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Quando Deus era mulher:

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Aserá,

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quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Um país onde Alexandre Frota é modelo conservador merece estudo


Um país onde Alexandre Frota é modelo conservador merece estudo


É uma triste verdade: Henry David Thoreau (1817-1862) é cada vez mais o meu herói. A verdade é triste porque nunca fui um libertário. Mas o contexto determina o meu texto: como lidar com o fanatismo e a imbecilidade que esquerda e direita vomitam todos os dias?

Pela fuga. Pelo isolamento. Pela vida no bosque, onde os animais são mais civilizados do que a espécie humana em geral.

Nesta semana, em duas revistas diferentes ("The Economist" e "The Spectator"), contemplei o estado a que chegaram as universidades anglo-saxônicas, tomadas de assalto por meninos semiletrados que gostam de censurar as opiniões que consideram ofensivas.

O problema é que essas crianças têm uma saúde mental assaz frágil. Resultado: tudo é ofensivo para elas. Até a chuva que cai, imagino eu. Um mundo de silêncio seria o ideal —o silêncio de um cemitério, embora a palavra "cemitério", pela sua evocação da morte, possa ser um insulto desnecessário para quem acredita na eternidade da juventude. As minhas desculpas antecipadas.

A "The Economist", mais otimista, diz que o mundo não está perdido: nas universidades, sempre houve batalhas ideológicas contra ideias polêmicas. Certo. Mas a mesma revista informa que 20% dos estudantes universitários defendem a violência contra palestrantes controversos.

Mais: em Yale, 42% dos estudantes (e 71% dos estudantes conservadores) preferem não emitir opinião sobre política, raça, religião ou gênero.

Só a Universidade de Chicago se salva do dilúvio. Por quê? Porque decidiu aprovar uma declaração onde se recusa a proteger os estudantes de ideias ou opiniões que os mesmos considerem ofensivas. Para Chicago, não é permitido cancelar palestras ou criar "espaços seguros" para que as crianças se sintam, enfim, seguras.

Sem surpresa, não há praticamente incidentes na Universidade de Chicago, prova definitiva de que a covardia das universidades é a razão primeira para haver problemas.

Na "The Spectator", a escritora Lionel Shriver, uma progressista "old school", relembra outros números: 38% dos britânicos e 70% dos alemães defendem que o governo deve proibir discursos ofensivos para as minorias. A típica receita autoritária: por favor, Estado, exerce a tua censura para que eu não conviva com aquilo de que não gosto.

O Estado agradece —e cresce em autoridade e poder. Um clássico.

Tudo isso são loucuras esquerdistas? Seriam, sim, se uma certa direita não fosse igual.

Nas últimas semanas, tenho acompanhado as polêmicas "artísticas" brasileiras. Confesso que rio. Muito e alto. Um país onde Alexandre Frota é uma referência ideológica "conservadora" deveria ser caso de estudo internacional. 😂

Mas uma parte da direita brasileira também tem o seu interesse. Deixemos a questão da "pedofilia" para psiquiatras: não é preciso ter lido Freud para perceber que aqueles que veem "pedofilia" quando uma criança toca no braço de um artista pelado em pleno museu estão a falar mais dos seus fantasmas do que da realidade propriamente dita.

O que me impressionou foi ver essa direita a pedir mais Estado, mais intervenção do Estado, mais censura do Estado —e não, como seria de esperar, mais responsabilidade individual, ou familiar, na forma como se educam os menores.

Se isso é a direita, eu prefiro a esquerda. Entre a cópia e o original, eu sempre preferi o original.

Corrijo: eu não prefiro ninguém. Só o bosque, embora os meus amigos aconselhem prudência. Longe da civilização, eu não duraria 24 horas.

Talvez eles tenham razão. E eu, suspirando por ar limpo e alguma companhia, sinto uma estranha admiração pelos pensadores utópicos do século 19.

Com uma diferença: imagino uma comunidade de adultos, e não de autômatos, onde as pessoas discutem livremente; usam as palavras sem medo das patrulhas; educam os filhos sem mendigar o chicote do Estado; e até, Deus me livre, flertam com mulheres (ou homens) sem temerem acusações de machismo, assédio ou violência psicológica.

Seria uma espécie de reserva natural, digamos, onde se entra e de onde se sai voluntariamente —e longe desse berçário onde esquerdas e direitas gritam e fazem birra na mesma linguagem infantil.

