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Quando Deus era mulher:

sociedades mais pacíficas e participativas

Aserá,

a esposa de Deus que foi apagada da História

quarta-feira, 28 de maio de 2014

O liberal Isaiah Berlin analisa o teólogo e filósofo alemão Johann Georg Hamann, inimigo mortal do Iluminismo e ardoroso porta-voz do irracionalismo

O mago do Norte

Isaiah Berlin recopilou textos do teólogo e filósofo alemão Johann Georg Hamann, inimigo mortal da Ilustração e porta-voz do irracionalismo. O resultado é uma festa das ideias

por Mario Vargas Llosa

Isaiah Berlin foi um democrata e um liberal, um desses raros intelectuais tolerantes, capazes de reconhecer que suas próprias convicções podiam estar erradas, e acertadas as de seus adversários ideológicos. E a melhor prova desse espírito aberto e sensível, que contrastava sempre suas ideias com a realidade para ver se as confirmava ou contradizia, ele deu ao dedicar seus maiores empenhos intelectuais a estudar nem tanto os filósofos e pensadores afins à cultura da liberdade, mas sim os seus mais inflamados inimigos, como um Karl Marx ou um Joseph de Maistre, aos quais dedicou ensaios admiráveis por seu rigor e ponderação. Tinha a paixão do saber e, quanto aos que promoviam as coisas que ele detestava, como o autoritarismo, o racismo, o dogmatismo e a violência, antes de refutá-los queria entendê-los, averiguar como e por que haviam chegado a defender causas e doutrinas que agravavam a injustiça, a barbárie e os sofrimentos humanos.

Um bom exemplo de tudo isso é o volume intitulado The Magus of the North. J.G. Hamann and the Origins of Modern Irrationalism (1993), coleção de notas e ensaios que Berlin não chegou a integrar num livro orgânico e que foram recolhidas e prefaciadas por Henry Hardy, seu discípulo, a quem nunca poderemos agradecer suficientemente por seu extraordinário trabalho de rastreamento e edição das dezenas de trabalhos que Isaiah Berlin, por seu escasso interesse em publicar e por seu maníaco perfeccionismo, deixou dispersos em revistas acadêmicas ou inéditos. Eu acreditava ter lido todos os trabalhos do grande pensador liberal, mas este me havia escapado e acabo de fazê-lo, com o mesmo absorvente prazer que tudo o que ele escreveu.

O extraordinário dessas notas, artigos e esboços de ensaios que Berlin ao longo de sua vida dedicou ao teólogo e filósofo alemão Johann Georg Hamann (1730-1788), inimigo mortal do Iluminismo e ardoroso porta-voz do irracionalismo, é que, através deles, esse reacionário convicto e confesso aparece como uma figura simpática e em muitos sentidos até moderna. Sua defesa da sem-razão – as paixões, o instinto, o sexo, os abismos da personalidade – como parte integral do humano e sua ideia de que todo sistema filosófico exclusivamente racionalista e abstrato constitui uma mutilação da realidade e da vida são perfeitamente válidas, e suas audazes teorias, por exemplo sobre o sexo e a linguística, de certa forma prefiguram algumas das posições libertárias e anárquicas mais radicais, como as de um Michel Foucault. Do mesmo modo, é profética sua denúncia de que, se seguisse pelo caminho que havia tomado, a filosofia do futuro naufragaria em um obscurantismo indecifrável, máscara do vazio e da inanidade, que a poria fora do alcance do leitor comum.

Onde essas coincidências cessam é nessa encruzilhada onde aparece Deus, a quem Hamann subordina tudo o que existe e que é, para o místico germânico, a justificação e explicação única e final da história social e dos destinos individuais. Seu rechaço às generalizações e ao abstrato e sua defesa do particular e do concreto fizeram dele um porta-estandarte do individualismo e um inimigo mortal do coletivo como categoria social e signo de identidade. Nesse sentido foi por um lado, diz Berlin, um precursor do romantismo e do que dois séculos mais tarde seria o existencialismo (sobretudo na versão católica de um Gabriel Marcel), mas, do outro, um dos fundadores do nacionalismo e, inclusive, assim como Joseph de Maistre, do fascismo.

