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quarta-feira, 22 de maio de 2019

Game of Thrones: de como estragar o final da série mais popular de todos os tempos

Daenarys, em estilo nazi, fala a seu exército no episódio final de GoT

Game of Thrones: de como estragar o final da série mais popular de todos os tempos

por Míriam Martinho

No site do Omelete, a resenha do final de Game of Thrones, por Camila Sousa (19/05), declara que o sentimento geral sobre a série é de que o final "apresentado em tela não foi construído de forma satisfatória". De que a série, assim como Lost e Dexter, começou bem e terminou decepcionante, perdendo-se na própria narrativa. Foi educada.

De fato, maratonei a série toda, enquanto assistia a última temporada, portanto, estou com a memória bem fresca, e não posso deixar de concordar com o dito acima. Para começo de conversa, desconstruíram a principal protagonista da série, Daenarys Targaryen (a quem ensinaram todos a amar),  principalmente a partir do quarto episódio da última e muito irregular oitava temporada.

Daenarys toma o controle da cidade escravista de Meereen
O perfil de Daenarys construído pela série até a temporada oito (um resumo de sua trajetória)

A história da rainha dos dragões é contada, durante a série, como uma trajetória de superações. Começa com Daenarys, jovem mulher, vendida para um bárbaro dothraki pelo próprio irmão, em troca de exército, conquistando o bruto e virando a Khaleesi (rainha) da horda. Quando o marido morre, ela o coloca numa pira funerária, com os três ovos de dragão que ganhara de presente e se une a eles em meio as chamas. Ao fim do rito, ressurge nua, incólume, e com três dragões bebês (Drogon, Viserion e Rhaegal). se empoleirando em seu ombro e a seu redor (episódio 10, primeira temporada). Os dragões são nomeados a partir do nome do falecido marido de Daenarys, Khal Drogo, e de seus dois irmãos, Viserys Targaryen e Rhaegal Targaryen.

Daí por diante, inicia-se sua saga repleta de conquistas, apesar de alguns reveses (cidade de Qahar, onde obtém um navio; cidades da Baía dos Escravos, Astapor, onde finge vender um de seus dragões em troca do exército dos Imaculados, a quem depois ordena que mate todos os senhores de escravos locais; cidade de Yunkai, onde também liberta escravos e agrega os mercenários dos Corvos Tormentosos a seu exército - o líder destes, Daario Naharis inclusive se torna seu amante - ; cidade de Meereen, a última cidade escravagista onde se instala e de onde tenta consolidar o fim da escravidão na região, renomeando a Baía dos Escravos de Baía dos Dragões.

Os traficantes e senhores de escravos locais se rebelam contra Daenarys e, quando ela estava assistindo lutas numa arena (fossa de Daznack) em Meereen, é atacada pelos Filhos da Harpia, grupo mascarado contrário às suas políticas abolicionistas. Drogon, seu maior dragão, aparece para tirar a mãe do cerco e, embora ferido, a leva pelos ares para a região do Mar Dothraki. De volta ao começo de sua saga, às voltas com os dothraki que a capturam, Daenarys põe fogo na tenda onde os Khals (chefes da tribo) tentavam decidir seu destino, entre ameaças de estupro e morte, mata-os queimados e ressurge das chamas. Ao vê-la emergir da cabana em fogo, os dothraki ajoelham-se diante dela, tornam-se parte de seu exército, e voltam com ela para Meereen. Em Meereen, Daenarys usa seus dragões para atear fogo na armada dos escravagistas que pretendiam derrubá-la e, depois, decide deixar Daario, como governante da cidade, para manter a liberdade da população e a paz local. Ruma então para Westeros em busca de reaver o Trono de Ferro, situado em Porto Real (na vida real, cidade de Dubrovinic na Croácia), usurpado dos Targaryens que haviam governado os 7 reinos por 3 séculos. Quando parte, seu exército e frota já estavam como no vídeo abaixo, ao som do mais belo tema musical da série (o da casa Targaryen).



O perfil de Daenarys permanece coerente na temporada 7

De volta à Pedra do Dragão, antiga residência dos Targaryens, Daenarys se reúne com três ilustres convidadas: Olenna Tyrell, Yara Greyjoy e Ellaria Martell. As três mulheres tentam convencer Daenerys a atacar Porto Real de imediato com todo o seu poderio, que a cidade cairia em um dia. Daenarys, assessorada por Tyrion Lannister (que matara o próprio pai, por isso era fugitivo), que se tornara seu consultor (Mão da Rainha) em Meereen, diz não querer ser rainha das cinzas, o que aconteceria se atacasse diretamente Porto Real. Daenerys explica às outras mulheres como pretende atacar Cersei Lannister: sitiando Porto Real com os exércitos de Tyrell e Martell e tomando o Rochedo Casterly, propriedade dos Lannister, com os Imaculados e os dothraki. Meio a contragosto, as aliadas concordam, mas Olenna, em conversa particular com Daenarys, lhe diz que não deveria escutar "homens inteligentes" como Tyrion, que ela havia se mantido viva por tanto tempo, ignorando-os. Disse ainda que os  senhores de Westeros eram ovelhas e que Daenerys tinha que ser quem de fato ela era: um dragão.


Infelizmente, Daenerys não ouviu a voz da sabedoria de suas aliadas, sobretudo de Olenna, e o resultado foi a prisão de Yara Greyjoy e Ellaria Martell e a morte de Ollena Tyrel pelos Lannisters e seus aliados. Pior, entra em cena Jon Snow, bastardo da casa Stark, que vem à Pedra do Dragão para extrair o vidro de dragão (uma das únicas matérias primas capaz de matar os caminhantes brancos, seres inumanos) e pedir que Daenarys se some a ele na luta contra os mortos-vivos do Rei da Noite, uma ameaça tão grande que qualquer outra luta entre os humanos deixava de fazer sentido. 

Daenarys acaba permitindo que Jon Snow extraia o vidro de dragão das cavernas de sua região, e Tyrion se sai com a brilhante ideia de capturar um zumbi para mostrar à irmã Cersei de modo a convencê-la a estabelecer uma trégua entre os humanos para lutarem todos contra os mortos do Rei da Noite. Jon Snow e outros vão em busca do tal espécime, ficam sitiados pelos caminhantes e seus mortos-vivos num ponto além da colossal muralha que separava o extremo-norte dos 7 Reinos e acabam salvos por Daenerys que, nesse resgate, perde um de seus dragões (Viserion) para o Rei da Noite. Começa aí sua série de perdas, acentuada pelo envolvimento amoroso que passa a ter com o sobrevivente Jon Snow no último episódio da sétima temporada.

