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Mulheres samurais

no Japão medieval

Quando Deus era mulher:

sociedades mais pacíficas e participativas

Aserá,

a esposa de Deus que foi apagada da História

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Deixa ela falar! Porque eu, libertária, defendo o direito de expressão da conservadora Sheherazade

A liberdade de expressão não pode ser limitada sem ser perdida
Acho que o Brasil possui duas fontes de atraso eterno: de um lado, o conservadorismo, sobretudo o religioso, e, de outro, o esquerdismo jurássico, socialista bolivariano que tem como norte a relíquia comunista de Cuba. Embora arqui-inimigos, socialistas bolivarianos e conservadores são, de fato, farinhas do mesmo saco autoritário em eterna disputa para ganhar ou manter o poder de nos enfiar seus dogmas goela abaixo. 

Para citar um exemplo de como, ironicamente, esses antípodas se parecem, lembro que são eles que alimentam o fla-flu esquerda x direita, apesar do anacronismo dessa divisão tomada de maneira estanque. Enquanto ambos alimentam esse fla-flu, contudo, acusam-se mutuamente de querer negar a dicotomia esquerda x direita como estratégia de diluir as diferenças políticas a fim de garantir sub-repticiamente uma hegemonia sem oposição. 

Outro exemplo: ambos protestam contra o proselitismo ideológico nas escolas e universidades, mas apenas contra o proselitismo de quem não é das respectivas turmas. Conservadores acusam os bolivarianos de fazer lavagem cerebral marxista na cabeça das crianças, jovens e adolescentes, mas não veem nada demais em se fazer proselitismo cristão via ensino religioso em escolas públicas. Denunciam o aparelhamento do Estado de parte do petismo, mas não emitem um pio contra o uso de dependências governamentais para a realização de cultos evangélicos por deputados-pastores.

E vice-versa. Esquerdistas, em geral, protestam contra o que chamam de tentativa de teocratização do Brasil, sobretudo em função das ações da execrável bancada evangélica no Congresso Nacional, mas também do ensino religioso em escolas e da postura antidemocrática dos evangélicos em relação a outras religiões (como as de matriz africana), mas não veem problema algum em querer que apenas sua visão de mundo circule do ensino básico às universidades. Nem se incomodam de aparelhar até festa de batizado de criança, como se diz popularmente, numa patrulha permanente para caçar vozes dissonantes.

Poderia citar vários outros exemplos de que, embora o conteúdo da missa seja diferente, a forma de rezar de conservas e bolivarianos é a mesma, mas fico por aqui, pois não é esse o objetivo deste texto. Mas digo que, se existe diferença significativa entre os bregas de esquerda e os jecas de direita, essa diferença circunstancial consiste em quem está no poder atualmente, seja no poder de Estado seja no poder cultural. E quem está no poder é o esquerdismo jurássico bolivariano bananeiro. Nele estando, não se faz de rogado em exercê-lo com sua costumeira falta de senso democrático, aproveitando-se da oportunidade para tentar calar a boca de quem o critica.

O último exemplo desse conhecido modus operandi da esquerda bolivariana se deu pela pressão para tirar do ar a comentarista e âncora do telejornal SBT Brasil Rachel Sheherazade  por suposto "incitamento à violência". Em um de seus polêmicos comentários, desta feita em razão do caso de um garoto negro que foi preso a um poste e espancado por justiceiros, a jornalista afirmou que era "compreensível que, dada à insuficiência de segurança pública, a população estivesse buscando fazer justiça com as próprias mãos". Dizer que determinada situação tem causas compreensíveis não se confunde com avalizar essa mesma situação. Dizer que são compreensíveis os elementos sociais, políticos e econômicos que levaram à ascensão do nazismo, na Alemanha da década de 30 do século passado, não significa de forma alguma justificar a nefasta ideologia de Hitler. 

No geral, Sheherazade usou termos inadequados em sua análise do caso, fez de fato um comentário infeliz, mas não incitou à violência coisa nenhuma. Por mais que discorde das bobagens conservadoras que diz a comentarista, não posso honestamente concordar com a pressão, feita pela patrulha esquerdista (PCdoB e PSOL, apoiadores dos regimes totalitários de Cuba e Coreia do Norte, resolveram recorrer inclusive ao Ministério Público contra Sheherazade), a fim de censurá-la e que acabou por surtir efeito, ao menos parcialmente. 