Com sorte, as patrulhas acabariam por se destruir mutuamente —e nós, os sobreviventes, poderíamos sair da reserva e fazer o que mais interessa: começar de novo.

Fonte: Folha de São Paulo, 24/10/2017, por João Pereira Coutinho

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Em 2016, apenas 32% dos brasileiros diziam preferir a democracia a qualquer outra forma de governo


Abaixo explicado porque os brasileiros ou querem o Lula ou o Bolsonaro. Inclusive alguns, se não tiverem o Lula, ficam com Boçalnaro. Tanto faz, desde que seja um populista autoritário e machista que os espelhe.

Aquela famosa frase que, segundo consta, o Churchill proferiu, em um de seus discursos, de que "a democracia é o pior dos regimes com exceção de todos os outros" não entra na cabeça dos brasileiros, apesar de todos os desastrosos períodos autoritários que já vivemos. Agora, querem outro.

O autoritarismo do brasileiro

A democracia tem recuado em todo o mundo nos últimos dez anos. O apoio à democracia também (na imagem, manifestante pede intervenção militar em São Paulo). O Brasil se destaca em ambas as tendências. Entender as razões é essencial para avaliar os riscos que nos assombram.

O recuo democrático no Brasil é detectado nos principais rankings globais. A Economist Intelligence Unit (EIU) avalia pluralismo eleitoral, participação e cultura políticas, liberdades civis e funcionamento do governo. Trata-se de uma medida objetiva de como a democracia é exercida.

O índice atribuído pela EIU ao Brasil caiu 6,5% (de 7,38 para 6,9) entre 2006 e 2016. A queda global foi de 1,8% (de 5,62 para 5,53). Na América Latina, 0,6% (de 6,37 para 6,33). Isso significa que o recuo nas práticas democráticas foi maior aqui que entre nossos vizinhos ou no mundo.

A queda no apoio à democracia no Brasil é ainda mais acentuada. O relatório anual Latinobarômetro, que avalia o sentimento democrático no continente, detectou que só na Guatemala a democracia é menos valorizada que no Brasil.
Apenas 32% dos brasileiros consideravam em 2016 a democracia preferível a qualquer outra forma de governo, ante uma média latino-americana de 54%. O recuo no indicador foi de 22 pontos percentuais em um ano (eram 54% em 2015) – e 18 pontos em 20 anos (50% em 1997).
Os resultados da pesquisa realizada em 38 países, divulgada há uma semana pelo Pew Research Center, corroboram esse sentimento:
– 67% dos brasileiros estão insatisfeitos com o funcionamento do regime democrático (índice próximo da mediana latino-americana);
– 27% apoiariam um “líder forte sem interferência parlamentar” (dez pontos acima da mediana latino-americana);
– 38% apoiariam o governo militar (oito pontos acima da mediana latino-americana), apoio ainda maior entre quem tem nível educacional mais baixo (45%);
– opções não-democráticas atraem 23% dos brasileiros, enquanto apenas 21% estão comprometidos com a democracia (dados compatíveis com o resto do continente).
Há, por fim, o crescimento nas pesquisas para a eleição presidencial de um candidato que não poupa elogios ao regime militar e chegou a elogiar um torturador na votação do impeachment. De acordo com a última sondagem do Datafolha, Jair Bolsonaro tem em torno de 16% das intenções de voto, em segundo lugar na preferência popular.

O apoio a Bolsonaro ainda está concentrado nas classes mais escolarizadas (nesse grupo, sobe para 24%) e de maior renda (para 29%). Seu discurso autoritário ainda não penetrou na população mais permeável a ele. Isso sugere que ainda tem amplo terreno para crescimento. (Bolsonaro, é importante destacar, não manifestou em nenhum momento intenção de ruptura na democracia).

As razões para a insatisfação do brasileiro com a democracia são evidentes. Dissemina-se, não sem razão, a percepção de que o Congresso é dominado por corruptos e de que as instituições têm sido incapazes de puni-los.

Decisões recentes do Parlamento e do Supremo Tribunal Federal (STF) só fazem aumentar essa percepção. Há a sensação de que a Operação Lava Jato sofreu um baque ao atingir poderosos como o senador Aécio Neves ou o presidente Michel Temer, ambos flagrados em conversas escandalosas com o delator e criminoso Joesley Batista. A saída autoritária se torna tentadora.

