.

O que mudou no plano de SP

Meta 6.5

Como era: Fomentar a implementação de políticas de prevenção à evasão motivada por preconceito e discriminação à orientação sexual ou à identidade de gênero e étnico-racial, criando rede de proteção contra formas associadas de exclusão

Como ficou: Fomentar a implementação de políticas de prevenção à evasão motivada por preconceito e discriminação étnico-racial, criando rede de proteção contra formas associadas de exclusão

Meta 3.21

Como era: Difundir propostas pedagógicas que incorporem conteúdos sobre sexualidade, diversidade quanto à orientação sexual, relações de gênero e identidade de gênero, por meio de ações colaborativas da Secretaria Municipal de Direitos Humanos, da Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo, dos Conselhos Escolares, equipes pedagógicas das Unidades Educacionais e sociedade civil.

Como ficou: Promover ações contínuas de formação da comunidade escolar sobre relações étnico-raciais no Brasil e sobre história e cultura afro-brasileira, africana e dos povos indígenas através da Secretaria Municipal de Educação e em parceria com Instituições de Ensino Superior e Universidades, preferencialmente públicas, e desenvolver, garantir e ampliar a oferta de programas de formação inicial e continuada de profissionais da educação, além de cursos de extensão, especialização, mestrado e doutorado.

Meta 3.20

Como era: Promover ações contínuas de formação da comunidade escolar sobre sexualidade, diversidade, relações de gênero e Lei Maria da Penha, através da Secretaria Municipal de Educação e em parceria com Instituições de Ensino Superior e Universidades, preferencialmente públicas, e desenvolver, garantir e ampliar a oferta de programas de formação inicial e continuada de profissionais da educação, além de cursos de extensão, especialização, mestrado e doutorado, visando a superar preconceitos, discriminação, violência sexista, homofóbica e transfóbica no ambiente escolar

Como ficou: Promover ações de formação da comunidade escolar sobre a Lei Maria da Penha n° 11.340, de 7 de agosto de 2006, através da Secretaria Municipal de Educação.

Meta 3.19

Como era: Instaurar para as instituições escolares protocolo para registro e encaminhamento de denúncias de violência e discriminações de gênero e identidade de gênero, raça/etnia, origem regional ou nacional, orientação sexual, deficiências, intolerância religiosa, entre outras, visando a fortalecer as redes de proteção de direitos previstas na legislação.

Como ficou: Instaurar para as instituições escolares protocolo para registro e encaminhamento de denúncias de violências e discriminações de raça/etnia, origem regional ou nacional, deficiências, intolerância religiosa, e todas as formas de discriminação, visando a fortalecer as redes de proteção de direitos previstas na legislação.

Meta 3.17

Como era: Desagregar, cruzar e analisar anualmente todos os indicadores educacionais com relação à renda, raça/etnia, sexo, deficiências e aprimorar o preenchimento do quesito raça/cor e do nome social de educandos travestis e transgêneros no Censo Escolar de modo a conhecer e atuar de forma mais precisa em relação à permanência, transformações e desafios vinculados às desigualdades na educação

Como ficou: Desagregar, cruzar e analisar anualmente todos os indicadores educacionais com relação à renda, raça/etnia, sexo, campo/cidade, deficiências e aprimorar o preenchimento do quesito raça/cor no Censo Escolar de modo a conhecer e atuar de forma mais precisa em relação à permanência, transformações e desafios vinculados às desigualdades na educação.

Fonte: El País, 11 de junho de 2015

domingo, 25 de janeiro de 2015

Sobre o terrorismo islâmico: Nascer para a liberdade

Nascer para a liberdade
por Fernando Gabeira

O atentado ao “Charlie Hebdo” me colheu num trabalho no Maranhão. Tive tempo ainda de escrever um artigo geral sobre o tema. Deixei para domingo, dia mais ameno, algumas reflexões pessoais. Bruscas mudanças no mundo, às vezes, nos levam a examinar nosso lugar nele. Minha família veio do Líbano, um país com histórico de conflitos religiosos. Eram cristãos, minha avó tinha cruzes tatuadas na testa e no braço. Isso sempre me impressionou e, ao longo dos anos, novos conflitos religiosos me parecem uma tristeza que não tem fim.