Cersei Lannister, bem mais esperta do que Daenarys e em coerência com seu perfil egoísta, se compromete a enviar tropas para o norte a fim de combater o Rei da Noite, mas depois declara para o irmão Jamie que mentira. Os Stark e a Targaryen que se matassem para derrotar o Rei da Noite porque se não conseguissem, com dragões e tudo, não seriam os exércitos dela que fariam diferença na batalha. E, se conseguissem, estariam enfraquecidos posteriormente para lutar contra ela pelo controle do trono de ferro.


Daenarys chega em Winterfell para lutar contra o Rei da Noite
 O perfil de Daenarys começa a mudar na oitava temporada

Mantendo o perfil solidário das outras temporadas, Daenarys ruma para Winterfell, lar da casa Stark, com Jon Snow, a fim de ajudar a humanidade na luta contra a extinção. Mas nem ela nem seu exército são bem recebidos pelos nortistas ou pela família Stark, o que, por si só já é um bocado estranho. Numa luta de vida e morte, contra um exército de zumbis, qualquer aliado deveria ser recebido com beijos, abraços e risos. Mas não, Daenarys não é bem recebida por Sansa Stark, já então Lady de Winterfell, que só pensa em causa própria e vê a mãe dos dragões como uma ameaça à soberania da região que sonhava independente. Daenarys, contudo, permanece diplomática até quando, diante de Jaime Lannister, assassino de seu pai, para não se indispor com os anfitriões, inclinados a perdoá-lo, permite que Jaime viva para lutar contra os mortos-vivos em vez de insistir em executá-lo por seus crimes.

No fim, não é ela que salva a humanidade nem seus exércitos nem exército algum e sim Arya Stark predestinada a fazê-lo. Arya consegue matar o Rei da Noite com sua adaga valiriana e simultaneamente todos os caminhantes e o exército de mortos-vivos se desfazem ou se amontoam no chão definitivamente mortos. Para Daenarys só restaram perdas: perdeu metade de seu exército, perdeu seu melhor e mais querido escudeiro Jorah Mormont, em defesa de sua rainha, e ficou sabendo que seu namorado, Jon Snow, era na verdade seu sobrinho Aegon Targaryen, filho de seu irmão Rhaegar Targaryen e de Lyanna Stark (irmã de Ned Stark que criara Jon como filho) e, em tese, seu potencial rival, por ser homem, pelo Trono de Ferro. 

Ainda em Winterfell, depois da cremação dos que morreram em combate e de jantar para celebrar os sobreviventes, Daenarys pede a Jon que não diga a ninguém, nem para suas irmãs (de fato primas), sobre sua real identidade porque a revelação viraria uma bola de neve colocando em risco seu objetivo de se tornar rainha dos 7 reinos. Mas Jon Snow, embora jure que não ia contar nada a ninguém, acaba por revelar a verdade a suas irmãs (primas), que rejeitam Daenarys, porque só pensam na própria família, desejam o norte independente de qualquer poder central e não querem alianças com ninguém (deveriam ter rejeitado a ajuda de Daenarys desde o começo, não?). De fato, Sansa queria ser Rainha de Winterfell e, para tal, precisava do norte autônomo, o que não seria possível com Danaerys no poder. Daí que, embora também tenha jurado guardar o segredo de Jon, interessada em minar Daenarys, Sansa conta a verdade para Tyrion que conta para Varys (outro dos conselheiros da rainha). Aí Varys já começa a cogitar Jon como rei e a dizer que se preocupava com o estado mental de Daenarys (com base no quê?).

Missandei é decapitada
No caminho para Porto Real, do qual nunca deveria ter se desviado, mais perdas para Daenarys. Seus navios com os Imaculados são atacados por Euron Greyjoy, aliado dos Lannisters, bem como um de seus dois dragões remanescentes, Rhaegal, é morto. Pior, Missandei, sua amiga e conselheira, acaba prisioneira de Cersei Lannister ao cair na água, após o ataque que naufragou o navio onde estava. Enquanto isso, Cersei também decide abrir os portões da Fortaleza Vermelha, onde reside, para o povo de Porto Real a fim de usá-lo como escudo contra Daenarys. Se a mãe dos dragões decidisse atacar a fortaleza, teria que matar milhões de inocentes e acabaria com sua imagem de "quebradora de correntes" (adquirida por sua luta abolicionista).

De volta à Pedra do Dragão, Daenarys discute com Varys e Tyrion, que temem um massacre em Porto Real, mas concorda com eles em, primeiro, exigir de Cersei rendição em troca de sua vida. Caso Cersei não aceitasse seus termos, pelo menos a população de Porto Real saberia que ela, Daenarys, havia feito de tudo para evitar um banho de sangue e que Cersei Lannister recusara. Saberiam ao menos a quem responsabilizar quando o céu lhes caísse sobre a cabeça.

Depois dessa decisão, em conversa com Tyrion, Varys demonstra claro interesse em trair Daenarys e apoiar Jon como rei porque tinha direito ao trono, era mais moderado que Daenarys, era homem, o que facilitaria o apoio dos lordes de Westeros ao rei. Tyrion apela para a ideia do casamento dos dois, Jon e Daenarys, mas Varys contesta dizendo que ela era muito forte para ele, ela o curvaria à sua vontade, como, aliás, já acontecia. Em seguida, temos a cena do ultimato a Cersei em frente à Fortaleza Vermelha e a exigência do retorno de Missandei aos seus. Cersei não só não aceita o ultimato como ainda ordena que Montanha, seu monstruoso guarda-costas, decepe a cabeça de Missandei que, antes de morrer, grita "dracarys", o comando para os dragões soltarem fogo nos inimigos.


Daenerys enraivecida toca fogo em Porto Real inteira
O perfil de Daenaerys deixa de ser coerente com o apresentado a série toda

Nos dois últimos episódios da série, vemos uma Daenarys enlutada pelas perdas de seus entes queridos, como Jorah Mormont, Missandei e Rhaegal, e ressentida pelas traições dos que a rodeiam.  Recapitulando, embora tivesse prometido que não contaria às irmãs sobre sua verdadeira origem, Jon Snow lhes disse a verdade. Mal intencionada, Sonsa contou para Tyrion que contou para Varys que passou a conspirar contra a rainha sob seu teto. Além de escrever recados pra todos os reinos dizendo que Jon era o verdadeiro herdeiro do trono de ferro, Varys ainda aparece em conversa com garota da cozinha do palácio dando a entender que estava tentando envenenar Daenarys. Tyrion o denuncia, e Daenarys o condena à morte por traição via fogo de dragão. Apesar de ter denunciado Varys, Daenarys alerta Tyrion que a próxima vez que lhe falhasse seria a última (porque Tyrion contara o segredo de Jon para Varys).