Na segunda-feira, dia 14/04, o SBT soltou a seguinte nota: 
Em razão do atual cenário criado recentemente em torno de nossa apresentadora Rachel Sheherazade, o SBT decidiu que os comentários em seus telejornais serão feitos unicamente pelo Jornalismo da emissora em forma de Editorial. Essa medida tem como objetivo preservar nossos apresentadores Rachel Sheherazade e Joseval Peixoto, que continuam no comando do SBT Brasil”.
Em outras palavras, censura mesmo. Sílvio Santos tem muitas dívidas com os governos Lula-Dilma, aos quais Sheherazade nunca poupou críticas (ver uma delas no vídeo abaixo), e resolveu pagá-las. Quem perde, mais do que a âncora, somos nós, população brasileira, que nos privamos de ouvir os acordes dissonantes de Sheherazade para poder inclusive contestá-los com veemência, sendo o caso, como  convém a quem é de fato democrata e amante da liberdade em todos os sentidos.

O colunista Pedro Doria, de O Globo, escreveu um artigo exemplar sobre o caso que transcrevo abaixo. Destaco dois trechos do texto.
Thomas Jefferson, cuja data de nascimento foi celebrada domingo, disse que “a liberdade de expressão não pode ser limitada sem ser perdida”. Os EUA, país que ajudou a fundar, têm a legislação mais incisiva na defesa da livre expressão. Não quer dizer que seja absoluta. Mas que, antes de punir o discurso, pesam se vale o risco. Porque, a não ser que os critérios para punir o discurso sejam extremamente rigorosos, fica fácil demais. E a censura se estabelece.
 Pode não parecer intuitivo, mas é só quando garantimos o livre discurso dos mais radicais em uma sociedade, à direita e à esquerda, que realmente expomos seus vícios. Só assim somos realmente livres.
A liberdade de expressão não pode ser limitada sem ser perdida. Não resta dúvida de que a nossa, com o cala-boca dado na comentarista do SBT, foi seriamente ferida. Lamentavelmente a consciência democrática no Brasil é baixíssima. Ou mudamos isso ou seremos eternamente um país preso numa noite tempestuosa de arbítrio, iluminado apenas, vez ou outra, pelo clarão de algum raio de liberdade.

Deixa Sheherazade falar
Só quando garantimos o livre discurso dos mais radicais em uma sociedade é que realmente expomos seus vícios

Em fevereiro, a comentarista e âncora do telejornal SBT Brasil Rachel Sheherazade se tornou uma das mais conhecidas personagens das redes sociais. “No país que ostenta incríveis 26 assassinatos a cada 100 mil habitantes”, disse no ar, “a atitude dos vingadores é até compreensível.” Referia-se aos justiceiros cariocas que acorrentaram um adolescente de rua negro contra um poste, pelo pescoço, com uma tranca de bicicleta. Qual fora escravo. A deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) pediu investigação à Procuradoria Geral da República. O Sindicato de Jornalistas do Rio publicou nota de repúdio. No início de abril, quando Sheherazade saiu de férias, circulou pela imprensa o rumor de que havia sido afastada pela emissora por pressão do governo. Houve quem celebrasse. É um erro.

Sheherazade é um fenômeno da internet que provavelmente não ganharia tanto espaço noutros tempos. A baixa audiência de seu telejornal é compensada por inúmeras cópias de seus comentários, quase sempre inflamatórios, no YouTube. Muitos a defendem. Assim como muitos por ela sentem repugnância. A jornalista não faz concessões ao bom gosto: é uma radical. Mas liberdade de expressão jamais é testada pelos razoáveis, pelos moderados, pelos de bom gosto.

O principal argumento contra Sheherazade parece partir do bom senso: faz apologia ao crime. Parece bom senso. Não é. Apologia ao crime é dos argumentos mais perigosos que se pode levantar contra a opinião de alguém. Há quem defenda o livre fumo de maconha. É crime. O aborto tem defensores. Igualmente crime. Defende-se a ocupação de propriedade privada por quem precisa de moradia e não a tem. Crimes todos. As duas primeiras defesas não costumam incomodar quem é liberal ou de esquerda. A última raramente perturba a esquerda. Considerar alguns crimes defensáveis ou não tem a ver com ideologia, não com o que é razoável. Nossa ideologia, claro, sempre nos parece razoável. O inferno são os outros.