Por várias razões criei uma certa resistência em estudar o Islã. Cheguei a discursar sobre o perigo do Islã político, porque, mesmo sem estudá-lo a fundo, sinto que a fusão do estado com a religião sempre termina em prisão, tortura e morte. Ainda mais com visão tão estreita sobre mulher e sexualidade. Agora vejo, de todos os lados, uma advertência para dissociar o Islã da violência, sob o perigo de parecer racista e islamofóbico.

Essa advertência se articula com outra, sutil: a de que as religiões não devem ser criticadas, que elas devem ficar fora do raio de alcance da liberdade de expressão. Esse é o problema. Vivemos num mundo democrático em que a blasfêmia não é um crime. O “Charlie Hebdo”, de uma certa forma, mostrava onde o terrorismo se nutria no Islã. Num dos desenhos na porta do paraíso, Maomé advertia: parem com as bombas, estamos em falta de virgens.

É uma maneira de enfatizar como a visão do martírio e suas recompensas inspiram homens-bomba. De todos os discursos, o que mais mexeu com minha intuição foi o do presidente do Egito, que não só denunciou as interpretações do Islã, mas afirmou que era necessária uma revolução religiosa para integrá-lo na pluralidade do mundo moderno. A capacidade do Islã de se rever no mundo, algo que os católicos fazem, sem traumas, com o Papa Francisco, pode ser uma luz no fim desse longo túnel.

Alguns sinais animadores existem tanto na Europa como nos Estados Unidos, onde parte da comunidade islâmica define o terrorismo como inimigo comum. O combate direto ao Estado Islâmico é dado por muçulmanos que arriscam suas vidas. O número de mortos em atentados é muito maior na região do que no Ocidente. Mesmo com a derrota do terrorismo ainda ficaria no ar um ponto em que é difícil separar o islamismo da violência. O total enlace do estado com a religião tende a transformar os infiéis em criminosos.

A fatwa, pena de morte para o escritor Salman Rushdie, foi decretada por autoridades religiosas. Na Arábia Saudita, o blogueiro Ralf Badawi foi condenado a mil chibatadas. Minha hipótese sobre o Islã é a mesma que tenho sobre o marxismo. Muita gente diz que o marxismo é perfeito, mas os equívocos foram obra do socialismo realmente existente. Não havia nada errado com o texto, mas sim com os intérpretes. Como textos corretos podem levar a interpretações tão violentas e autoritárias? Não haverá alguma coisa neles que, de certa forma, estimula massacres?

No passado, concordava com Sartre na sua benevolência com as ações terroristas na Argélia. E rejeitava a posição de Camus. Hoje, compreendo que errei. O próprio Camus, em “Os justos”, mostra que os terroristas que iam matar o arquiduque Francisco Ferdinando, há um século, adiaram o ataque porque havia crianças na carruagem. Agora, estamos diante de terroristas que não se importam com a presença de crianças, sob o argumento de que crianças são mortas no Oriente Médio.

Jornais americanos não publicaram os desenhos do “Charlie Hebdo”. Dizem que seu estilo é outro, não publicam material contra religião. Mas, depois do atentado, é um erro jornalístico. Aqui no Brasil, mesmo com a clavícula quebrada, saí exibindo o filme “Je vous salue, Marie”. Não gostava tanto do filme, no final estava até meio cansado dele. O que estava em jogo não era minha afinidade com o filme de Godard. Claro que uma coisa é o contexto de “Je vous salue, Marie”, Sarney e Igreja Católica. Outra, Maomé e os radicais islâmicos. Nesse sentido, tive sorte quando minha avó com a cruz na testa fez a mala e veio para o Brasil. Mas o Brasil, através do seu governo, me desaponta nesse drama de alcance mundial. Quando Dilma propôs um dialogo com o Estado Islâmico, na ONU, percebi que o governo vive numa outra época. A nota formal de condenação do atentado parece o exercício de um dever burocrático.

A família veio para o país certo, apesar do governo. Quantas vezes com o Minc e Sirkis fizemos manifestações pela paz com judeus e árabes juntos no Saara? Isso não quer dizer que não exista intolerância religiosa no âmbito nacional. Nem tentativas de associar o Estado à religião, o que enfatizei em artigo sobre as eleições no Rio. Olhando para trás, no momento de barbárie, vejo como a ideia da liberdade individual, livre de doutrinas políticas ou religiosas, é uma trincheira a se defender com todos os riscos. Embora os riscos não sejam tão altos aqui nos trópicos.