Nesse ponto vemos a quebra do perfil da rainha dos dragões que a série nos ensinou a amar, marcado pela empatia com as pessoas e por senso de justiça. Ao contrário da reunião que teve ao chegar à Pedra do Dragão, com Olenna Tyrell, Yara Greyjoy e Ellaria Martell, quando disse que não atacaria diretamente Porto Real com os dragões, pois não queria ser a rainha das cinzas, desta feita, agora com Tyrion e seu único fiel escudeiro remanescente, Verme Cinzento, Daenarys deixa claro que Cersei considerava sua piedade com os mais fracos sua fraqueza e que estava disposta a contestar essa ideia. Tyrion lhe recorda que os habitantes de Porto Real não eram diferentes dos escravos que Daenarys libertara em Meereen, que eram de fato reféns de Cersei e que não mereciam morrer. Afirma que diante do poderio bélico de Daenarys, por causa de Drogon, o exército e os aliados de Cersei deserdariam, e a rainha se renderia tocando o sino. Pede que a mãe dos dragões aguarde o toque dos sinos pra interromper o ataque, pois não haveria mais razão pra luta. Daenarys parece concordar e diz a Verme Cinzento que apronte as tropas e que aguarde seu sinal para atacar.

Montada em Drogon, Daenarys consegue, com habilidade, evitar os grandes arpões dos chamados Escorpiões (que já haviam matado Rhaegal) e toca fogo em toda a frota de Euron Greyjoy bem como nos Escorpiões em cima das muralhas da cidade, cujos portões também arrebenta abrindo espaço para a entrada de seu exército. Destrói também a Guarda Dourada que estava na frente das muralhas da cidade e se posta com Drogon, em cima de uma mureta dentro da cidade, aguardando o bater dos sinos. Os sinos tocam, mas, contrariando o perfil da personagem, o que se vê é o rosto enraivecido de Daenarys, de olhos dilatados, enquanto observa a Fortaleza Vermeha, morada de Cersei. Alça voo com Drogon na direção da Fortaleza, mas, no meio do caminho, vai botando fogo em toda a cidade, já rendida, matando milhares de inocentes. Se tivesse se dirigido apenas à Fortaleza Vermelha e a destruísse, com Cersei e seus aliados dentro, ainda faria sentido com sua trajetória de matar os vilões e poupar os inocentes. Quando passa a detonar a cidade inteira, porém, Daenarys se torna apenas mais uma nobre insensível em busca de poder. Pra maioria, teria ficado louca como seu pai que fora assassinado exatamente por querer por fogo em tudo e em todos.

Na cena mais absurda do final de GoT, o prisioneiro Tyrion ajuda a eleger o novo rei 
Fim de série cheio de inconsistências, incoerências, e até risível

A partir do ataque de Daenarys à população de Porto Real,  a série descamba de vez, com os personagens dizendo e fazendo coisas sem sentido. Ainda no quinto episódio, temos Arya Stark que chegara à cidade com Sandor Cleagane (o Cão) para matar Cersei sendo demovida da ideia, já dentro da Fortaleza Vermelha, pelo próprio Sandor com um discurso lacrimoso contra a vingança. Logo ela que não exitara em matar por vingança nenhum de seus alvos. Depois quase morre queimada ou soterrada pelo bombardeio de Drogon sobre a cidade, mas escapa num cavalo branco que milagrosamente aparece em meio a uma rua cheia de escombros.

Cersei fora informada, por seu principal conselheiro, que Daenarys já tinha destruído a frota de Greyjoy, a Guarda Dourada, todos os Escorpiões possíveis e imagináveis, mas insiste em ficar postada em frente a uma das janelas da Fortaleza Vermelha vendo a cidade queimar. Quando finalmente é convencida a escapar, a Fortaleza já estava desmoronando, e ela acaba morrendo soterrada com o irmão Jaime, que aparecera para resgatá-la, numa tentativa de escapar pelos porões do edifício já entupidos de escombros. Pelo menos a morte dos dois juntos fez sentido, já que seu amor, tóxico ou não, era de fato muito verdadeiro.


Desconstruindo Daenarys num episódio lamentável do ponto de vista narrativo
No último episódio, então, o roteiro se torna até risível em certos momentos, fora a falta de emoção de sua uma hora e vinte minutos de existência. De verossímil, coerente e emocionante, só as lágrimas de Tyrion ao ver os irmãos, Jaime e Cersei, soterrados nos porões da Fortaleza Vermelha, e a reação de Drogon ao ver sua mãe morta, antes de carrega-la pelos ares. Porque claro, já se sabia de antemão, que alguém haveria de matar Daenarys após seu massacre de Porto Real.

Enquanto os três possíveis assassinos, Tyrion, Arya e Jon, caminham pela cidade destruída rumo ao local onde os exércitos de Daenarys estão reunidos, Daenarys chega a bordo de Drogon e caminha para se dirigir a seus homens do topo de uma enorme escadaria. As asas de Drogon batem atrás dela, fazendo-a parecer, por instantes, uma figura demoníaca (ver aos 02:02 do vídeo abaixo), numa estranha referência judaico-cristã em uma série sobre um mundo pagão. Quando se dirige a seu exército, a imagem faz clara alusão aos discursos proferidos por Hitler em cenários similares, embora não em ruínas. Comparações com o nazismo, em geral, são conhecidas como falácias ad hitlerum, quando alguém não tem mais argumentos razoáveis a apresentar e  quer apenas desqualificar o oponente.

Exatamente o que foi feito aqui pelos roteiristas. Uma personagem que se caracterizou a série inteira como libertadora de escravos e preocupada com os mais fracos e oprimidos, desde seu primeiro momento, chega ao final da história como uma tirana, comparada ao demônio e a Hitler. Se fosse Cersei no lugar de Daenarys, caracterizada como vilã desde sempre, nas mesmas circunstâncias, a comparação até procederia, mas, no caso de Daenarys, foi a maior forçação de barra que já se viu numa série.



Mas o festival de inconsistências e incoerências perfilam por todo o episódio. Tyrion vai preso por ter soltado o irmão, Jaime, a fim de que ele tentasse salvar Cersei e fugissem juntos. Foi considerado traidor, mas, ao contrário do que ocorrera com Varys, não é executado rapidamente. Fica na prisão para poder convencer Jon a matar Daenarys.

Arya diz para Jon que ele era uma permanente ameaça a Daenarys, pois ela sabia sua verdadeira origem, e que podia reconhecer uma assassina quando via uma. Logo Arya que aprendeu a matar desde criancinha, meteu-se numa sociedade de assassinos para se aprimorar na arte de matar e assassinou sem qualquer problema vários de seus desafetos.

Jon vai visitar Tyrion numa sala improvisada como cadeia. Antes de entrar, deixa suas armas com os Imaculados que guardam a cela. Tyrion lista uma série de razões pra que Jon mate Daenarys. Jon deixa a cela e vai se encontrar com Daenarys na sala do Trono de Ferro que subsistira ao ataque. Ao contrário do que ocorreu na frente da cela de Tyrion, cheia de guardas, não havia um só imaculado para guardar a rainha, como de costume. Apenas Drogon guardava a entrada do local, mas, como Jon era meio Targaryen, considerava-o família e o deixou entrar. Difícil é entender porque Daenarys ainda confiava em Jon, depois que não guardou o segredo de sua origem, como ela até suplicara.