Hamann nasceu em Königsberg [atual Kaliningrado], filho de um barbeiro cirurgião, no seio de uma família pietista luterana, e sua infância transcorreu em um meio de gente religiosa e estoica, cujos antepassados desconfiavam dos livros e da vida intelectual; ele, entretanto, foi um leitor voraz e deu um jeito de entrar na universidade, onde adquiriu uma formação múltipla e algo extravagante em história, geografia, matemática, hebraico e teologia, ao mesmo tempo em que por conta própria aprendia francês e escrevia poemas. Começou a ganhar a vida como tutor dos filhos da próspera burguesia local e, durante algum tempo, pareceu conquistado pelas ideias que vinham da França de Voltaire e Montesquieu. Mas, não muito depois, durante uma estadia em Londres vinculada a uma misteriosa conspiração política, e após alguns meses de dissipação e excessos que o levaram à ruína, experimentou a crise que mudaria sua vida.

Ocorreu em 1757. Mergulhado na miséria, isolado do mundo, sepultou-se no estudo da Bíblia, convencido, como Lutero, conforme escreveria mais tarde, de que o livro sagrado do cristianismo era “uma alegoria da história secreta da alma de cada indivíduo”. Emergiu dessa experiência transformado no conservador e reacionário briguento e solitário que, em panfletos polêmicos que se sucediam como socos, criticaria com ferocidade todas as manifestações da modernidade, onde quer que aparecessem: na ciência, nos costumes, na vida política, na filosofia e, sobretudo, na religião. Tinha retornado, e com zelo ardente, ao protestantismo luterano de seus ancestrais. Arrumou adversários e inimigos a torto e a direito, devido ao seu caráter intratável. Estava acostumado, inclusive, a se inimizar com gente que o respeitava e queria ajudá-lo, como Kant, leitor dele e que tentou lhe conseguir um cargo na Universidade. Sobre ele disse que “era um homúnculo agradável para fofocar por um momento, mas totalmente cego perante a verdade”. Por Herder, que foi seu admirador confesso e se considerava seu discípulo, nunca teve o menor apreço intelectual. Não é estranho, por isso, que sua vida tenha transcorrido quase no anonimato, com poucos leitores, e que fosse extremamente austera, devido aos obscuros empregos burocráticos com os quais ganhava seu sustento.

Depois de morto, o Mago do Norte, como Hamann gostava de chamar a si mesmo, foi logo esquecido pelo escasso círculo que conhecia sua obra. Isaiah Berlin se pergunta: “O que há nele que mereça ser ressuscitado em nossos dias?”. A resposta dá lugar ao melhor capítulo do seu livro: “The Central Core” (“O núcleo central”). O verdadeiramente original em Hamann, explica, é sua concepção da natureza do homem, nos antípodas da visão otimista e racional que a respeito dela promoveram os enciclopedistas e filósofos franceses do Iluminismo. A criatura humana é uma criação divina e, portanto, soberana e única, que não pode ser dissolvida em uma coletividade, como fazem os que inventam teorias (“ficções”, segundo Hamann) sobre a evolução da história rumo a um futuro de progresso, em que a ciência iria desterrando a ignorância e abolindo as injustiças. Os seres humanos são diferentes, e também os seus destinos; e sua maior fonte de sabedoria não é a razão nem o conhecimento científico, e sim a experiência, a soma de vivências que acumulam ao longo da sua existência. Nesse sentido, os pensadores e acadêmicos do século XVIII pareciam-lhe autênticos “pagãos”, mais afastados de Deus que “os ladrões, mendigos, criminosos e vagabundos” – os seres de vida “irregular” –, que, pela instabilidade e os tumultos da sua arriscada existência, podiam muitas vezes se aproximar de maneira mais funda e direta da transcendência divina.