Há um excelente argumento para permitir que Sheherazade fale, por mais desagradáveis que possam ser suas opiniões. Ela representa um pedaço do Brasil. Basta passar os olhos pelas discussões na rede. Um bom naco dos brasileiros vai para além do conservadorismo: é reacionário. Talvez seja aquele quarto da população que, segundo o Ipea, considera que a roupa da mulher justifica o estupro. Seus representantes talvez sejam os que defendem abertamente os justiceiros ou fazem justiçamentos. Este é um pedaço do Brasil. Se calamos uma voz que “os compreende”, desligamos um alerta. Sem este alerta, desaparecem as vozes e os argumentos contra.

Thomas Jefferson, cuja data de nascimento foi celebrada domingo, disse que “a liberdade de expressão não pode ser limitada sem ser perdida”. Os EUA, país que ajudou a fundar, têm a legislação mais incisiva na defesa da livre expressão. Não quer dizer que seja absoluta. Mas que, antes de punir o discurso, pesam se vale o risco. Porque, a não ser que os critérios para punir o discurso sejam extremamente rigorosos, fica fácil demais. E a censura se estabelece.

Incitação ao crime é critério para punir a fala. Mas é preciso provar que um crime ocorreu causado por ela. Uma coisa é desejar a morte de alguém numa conversa de bar. Outra é clamar pela morte da pessoa, em frente a sua casa, perante uma turba em fúria. Não se pune a mensagem. Punem-se os efeitos concretos da mensagem.

Pode não parecer intuitivo, mas é só quando garantimos o livre discurso dos mais radicais em uma sociedade, à direita e à esquerda, que realmente expomos seus vícios. Só assim somos realmente livres. A internet é uma máquina de livre expressão. Que seja amplamente usada.

terça-feira, 15 de abril de 2014

História do Brasil: de golpes em golpes, com alguns intervalos de democracia

Golpes

Roberto Romano

Estado e golpes de Estado integram um só bloco histórico e teórico. Desde Richelieu a máquina política sofre correções para operar continuamente. Os golpes bem-sucedidos mudam a instituição sem tropas nas ruas. Os que não conseguem tal feito usam a violência e geram a desconfiança dos governados. Golpes brancos deixam traços invisíveis na vida dos povos, os sangrentos marcam a memória das gentes. A Noite de São Bartolomeu, um golpe de Estado, soma-se às odiosas quarteladas. Mas todos os golpistas lembram Charon: "É preciso agir antes dos que desejam nos surpreender!". Se existe Estado, o golpe é iminente. Quando Napoleão anunciou o seu, alguém questionou: "E a Constituição?". Resposta: "A Constituição é invocada por todas as facções e desprezada por todas. Ela não serve mais como instrumento de salvação, pois ninguém a respeita".

Segundo Gabriel Naudé, os golpes definem "atos extraordinários que os príncipes são constrangidos a executar contra o direito comum, quando os negócios se tornam difíceis ou desesperados, sem observar nenhuma ordem ou forma de justiça" (Considerações Políticas sobre os Golpes de Estado, 1640). Golpes invertem o direito, a economia, os valores. Neles "a tempestade cai antes dos trovões, a execução precede a sentença, (...) um indivíduo recebe o golpe que imaginava dar, outro morre quando se imaginava seguro, um terceiro recebe o golpe que não esperava". O governante que perdeu é punido e depois sentenciado pelos vencedores. A repugnância contra a truculência golpista faz os seus agentes usarem a dissimulação, até mesmo para indicar o nome da coisa.

Foi o que ocorreu com o Ato Institucional n.º 1 (AI-1). Aposentadas as noções de legitimidade e de soberania vigentes, o texto proclama: "A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. (...) Ela edita normas jurídicas sem que nisto esteja limitada pela normatividade anterior à sua vitória".

Já devíamos a Francisco Campos, inspirador ou mesmo coautor do AI-1, a "Polaca" de 1937. Ele conhecia bem os enunciados do jurista Carl Schmitt. O autor de A Ditadura, das Origens da Ideia Moderna de Soberania à Luta de Classes Proletárias (1921) expõe a lógica do golpe. É dele a fórmula do golpismo: "Soberano é quem decide sobre o estado de exceção". Crítico dos Parlamentos, ele acentua o poder do presidente, posto acima da legalidade. O importante, nos textos de Schmitt que se refletem em 1964, encontra-se na defesa da exceção, supostamente mais realista do que a regra defendida pelos liberais. A ditadura, remédio para as convulsões políticas, não precisa da antiga legitimidade. Dada a crise geral, as instituições jurídicas estabelecidas não garantiriam o Estado. Sem as urnas, os atores do golpe invocam a exceção no AI-1: "A revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma".