Fonte: Blog do Gabeira, artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 18/01/2014

sábado, 24 de janeiro de 2015

Sobre o terror islâmico: Ocidentalismo

Ocidentalismo
Demétrio Magnoli

Após os atentados em Paris, os ocidentalistas limparam a cena do crime, apagando as digitais do terror jihadista

Edward Said definiu o "orientalismo" como o empreendimento de construção de um Oriente (árabe-muçulmano) imaginário por intelectuais ocidentais. O Oriente dos orientalistas, originalmente exótico e indecifrável, converte-se ao longo do tempo na fonte do irracionalismo e do perigo. Hoje, ironicamente, o "orientalismo" ganha uma imagem espelhada no "ocidentalismo", que também é obra de intelectuais ocidentais. O Ocidente imaginário que eles descrevem configurou-se com o imperialismo e evoluiu na forma de uma máquina implacável de exploração econômica, opressão social e exclusão etno-religiosa. Esse Ocidente maligno, explicam-nos, é responsável por toda a violência do mundo, inclusive pelo terror jihadista.

Os ocidentalistas negam a existência de uma história não-ocidental. Na hora dos atentados do 11 de setembro de 2001, espalharam a fábula de que a Al Qaeda foi parida na maternidade da CIA. Diante dos atentados em Paris, limparam a cena do crime, apagando as digitais das organizações jihadistas. Os nomes da Al Qaeda no Iêmen e do Estado Islâmico não aparecem nas suas análises das carnificinas, atribuídas a pobres diabos oprimidos pelo Ocidente: "alguns radicais" (Frei Betto) ou meros "lobos solitários" (Arlene Clemesha) que não passam de "maconheiros cabeludos" (Tariq Ali).

Os ocidentalistas organizam sua narrativa em torno da verossimilhança e do silogismo, investindo na carência de informação histórica da opinião pública. Nas versões que difundem, a culpa pelos atentados recai sobre a guerra suja de George W. Bush (Ali), mesmo se a jihad começou antes dela, ou sobre o colonialismo francês na Argélia (Clemesha), mesmo se os jihadistas qualificam os nacionalistas argelinos como infiéis e blasfemos. A regra de ouro é descartar todos os fatos que não cabem no molde do "ocidentalismo". Uma "moral dos fins", típica de ideólogos, justifica a manipulação, a distorção e a pura mentira, que desempenham a função de "meios" incontornáveis.

Os ocidentalistas são cultores do relativismo moral: defendem o princípio "ocidental" da liberdade de expressão para si mesmos, mas juntam suas vozes às dos fundamentalistas religiosos para acusar o Ocidente de libertinagem. No Corão, inexiste a proibição da figuração de Maomé. Amparado apenas no cânone islâmico que proíbe o culto a seres humanos, o veto não passa de uma interpretação abusiva de elites político-religiosas consagradas ao controle social. Contudo, segundo os ocidentalistas, o "Charlie Hebdo" estava "provocando os muçulmanos com blasfêmias ao profeta" (Ali), numa "atitude muito ofensiva" (Clemesha). O atentado jihadista deve, portanto, ser entendido como "uma resposta a algo que ofendia milhares de fiéis muçulmanos" (Frei Betto). Na versão deles, os terroristas fizeram justiça, reagindo à inação dos governos ocidentais acumpliciados com os detratores do Islã.

Os ocidentalistas não se preocupam com a consistência argumentativa. Eles dizem que os terroristas alvejaram o "Charlie Hebdo" como reação às charges do profeta, mas calam sobre o ato de terror complementar, no mercado kosher. Depois dos cartunistas, os jihadistas foram atrás dos judeus, comprovando que não lhes interessa o que você faz, mas o que você é. Entretanto, o "ocidentalismo" nunca distingue motivos de pretextos, inspirando-se nos editoriais de jornais governistas controlados por Estados autoritários para persistir nas invectivas contra os cartunistas.

Os ocidentalistas são parasitas intelectuais das correntes minoritárias de intolerância, xenofobia e islamofobia do Ocidente. O primeiro-ministro Manuel Valls declarou que "a França está em guerra contra o terrorismo e o jihadismo, não contra o Islã e os muçulmanos". Angela Merkel disse que "o Islã é parte da Alemanha". A sorte do "ocidentalismo" é que existem Marine Le Pen e o Pegida.