Era um puritano e, entretanto, em matéria sexual propugnava ideias que escandalizaram todos os seus contemporâneos. “Por que um sentimento de vergonha ronda nossos gloriosos órgãos da reprodução?”, perguntava-se. A seu ver, tentar domesticar as paixões sexuais debilitava a espontaneidade e o gênio humano e, por isso, quem queria se conhecer a fundo devia explorar tudo, e, inclusive, “descer ao abismo das orgias de Baco e Ceres”. Entretanto, quem nesse domínio se mostrava tão aberto em outro sustentava que a única maneira de garantir a ordem era mediante uma autoridade vertical e absoluta que defendesse o indivíduo, a família e a religião como instituições tutelares e intangíveis da sociedade.

Embora esse livro de Isaiah Berlin seja um amálgama de textos, padeça de repetições e dê às vezes a impressão de haver muitos vazios que ficaram por preencher, é lido com o interesse que ele sabia imprimir a todos os seus ensaios, os quais sempre convertia, não importa do que tratassem, em uma festa das ideias.

Fonte: El País, 17/05/2014

terça-feira, 27 de maio de 2014

O verdadeiro embate dos dias de hoje é entre empreendedores e burocratas

Marcos Troyjo
Bom texto do economista e cientista social Marcos Troyjo sobre a questão "crescimento-desigualdade" que anda bombando sobretudo devido ao lançamento do livro do economista francês Thomas Piketty intitulado "Capital no Século 21". Destaco:


A principal tensão do mundo contemporâneo não advém do conflito distributivo entre capital e trabalho. O cabo de guerra é entre empreendedores e burocratas, seja na forma da grossa camada de gestores cujo intuito é a autopreservação ou nas inúmeras esferas estatais que esclerosam o dinamismo econômico.
Socialismo para milionários

Pego emprestado título de um livro de Bernard Shaw para esta coluna. A frase é perfeita para descrever o atual frenesi em torno da dualidade "crescimento-desigualdade".

Duas investidas recentes acirram o debate. A primeira é o Índice de Progresso Social (IPS), que busca aferir o desenvolvimento relativo dos países sem utilizar o referencial do PIB. A segunda, a acalorada recepção ao "Capital no Século 21", de Thomas Piketty.

A repercussão de ambos é multiplicada, na Europa e nos EUA, pelos traumas não curados da Grande Recessão –sobretudo as elevadas taxas de desemprego.

Tanto o IPS quanto o "Capital" de Piketty apontam para a prevalência do investimento social "para além do crescimento da economia". Convidam a retomar a questão da moralidade do capitalismo. Repisam (sobretudo em Piketty) a desproporção nas remunerações a capital e trabalho como principal obstáculo ao bem-estar social.

De acordo com esses apontamentos, a desigualdade, mal maior do capitalismo, poderia remediar-se com maior carga tributária e mais investimentos "no social".

Sem entrar demais nos altos e baixos do IPS ou de Piketty, minha percepção é que ambos devem interessar mais a países avançados do que a nações em desenvolvimento. É papo para ricos.

Dos países que ocupam as 20 primeiras posições do IPS (em que supostamente o PIB não conta), todos apresentam renda per capita anual superior a US$ 30 mil. Ainda assim, mesmo para os que já se desgarraram da armadilha da renda média, como sustentar amplo acesso a educação e saúde pública sem crescimento ao longo do tempo?

Nesse contexto, o atual debate sobre desigualdade reflete a binária consideração de "crescimento" ou "austeridade" como alternativas para países em crise de dívida soberana, caso da Europa mediterrânea em 2011.

Há mérito na crítica à inércia patrimonialista no Ocidente. As soluções tributário-distributivistas apontadas por Piketty, contudo, não tratam de questão –importante o suficiente para os ricos– e absolutamente essencial para países em desenvolvimento. Que padrão de economia política adotar para, ao final do dia, gerar excedentes que custeiem os trampolins sociais?

Decepciona, em Piketty, não ver referência a "empreendedorismo", "competitividade", "start-ups", "papel da inovação", ou à "destruição criativa" de Schumpeter.