Jon Snow mata Daenarys
Jon reclama com Daenarys que viu guardas Lannisters já rendidos sendo executados, que viu crianças pequenas incineradas e pediu clemência para Tyrion. Uma Daenarys irreconhecível diz que as execuções eram necessárias, que Cersei tinha usado inocentes para tentar paralisá-la, por isso precisava contestá-la, e que não podia poupar Tyrion porque ele a traíra, que não dava para ficar realizando pequenas clemências (sic). Daenarys tenta convencer Jon a participar do mundo novo que queria criar, eles se beijam, e ele a mata. Drogon chega para destruir o Trono de Ferro (porque a luta pelo poder é a fonte de todos os males) e levar o corpo da mãe para lugar desconhecido, mas poupa Jon por ser Targaryen também. Pelo menos, no caso do dragão há uma explicação plausível para  que não matasse Jon.

Porque nos outros casos, ninguém entende porque nem os Imaculados nem os dothraki executaram Jon e Tyrion imediatamente. Pelo contrário, no que parecem ser bons tempos depois da morte de Daenarys, tanto que há exércitos do norte ao redor de Porto Real, aparece Tyrion todo cabeludo, barbado e sujo sendo levado de algemas, por Verme Cinzento, para um encontro com os lordes e ladies de Westeros. Aí a situação descamba para o risível mesmo, pois um prisioneiro acaba decidindo, numa conversa muito mole, um novo rei (Bran Stark) de quem ele seria o novo conselheiro maior (de novo "Mão do Rei"). E Jon Snow, que também aparece posteriormente numa cela, todo esfarrapado e desgrenhado, é condenado de novo a ir para a Patrulha da Noite, onde vai poder viver entre os selvagens, como sempre quis. Será que alguém acha plausível um prisioneiro dizer para seu captor, no caso Verme Cinzento:  - "Olhe, não cabe a você decidir meu destino. Deixe eu eleger aqui, com as ladies e os lordes, quem será o novo rei, para ele decidir o que será de mim." É muita palhaçada.

No fim, Sansa sonsa, torna-se rainha de Winterfell, pois "convence" seu irmão Bran da importância do norte independente. Arya Stark vai em busca de novas terras ao oeste, ao menos uma conclusão válida para sua personagem. Jon volta para a Patrulha da Noite e depois segue com os selvagens para o norte do norte, e os 6 reinos passam a ser governados por Bran, o quebrado, e os coadjuvantes da série, como Brienne de Tarth, Sor Davos Seaworth, Samwell Tarly, Sor Bronn (aquele mercenário que lucrou com as guerras em geral) e claro Tyrion, cúmplice de regicídio.

Análise Final

Aproveitando que tinha maratonado a série enquanto via a última temporada, fiz esse resumo da trajetória da Daenarys Targaryen para demonstrar a incoerência da conclusão que deram para a personagem e também a fim de fazer um descarrego da irritação que o final da série me provocou. A questão nem é o fato da principal protagonista da série ter morrido. Em outras séries muito boas, como Breaking Bad, para citar um exemplo, o protagonista morre no final, mas toda sua trajetória, durante os episódios exibidos, leva naturalmente a essa possibilidade. Sua morte foi coerente com o estilo de vida do personagem, uma conclusão totalmente verossímil. Poderia citar outras.

No caso da Daenarys foi bem ao contrário. Repetindo, o caráter empático da personagem aparece já quando ela era só a Khaleesi de Khal Drogo, líder dos dotrakhi, e salva mulheres, de uma aldeia que os dotrakhis saquearam, de estupro e escravidão. Quando se instalou em Meeren, agora já como mãe dos dragões, chegou a prender dois deles nos porões da pirâmide onde vivia porque um camponês disse que eles haviam incinerado sua filha. Quando adquiriu os Imaculados, mandou que matassem todos os mestres de escravos, mas nenhuma criança. Quando voltou à Pedra do Dragão, disse a suas aliadas, como visto anteriormente, que não iria atacar Porto Real diretamente, com seus dragões e poderio bélico, porque não queria ser a rainha das cinzas. E, contrariando suas próprias prioridades, deixou a guerra com Cersei para ir ajudar Jon Snow em sua luta contra o exército do Rei da Noite. E isso já no terceiro capítulo da última temporada. É plausível acreditar, portanto, que praticamente da noite para o dia, Daenarys tenha se transformado de Dr. Jekyll em Mister Hyde, que tenha perdido a empatia pelos inocentes que sempre defendeu? Perdido seu costumeiro senso de justiça?  Essa virada não se sustenta.



Daenarys era a personagem mais interessante de Game of Thrones exatamente por essa empatia pelo próximo que a fez ser amada pelos escravos libertos e outros que a seguiram e lhe valeu tantos fãs. Registre-se que não libertou escravos só para agregá-los a seus exércitos. Fez questão de deixar um governante em Meereen para garantir que a escravidão não voltaria à ex-baía dos escravos.

Qual dos outros nobres das casas dos 7 reinos tinha qualquer preocupação com seus súditos? Suas preocupações sempre giravam exclusivamente em torno dos seus parentes (inclusive para matá-los, se estivessem atrapalhando) e de seus projetos de poder, buscados a qualquer preço e da forma mais violenta possível. Daenarys combinava a força natural de ser imune a chamas e mãe de dragões com uma consciência muita clara de contra quem podia usar essas forças, como traficantes e senhores de escravos, exércitos inimigos e pessoas que a atacavam. E inclusive conseguia ser até misericordiosa com quem a traía, como foi o caso de Jorah Mormont que, nos seus tempos de Kahleesi, passara informações sobre ela para o rei Robert Baratheon, então rei dos 7 Reinos. Em Winterfell, após a derrota do Rei da Noite, Daenarys inclusive legitimou o bastardo de Robert, que sempre fora um simples ferreiro, como Gendry Baratheon, lorde da Ponta Tempestade. É plausível, portanto, acreditar que, por estar enlutada pela perda de amigos queridos e de seu dragão Rhaegal e por querer contestar a suposta fraqueza que Cersei via em seu coração gentil (como lhe dissera certa feita Jorah Mormont), Daenarys virasse do avesso e saísse matando população civil, crianças, mulheres e idosos?