Logo, o próprio Parlamento e a ordem jurídico-política recebem sua razão de ser do novo soberano. São deduzidas, assim, como crimes de lesa-majestade, as cassações de parlamentares e catedráticos, a censura, etc. 1964 foi uma evidente usurpação da soberania popular. E os golpes imperaram ao longo do regime. Os atos institucionais, do AI-1 ao AI-5, foram impostos sob a égide de lideranças civis, corporações jurídicas, oligarquias regionais e mesmo da CNBB, que apoiou a ditadura.

1964 não foi excepcional na História brasileira. Desde o início de nosso Estado tivemos muitos golpes. Lembremos o de Pedro I ao fechar o Parlamento, o dos militares que derrubam a monarquia, o de Getúlio Vargas que instalou uma ditadura feroz. Após a morte de Vargas o Brasil sofreu façanhas golpistas com o veto à posse de Juscelino Kubitschek, o contragolpe do marechal Lott, o levante de Aragarças, a tentativa de golpe de Jânio Quadros, o golpe militar e civil de 1961 contra Jango, o que levou ao parlamentarismo. Após 1964 houve o golpe dentro do golpe no AI-5, o golpe de Abril, etc. Findo o regime, que outra coisa foi a transformação esperta do Congresso, acrescido de outros integrantes, em Constituinte, senão golpe? Afastada a tese de uma Assembleia Nacional exclusiva, nobiliarcas da ditadura ajudaram a redigir uma Constituição sincrética que hoje, dadas as inúmeras emendas, é desprovida de coesão interna.

A Constituição vigente prevê remédios contra o golpe de Estado, mezinhas jurídicas que não impedem o exercício reiterado da usurpação política. O artigo 49, incisos IV e XI, evidenciam o receio em face dos possíveis golpes: cabe ao Congresso Nacional "aprovar o estado de defesa e a intervenção federal, autorizar o estado de sítio, ou suspender qualquer uma dessas medidas" (IV) e "zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes" (XI).

Excelente princípio, mas ineficaz na prática. Suportamos reiterados golpes com as medidas provisórias, que deveriam ser exceção, mas se transformaram em regra para o Executivo legislar. Que outra coisa temos, em normas eleitorais, senão golpes do Judiciário, que legisla sem reação do Congresso? É por tal motivo que o liberal Benjamin Constant imaginou o Poder Moderador, cujo papel seria neutro para evitar os golpes cometidos pelos três Poderes. Por um golpe, na Constituição de 1824 foi distorcida a ideia de Constant, colocando-se o Moderador acima dos demais. Daí, uma das raízes absolutistas da chefia do Estado brasileiro, a mazela do nosso presidencialismo, gigante com pés de barro, fonte de golpes e contragolpes, todos em detrimento da soberania popular.

A única prevenção contra as ditaduras é a vigilância cidadã, exercida sobre todas as facções que disputam os palácios.

ROBERTO ROMANO, PROFESSOR DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS, É AUTOR DE 'O CALDEIRÃO DE MEDEIA' (PERSPECTIVA)

Fonte: O Estado de S.Paulo, 13/04/2014

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Pela permanência no poder, PT enquadra IBGE e suspende divulgação de dados sobre desemprego médio no país


O Estado de S.Paulo

A suspensão, pela diretoria do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), da divulgação dos resultados trimestrais da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) - que apresenta a situação do mercado de trabalho no País - deixa claro que, se for necessário para evitar que informações eventualmente negativas sobre o desempenho da economia causem danos à candidatura da presidente Dilma Rousseff à reeleição, o governo do PT não hesitará um segundo para intervir em qualquer órgão público. Nem mesmo instituições como o IBGE, que construíram ao longo dos anos uma reputação reconhecida internacionalmente pela qualidade e isenção de seu trabalho e produzem informações essenciais para a formulação de políticas públicas e para decisões das empresas privadas e das famílias, escapam da volúpia petista pela permanência no poder.

A revolta do corpo técnico da Diretoria de Pesquisas da instituição, responsável pela produção dos principais indicadores por ela divulgados regulamente, não deixa dúvidas quanto ao caráter político da decisão. A diretora Marcia Quintslr, que se opunha à interrupção da divulgação dos resultados, demitiu-se do cargo que ocupava desde 2011 tão logo a suspensão foi anunciada. Em nota, coordenadores e gerentes estratégicos da Diretoria de Pesquisas disseram ser "insustentável" sua permanência nos cargos caso a suspensão seja mantida.

