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terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Às ruas novamente pela democracia


Destaque:

É hora de nos engajarmos nessa luta pela democracia no Brasil, sem meios-termos, sem receios, conclamando as demais entidades da sociedade civil que congregam administradores de empresas, contadores, engenheiros, médicos, auxiliares de saúde, arquitetos, promotores e juízes, trabalhadores da indústria, comerciários, etc., bem como entidades do terceiro setor e os inúmeros participantes dos movimentos construídos pelas redes sociais, para em uma só voz exigir mudanças no sistema eleitoral, fonte de muitos males, e no regime de governo, com a adoção, pelo menos, de presidencialismo parlamentarizado, visando a facilitar a responsabilização dos governantes.
É a hora da sociedade civil

Miguel Reale Júnior


O Estado Democrático de Direito está gravemente ferido. É necessário reconstruir a democracia, da qual um dos alicerces consiste na confiança da população nos agentes políticos que elege. Hoje, justificadamente, essa confiança inexiste no Brasil.

A democracia destaca-se por viver e conviver com as divergências, a serem superadas pelo diálogo e pela persuasão para a formação de uma maioria parlamentar legítima, respeitada pelas minorias. Todavia o confronto de ideias e de perspectivas, próprio da democracia, desapareceu do cenário político, substituído por entendimentos promovidos graças a arranjos financeiros com dinheiro público subtraído de empresas como Petrobrás, Sete Brasil, BR Distribuidora, Angra 3, Belo Monte.

Não se fez política, nem se praticou a democracia. Apenas se transitou num bazar de venda de apoios por dinheiro vivo ou graças à ocupação de cargos na administração, colocando apaniguados em postos estratégicos para obtenção de vantagens ou para demonstração de prestígio. Instalou-se a desabusada prática de exercer o poder para institucionalizar a ação corrosiva da corrupção como normalidade. A democracia foi corroída por dentro ao se obter uma maioria marrom, enlameada pela compra de consciências e do convencimento.

O poder econômico privado aliou-se a administradores públicos venais, abocanhando serviços superfaturados cujos frutos reverteram em parte para deputados e senadores, bem como para seus partidos, visando a assegurar ao Executivo uma maioria comprada. Os partidos da base governista fizeram caixa para enfrentar, com muitos recursos, as futuras eleições.

Formou-se um círculo pernicioso com o dinheiro público desviado desde o mensalão e consolidado no petrolão, pois esses numerários, em conluio com empresários, saíram dos cofres de órgãos do Executivo, pela ação de diretores, indicados por líderes políticos, e foram usados para manutenção de apoio parlamentar ao próprio Executivo.

Uma organização criminosa passou a dominar o País e suas instituições políticas, levando ao cúmulo de se eliminar a divisão de Poderes e o jogo de contrastes de perspectivas próprio da democracia. Parlamentares e administradores uniram-se na festança da fruição do dinheiro público desviado. A corrupção tornou-se o denominador comum por via do qual se compuseram Executivo e Legislativo visando à apropriação de vantagens indevidas de toda ordem.

Tão grave quanto era o liame tentado entre Presidência da República e presidência da Câmara dos Deputados, com vista a um acordo espúrio para garantia de mútua impunidade: o apoio de deputados do PT à absolvição do presidente da Câmara em troca da rejeição liminar dos pedidos de impeachment. Todavia, ao se recusar o PT a apoiá-lo, Eduardo Cunha acolheu o pedido de impeachment, escrevendo certo por linhas tortas.

A defesa do Estado Democrático de Direito é dever do advogado, como assinala o artigo 2o do novo Código de Ética. Hoje o mais frágil e mais urgente cliente do advogado é o Estado de Democrático de Direito. A sua defesa incumbe a todos nós advogados, bem como às nossas instituições.

Agora não se trata de lutar contra uma ditadura, nem de resistir às afrontas às liberdades civis e políticas, mas, sim, em ir mais a fundo, pois os alicerces, fincados pela Constituição de 1988, apodreceram. É preciso, portanto, reconstruir suas bases. Não é só o governo que está em crise, é o regime democrático que está. Como principais defensores do Estado Democrático de Direito, aos advogados cumpre assumir a dianteira para salvar a democracia, reestruturá-la, não só afirmando a necessidade de punição daqueles que a destroem pelo mal da corrupção, observado o devido processo legal, mas pugnando, mais do que já se fez, por medidas impeditivas da corrosão da democracia.