A série teria que ter tido uns quatro episódios a mais, pelo menos, para explicar semelhante mudança de personalidade de forma convincente. Como ficou, deu a nítida impressão de que simplesmente uma mulher tão ambiciosa e poderosa como Daenarys tinha que morrer. Nem casar com Jon Snow seria solução, embora ela quisesse, porque, na opinião de Varys, ela era muito forte pra ele, iria dobra-lo à sua vontade. Daí inventarem uma mudança de caráter repentino da personagem que a fizesse cometer um desatino e justificasse seu assassinato. Aliás, falando no assassino, Jon Snow que sempre pareceu viver a contragosto, meio sem propósito e guiado por amargo senso de dever, virando Comandante da Patrulha da Noite sem querer, Rei do Norte sem querer, voltando a vida pela mão de uma feiticeira (chegou a pedir que não o trouxesse de volta, caso morresse de novo), só serviu para Daenarys como Dalila para o Sansão. Desde que o conheceu e, por ele se apaixonou, a vida de Daenarys desandou.

Moral da história para as mulheres: se você é ambiciosa, tem um objetivo claro na vida, grande potencial de atingir o que deseja por suas qualidades pessoais, por sua força e determinação, não deixe de lado suas prioridades para cuidar das de nenhum boy (ou mesmo girl) engraçadinho. Ele pode lhe retribuir com uma facada no peito num final de romance tão sem sentido e decepcionante como foi o de Game of Thrones. A gente se sente meio lesada por ter assistido.

N.E. Mal tinha terminado o tragicômico episódio final de Game of Thrones e a HBO já estava divulgando trailer da de Westworld, uma série de ótima qualidade que a gente espera não dure tanto a ponto de estragar como GoT.




quinta-feira, 2 de maio de 2019

Taís Araújo vai interpretar a cientista Joana D'arc Félix de Souza e sua bela história de superação

Taís Araújo interpretará Joana D'arc Félix de Souza nos cinemas — Foto: João Miguel Júnior/TV Globo/Arquivo; Etec/Divulgação

Cientista de Franca que superou infância pobre e preconceito terá história contada nos cinemas

Filme sobre a vida de Joana D'arc Félix de Souza será protagonizado por Taís Araújo. Professora que aprendeu a ler sozinha tornou-se PhD na Universidade Harvard e acumula 82 premiações.

Filha de empregada doméstica e de um profissional de curtume, Joana D’arc Félix de Souza superou muitas dificuldades e preconceitoaté se tornar PhD em química pela Universidade Harvard, nos Estados Unidos, além de uma cientista mundialmente premiada.

Aprovada em três universidades aos 14 anos, Joana aprendeu a ler sozinha e dormiu com fome muitas noites, porque o dinheiro para estudar longe de casa era pouco. Durante o intercâmbio, ouviu comentários racistas de colegas, mas se mantinha firme aos objetivos.

Agora, a história de vida e de superação de Joana será representada nos cinemas. O papel principal será da atriz Taís Araújo. A cinebiografia ainda não começou a ser gravada e também não há previsão para lançamento, mas a produção será da Globo Filmes.
Foi uma surpresa muito grande. Até então, parece que a gente não valoriza oque é feito. Aí, caiu a ficha: ‘nossa, estou fazendo trabalhados interessantes em prol da sociedade, do meio ambiente, da saúde humana’. É possível vencer na vida através da educação”, diz Joana.
A professora conta que recebeu a proposta de ter a vida contada em um filme depois de conquistar o título “Personalidade 2017” do Prêmio Faz Diferença, uma iniciativa do Jornal O Globo em parceria com a Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan).
Quando subi ao palco para falar um pouco sobre a minha história, foi o que ensibilizou”, relembra. “É um filme brasileiro voltado para a educação. Somente através dela é possível alcançar uma transformação social efetiva e estou contente por isso”, diz.
Os produtores do filme já estiveram na escola técnica onde Joana leciona, em Franca (SP), para acompanhar a rotina da professora. Diretor do colégio, Cláudio Ribeiro Sandoval diz que se surpreende com a capacidade da cientista de envolver e incentivar os estudantes.
Ela traz ao longo da história de vida um exemplo. Isso faz com que o aluno consiga se refletir naquilo que ela viveu. Ela é muito humana e simples no que faz. É uma alegria muito grande porque é uma oportunidade de mostrar ao Brasil inteiro quem é a Joana D’arc”, afirma.
PhD na Universidade Harvard, Joana D'arc Félix de Souza leciona em escola técnica em Franca, SP — Foto: Valdinei Malaguti/EPTV

Estudo e superação

Joana nasceu em Franca no seio de uma família com poucos recursos financeiros. Sem condições manter a caçula em uma creche, a mãe optou por levá-la para o trabalho. Aos 4 anos de idade, a menina passava o dia quietinha, lendo os jornais da casa.

Sem dinheiro e sem saber como viveria longe da família, já que precisaria estudar em uma universidade pública fora da cidade, Joana ouviu os conselhos do pai e se dedicou a longas jornadas de estudo com o material emprestado do filho da professora.

O trabalho do pai no curtume, local onde o couro cru é quimicamente tratado para ser usado na produção de sapatos e bolsas, foi responsável pela escolha da graduação. Aos 14 anos, a jovem foi aprovada em três universidades: Unicamp, USP e Unesp. Optou por Campinas (SP).
Foi uma luta enorme. Ainda estavam construindo as moradias, tivemos que pagar para morar em um pensionato. O dinheiro era contado. Meu pai começou a trabalhar à noite para pagar as despesas. O pãozinho que vinha no bandejão era o meu jantar”, relembra.

A professora Joana D'arc Félix de Souza ao lados dos pais na formatura em Campinas, SP — Foto: Arquivo Pessoal

Joana passou 10 anos na Unicamp, da graduação ao doutorado. As publicações científicas levaram ao convite para cursar o pós-doutorado nos Estados Unidos. Mas, antes de chegar à Harvard, a professora passou pela Universidade Clemson, na Carolina do Sul.
Foi um ano muito difícil, foram muitas agressões verbais por causa da minha cor. Estava no estado mais racista dos Estados Unidos. Havia frases do tipo ‘negra, volte ao seu país porque você está tomando o espaço de um branco’. Eu tinha medo, mas aguentei firme e forte”, conta.
A professora voltou ao Brasil em 2002, após duas perdas avassaladoras. Primeiro, a irmã. Um mês e três dias depois, o pai também morreu. Como a mãe estava doente e o cunhado passou a morar com ela, Joana decidiu regressar a Franca e ajudar a cuidar dos sobrinhos.

O ponto final à vida nos Estados Unidos revelou à Joana uma nova oportunidade: a carreira de docente na Escola Técnica Estadual (Etec), onde leciona até os dias de hoje. Foi nesse colégio que a cientista desenvolveu projetos de pesquisa que lhe renderam prêmios e patentes.