A constatação, pela Pnad Contínua, de que o desemprego médio no País em 2013 foi de 7,1% deve ter provocado grande irritação entre os membros do governo que acumulam a função de organizadores da campanha eleitoral de Dilma. Eles estavam acostumados a outro indicador, a Pesquisa Mensal de Emprego (PME) também aferida pelo IBGE, que tem apontado para um desemprego em torno de 5% - número que certamente tem impacto eleitoral muito mais favorável para a candidatura oficial do que o da Pnad Contínua.

São, porém, pesquisas diferentes, baseadas em metodologias e critérios diferentes e com abrangências igualmente diferentes (a PME limita-se a seis regiões metropolitanas; a Pnad Contínua tem alcance nacional), daí a discrepância de seus resultados num determinado momento.

Ao anunciar a suspensão da divulgação dos resultados trimestrais da Pnad em 2014 - a próxima estava marcada para o dia 27 de maio - e o reinício dos anúncios em janeiro de 2015, quando o vencedor da eleição presidencial já tiver tomado posse, a diretoria do IBGE tentou justificá-la com argumentos técnicos. Entre outros, a direção do instituto alegou, em comunicado, que a suspensão é necessária para eliminar da pesquisa dúvidas e questionamentos, entre os quais a respeito de renda domiciliar per capita, que será utilizada para definir as quotas de Estados e municípios nos respectivos fundos de participação em tributos federais.

Os técnicos da Diretoria de Pesquisas consideraram "inaceitável" essa alegação e também a decisão de refazer o calendário de divulgação dos resultados da Pnad Contínua. Documentos técnicos publicados pelo IBGE e declarações da presidente da instituição, Wasmália Bivar, à imprensa mostraram que há tempos a metodologia da pesquisa não precisa mais ser revista ou testada.

A metodologia é utilizada desde 2006 e a Pnad Contínua começou a ser realizada em caráter excepcional em outubro de 2011, em pelo menos 20 regiões metropolitanas, além de cinco capitais estaduais e no Distrito Federal. Em janeiro de 2012, foi estendida para todo o território nacional e, de acordo com as Notas Metodológicas publicadas pelo IBGE no início deste ano, desde então faz parte do conjunto de pesquisas do instituto.

Em setembro do ano passado, em entrevista ao jornal Brasil Econômico, a presidente do IBGE afirmou que, "quando começarmos a produzir, teremos que divulgar um cronograma e não poderemos parar". O cronograma foi amplamente anunciado no início deste ano (os dois primeiros resultados foram divulgados na data prevista), mas, por alguma razão, Wasmália e outros diretores do IBGE decidiram suspender a divulgação. Não foi por razões técnicas.

Fonte: O Estado de São Paulo, 13/04/2014

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Integrante da luta armada afirma que muitos de seus companheiros até hoje não assumem que lutavam para impor uma ditadura de esquerda

Ex-guerrilheira faz autocrítica sobre sua participação na luta armada
Em destaque:

A luta armada foi a estratégia certa? Você faria tudo de novo?", pergunto-lhe.
Com a cabeça que tenho hoje, não. Terminamos derrotados, muitos de nós perderam a vida por nada", diz ela. 
Até hoje não fizeram a reflexão de que pregávamos uma ditadura de esquerda - que são terríveis. Muitos não queriam ver as denúncias que vinham da União Soviética sobre perseguições e mortes."
Foi esta reflexão sobre o comunismo que lhe inspirou a escrever o livro Um Cadáver ao Sol, que relata, segundo ela, como a ditadura comunista pode conduzir à "autodestruição".
A democracia ainda é o caminho para construir vielas de idealização. Pode não ser perfeito, mas é a melhor forma de governo".
'Muitos perderam a vida por nada', diz ex-guerrilheira que esteve presa com Dilma

Horas depois de ser presa e torturada na sede carioca do DOI-CODI, um dos órgãos de repressão mais temidos da ditadura, a jornalista Iza Salles conheceu um anjo em forma de monstro.

Após uma noite inteira de choques elétricos, ela foi deixada sobre um colchão cheio de buracos e percevejos na sala de tortura porque já não havia lugar nas outras celas.