Fonte: Folha de São Paulo - 17/01/2015

Sobre o terror islâmico: O papa boxeador e as liberdades gêmeas

O papa boxeador e as liberdades gêmeas

Carlos Graieb

Numa conversa com jornalistas nesta quinta-feira, durante uma viagem do Sri Lanka às Filipinas, o papa Francisco foi indagado sobre o massacre no jornal francês Charlie Hebdo. A primeira parte da resposta foi a esperada: ele repudiou o uso da religião para justificar atrocidades. A segunda parte fugiu um tanto do script. Francisco apontou um auxiliar e disse que, se ouvisse dele um palavrão contra sua mãe, seria natural que lhe aplicasse um murro. “Dou esse exemplo para mostrar que na liberdade de expressão há limites”, afirmou Francisco. Ele ainda lamentou que existam “provocadores” – gente que fala mal das religiões.

Pouco mais tarde, o Vaticano julgou prudente esclarecer que as declarações do papa boxeador foram feitas em tom “coloquial e amigável” e não pretendiam de maneira nenhuma incitar a violência. Seria mesmo absurdo comparar a pilhéria infeliz do papa com a fala dos clérigos radicais que dizem aos seus seguidores, com sangue nos olhos, que é um dever pegar em armas e aniquilar os infiéis. Francisco não chamou à Guerra Santa nem pregou a intolerância. Mas é fato que, ao dizer o que disse, ele se juntou ao coro dos que “compreendem” que alguém reaja com a força física quando zombam de uma crença religiosa. 

Há todo tipo de voz nesse coro. Há líderes religiosos, intelectuais e gente comum na internet. Há os tolos, os covardes, os de má fé. Falemos apenas dos "homens de boa vontade": aqueles que sinceramente acreditam que a sensibilidade dos religiosos merece uma proteção especial nos debates públicos — que ela deve ser posta a salvo dos espíritos sarcásticos ou debochados.

Os cartunistas do Charlie Hebdo pagaram com a vida por discordar dessa ideia. Mas eles não discordavam por mero espírito de porco. Em 2012, em meio a um intenso debate que se desencadeou na França depois que outra série de charges do jornal fez chacota do islamismo e do profeta Maomé, Stéphanne Charbonnie – Charb, editor-chefe do semanário e um dos assassinados no ataque à publicação – perguntou: “Quando as religiões invadem o espaço da política, elas não se tornam alvo para críticas e charges, como acontece com os políticos?”

A pergunta pressupõe toda uma herança: a herança da separação entre Igreja e Estado, um dos esteios da cultura democrática que floresceu nos últimos duzentos anos.

É curiosa a formulação de Charb. Ele não aponta o dedo contra a religião propriamente dita, mas contra a religião “que invade o espaço da política”. Esse tipo de religião é aquele que nega que alguma esfera da vida humana possa existir à margem dos preceitos de um livro sagrado (ou, com mais frequência, daquilo que algum fanático alega ser a pregação de um livro sagrado). É a religião que mata para impedir a pesquisa científica, para eliminar os não-convertidos ou para construir um novo califado no século XXI.

Na formulação de Charb, a religião como questão da alma continua inteiramente preservada. E aqui é importante lembrar que a doutrina da separação entre Igreja e Estado não surgiu na Europa do século XVIII como inimiga da religião, mas, ao contrário, para proteger minorias de serem obrigadas a adotar uma fé contra a sua vontade. No mesmo século, ao promulgar sua constituição e sua Carta de Direitos, os Estados Unidos deram um passo além: lá, pela primeira vez, o direito de rezar para quem se quisesse, da forma como se quisesse, nasceu de um acordo entre os cidadãos, e não da outorga de um rei "benévolo”. 

O mundo moderno respeita e protege a fé porque inscreve nas constituições as liberdades de religião e de culto. Mas há uma contrapartida: a política tem de ser protegida de qualquer imposição da crença, seja ela uma crença específica ou o "espírito religioso” tomado de forma genérica. Isso não significa que argumentos de inspiração religiosa não possam ser usados no debate público. Significa apenas que eles estão sujeitos ao mesmo escrutínio, à mesma crítica e à mesma eventual erosão pelo humor que qualquer outro raciocínio derivado de uma doutrina política ou de uma “religião secular” (era assim que o intelectual francês Raymond Aron se referia às ideologias). Para garantir que seja dessa maneira, a liberdade de expressão também está inscrita nas constituições. São duas liberdades gêmeas, como fica evidente na primeira emenda à constituição americana — onde se estabelece um pacto feliz entre o espírito das Luzes e a Fé. 