É possível argumentar que a população não compreende o funcionamento das instituições num Estado de Direito, nem a essência da democracia. Como argumentam os cientistas políticos Larry Bartels e Christopher Achen no livro Democracy for realists (sobre o qual escrevi aqui), a principal qualidade do regime democrático não é tomar sempre as melhores decisões – mas manter a paz interna, com o respeito às regras do jogo político.

É notável que, até o momento, as instituições brasileiras tenham funcionado dentro dessas regras, sem ruptura. Parlamento e STF tomaram diversas decisões criticáveis, boa parte movidas por interesses espúrios, outras sem nenhuma base legal. Mas todas foram legítimas do ponto de vista jurídico, pois quem as tomou tinha mandato ou posição institucional para isso.

A noção de que um líder autoritário ou militar tomaria decisões melhores não passa de um mito (para quem só conhece a palavra “mito” do uso distorcido na gíria das redes sociais, minha sugestão é olhar o significado no dicionário). A corrupção não é menor nas Forças Armadas, como revelou uma reportagem recente na revista Época. Se parecia menor no regime militar – e mesmo sobre isso há dúvida –, é por que a censura impedia a investigação e a publicação das informações na imprensa.

O crescente sentimento autoritário do brasileiro deve ser visto com preocupação. Um candidato como Bolsonaro tem o direito de ter a opinião que quiser sobre o regime militar ou sobre a história recente do Brasil. Se eleito, precisará governar dentro das regras democráticas.

Os resultados da democracia podem ser insatisfatórios, lentos ou decepcionantes. Ela é difícil como a vida. Mas não há mágica nem atalhos para qualquer mudança. A liberdade é sempre melhor que as alternativas – medo e terror para opiniões discordantes, tortura ou guerra civil. O apoio ao autoritarismo no Brasil (e na América Latina) é só mais uma prova de por que somos tão tacanhos e tão atrasados.

Fonte: G1, 23/10/2017, por Hélio Gurovitz

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Tropicália, 50 anos: um divisor de águas na cultura brasileira


TROPICÁLIA, 50 ANOS:
A História do Movimento que Marcou a Cultura Nacional

O movimento artístico que ficou conhecido como Tropicália completa 50 anos. A apresentação das músicas Alegria, Alegria e Domingo no Parque, em 21 de outubro, durante a final do III Festival Record em 1967, marcaram o início de uma série de experimentações que permitiriam uma nova forma de compreender a música brasileira. Essas inovações estéticas continuam nos discos seguintes dos músicos Gilberto Gil e Caetano Veloso e no LP coletivo Tropicália ou Panis Et Circencis, o disco manifesto lançados no ano seguinte às apresentações no Festival da Record.

O clima tropicalista contagiou o Brasil e a efervescência se estendeu até dezembro de 1968, quando Caetano e Gil foram presos e, meses depois, obrigados a se exilar do país. A ditadura militar (1964-1985) acabava de iniciar a fase mais dura com o decreto do AI-5. A repressão não deixou passar o trabalho dos tropicalistas que, naquele momento, tinham sua máxima expressão em um programa semanal exibido na TV Tupi, emissora extinta no ano de 1980.

O pesquisador Frederico Coelho, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio) e especialista em Tropicália, relembra o que foi o movimento e a obra:


TROPICÁLIA OU PANIS ET CIRCENCIS

Após a explosão das músicas Alegria, Alegria e Domingo no Parqueno Festival da Canção de 1967, diversos artistas se reuniram, capitaneados por Caetano Veloso e Gilberto Gil, para a concepção de Tropicália ou Panis Et Circencis, disco-manifesto coletivo gravado em São Paulo, no decorrer do mês de maio de 1968.

São 12 faixas de canções inéditas de Gil, Caetano, Torquato Neto, Capinan e Tom Zé. Marco da Música Popular Brasileira, o disco traz uma capa icônica que, apesar de provocar análises, não teve um conceito definido ao ser elaborada. A foto foi feita por Olivier Perroy, a convite do arranjador Rogério Duprat, e nela, como em uma foto de família, os tropicalistas se posicionam à frente de um vitral que fazia parte do jardim de inverno da casa do próprio fotógrafo, em São Paulo.


Paulo Roberto Pires – Professor, pesquisador, escritor. Organizador dos dois volumes de Torquatália sobre Torquato Neto.