Quando tentava pegar no sono, ouviu passos no escuro vindo do corredor. Certa de que não escaparia de um estupro ou da morte, fechou os olhos e começou a rezar.

Foi quando um soldado alto, de feições "amedrontadoras" – com manchas escuras por todo o rosto - se aproximou e lhe pediu seu cinto.

Apavorada, ela obedeceu, sem entender de imediato que, ao se apoderar do acessório, aquele soldado com "cara de monstro" queria evitar que ela tentasse se enforcar em um momento de desespero.

Ainda com a respiração ofegante, Iza ouviu o homem dizer "calma, calma". E essa palavra foi repetida pelo mesmo soldado todas as vezes em que ele se aproximou dela naquela noite fria de junho de 1970.

São lembranças como essa que Iza tenta se apegar para não sofrer demais quando se recorda dos sete meses em que ficou presa no Rio de Janeiro e em São Paulo.

Ela diz que conceder a entrevista à BBC Brasil lhe obrigou a fazer uma viagem difícil.

"Durante muito tempo evitei pensar nesse período porque dói muito. E hoje, com a idade, fico emocionada", diz ela pelo telefone com a voz embargada.

Ana, Maria, Darci

Atualmente com 75 anos, Iza Salles foi integrante, no final dos anos 60, da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), um grupo de guerrilha de extrema-esquerda que tinha como um de seus comandantes o capitão do Exército Carlos Lamarca, que desertara.

O grupo realizou assaltos a bancos para financiar suas ações e montou um foco guerrilheiro na região do Vale do Ribeira, no Estado de São Paulo. Também esteve por trás do sequestro do embaixador suíço Giovanni Bucher no Rio de Janeiro, em 1970, que foi "trocado" pela libertação de 70 presos políticos.

A jornalista era do setor de inteligência da VPR. Editora do Segundo Caderno do jornal Diário de Notícias, ela ficava encarregada de passar à guerrilha informações de bastidores sobre o governo militar.

E se envolvia em ações mais arriscadas, como transportar dirigentes importantes da guerrilha do Rio para São Paulo. Entre 1967 e 1970, atendia pelos codinomes de Ana, Maria e Darci.
'Tarefas' de Paris

Seu interesse por política começou ainda no governo João Goulart, quando participava de manifestações e reuniões estudantis. Mas foi a partir de 1966, quando ganhou uma bolsa para estudar na Universidade de Sorbonne, na França, que passou a ter um envolvimento direto com a resistência à ditadura.

Em Paris, ela frequentava reuniões organizadas por exilados para debater planos para derrubar os militares. Um desses exilados era José Maria Crispim, militante comunista e deputado da Assembleia Constituinte em 1946. Crispim promovia encontros entre exilados e estudantes brasileiros que, posteriormente, retornavam ao Brasil com "tarefas".

"A gente voltava carregando na mala mensagens cifradas para companheiros e, principalmente, manifestos", relembra.

Iza voltou ao Brasil no final de 67 como membro do Movimento Nacionalista Revolucionário, fundado por sargentos rebelados, e que depois se transformou na VPR.

No início de 1970, o cerco começou a se fechar. Alguns de seus companheiros começavam a faltar a encontros marcados nos "pontos" clandestinos, sinal de que haviam "caído".

Em uma dessas ocasiões, ela recebeu um recado para "desaparecer" e entrar na clandestinidade. A partir daí, viveu escondida na casa de amigos até que decidiu fugir do país. Marcou uma passagem para a França, em 23 de junho, mesmo dia em que a seleção tricampeã voltaria do México.

Sua esperança era de que passaria despercebida pelos militares diante da euforia pela chegada dos jogadores. Ledo engano. Assim que saiu do campo de visão de sua família, que compareceu em peso ao Galeão para protegê-la, sentiu seus pés suspensos no ar.

"Dois brutamontes" pegaram-na pelos braços e, jogada no banco de trás de um carro, foi conduzida à sede do DOI-CODI, na rua Barão de Mesquita, zona norte do Rio.

Transferida um dia depois para a Vila Militar, em Deodoro, zona Oeste da cidade, ela saiu da cela pela primeira vez em 18 de julho, dia de seu aniversário, quando ganhou "de presente" um banho de sol.

Poucas semanas depois, a jornalista foi levada para São Paulo, onde respondia a um processo por ter levado um dirigente da VPR ao Estado.