A principal tensão do mundo contemporâneo não advém do conflito distributivo entre capital e trabalho. O cabo de guerra é entre empreendedores e burocratas, seja na forma da grossa camada de gestores cujo intuito é a autopreservação ou nas inúmeras esferas estatais que esclerosam o dinamismo econômico.

Para países como o Brasil, o grande desafio é encontrar seu próprio modelo de capitalismo competitivo que o permita pagar o preço da civilização.

Deixemos para amanhã manuais de instalação de um "Welfare State 2.0", como o IPS ou o tijolo de Piketty. Concentremo-nos, agora, nas lições de Acemoglu e Robinson em "Por que as Nações Fracassam".

Fonte: Folha de São Paulo, 16/05/2014

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Clipping da semana (19/05 a 23/05)

Se a atual presidente não for reeleita, vai ser bom para a economia, mas, de acordo com Jakobsen, talvez uma vitória da Dilma seja até positivo, pois "o Brasil precisa de uma crise de verdade, com uma magnitude enorme, para ver se toma jeito. E com ela isso irá ocorrer". 

Libertários são pessoas que, a grosso modo, acreditam ser o Estado o grande inimigo da liberdade dos indivíduos e que, portanto, seria melhor a sociedade se autogerir sem a presença dessa instituição. Mas o termo "libertário", cunhado pelo anarquista francês Joseph Déjacques, em meados do século XIX, tem um significado bem mais amplo do que apenas pregar liberdade de mercado e um princípio de não-agressão.

Igualdade perante a lei, igualdade de oportunidades, igualdade de resultados, eis a questão? Talvez simplesmente combater as injustiças seja mais adequado.

O presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), ministro Augusto Nardes, disse nesta quinta-feira (15) que o Brasil vai passar "vergonha" na Copa do Mundo por causa da série de obras inacabadas.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Economista dinamarquês 'detona' governo Dilma e diz que Copa e Olímpiadas foram as piores coisas que o Brasil já decidiu fazer



Economista dinamarquês 'detona' o Brasil e indica melhor investimento para fugir do caos

SÃO PAULO – O economista-chefe e CIO (Chief Investment Officer) do Saxo Bank na Dinamarca, Steen Jakobsen, afirmou que o Brasil vive uma das piores situações políticas possíveis e que o cenário macroeconômico do país está preocupante. "A situação macro do Brasil é a pior dos países que eu já visitei. E eu visito 35 países por ano", disse durante o evento 'Criando Sucesso Operando em Mercados Globais', na última terça-feira (06).

Segundo ele, essa atual situação é culpa do governo Dilma, que resolveu adotar um modelo experimental que "é uma verdadeira festa" e, desde o começo, estava fadado ao fracasso. "O Brasil tem os políticos que merece, porque são vocês, brasileiros, que votam errado e colocam eles lá. A atual presidente, por exemplo, não sabe o que quer e está completamente perdida" , disse Jakobsen. "Além disso, o Banco Central também está perdido e os conflitos aumentam a cada dia. A falta de reformas e as decisões políticas fora do tom deixaram a situação insustentável", completou.

Para o especialista, se as pessoas votarem certo, as coisas irão melhorar em 2015, mas 2014 será mais um ano difícil, afinal, o governo não irá conseguir segurar a inflação, que irá ultrapassar o teto da meta, e nem fazer o país crescer. "O PIB brasileiro crescerá menos que 1% em 2014", afirmou.
Só uma crise de verdade pode nos salvar

Se a atual presidente não for reeleita, vai ser bom para a economia, mas, de acordo com Jakobsen, talvez uma vitória da Dilma seja até positivo, pois "o Brasil precisa de uma crise de verdade, com uma magnitude enorme, para ver se toma jeito. E com ela isso irá ocorrer" . "A ruptura irá ocorrer nas eleições e essa será a oportunidade de o país mudar", disse.

No entanto, o especialista ainda ponderou que talvez nem essa seja a solução, afinal, segundo ele, apesar de a única forma de conseguir mudanças seja por meio do fracasso, "o Brasil é o campeão mundial em fracassos e ainda não mudou".
Onde investir em meio ao caos?