Os advogados, valendo-se de sua história de lutas, devem exigir, pressionar com força por mudanças de fundo urgentes, para tanto mobilizando novamente a sociedade, já mobilizada pelos diversos movimentos contra a corrupção que levaram milhões às ruas, agora tendo por pauta a reforma estrutural do Estado. Não basta afastar Dilma. É preciso também preparar o futuro.

É hora de nos engajarmos nessa luta pela democracia no Brasil, sem meios-termos, sem receios, conclamando as demais entidades da sociedade civil que congregam administradores de empresas, contadores, engenheiros, médicos, auxiliares de saúde, arquitetos, promotores e juízes, trabalhadores da indústria, comerciários, etc., bem como entidades do terceiro setor e os inúmeros participantes dos movimentos construídos pelas redes sociais, para em uma só voz exigir mudanças no sistema eleitoral, fonte de muitos males, e no regime de governo, com a adoção, pelo menos, de presidencialismo parlamentarizado, visando a facilitar a responsabilização dos governantes.

Cumpre, também, estabelecer eficaz e sério Programa de Integridade, com inamovível e bem qualificado fiscalizador dos demais servidores em cada setor da administração pública, bem como nos partidos políticos, a serem responsabilizados pelos atos de seus membros. A eliminação de dois terços dos cargos em confiança na administração direta e indireta, assim como a aplicação de testes de honestidade e garantia de confidencialidade para informantes de práticas de corrupção são outras propostas positivas.

Além do mais, é importante o fortalecimento dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Ministério Público Eleitoral, para fiscalizar a estrutura de campanha dos candidatos e suas contas durante o processo eleitoral.

Só assim se pode refazer a confiança do povo no processo democrático. Dessa forma, cumpre aos advogados tentar salvar, em conjunto com várias forças sociais, o seu cliente preferencial, o combalido Estado Democrático de Direito. É a hora da sociedade civil!

Fonte:
Estado de São Paulo, 05/12/2015

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

O Brasil precisa depor Dilma, entre outras razões, por uma questão de sobrevivência



Fernando Gabeira provando que ainda existe vida inteligente à esquerda. Destaco:

Quase todos concordam com a gravidade da crise, nunca antes neste país o governo errou tanto, corrompeu tão disciplinadamente a vida política, corroeu tanto os alicerces da jovem democracia, engrandecida com a luta pelas diretas. Naquele momento, a bandeira das diretas tinha conotação positiva, era a esperança que nos movia. Muitos acham que só ela nos move. Mas diante das circunstâncias ameaçadoras é o instinto de sobrevivência que nos pode mover: o Brasil está se desintegrando.
Hoje a esperança só pode ser construída na luta pela sobrevivência. Chegou a hora de conversarmos por baixo, uma vez que do sistema político não vem resposta. Naturalmente, saindo do pequeno universo, abrindo-se para as diferentes posições no campo dos que querem a mudança. Nada que ver com conversa de ex-presidentes ou com essa história de que oposição e governo têm de se entender.
O governo tem de entender que chegou sua hora, pois é o grande bloqueio no caminho da esperança. Não é possível que, no auge de uma crise econômica, epidemias e desastre ambiental, o país aceite ser governado por uma quadrilha de políticos e empresários.

Quase tudo em ruínas
Fernando Gabeira

Agora que tudo está em ruínas, exceto algumas instituições que resistem, não me preocupo em parecer pessimista. Quando anexei às listas das crises o grave momento ambiental, algumas pessoas ironizaram: el Niño? Naquele momento falava apenas da seca, da tensão hídrica, das queimadas e enchentes. Depois disso veio o desastre de Mariana, revelando o descaso do governo e das empresas que, não se contentando em levar a montanha, transformam o Doce num rio de lama.