Capa
Para a sessão de fotos que originou a capa, Rita Lee e Guilherme Araújo deram palpites sobre as roupas que todos usaram. O curto prazo para finalizar a o disco impediu que Nara Leão e Capinan fossem até a capital paulista para participar do registro, por isso, eles aparecem em retratos nas mãos de Caetano Veloso e Gilberto Gil, respectivamente.



Contra-capa

A icônica capa de Tropicália ou Panis Et Circencis é uma das mais reconhecidas da MPB, mas na época do lançamento do disco-manifesto, a contracapa também passou por um trabalho minucioso, resultado da preocupação de Caetano Veloso e Torquato Neto. De acordo com Torquato, a contracapa de um álbum é uma forma de valorizar o trabalho apresentado pelo artista. “O disco será comentado e elogiado (naturalmente) faixa por faixa, música por música [...]. Com isso o público terá as informações que deseja, os cronistas idem e o artista, certamente, se sentirá melhor promovido”, afirmou, em coluna publicada em maio de 1967.

Sobre as faixas do disco, Torquato ressaltou, em entrevista à Rádio Cultura em 1968, que havia ali um trabalho único, que valorizava a diversidade cultural brasileira e regionalismos. "A gente não teria condição de ter feito, de estar fazendo um trabalho assim, se a gente não tivesse antes trabalhado com folclore, trabalhado com tudo. Eu acho que enfim, não estamos mais folclorizando o folclore", refletiu.

O texto da contracapa do álbum foi escrito por Caetano, com ajuda de Torquato, e é uma espécie de roteiro de um filme onde os personagens são os próprios tropicalistas. De acordo com Carlos Calado, autor de Tropicália: A história de uma revolução musical, o enredo continha doses de ironia e deboche que às vezes beiram o nonsense.

Entre as várias falas dos personagens, Torquato gozava os puristas, referindo-se ao refrão de ‘Geleia Geral’ (‘ será que o Câmara Cascudo vai pensar que nós estamos querendo dizer que bumba meu boi e iê-iê-iê são a mesma dança?’); Duprat dessacralizava o lado artístico da música (‘como receberão a notícia de que um disco é feito pra vender?’); e Caetano fazia piada com a canção de Vicente Celestino (‘vocês são contra ou a favor do transplante de coração materno?’).

A contracapa do disco tem também uma homenagem a João Gilberto, grande nome da Bossa Nova que era ídolo dos tropicalistas. Como paráfrase a um recado que o músico havia enviado a Caetano (“diga que vou ficar olhando pra ele”), o roteiro se encerra com o personagem chamado João falando “Diga que estou daqui olhando pra eles”.

A contracapa do Manifesto em forma de roteiro cinematográfico. 



Música (Compositores) Intérpretes 

Lado A

1) Miserere Nobis (Capinam, Gilberto Gil) Gil
2) Coração Materno (Vicente Celestino) Caetano
3) Panis et Circencis (Caetano Veloso, Gilberto Gil) Mutantes
4) Lindonéia (Caetano Veloso) Nara
5) Parque Industrial (Tom Zé) Gil, Caetano, Gal, Mutantes e Tom Zé
6) Geléia Geral (Gilberto Gil, Torquato Neto) Gil

Lado B

1) Baby (Caetano Veloso) Gal e Caetano
2) Três Caravelas (Las Tres Carabelas) (Algueró Jr., Moreau. Versão: João de Barro) Caetano e Gil
3) Enquanto Seu Lobo Não Vem (Caetano Veloso) Caetano, Gil e Rita Lee
4) Mamãe, Coragem (Caetano Veloso, Torquato Neto) Gal
5) Bat Macumba (Caetano Veloso, Gilberto Gil) Caetano, Gal, Gil e Mutantes
6) Hino ao Senhor do Bonfim (Artur de Sales, João Antônio Wanderley) Caetano, Gal, Gil e Mutantes

Fontes: Patricia Finotti, Agência Brasil, 21/10/2017

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

50 Anos de Tropicália

Reunião tropicalista. No alto, Caetano, Torquato Neto e Rita Lee; no meio, Tom Zé,
Glauber Rocha, Rogério Duprat e Gil - Arte de André Melo
Tropicália comemora 50 anos: relembre
Movimento rompeu os limites entre vanguarda e tradição, samba e iê-iê-iê, Brasil profundo e superficial

RIO - Quando Caetano Veloso apresentou “Alegria, alegria” e Gilberto Gil cantou “Domingo no parque” no III Festival de Música Popular Brasileira, estavam quebrados para sempre os limites entre vanguarda e tradição, entre samba e iê-iê-iê, entre o Brasil profundo e o superficial. Ainda não existia um nome para o que se viu ali, mas hoje sabemos que aquele festival — cuja grande final completa 50 anos no próximo dia 21 — é um dos principais marcos do nascimento da Tropicália.