Sociedades democráticas e pluralistas têm uma arquitetura engenhosa, mas delicada. Quem aceita que uma liberdade seja cerceada, logo pode se ver sem todas elas. As ditaduras de esquerda do século XX amordaçaram seus cidadãos e também lhes impuseram o ateísmo. Fascistas do Corão como os irmãos Kouachi, que invadiram a redação do Charlie Hebdo com seus rifles Kalashnikov e mataram doze pessoas, não são muito diferentes. Dizer que eles eram inimigos da liberdade de expressão é um pedaço da verdade. O mundo onde os irmãos Kouachi gostariam de viver só tem espaço para o comando autoritário da versão radical do islamismo que os seduzia. Eles eram também, e antes de mais nada, inimigos da liberdade de religião. Os homens de boa vontade que julgam correto silenciar os irreverentes e os debochados para não ferir a suscetibilidade dos crentes deveriam pensar sobre isso.
Fonte: Veja, 16/01/2015

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Liberdade versus dogma: diversos artigos sobre o terrorismo islâmico

Como o terrorismo islâmico e suas barbáries não saem das manchetes, decidi compilar vários artigos, publicados desde o ataque à revista Charlie Hebdo, a respeito do tema. Os autores têm as mais diferentes perspectivas ideológicas: alguns liberais, outros social-democratas, outros de esquerda, outros ainda conservadores. 

Há algumas divergências, nos artigos, sobre se a violência é inerente ao Islamismo ou se é extrínseca à fé muçulmana, distorcida por radicais. Entretanto, todos têm em comum a negação da validade dos ataques cometidos na França, por extremistas muçulmanos, sob a desculpa esfarrapada de vingança contra os que "ofenderam" o profeta Maomé. Todos também fazem profissão de fé na liberdade de expressão, e vários criticam o apoio de esquerdistas ao terror e condenam a leniência com a qual o Ocidente vem tratando a islamização da Europa (que não, não é fantasia de conservador).

Apesar de um dos autores citados, Demétrio Magnoli, se posicionar contrário à expressão "terror islâmico", porque isso supostamente implicaria considerar todo o Islã como terrorista, eu optei por utilizá-lo porque é em nome do Islã que muculmanos extremistas vêm matando. Se os próprios assim se denominam, não vejo porque nós, ocidentais, é quem devemos contestá-los. A contestação cabe aos muçulmanos que rejeitam o que os extremistas fazem. 







Sobre o terror islâmico: O sagrado direito de blasfemar

O sagrado direito de blasfemar 

por José Nêumanne

As multidões, calculadas em quase 4 milhões de pessoas, que foram às ruas na França protestar contra o terrorismo fundamentalista islâmico, que fuzilou toda a redação do jornal satírico Charlie Hebdo, trazem a lume neste momento duas questões de alta relevância histórica para estancar o banho de sangue por ele causado.

É lamentável constatar que a mais de 13 anos da demolição das torres gêmeas em Nova York a civilização ocidental ainda não consegue lidar de forma competente e tranquilizadora contra os arroubos selvagens de grupos marginais de brutalidade acima de quaisquer limites. E com enorme capacidade de seduzir prosélitos não apenas em territórios do Islã, mas também em sociedades livres e prósperas. Os celerados que invadiram a redação e executaram quem nela estava eram cidadãos franceses aptos a produzir e compartilhar os bens de uma sociedade próspera e livre. Só que optaram por exterminar quem não comungava com eles uma causa exógena de fanáticos de uma crença de pessoas menos favorecidas em lugares remotos. Sua ascendência africana não altera o inusitado da opção sobre a qual urge refletir e debater antes de enfrentar.

Mesmo alertado pela ocorrência do atentado mais espetacular de todos os tempos, o de Nova York em 2001, o aparato policial armado pelos Estados Democráticos de Direito laicos e liberais ameaçados pela fé cega mostrou-se incapaz e insuficiente para deter outros mais corriqueiros, mas não menos surpreendentes, como o de Paris. A redação já fora atingida antes pelo mesmo tipo de fanatismo e sob idêntica alegação: a blasfêmia. No entanto, a dupla de facínoras, pesadamente armados, não enfrentou a menor resistência para entrar no prédio e, mesmo errando de andar, chegar ao objetivo, render uma funcionária, invadir o recinto de trabalho e promover a carnificina. Os assassinos encontraram a mesma facilidade para deixar o local, matar um patrulheiro na rua à queima-roupa e sair em fuga pela cidade indefesa.