No fim de semana compreendi ainda outra dimensão da crise. O Brasil, segundo especialistas, vive uma situação única no mundo: três epidemias produzidas pelo Aedes Aegypti (dengue, chikungunya e o zika vírus). O zika está sendo apontado como o responsável pelo crescimento dos casos de microcefalia. Sabe-se relativamente pouco sobre ele. E é preciso aprender com urgência. O dr. Artur Timerman, presidente da Sociedade Brasileira de Dengue e Arboviroses, considera a situação tão complexa como nos primeiros momentos da epidemia de aids.

Agora que está tudo em ruínas, restam os passos das instituições que funcionam, o prende aqui, prende lá, delata ou não delata, atmosfera de cena final, polícia nos calcanhares. Lembra-me a triste cena final do filme Cinzas e Diamantes, de Andrzej Wajda. A Polônia trocava um invasor, os nazistas, por outro, os comunistas: momento singular. No entanto, há algo de uma tristeza universal na Polonaise desafinada e no passeio do jovem casal por uma cripta semidestruída pelos bombardeios.

Aqui, a cena não é de filme de guerra, ocupação militar, mas de um thriller policial em que a quadrilha descoberta vai sendo presa progressivamente. Enquanto isso, não há governo para responder ao desemprego, empobrecimento, epidemias, mar de lama e ao sofrimento cotidiano dos brasileiros.

As cenas finais são eletrizantes e a ausência de um roteirista tornou o filme político ainda mais atraente. Mas perto da hora de acender a luz os cinemas se preparam, abrem as cortinas e já se pode ver, de dentro, como é sombria a noite lá fora.

Quase todos concordam com a gravidade da crise, nunca antes neste país o governo errou tanto, corrompeu tão disciplinadamente a vida política, corroeu tanto os alicerces da jovem democracia, engrandecida com a luta pelas diretas. Naquele momento, a bandeira das diretas tinha conotação positiva, era a esperança que nos movia. Muitos acham que só ela nos move. Mas diante das circunstâncias ameaçadoras é o instinto de sobrevivência que nos pode mover: o Brasil está se desintegrando.

Hoje a esperança só pode ser construída na luta pela sobrevivência. Chegou a hora de conversarmos por baixo, uma vez que do sistema político não vem resposta. Naturalmente, saindo do pequeno universo, abrindo-se para as diferentes posições no campo dos que querem a mudança. Nada que ver com conversa de ex-presidentes ou com essa história de que oposição e governo têm de se entender.

O governo tem de entender que chegou sua hora, pois é o grande bloqueio no caminho da esperança. Não é possível que, no auge de uma crise econômica, epidemias e desastre ambiental, o país aceite ser governado por uma quadrilha de políticos e empresários.

Às vezes me lembro do tempo do exílio, quando sonhava com um passaporte brasileiro. Agora é como se tivesse perdido o passaporte simbólico e de certa maneira voltasse à margem.

Vivemos momento em que quase tudo está em ruínas, como se fôssemos uma multidão de pessoas sem papel. O foco nas cenas de desmonte policial é importante. O voto direto dos senadores não seria aprovado, no caso Delcídio, não fora a vigilância da sociedade.

No entanto, a gravidade da situação pede muito mais. Há um momento em que você se sente órfão dos políticos do país. Mas logo em seguida percebe que é preciso caminhar sem eles. Hora de conversar na planície.

Não descarto a importância de um núcleo parlamentar que nos ajude a mandar para as Bermudas o triângulo Dilma, Renan, Cunha. Mas as grandes questões continuam: como recuperar a economia, como voltar a crescer de forma sustentável, como reposicionar o Brasil no mundo, distanciando-nos dos atrasados bolivarianos?

Uma das muitas maneiras de ver os limites do crescimento irracional é o próprio desastre em Mariana, a agressão ao Rio Doce. A essência desse crescimento é o depois de nós, o dilúvio. Às vezes o dilúvio se antecipa, como no distrito de Bento Rodrigues, e fica mais fácil compreender a gigantesca armadilha que legamos às novas gerações. É preciso uma conversa geral e irrestrita entre todos os que querem mudar, tirando da frente os obstáculos encalhados em Brasília.