Até ali, o cenário da música brasileira era assim:

1) Havia a vanguarda da bossa nova — percebida tanto no choque da gravação de João Gilberto para “Chega de saudade” quanto em sua aceitação internacional (o concerto do Carnegie Hall em 1962, o disco de Sinatra cantando Jobim em 1967, a experiência americana de Sérgio Mendes a partir de 1964).

2) Havia as tradições do samba de morro e da música nordestina, vistos como portadores das verdades de um Brasil profundo.

3) Havia a invasão anglosaxônica do rock, capitaneada pelos Beatles, aportando no Brasil pelos subúrbios como iê-iê-iê.

4) E havia jovens de classe média nos palcos dos festivais assumindo a canção como o território privilegiado para pensar seu tempo — um tempo de profundas transformações. Na política, a ditadura instaurada em 1964 e a polarização entre a esquerda e a direita. Nos costumes, a liberação sexual, os questionamentos à sociedade de consumo.

Aí veio aquela noite em 67. E, no ano seguinte, o álbum-manifesto “Tropicália ou panis et circensis” chegaria para explicar — ou para confundir, como escreveu Tom Zé anos e Chacrinha incorporou em seu programa de TV, que virou modelo da estética tropicalista, num jogo de espelhos típico do movimento.

Na capa do disco, além de Caetano, Gil e Tom Zé, estavam, em carne e osso, Gal Costa, Mutantes, Torquato Neto e Rogério Duprat. Representados em retratos, apareciam Nara Leão e Capinam. O álbum era um desfile alegórico e violento das cores e dores de um Brasil em convulsão: sofisticado e kitsch, litorâneo e interiorano. O painel incluía ainda o cantor Vicente Celestino (“Coração materno”) e o artista plástico Rubens Gerchman (sua tela “Lindoneia” inspirou a canção homônima), jornais populares e Mangueira, “Hino ao Senhor do Bonfim” e “aquela canção do Roberto”, Caribe e concretismo.

Os antecedentes do tropicalismo remontam a Oswald de Andrade (e ao “Rei da vela”, relido pelo Teatro Oficina), ao Cinema Novo, a Hélio Oiticica (sua obra “Tropicália” batizou o movimento), a João Gilberto. E as ondas que se espalharam a partir dele atingiram de volta não só a canção brasileira, mas o cinema, as artes visuais, o teatro — e até a moda e a publicidade. Mas, num país de ânimos quentes, marcado por tensões políticas agravadas pela repressão oficial, a repercussão não foi pacífica. Provocaram reações episódios como o discurso em que Caetano confrontou a plateia do Festival Internacional da Canção de 1968, o tom desafiador do espetáculo que eles montaram na Boate Sucata e a cena do programa “Divino maravilhoso” com Caetano cantando “Boas festas” enquanto apontava uma arma para a cabeça.

Por um lado, parte da esquerda via o grupo como alienado. Por outro, a direita se sentia ameaçada pelo que não entendia ali. Caetano e Gil acabaram na cadeia e, em seguida, no exílio. Para muitos, a aventura tropicalista terminava ali, sob a repressão. Mas os ecos dela se fazem presentes até hoje na música — de forma direta ou indireta — em exemplos como Nação Zumbi e BaianaSystem. Além disso, o pensamento sobre o Brasil hoje é em grande medida influenciado pela leitura que os tropicalistas estabeleceram então.

ARTIGOS E FRAGMENTOS

Essa história de rupturas e embates celebra 50 anos logo agora, quando o Brasil se vê novamente ameaçado pela censura às artes e rediscute questões que pareciam superadas. De olho na construção do futuro sem esquecer as lições do passado, o Segundo Caderno revê o movimento, em artigos e fragmentos, aos moldes das canções “Geleia geral”, “Miserere nobis” e “Tropicália”. Nas páginas seguintes, há tigres e leões soltos nos quintais, apesar das pessoas da sala de jantar, ocupadas em nascer e morrer.

Fonte: O Globo, por Leonardo Lichote, 15/10/2017


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