A cientista Joana D'Arc Félix em palestra na Campus Party 2019 — Foto: Fábio Tito/G1
Eu vi que é possível desenvolver pesquisa de ponta sem estar dentro de uma grande universidade. É possível desenvolver patentes de projetos inovadores sem estar nesse meio. É possível fazer pesquisa na educação básica, na escola técnica, basta querer”, afirma.
Hoje, aos 55 anos, Joana já registrou 15 patentes nacionais e internacionais, junto aos alunos, a partir de pesquisas envolvendo, principalmente, reaproveitamento de couro e utilização de pele suína em transplantes realizados em seres humanos.

Esse último estudo, aliás, rendeu à Joana o mais importante entre os 82 prêmios que coleciona: o Kurt Politizer de Tecnologia, concedido em 2014 pela Associação Brasileira da Indústria Química (Abquim).
Todos nós somos capazes. Tem que querer, tem que ter objetivos, tem que traçar metas para vencer na vida”, afirma a pesquisadora. “Independente da cor da pele, temos que ser fortes, resistentes, enfrentar os problemas de cabeça erguida e sem vitimismo”, completa.
A professora Joana D'arc Félix de Souza ao lado dos alunos na escola em Franca, SP — Foto: Valdinei Malaguti/EPTV

Fonte: G1 Ribeirão Preto e Franca, 22/04/2019 

terça-feira, 30 de abril de 2019

Aborto seletivo e infanticídio de meninas provocam déficit de 23 milhões de mulheres no mundo



23 milhões de mulheres

Após pico de nascimento de meninos, proporção entre sexos volta a se estabilizar

Faz muito tempo que sabemos que nascem mais homens que mulheres no mundo. Grosso modo, para cada 1.000 mulheres nascem 1.050 homens. Ou seja, há 5% mais recém-nascidos do sexo masculino. Não se sabe a causa dessa diferença, mas que ela existe ninguém duvida. Outro fato conhecido é que em muitos países e culturas as famílias preferem filhos homens. As razões são muitas: em alguns lugares casar a filha exige o pagamento de dote, em outros lugares se acredita que os filhos do sexo masculino são melhores em sustentar os idosos. 

O interessante é que transformar esse desejo em realidade levou ao aparecimento de crenças e mitos, mas nenhum deles funciona. Pernas para cima, relação sexual no início ou fim do ciclo fértil e outras simpatias parecem não alterar a proporção.

Esse fato só mudou quando surgiram métodos capazes de determinar o sexo antes do nascimento. Primeiro o ultrassom, agora os testes sanguíneos. Assim, a partir da década de 1970, os pais começaram a saber o sexo do filho(a) antes do nascimento e essa informação, juntamente com a possibilidade de fazer um aborto legal ou ilegal, permitiu aos pais controlarem o sexo dos seus filhos. É bem conhecido que na China a restrição ao número de filhos e a valorização do filho macho levaram ao aparecimento do fenômeno do aborto seletivo de meninas. Apesar de comprovado, a extensão da prática e a consequência para o balanço dos sexos ainda eram pouco conhecidas. Mas isso mudou com um estudo publicado nesta semana.

Um grupo de quatro cientistas levantou nos registros de nascimento em 200 países quantos meninos e meninas nasceram a cada ano entre 1950 e 2017. Para cada país, eles determinaram o número de meninos e meninas nascidas por ano. Os dados entre 1950 e 1970 foram usados para determinar a razão entre meninos e meninas em cada país antes do ultrassom.

O número é um pouco diferente em diferentes regiões do globo. Para cada 1.000 meninas nasciam 1.031 meninos na África subsaariana, 1.063 no sudeste asiático e 1.067 na Oceania. Em todos os casos, o número é constante durante os 20 anos. Mas a partir de 1970, na Índia e na China e depois em outros países, o número de crianças do sexo masculinos cresce rapidamente. Em alguns países, chega a 1.200 meninos para cada 1.000 meninas. No total, foram identificados 12 países: Índia, Albânia, Montenegro, Tunísia, Armênia, Azerbaijão, Geórgia, Vietnã, China, Hong Kong, Coreia do Sul e Taiwan. No Brasil, a relação não se alterou entre 1950 e 2017.

Porém, o mais interessante é que o pico dessa seleção por meninos ocorreu por volta de 10 ou 20 anos após seu início e depois começou a retroceder. Houve essa redução em 11 dos 12 países, sendo que em 6 o nível normalizou.

Esse pico de nascimento de meninos, que se deve ao aborto seletivo de meninas, criou um déficit de meninas no mundo. Se esse aumento não tivesse ocorrido, o mundo teria hoje 23 milhões de mulheres a mais. O número é grande - 23 milhões de pessoas é aproximadamente a população de São Paulo -, mas é pequeno se pensarmos que existem por volta de 4 bilhões de mulheres no mundo. Mas os cientistas ficaram intrigados com o fato de essa aberração já ter desaparecido em muitos países e estar regredindo em quase todos. Afinal, os exames para determinar o sexo antes do nascimento estão cada vez mais disponíveis, o aborto, cada vez mais acessível, e a preferência por meninos não parece ter desaparecido.

Uma possível explicação saltou aos olhos quando os cientistas observaram que o número de filhos caiu rapidamente, saindo de seis ou sete filhos por casal em 1950 para números próximos a dois em 2017. É exatamente durante essa queda que o excesso de meninos aumenta. E quando as famílias se estabilizam em dois filhos o fenômeno desaparece.

Uma possível interpretação é que, durante os anos em que as sociedades estavam diminuindo os números de filhos por casal, os casais não se conformavam em só ter e abortavam a segunda menina na esperança de ter um menino. Quando dois filhos passaram a ser a norma, parece que o fenômeno desapareceu. Se é essa a verdadeira explicação, não sabemos: podem ter havido mudanças no nível educacional ou nos costumes, mas é certo que esses 23 milhões de meninas desaparecidas estão voltando a nascer. Uma boa notícia.

Mais informações: systematic assessment of the sex ratio at birth for all countries and estimation of national imbalances and regional reference levels. proc. nat. acad. sci (usa) 2019

Fonte: O Estado de S.Paulo, por Fernando Reinach, 27/04/2019


quinta-feira, 25 de abril de 2019

A divisão de cores de meninos e de meninas é uma invenção histórica e não algo natural

Wendy e Peter Pan vestidos de azul e rosa — Foto: Reprodução
Rosa nem sempre foi 'cor de menina' - nem o azul, 'de menino'