Não se trata de estender o dedo como naquele cartaz do Tio Sam, dizendo: o país precisa de você. Na verdade, o caminho é mostrar que você precisa do país; se ele continuar se enterrando, alguns sonhos e perspectivas individuais se enterram também.

Compreendo as pessoas que temem a derrubada do governo e seus aliados porque não sabem precisamente o que virá adiante. Não sei se isto as conforta, mas o descobrimento do Novo Mundo foi feito com mapas equivocados e imprecisos. A fantasia dos navegantes estava povoada de monstros e prodígios, no entanto, acabaram sendo recompensados por se terem movido.

O desafio de agora é menor do que lançar-se nos mares desconhecidos. Os mapas nascem de um amplo diálogo e, mesmo se não forem cientificamente precisos, podem nos recompensar pela movida.

Desde o princípio, o impeachment era uma solução lógica, mas incômoda. Muita gente preferiu ficar com um governo porque ele foi eleito. Não importa se a campanha usou dinheiro do petrolão, Pasadena, não importam as mentiras, a incapacidade de Dilma. Ela foi eleita. Tem um diploma. E vamos dançar nas ruínas contemplando o luminoso diploma, cultuando sua composição gráfica, a fita colorida.

Muitos povos já se perderam no êxtase religioso como resposta a uma crise profunda. Mas os deuses eram mais fortes, o sol, a fecundidade, a morte. Estamos acorrentados a um diploma.

Fonte: Estado de SP, 04/11/2015

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

O pedido de impeachment de Dilma aceito e suas possíveis consequências


As conversas hoje giram em torno da suposta impossibilidade de Cunha encaminhar e presidir o processo de impeachment da Dilma por ser corrupto. Bem, ele continua no cargo para o qual foi eleito como Dilma. E vamos lembrar que pairam sobre a eleição de Dilma as suspeitas de fraude nas urnas eletrônicas e de campanha movimentada com dinheiro de alta corrupção. Então, se Dilma e Cunha foram eleitos e, apesar dos indícios de corrupção no histórico de ambos, os mesmos continuam em seus cargos, por que Cunha não poderia encaminhar o processo de impeachment de Dilma, sendo essa possibilidade uma de suas prerrogativas?

Os vários pedidos de impeachment que foram protocolados não partiram de Cunha e sim de vários segmentos da população brasileira exaustos do buraco sem fundo em que Dilma e seus cúmplices meteram o país. O pedido de impeachment agora encaminhado não partiu de Cunha, e, pelo andar da carruagem, não será presidido por ele. O pedido de impeachment não é de Cunha e sim do povo brasileiro que, em sua maioria, quer Dilma e o PT fora do poder (e razões não faltam para tal).


Vale lembrar também que Lula e o PT deram o aval para o encaminhamento do impeachment ao propor à sua bancada que votasse pela admissibilidade do processo contra Cunha. Então, deixemos de ingenuidades, que Lula deve estar rifando a pupila simplesmente, como comentei ontem. Pra nós, que nada temos a ver com os bandidos do evangelho ou da justiça social, o que interessa é articular para que o impeachment prospere e Lula não tenha como voltar ao poder nem que chova néctar do céu. Porque isso é o que interessa ao país, pras nossas vidas. Não existe luz no fim do túnel com o PT no poder. Eu que sou muito mais das dúvidas do que das certezas, tenho sobre isso a mais profunda convicção. É questão de sobrevivência do país. Depois a gente vê o que faz com o que sobrou desse desastre todo.

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Ventos de mudança na América latina, e o liberalismo como a “doutrina mais dos meios que dos fins”

Diálogo de convertidos
Com experiências pessoais como militantes de extrema esquerda, Roberto Ampuero e Mauricio Rojas publicam um xeque mate às utopias estatistas

por Mario Vargas Llosa

Esta semana, duas coisas esplêndidas ocorreram na América Latina. A primeira foi o triunfo de Mauricio Macri na Argentina, uma severa derrota para o populismo do casal Kirchner que abre uma promessa de modernização, prosperidade e fortalecimento da democracia no continente; é, também, um duro golpe para o chamado “socialismo do século XXI” e para o Governo da Venezuela, a quem o novo mandatário eleito pelo povo argentino criticou sem complexos por sua violação sistemática dos direitos humanos e seus atropelos à liberdade de expressão. Tomara que essa vitória dê uma alternativa genuinamente democrática e liberal à demagogia populista e inaugure na América Latina uma etapa em que não voltem a conquistar o poder caudilhos tão nefastos para seus países como o equatoriano Correa, o boliviano Morales e o nicaraguense Ortega, que devem neste momento estar profundamente afetados pela derrota de um Governo aliado e cúmplice de seus abusos.