A incompetência do Estado francês foi confirmada ao longo de toda a tentativa de fuga dos assassinos e reconhecida publicamente logo depois da execução dos terroristas. Por mais absurdo que pareça ao instinto de vingança que assoma a qualquer um a clamar pela morte imediata dos criminosos, a própria execução dos fanáticos, cercados numa gráfica nos arredores de Paris, confirma a inaptidão da força policial que os perseguiu. Capturá-los vivos era essencial por todos os motivos lógicos. O mais corriqueiro deles seria obter da dupla encurralada todas as informações possíveis sobre a organização a que pertenciam e a rede de sobreviventes encarregados de executar as ordens e os objetivos dela emanados.

Chega a ser patético apelar para raciocínios mirabolantes e hipóteses nem sempre plausíveis para reconstruir os passos que levaram os irmãos Kouachi ao local e ao êxito de seu intento absurdo. Tudo seria mais simples, embora não necessariamente fácil, se eles tivessem sido presos e processados na velha e boa forma da lei. Pois assim o quebra-cabeças poderia ser montado para esclarecer o ato criminoso ao longo do processo e tornar viável o planejamento da caça a outros eventuais membros das hordas vingadoras do profeta Maomé no Velho Continente.

O atentado de Paris deixou claro que as medidas preventivas de segurança precisam ser aperfeiçoadas, mas não alterou o conceito fundamental de que só se protege a liberdade com mais liberdade. A execução dos fugitivos na gráfica pode até ter livrado o Estado francês do vexame da exibição de sua incompetência. Só que isso deveria ser tornado público para que os erros capitais cometidos pela segurança no caso não sejam repetidos doravante. Aliás, eles não resultam exclusivamente da ancestral leniência francesa. O Ocidente, incluindo os EUA, deveria repensar compreensão e ação no combate ao terrorismo.

A questão positiva resultante do massacre da redação foi a mobilização popular em defesa não apenas da liberdade de expressão, enlutada, mas fortalecida com o tiroteio ocorrido a poucos quarteirões da Bastilha, cuja queda foi o marco inicial da Revolução Francesa, no século 18. Mas também do direito à vida. Os quatro reféns de Amedy Coulibaly no mercado kosher foram capturados por acaso, como quase todas as vítimas de atentados do gênero, em geral aleatórios.

Não foi, então, a censura à liberdade de opinar ou mesmo de satirizar Maomé que inspirou o atentado ao Charlie Hebdo, mas a tentativa tirânica de impor uma crença a quem professa outros credos ou não crê. Mais do que a livre expressão, perto da Bastilha foi atacada a liberdade de viver da forma como cada cidadão quer, o que é seu direito sagrado. Assim como o é o de blasfemar. Foi a percepção desta agressão totalitária que despertou a indignação do cidadão que ocupou as ruas, desarmado. Este, contrariando preceitos politicamente corretos de que também lhe exigem obediência, assumiu a identidade da vítima (Charlie) pacificamente, sem promover desordens. A compreensão deste novo momento do convívio humano em sociedade foi de tal forma completa que os franceses, que tendem em sua maioria a desconfiar da polícia, aplaudiram os agentes da lei, cuja ação em todo esse episódio ficou patente como sendo de escudo para as balas dirigidas a esmo contra qualquer transeunte que passasse.

A "grande marcha", denominação que lembra a chegada ao poder de uma ditadura brutal, a do comunismo chinês, expressou sua fé contra qualquer totalitarismo. Isso foi entendido por François Hollande, tido como fraco, e por Angela Merkel, conhecida como forte. Obama e Dilma (representada pelo embaixador Bustani) não compareceram ao ato, mas não fizeram falta. Neste instante crucial para o gênero humano, a Europa revelou-se autossuficiente para resgatar a civilização dos riscos de barbárie Sem o Tio Sam nem o PT.

*José Nêumanne é jornalista, poeta e escritor

Fonte: O Estado de São Paulo, 14 de janeiro de 2015

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