Assim, em meio a todo o caos que o Brasil está vivendo, com intensa volatilidade, crescimento baixo, inflação nas alturas e uma das maiores taxas de juros do mundo, é importante saber onde investir seu dinheiro, afinal, a aversão a risco tomou conta dos mercados brasileiros há muito tempo, visto que a bolsa de valores só anda de lado.

O economista-chefe indicou aos brasileiros, como melhor opção de investimento no momento, a renda fixa, em especial, os títulos públicos do Tesouro Direto. "O brasileiro precisa aproveitar essa taxa de juros altíssima, afinal, pelo menos para alguma coisa ela tem que servir. Por isso, os investidores devem entrar forte em renda fixa e, ao mesmo tempo, ficar bem longe do mercado de equities, afinal, na atual conjuntura ele está muito perigoso" , alertou. "Depois das eleições, se tudo der certo, os brasileiros podem voltar a pensar em bolsa de valores", completou.

Copa do Mundo

Por fim, Jakobsen afirmou que sediar a Copa do Mundo 2014 e as Olimpíadas 2016 foi a pior coisa que o Brasil poderia ter decidido (ou se proposto a) fazer. "O dinheiro que deveria estar indo para lugares extremamente carentes, está indo para coisas inúteis. O Brasil só estará pronto para receber uma Copa do Mundo em 20 ou 30 anos", finalizou o dinamarquês.

Fonte: Uol Economia, 07/05/2014

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Quem disse que o termo libertário tem patente?

O primeiro a definir o termo "libertário" politicamente
O Instituto Ludwig von Mises - Brasil publicou ontem (20/05) um texto, de diversos autores, intitulado Eu sou um genuíno libertário. O texto parece ter um caráter provocativo de tão discutível. E de fato me provocou uma resposta que posto abaixo.

Quem disse que existe apenas uma definição exclusiva para o termo libertário?

Palavras não tem dono, e um mesmo termo pode comportar  várias acepções. Em política, uma mesma designação costuma abranger de fato inúmeras correntes de pensamento que têm - não raro  - apenas um único denominador comum. Portanto, alguém afirmar que ser libertário é respeitar o princípio da não-agressão (PNA) procede. Outros libertários de vertente pacifista haverão de concordar pelo menos em termos. 

Agora, o que não cabe, por uma questão de honestidade intelectual inclusive, é querer reduzir o vocábulo “libertário” somente a defensor do tal PNA. Pior dizer que essa é a versão “genuína e exclusiva” da palavra e até mesmo chamar de sequestradores a seus verdadeiros pais. Pra quem não lembra – ou não sabe – o termo libertário foi cunhado pelo anarquista francês Joseph Déjacques, primeiramente em uma sua carta de 1857, intitulada O Ser Humano, ao também anarquista Pierre-Joseph Proudhon. Nela, Déjacques critica Proudhon veementemente por sua posição contrária aos direitos das mulheres.  Aliás, para quem considera não haver qualquer relação entre o termo libertário e o feminismo, forçoso resgatar onde ele aparece, dentro da carta de Déjacques. Aparece exatamente no parágrafo no qual o autor afirma  que, por sua posição sexista, Proudhon podia ser anarquista moderado, liberal, mas não libertário.
Flogger of woman and absolute serf of man, Proudhon Magnan, you use your words for a lash. Like a slave-driver you seem delighted to disrobe your beautiful victims (on paper) and flagellate them with invectives. Moderate anarchist, liberal, but not libertarian, you want free exchange of cotton and candles and you seek to protect man against woman in the exchange of affectional human passion. You cry against the great barons of capital, and you would rebuild a proud barony of man on vassal-woman. Logician with misfit eyeglasses, you are unable to read the lessons of the present or the past; you can discern nothing that is elevated or at a distance or in the perspective of the future. 