A outra excelente notícia é o lançamento no Chile do livro Diálogo de Conversos (Editorial Sudamericana, inédito no Brasil), escrito por Roberto Ampuero e Mauricio Rojas, que é, também no plano intelectual, um xeque-mate às utopias estatistas, coletivistas e autoritárias do presidente venezuelano Maduro e companhia e dos que ainda acreditam que a justiça social possa chegar à América Latina através do terrorismo e das guerras revolucionárias.

Roberto Ampuero e Mauricio Rojas acreditaram nessa utopia na juventude e militaram – o primeiro na Juventude Comunista e o segundo no Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR). Contribuíram assim para criar o clima de crepitação social e caos econômico e político que foi o Governo de Salvador Allende e a Unidade Popular. Com o golpe militar de Pinochet e o início de uma era de repressão, tortura e terror no Chile, ambos tiveram que fugir e se refugiaram na Europa. Ampuero foi à Alemanha Oriental e de lá a Cuba. Rojas rumou para a Suécia. No exílio, continuaram militando na esquerda mais radical contra a ditadura. Mas a distância, o contato com outras realidades políticas e ideológicas e, no caso de Ampuero, conhecer e padecer em carne própria o “socialismo real” (de pobreza, burocratização, censura e asfixia política) os levaram àquela “conversão” à democracia primeiro e ao liberalismo depois. Sobre isso dialogam no livro, que, embora seja um ensaio político e de filosofia social, é lido com o interesse e a curiosidade com que se leem os bons romances.

Ambos falam com extraordinária franqueza e fundamentam tudo o que dizem e acreditam com experiências pessoais, o que dá a seu diálogo uma autenticidade e um realismo de coisa vivida, de reflexões e convicções calcadas na história real e que estão, por isso, a anos-luz do ideologismo tão frequente nos ensaios políticos, sobretudo da esquerda, ainda que também da direita, que se move num plano abstrato, de confusa e presunçosa retórica, e que parece totalmente divorciado do aqui e agora.

A “conversão” de Ampuero e Rojas não significa sua transferência com armas e bagagem ao inimigo de outrora: nenhum dos dois se tornou conservador nem reacionário. Ao contrário. Ambos são muito conscientes do egoísmo, da incultura e do quanto é relativa a defesa da democracia feita por uma certa direita que no passado apoiou as ditaduras militares mais corruptas, que confundia liberalismo com mercantilismo e que só entendia a liberdade como o direito de se enriquecer por qualquer meio. E ambos, também, embora sejam muito categóricos ao condenar o estatismo e o coletivismo, que empobrecem os povos e cerceiam a liberdade, reconhecem a generosidade e os ideais de justiça que animam muitas vezes esses jovens equivocados a acreditar, como Che Guevara e Mao, que só alcançamos o verdadeiro poder empunhando um fuzil.

Seria bom que alguns liberais recalcitrantes, que veem no livre mercado a panaceia milagrosa, lessem neste Diálogo de Conversos os argumentos com que Mauricio Rojas, que aproveitou tão bem a experiência sueca – onde chegou a ser por um tempo deputado do Partido Liberal – defende a necessidade de que uma sociedade democrática assegure a igualdade de oportunidades para todos através da educação e da regulação fiscal. O objetivo é que o conjunto da população tenha oportunidade de poder realizar seus ideais e desapareçam esses privilégios que no subdesenvolvimento (e, às vezes, no países avançados) estabelecem uma desigualdade de origem que anula ou dificulta extraordinariamente que alguém nascido em setores desfavorecidos possa competir realmente e ter sucesso no campo econômico e social. Para Mauricio, que defende ideias muito sutis para o que chama de “moralizar o mercado”, o liberalismo é mais a “doutrina dos meios que dos fins”, pois, como pensava Albert Camus, não são estes últimos os que justificam os meios, mas o contrário: os meios indignos e criminosos corrompem e envilecem sempre os fins.