Torre das donzelas

Iza Salles foi detida junto com
a então guerrilheira Dilma Rousseff
Na "Torre das Donzelas" do Presídio Tiradentes, hoje demolido, Iza ficou detida com dezenas de outras presas políticas, entre elas a presidente Dilma Rousseff.

"Lembro que ela ficava sempre muito recolhida, triste. Das (militantes) que estavam ali, ela era a presidente improvável, não se destacava ou mostrava liderança".

Iza e as companheiras passavam o tempo fazendo tricô ou jogando vôlei "para descarregar a raiva". Ao contrário do que se poderia imaginar dos carcereiros, muitos eram "generosos" e jogavam balas pelas grades das celas ou colocavam música alto do lado de fora para que as presas ouvissem.

A liberdade - que em seus sonhos na prisão caía do céu em forma de bombom de chocolate - só viria no final de 70.

A partir daí ela abandonou a luta armada e passou a optar por uma militância mais "consequente", passando a colaborar com os jornais de resistência Opinião e O Pasquim - tendo sido a única jornalista mulher a editar este último.

"Foi a única forma de continuar na luta", diz Iza, que no Pasquim, assinava como Iza Freaza.

Junto com Jaguar, Ziraldo, entre outros, ela comandou algumas das entrevistas mais célebres do semanário, entre as quais a do ex-presidente Jânio Quadros.

Revendo a luta armada

Em 1977, ela partiu para uma segunda temporada de estudos na França. A anistia parcial, dois anos depois, não foi suficiente para trazê-la de volta, o que aconteceria somente em 1984.

"A luta armada foi a estratégia certa? Você faria tudo de novo?", pergunto-lhe.

"Com a cabeça que tenho hoje, não. Terminamos derrotados, muitos de nós perderam a vida por nada", diz ela.

"Até hoje não fizeram a reflexão de que pregávamos uma ditadura de esquerda - que são terríveis. Muitos não queriam ver as denúncias que vinham da União Soviética sobre perseguições e mortes."

Foi esta reflexão sobre o comunismo que lhe inspirou a escrever o livro Um Cadáver ao Sol, que relata, segundo ela, como a ditadura comunista pode conduzir à "autodestruição".

"A democracia ainda é o caminho para construir vielas de idealização. Pode não ser perfeito, mas é a melhor forma de governo".

Fonte: Fernanda Nidecker, da BBC Brasil em Londres, 01/04/2014

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Bom testemunho para entender o que aconteceu em 64

Em outubro de 1965, militares deixaram claro
que não iriam devolver o poder aos civis

1964: um testemunho

Fernão Lara Mesquita

Para entender o que aconteceu em 64 é preciso lembrar o que era o mundo naquela época.

Um total de 30 países, parando na metade da Alemanha de hoje, havia sido engolido pela Rússia comunista por força militar. Invasão mesmo, que instalava um ditador que atuava sob ordens diretas de Moscou. Todos os que tentaram escapar, como a Hungria em 56, a Checoslováquia em 68, a Polônia em 80 e outros, sofreram novas invasões e massacres.

E tinha mais a China, o Vietnã, o Camboja, a Coreia do Norte, etc., na Ásia, onde houve verdadeiros genocídios. Na África era Cuba que fazia o papel que os russos fizeram na Europa, invadindo países e instalando ditadores no poder.

As ditaduras comunistas, todas elas, fuzilavam sumariamente quem falasse contra esses ditadores. Não era preciso agir, bastava falar para morrer, ou nem isso. No Camboja um quarto de toda a população foi executado pelo ditador Pol Pot entre 1975 e 1979, sob os aplausos da esquerda internacional e da brasileira.

Os países onde não havia ditaduras como essas viviam sob ataques de grupos terroristas que as apoiavam e assassinavam e mutilavam pessoas a esmo detonando bombas em lugares públicos ou fuzilando gente desarmada nas ruas.

As correntes mais radicais da esquerda brasileira treinavam guerrilheiros em Cuba desde antes de 1964. Quando João Goulart subiu ao poder com a renúncia de Jânio Quadros, passaram a declarar abertamente que era nesse clube que queriam enfiar o Brasil.

64 foi um golpe de civis e militares brasileiros que lutaram na 2.ª Guerra Mundial e derrubaram a ditadura de Getúlio Vargas, para impedir que o ex-ministro do Trabalho de Vargas levasse o País para onde ele estava prometendo levá-lo, apesar de se ter tornado presidente por acaso. Tratava-se portanto, de evitar que o Brasil entrasse num funil do qual não havia volta, e por isso tanta gente boa entrou nessa luta e a maioria esmagadora do povo, na época, a apoiou.