Posteriormente, Déjacques reafirmará a paternidade do termo ao publicar o jornal "Le Libertaire, Journal du Mouvement social" (O Libertário, Jornal do Movimento Social, de 1858 a 1861), em Nova York, onde havia se exilado após a revolução de Paris de 1848. Nesse jornal, ele publicou também, originalmente, sua utopia anarquista chamada Humanisfério (L'Humanisphère, Utopie anarchique). Mais tarde, outro teórico francês do anarquismo, Sébastian Faure (Dor Universal, Doze Provas da Inexistência de Deus), retoma o jornal O Libertário (1895-1914) e os termos “libertário”, “libertarismo” como alternativa aos equivalentes  anarquista/anarquismo, já muito estigmatizados como sinônimos de “desordem”, “desordeiros” (devido a ações terroristas de alguns que se autodenominavam anarquistas).1.

Portanto, desde o berço e por sua longa trajetória a partir de então, a palavra “libertário”, além das lutas sindicalistas, esteve associada também à luta das mulheres, dos negros (Déjacques foi igualmente abolicionista), à liberdade sexual, à liberdade individual, à ecologia (Walden, Life in the Woods, Henry David Thoreau) e à educação para a liberdade. Após os embates sangrentos com os autoritários dos pós-guerras, ela ressurge, nos anos 60 do século passado, por meio dos movimentos da contracultura, da revolução sexual, da política do corpo, do anti-estatismo, do anti-militarismo. A contracultura é filha dileta do anarquismo pacifista (ver, como referência, Do underground brotam flores do mal. Anarquismo e contracultura na imprensa alternativa brasileira).

Assim sendo, não é possível afirmar à luz dos fatos e, aliás, dos dicionários e inclusive do bom senso, que uma pessoa racista, sexista, homofóbica possa, ao mesmo tempo, ser libertária. Não é possível alguém se dizer libertário apenas porque proclama o Estado como inimigo enquanto não se preocupa com as outras instâncias de concentração de poder e de opressão dos indivíduos, como a religião, a família tradicional, a escola, as corporações, etc. Libertários são radicais defensores da liberdade em geral e não apenas da liberdade econômica, ademais tratada como panaceia para todos os males do autoritarismo. É certo que todos os libertários são anti-estatistas e acham que a humanidade ganharia um bocado em aprender a se autogerir sem essa entidade chamada Estado que, como a História nos mostra fartamente, tem sido muito mais fonte de problemas do que de soluções. Mas daí a achar que, numa utópica extinção do Estado, todas as outras formas de opressão individual cairiam, como num efeito dominó, é muita ingenuidade (para ser delicada).

Por fim, embora não goste de tratar quaisquer temas na base da dicotomia esquerda-direita, pois só alimenta o fla-flu das sinapses relapsas, a bem da verdade histórica, sinto-me obrigada a lembrar que o significado de libertário está umbilicalmente associado à esquerda (o pai da criança era um anarco-comunista). Bem como a trajetória do termo ao longo dos séculos. Então, trata-se de uma atroz inversão dos fatos afirmar que “a esquerda vem tentando sequestrar o movimento libertário acrescentando ao Princípio da Não-Agressão sua típica agenda progressista”. Oras, quem está tentando descaradamente sequestrar o movimento libertário e usurpando sua história e protagonistas, pelo visto, é a direita conservadora (apesar de não se assumir como tal). Daí o anti-historicismo de considerar como bizarrice aquilo que sempre foi inerente à trajetória libertária.

Por último, pessoalmente, acho que o posicionamento sobre o princípio da não-agressão, em relação a pessoas e mesmo à propriedade privada (apesar de polêmica), e, naturalmente, a não-intervenção estatal na vida dos indivíduos e seus negócios pessoais e comerciais cabem na perspectiva de quem se denomina libertário. O que definitivamente não cabe é a soberba de considerar a fidelidade ao princípio da não-agressão como exclusiva definição de libertário, numa redução brutal do termo e à revelia de sua história tão rica exatamente por ser múltipla.

1. Guérin, Daniel. O Anarquismo, Da doutrina à ação. Editora Germinal, setembro de 1968. Tradução de Manuel Pedroso. p. 11.

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