Pesquisadora americana explica que a divisão de gênero das cores é uma construção social. 'Assim, também é errada a ideia de que se você não tratar as crianças segundo um estereótipo de gênero elas vão crescer confusas, serão pervertidas, vão se tornar homossexuais, transgênero. Não há nenhuma evidência disso'.
A regra geralmente aceita é que rosa é para os meninos, e azul para as meninas. O motivo é que o rosa, sendo uma cor mais decidida e forte, é mais apropriado para meninos. Enquanto o azul, que é mais delicado e gracioso, é mais bonito para a menina."
O parágrafo acima foi publicado há cem anos, em 1918, por uma revista de moda infantil americana, a Earnshaw, voltada para profissionais da área. Foi encontrado por Jo Paoletti, professora emérita de Estudos Americanos na Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, e autora do livro Pink and Blue: Telling the Boys from the Girls in America (Rosa e Azul: Distinguindo Meninos de Meninas nos Estados Unidos).
(Encontrar essa frase) virou minhas suposições de cabeça para baixo", lembra a pesquisadora, em conversa com a BBC News Brasil. Afinal, o rosa nem sempre havia sido uma cor de menina, nem o azul cor de menino.
A ideia de que há algo natural e permanente sobre o uso de rosa para as meninas e azul para garotos é historicamente errada", diz Paoletti.
Assim, também é errada a ideia de que se você não tratar as crianças segundo um estereótipo de gênero elas vão crescer confusas, serão pervertidas, vão se tornar homossexuais, transgênero. Não há nenhuma evidência disso. Não é dos estereótipos de gênero que nasce a identidade homossexual ou trans."
O uso de rosa ou azul mobilizou as redes sociais brasileiras em janeiro deste ano, chegando ao topo de assuntos mais comentados no Twitter. O motivo foi a divulgação de um vídeo de Damares Alves, a primeira ministra a ocupar a pasta de Mulher, Família e Direitos Humanos - criada por Jair Bolsonaro, em substituição ao Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos do governo de Dilma Rousseff.
Atenção, atenção! É uma nova era no Brasil. Menino veste azul e menina veste rosa!", fala Damares Alves no vídeo. A frase foi acompanhada em coro por apoiadores. Em seguida, todos pularam em comemoração - inclusive a ministra, nitidamente empolgada.
O contexto da frase é a intenção do novo governo de combater a chamada "ideologia de gênero". O termo, que não é reconhecido por estudiosos, foi popularizado por segmentos contrários à ideia de que gênero é uma construção social e, portanto, não está restrito ao sexo biológico de uma pessoa.
Fiz uma metáfora contra a ideologia de gênero, mas meninos e meninas podem vestir azul, rosa, colorido, enfim, da forma que se sentirem melhores", disse a ministra, após a reação das redes sociais, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo.
Vestidos brancos para bebês e azul feminino em alusão à Virgem Maria

A divisão de cores de meninos e de meninas é uma construção social recente, explica Paoletti.
Cem anos atrás, os bebês usavam vestidos brancos, independentemente do sexo da criança. Essas roupas brancas eram mais fáceis de serem mantidas limpas, porque podiam ser fervidas", diz ela. Além disso, era mais fácil trocar a fralda de um bebê de vestido do que com calças.
Quando as cores foram introduzidas no vestuário infantil, tinham tons pasteis, mas não importava se era rosa ou azul. Geralmente, eram escolhidas de acordo com o tipo físico da criança. Era muito comum ver bebês de olhos azuis vestindo azul. E bebês de olhos castanhos vestindo rosa. As pessoas achavam que combinava mais", continua Paoletti.
O uso das cores também variava de acordo com a região, explica a pesquisadora.
Em alguns países católicos, era comum encontrar o uso de azul para meninas, porque o azul era associado à Virgem Maria. Em outros locais católicos, como França e Bélgica, o primeiro filho costumava ser dedicado à Virgem Maria e vestido de azul, fosse menino ou menina."
Mais recentemente, o uso de rosa para meninas e azul para meninos se tornou padronizado em todo o Ocidente. Como isso ocorreu? Uma das explicações é que o padrão teria sido criado pela indústria da moda americana e se espalhado para outros países.

O professor de psicologia da Universidade do Novo México, Marco Del Giudice, analisou as ocorrências de rosa e azul para meninos e meninas em uma base de dados de milhões de livros, publicados a partir de 1880. Segundo ele, as referências a "rosa para meninas" começaram a ser mais abundantes a partir do final da Segunda Guerra Mundial, na década de 1940.

Além disso, outros simbolismos de gênero entraram na moda infantil, como laços e corações para meninas, aviões e bolas para meninos.

Antes, o que definia a moda infantil era a praticidade, a conveniência. Agora, as pessoas estão mais interessadas em garantir que seu filho pareça com o estereótipo de um menino", diz Paoletti.

Meninas preferem rosa? Ciência diz que não

Um estudo de 2011 publicado pela Sociedade de Psicologia Britânica analisou a preferência de cor de bebês e crianças com idades entre 7 meses e 5 anos. Cada criança recebeu um par de objetos, um com a cor rosa e o outro com uma segunda cor. Os pesquisadores, então, observaram qual era a preferência ou rejeição pelos objetos rosas.

O resultado foi que, com até um ano de idade, meninas e meninos escolheram objetos cor-de-rosa de forma semelhante. Ou seja, não havia uma preferência de um sexo ou do outro pela cor.

Já aos dois anos, as meninas passaram a preferir o rosa um pouco mais frequentemente que os meninos. E, a partir de dois anos e meio, a preferência por rosa despontou nas meninas, ao mesmo tempo que a rejeição ao rosa prevaleceu entre meninos.

Segundo as pesquisadoras, a preferência pelo rosa nessa idade pode ser explicada pela identificação de gênero que é dada pelos adultos e acaba absorvida pelas crianças.
As descobertas vão na contramão da sugestão de que as preferências de cor podem ter uma base biológica. Alguns pesquisadores propuseram que há mais vantagem evolutiva para mulheres que são atraídas por cores de frutas, como o rosa. Mas, se as mulheres tivessem uma predisposição biológica ao rosa, então isso seria evidente independentemente da aquisição de conceitos de gênero".

Fonte: BBC, 04/01/2019

Rosa para meninas e azul para meninos: a divisão nem sempre foi essa
 Foto: shutterstock.com/Natalya Lys
Entenda: como o rosa se tornou 'cor de menina' e o azul, 'de menino'
Registros históricos mostram que a afirmação da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, parte de uma construção social; no início do século passado, a escolha dos tons era outra

RIO — O azul não foi sempre considerado uma "cor de menino"; nem o rosa, "de menina". De fato, até o início do século passado, era o contrário. O rosa era a cor masculina por sua semelhança ao vermelho e ao sangue, passando a ideia de "força". O azul, por sua vez, tinha como mensagem a "delicadeza".

Autora do livro "Pink and Blue: Telling the Girls from The Boys in America" (em tradução livre, "Rosa e Azul: diferenciando meninas de meninos dos EUA"), a historiadora Jo B. Paoletti afirma que, até a Primeira Guerra Mundial, prevaleciam os tons pastel.
 "A partir daí, o rosa passou a ser uma cor associada à masculinidade, era um vermelho aguado", escreve ela em seu site. "Em 1914, o'Sunday Sentinel', um jornal americano, aconselhou as mães a "usarem rosa para o menino e azul para a menina, se a pessoa fosse uma seguidora de convenções".
Em 1927, a revista americana Time questionou lojistas sobre que cor eles associavam a cada sexo, mas não houve consenso sobre o resultado.