Roberto Ampuero conta, numa das mais emotivas páginas o que significou para ele, após viver na quarentena intelectual de Cuba e da Alemanha Oriental, chegar aos países livres do Ocidente e ter acesso aos livros censurados e proibidos. Mauricio Rojas confirma a experiência recordando como foi, nas salas e bibliotecas da Universidade de Lund, viver a transformação ideológica que o fez passar de Marx a Adam Smith e Karl Popper.

Ambos se referem extensamente à situação do Chile, a esse curioso fenômeno que levou o país que mais progrediu na América Latina – fazendo retroceder a pobreza e com o surgimento de uma nova e robusta classe média graças a políticas democráticas e liberais – a um questionamento intenso desse modelo econômico e político. E os dois concluem, com razão, que o desenvolvimento econômico e material aproxima um país da justiça e de uma vida mais livre, mas não da felicidade, e que inclusive pode distanciá-lo ainda mais dela se o egoísmo e a ganância se transformarem no norte exclusivo e excludente da vida. A solução não está em voltar aos velhos esquemas e enteléquias que empobreceram e violentaram os países latino-americanos, e sim em reformar e aperfeiçoar sem trégua a cultura da liberdade, enriquecendo as conquistas materiais com uma intensa vida cultural e espiritual, que humanize cada vez mais as relações entre as pessoas, estimule a solidariedade e a vontade de serviço entre os jovens e amplie sem trégua essa tolerância para a diversidade, permitindo que os cidadãos cada vez mais escolham seu destino e pratiquem costumes e crenças sem outra limitação que não causar danos aos demais.

Faz tempo que não aparecia em nossa língua um ensaio político tão oportuno e estimulante. Tomara que Diálogos de Conversos tenha os muitos leitores que merece.

Fonte: El País, 28/11/2015

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Mais um livro sobre o absurdo Estado tupiniquim: Patrimonialismo Brasileiro em Foco


Mais um livro sobre o problema central do Brasil: nosso Estado patrimonialista que, entra século, sai século, continua a persistir como característica forte do poder público e da mentalidade dos governantes nacionais. Trata-se de Patrimonialismo Brasileiro em Foco de Antonio Paim. Ver a resenha abaixo.

Arraigado Patrimonialismo
Não é infrequente atribuir boa parte das mazelas do Estado brasileiro ao patrimonialismo, que, entra século, sai século, continua a persistir como característica forte do poder público e da mentalidade dos governantes nacionais. No entanto, raras vezes o debate sobre a apropriação do Estado por uma elite burocrática versa sobre as reais causas do problema, sem conseguir apontar soluções consistentes e viáveis.

Diante desse cenário, o livro Patrimonialismo Brasileiro em Foco (Vide Editorial, 2015), de Antonio Paim, com a colaboração de Antonio Roberto Batista, Paulo Kramer e Ricardo Vélez Rodríguez, pode contribuir significativamente para o debate do tema. O propósito do texto é claro:
...urge (...) disciplinar a discussão do problema, sem o que não lograremos maiores êxitos nessa batalha. Defrontam-nos com uma longa e arraigada tradição que não será ultrapassada de modo fácil e seguro”.
Os autores tipificam o patrimonialismo como “o encastelamento em determinados núcleos do aparelho burocrático estatal de indivíduos que se valiam da circunstância para se locupletarem e, por que não dizê-lo, cuidar do próprio enriquecimento”. Eles querem “averiguar as possibilidades de outras estratégias”, tendo em vista que a privatização – tanto no Brasil, promovida nos anos 1990, como em outros países – não teve êxito em reduzir o poder econômico do Estado. E o que é mais grave: o retrocesso ocorrido nos últimos anos, com o fortalecimento do patrimonialismo durante os governos Lula e Dilma Rousseff.