A proposta do primeiro governo militar era só limpar a área da mistura de corrupção com ideologia que, aproveitando-se das liberdades democráticas, armava um golpe de dentro do sistema para extingui-las de uma vez por todas, e convocar novas eleições para devolver o poder aos civis.

Até outubro de 65, um ano e meio depois do golpe, seguindo o combinado, os militares tinham-se limitado a cassar o direito de eleger e de ser eleito, por dez anos, de 289 pessoas, incluindo 5 governadores, 11 prefeitos e 51 deputados acusados de corrupção mais que de esquerdismo.

Ninguém tinha sido preso, ninguém tinha sido fuzilado, ninguém tinha sido torturado. Os partidos políticos estavam funcionando, o Congresso estava aberto e houve eleições livres para governador e as presidenciais estavam marcadas para a data em que deveria terminar o mandato de Jânio Quadros.

O quadro só começou a mudar quando em outubro de 65, diante do resultado da eleição para governadores, o Ato Institucional n.º 2 (AI-2) extinguiu partidos, interferiu no Judiciário e tornou indireta a eleição para presidente. Foi nesse momento que o jornal O Estado de S. Paulo, que até então os apoiara, rompeu com os militares e passou a combatê-los.

Tudo isso aconteceu praticamente dentro de minha casa, porque meu pai, Ruy Mesquita, era um dos principais conspiradores civis, fato de que tenho o maior orgulho.

Antes mesmo da edição do AI-2, porém, a esquerda armada já havia matado dois: um civil, com uma bomba no Cine Bruni, no Rio, que feriu mais um monte de gente; e um militar numa emboscada no Paraná. E continuou matando depois dele.

Ainda assim, a barra só iria pesar mesmo a partir de dezembro de 68, com a edição do AI-5. Aí é que começaria a guerra. Mas os militares só aceitaram essa guerra depois do 19.º assassinato cometido pela esquerda armada.

Foi a esquerda armada, portanto, que deu o pretexto para a chamada "linha dura" militar tomar o poder e a ditadura durar 21 anos, tempo mais que suficiente para os trogloditas de ambos os lados começarem a gostar do que faziam quando puxavam gatilhos, acendiam pavios ou aplicavam choques elétricos.

A guerra é sempre o paraíso dos tarados e dos psicopatas e aqui não foi diferente.

No cômputo final, a esquerda armada matou 119 pessoas, a maioria das quais desarmada e que nada tinha que ver com a guerra dela; e os militares mataram 429 "guerrilheiros", segundo a esquerda, 362 "terroristas", segundo os próprios militares. O número e as qualificações verdadeiras devem estar em algum lugar no meio dessas diferenças.

Uma boa parte dos que caíram morreu atirando, de armas na mão; outra parte morreu na tortura, assassinada ou no fogo cruzado.

Está certo: não deveria morrer ninguém depois de rendido, e morreu. E assim como morreram culpados de crimes de sangue, morreram inocentes. Eu mesmo tive vários deles escondidos em nossa casa, até no meu quarto de dormir, e já jornalista contribuí para resgatar outros tantos. Mas isso é o que acontece em toda guerra, porque guerra é, exatamente, a suspensão completa da racionalidade e do respeito à dignidade humana.

O total de mortos pelos militares ao longo de todos aqueles 21 "anos de chumbo" corresponde mais ou menos ao que morre assassinado em pouco mais de dois dias e meio neste nosso Brasil "democrático" e "pacificado" de hoje, onde se matam 50 mil por ano.

Há, por enquanto, 40.300 pessoas vivendo de indenizações por conta do que elas ou seus parentes sofreram na ditadura, todas do lado da esquerda. Nenhum dos parentes dos 119 mortos pela esquerda armada, nem das centenas de feridos, recebeu nada desses R$ 3,4 bilhões que o Estado andou distribuindo.

Enfim, esse é o resumo dos fatos nas quantidades e na ordem exatas em que aconteceram, do que dou fé porque estava lá. E deixo registrado para os leitores que não viveram aqueles tempos compararem com o que andam vendo e ouvindo por aí e tirarem suas próprias conclusões sobre quanto desse barulho todo corresponde a sentimentos e intenções honestas.

Fonte: Estado de São Paulo, 07/04/2014, Fernão Lara Mesquita é jornalista. Escreve em www.vespeiro.com.

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