Segundo Paoletti, a mudança para rosa para meninas e azul para meninos aconteceu somente após a Segunda Guerra Mundial.
                                                                            
Além disso, em meados da década de 1980, a ultrassonografia passou a apontar o sexo do bebê, fazendo com que os pais começassem a montar o enxoval das crianças comprando as roupas de acordo com a cor que associavam a meninos e meninas. Até então, usava-se principalmente o branco. Foi nesse momento que o mercado, de modo definitivo, selou a "divisão" entre essas cores.

Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, Bila Sorj considera que, mesmo com a transição das cores, a ideia transmitida pelo mercado permaneceu a mesma.
A cor é arbitrária, porque ainda considera-se, desde o início da História do consumo, que as meninas devem ser associadas à delicadeza e fragilidade, e os meninos, à força e a atividades vibrantes.

Para a jornalista Daniela Tófoli, autora do livro Pré-adolescente: um guia para entender o seu filho, a polarização entre azul e rosa está cada vez mais questionada.

Muitos pais estão optando por não saber o sexo dos bebês e preparam enxovais com cores como laranja e roxo — conta. — Também vejo crianças que não se encaixam neste modelo de mercado. Minha filha tem 9 anos e sua cor preferida sempre foi azul. É a cor que ela escolheu para a parede de seu quarto. Tivemos dificuldades em encontrar uma mochila azul sem temas masculinos. Por que a princesa tem que ser rosa ou lilás? E por que os pais devem se sentir incomodados se veem seus filhos estão com brinquedos rosas?
Fonte: O Globo, por Renato Grandelle, 03/01/2019 

terça-feira, 23 de abril de 2019

72% dos artigos científicos publicados pelo Brasil são assinados por mulheres



Mulheres assinam 72% dos artigos científicos publicados pelo Brasil

O Brasil publicou cerca de 53,3 mil artigos, dos quais 72% são assinados por pesquisadoras mulheres.

O Brasil é o país íbero-americano com a maior porcentagem de artigos científicos assinados por mulheres seja como autora principal ou como co-autora, de acordo com a Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI). Entre 2014 e 2017, o Brasil publicou cerca de 53,3 mil artigos, dos quais 72% são assinados por pesquisadoras mulheres.

Atrás do Brasil, aparecem a Argentina, Guatemala e Portugal com participação de mulheres em 67%, 66% e 64% dos artigos publicados, respectivamente. No extremo oposto estão El Salvador, Nicarágua e Chile, com mulheres participando em menos de 48% dos artigos publicados por cada país.

Além desses países, a OEI analisou a produção científica da Bolívia, Colômbia, Costa Rica, Cuba, República Dominicana, Equador, Espanha, Honduras, México, Panamá, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela. Os dados fazem parte do estudo As desigualdades entre os sexos na produção científica ibero-americana, do Observatório Ibero-americano de Ciência, Tecnologia e Sociedade (OCTS), instituição da OEI.

A pesquisa analisou os artigos publicados na chamada Web of Science, em português, web da ciência, que é um banco de dados que reúne mais de 20 mil periódicos internacionais.
O Brasil está melhor do que o restante dos países. Acho que é algo que não podemos nos dar por satisfeitos porque temos desafios, mas indica que o Brasil caminha na direção positiva de mais oportunidades, de igualdade de gênero entre homens e mulheres”, diz o diretor da OEI no Brasil, Raphael Callou.

Menos pesquisadoras publicam

Apesar de assinar a maior parte dos artigos, quando levado em conta o número de mulheres pesquisadoras que publicaram no período analisado, ele é menor que o dos homens. No Brasil, elas representam 49% dos autores, de acordo com os dados de 2017. A porcentagem se manteve praticamente constante em relação a 2014, quando elas eram 50%.

Com base nos números de 2017, o Paraguai ocupa o topo do ranking, com 60% das autoras mulheres. Na outra ponta, está o Chile, com 37%.

As diferenças aparecem também entre áreas de pesquisa. No Brasil, entre as áreas analisadas, medicina é a que conta com a maior parte das autoras mulheres, elas são 56% entre aqueles que publicaram entre 2014 e 2017. As engenharias estão na base, com a menor representatividade, 32%.

Essa realidade faz parte do cotidiano da professora da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Maria Cristina Tavares.
Nas salas de aula, as meninas são cerca de 5% dos estudantes. No departamento temos em torno de 90 professores e somos cinco professoras”, diz. “Quando você vai a congressos, são pouquíssimas engenheiras. Você vê só ternos. Se você tem 100 trabalhos sendo expostos, tem geralmente três ou quatro pesquisadoras”, acrescenta.
Maria Cristina comemora a posição de destaque das mulheres no número de assinaturas de publicações: |
Publicações hoje em dia são tudo no mundo acadêmico. As próprias universidades prezam por expor o resultado das pesquisa. Para eu conseguir mais bolsas para os meus estudantes, preciso estar com um bom nível de publicação e não é número pelo número, é número que significa que meu trabalho está sendo bom”, diz.
A professora faz, no entanto, uma ressalva sobre a baixa presença de pesquisadoras na área que atua: 
O país perde quando não trabalha essa diversidade e todos esses olhares”.

Maioria entre estudantes, minoria entre professores

Publicar sempre foi difícil, sempre é um processo. Há casos clássicos, bem icônicos de como esse estereótipo sexual está arraigado. Quando se lê um artigo de autor chinês, polonês ucraniano, que tem um nome diferente, dificilmente vem imagem de que seja uma mulher, porque na nossa cabeça, a gente entende que esse lugares difíceis são ocupados por homens”, diz a bióloga da Universidade de Brasília (UnB) Bárbara Paes.

Apaixonada por ciência, a pesquisadora integra a equipe do Dragões de Garagem, criado para divulgar, de forma simples e atrativa, descobertas científicas e questionamentos sobre o fazer ciência no país.
Existe uma resistência da própria academia de reconhecer que existe um problema”, diz.
De acordo com o Censo da Educação Superior de 2016, última edição do levantamento, as mulheres representam 57,2% dos estudantes matriculados em cursos de graduação.

Elas são também maioria entre bolsistas da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), autarquia vinculada ao Ministério da Educação (MEC), representam 60% do total de beneficiários na pós-graduação e nos programas de formação de professores.

Entre os professores contratados, no entanto, o cenário muda, os homens são maioria. Dos 384.094 docentes da educação superior em exercício, 45,5% são mulheres.

Fonte: Agência Brasil, Por Mariana Tokarnia, 23/03/2019 

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