A análise oferecida no livro desvela uma realidade habitualmente pouco notada: o patrimonialismo não faz distinções sociais. A dependência do Estado afeta pobres e ricos. Tanto os que recebem o Bolsa Família como os que recebem favores de uma eletiva desoneração tributária são dependentes do Estado e manipulados por ele. Naturalmente, as situações econômicas e sociais são muito díspares, mas a relação política com o poder público tem as mesmas cores – é uma relação de dominação, mantida pela oferta de ganhos de curto prazo.

O patrimonialismo produz uma inversão do papel do Estado. Ao invés de promover a autonomia individual e coletiva, o Estado busca manter todos subservientes aos seus interesses. Nesse sentido, o olhar sobre a eficácia das políticas públicas – tanto as assistenciais quanto as de desenvolvimento da indústria, por exemplo – deve ser o de “quantos saem” delas, e não apenas “quantos estão” nelas incluídos. O número de beneficiados pouco indica a qualidade e a legitimidade do investimento feito nessas políticas públicas.

Vê-se aí a tensão entre o curto e o longo prazo. Os benefícios obtidos no presente podem ser grilhões que impeçam um futuro qualitativamente superior. Mantém-se assim a dependência da sociedade ante o Estado, seja pela precariedade da situação social das famílias que recebem a bolsa assistencial do governo, seja pela falta de competitividade da indústria brasileira. Todos ficam à mercê das benesses do poder público, distribuídas não por critérios republicanos, mas como resultado de escolhas político-partidárias, que apenas fortalecem os ocupantes da burocracia estatal.

Aqui talvez esteja a falta mais grave dos governos petistas: desperdiçaram os anos de bonança da economia brasileira, que deveriam ser usados para a promoção de uma real independência dos indivíduos, no sentido de construção e fortalecimento de uma situação social e econômica de autonomia. O que se viu foi exatamente o oposto – a manutenção da situação de dependência, seja entre os favorecidos pelos programas sociais, seja entre os agraciados com as desonerações tributárias. A burocracia estatal saiu mais forte, a sociedade – cada indivíduo – saiu mais fraca.

Como alerta Antonio Paim, o agravamento da dependência estatal foi também resultado das equivocadas mudanças nos marcos regulatórios de importantes setores da economia. Um dos casos citados é o do petróleo. Em 2010 abandonou-se o sistema de concessão pelo sistema de partilha. Além de elevar as possibilidades de corrupção, a mudança do marco regulatório diminuiu a eficiência do setor, como se viu com a drástica redução do ritmo de crescimento da produção de petróleo. Entre 1988 e 2006 a produção praticamente dobrou, saltando de 1 milhão de barris/dia para 1,9 milhão; oito anos depois, no entanto, a produção diária era de 2,109 milhões de barris/dia.

O livro lembra que os governos petistas, a despeito de terem delegado certas obras à iniciativa privada, mantiveram-na atrelada ao seu domínio por meio de juros subsidiados do BNDES. Não houve um efetivo avanço institucional – mudaram-se as regras, mas a lógica permaneceu a mesma. Segundo os autores,
o enfraquecimento do patrimonialismo, através de reformas econômicas – notadamente a privatização –, dar-se-á na medida em que possibilitem a emergência de forças sociais cujos interesses possam contrapor-se aos da burocracia estatal”.
Não foi o que se viu nos últimos anos.

Ao longo da análise dos casos da Rússia – se as reformas econômicas de Boris Yeltsin foram capazes de enfraquecer o Estado patrimonialista – e da Europa – com as tensões entre os diversos países relativas à configuração e ao papel da União Europeia –, transparece a constatação de que o enfraquecimento do patrimonialismo ultrapassa o tema econômico. Há profundas questões políticas e culturais envolvidas, que não são superadas de “modo fácil e seguro”.

A atual crise brasileira pode ajudar a vislumbrar a necessária reforma do Estado. Os inegáveis méritos da Constituição de 1988, restabelecendo a democracia e garantindo direitos fundamentais, não podem enevoar a realidade de que o modelo de Estado ali proposto, além de insustentável, tem fortes veios patrimonialistas, ao colocar a sociedade como menor de idade, dependente da boa vontade do poder público. Boa coisa não é.
Nicolau da Rocha Cavalcante, advogado e jornalista

Fonte:
Estado de SP, 13/11/2015

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