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Mulheres samurais

no Japão medieval

Quando Deus era mulher:

sociedades mais pacíficas e participativas

Aserá,

a esposa de Deus que foi apagada da História

terça-feira, 14 de março de 2017

Em um século, mulheres e homens terão igualdade salarial no Brasil


País levará 100 anos para igualar salário de homem e mulher
Pesquisa do Fórum Econômico Mundial coloca o Brasil com um dos países mais desiguais do mundo no que se refere a gênero

GENEBRA - A diferença salarial entre mulheres e homens no Brasil é uma das maiores do mundo e equiparar a condição dos dois sexos no País levará um século. Essas são algumas das conclusões do Relatório de Desigualdade Global de Gênero 2016 do Fórum Econômico Mundial, publicado nesta quarta-feira, 26, em Genebra.

De acordo com o levantamento, as sociedades mais igualitárias são as escandinavas. O primeiro lugar é da Islândia, seguida por Finlândia, Noruega e Suécia, ao se considerar todos os aspectos econômicos, políticos, de saúde e de educação.

Entre 144 países avaliados, o Brasil ocupa apenas a 129.ª posição no que se refere especificamente à igualdade de salários entre gêneros. Países criticados por violações aos direitos das mulheres, como Irã, Iêmen e Arábia Saudita estão em melhor posição que o Brasil.

Para equiparar as condições econômicas de homens e mulheres, serão necessários 95 anos se o atual ritmo de progresso for mantido. Em termos gerais, incluindo política, educação e outros aspectos sociais, equiparar as condições entre gêneros no País levará 104 anos.

Segundo o Fórum Econômico Mundial, a taxa brasileira é melhor que a média mundial, de cerca de 170 anos. Mas, ainda assim, o ritmo de avanço é considerado como “lento demais”.

O estudo aponta que a presença de Dilma Rousseff no cargo de presidente nos últimos anos fez o Brasil subir no ranking geral da entidade, passando da 85.ª posição para a 79.ª entre 2014 e 2015. Mas a classificação ainda é pior do que dez anos atrás, quando o Brasil ocupava a 67.ª posição. Hoje, o País fica atrás dos 17 outros países latino-americanos.

O desempenho do Brasil pode cair nas próximas edições do ranking, após o afastamento de Dilma e a posse de um governo com um número reduzido de mulheres em cargos de confiança ou ministeriais.

A disparidade econômica entre homens e mulheres no Brasil é um dos fatores que mais impedem o avanço no ranking. Nesse quesito, o País ocupa a modesta 91.ª posição entre 144 países e é superado por Paraguai, China, Camboja e Chade.

O Brasil é ainda um dos seis países do mundo onde a diferença salarial entre homens e mulheres em cargos executivos é de mais de 50%. Além disso, a presença de brasileiras no mercado de trabalho também é menor: 62% ante 83% de homens. Isso coloca o Brasil na 87.ª posição por esse critério. No que se refere à renda média, a brasileira ganha por ano US$ 11,6 mil. Já a renda média dos homens brasileiros é de US$ 20 mil.

Na América Latina, os especialistas indicam que, se o ritmo for mantido, a “lacuna econômica de desigualdade de gênero” será fechada em apenas seis décadas.

Na política, a presença feminina também é pequena, mesmo que em 2015 a Presidência fosse ocupada por uma mulher. O Congresso ocupa o 120.º lugar entre os países com melhor representação feminina. Antes mesmo de Michel Temer assumir o governo, o Brasil era apenas o 83.º quando o assunto era ministérios ocupados por mulheres. Na educação, a diferença entre homens e mulheres voltou a crescer pela primeira vez em cinco anos. O ponto positivo ficou no acesso à saúde, em que o País aparece em 1.º lugar.

Fonte: Estadão, Jamil Chade, 26/10/2016

segunda-feira, 13 de março de 2017

As mulheres que mapearam as estrelas e fundaram a astrofísica moderna

Williamina Fleming, por volta de 1890, junto à chapa, de 1888, na qual, pela primeira vez,
identificou a nebulosa Cabeça de Cavalo. Abaixo, uma imagem recente do mesmo campo.
As mulheres computadores de Harvard identificaram cerca de 400.000 estrelas, a composição desses astros e a medição de distâncias no Universo. Cerca de 80 mulheres trabalharam para o astrônomo Edward Charles Pickering, recebendo metade do que receberiam se fossem homens, e cinco se destacaram como fundadoras da astrofísica moderna: Williamina Fleming, Annie J. Cannon, Antonia C. Maury, Henrietta Swan Leavitt e Cecilia Payne. 

A empregada doméstica que descobriu 10.000 estrelas

Empregada do diretor do Observatório de Harvard virou peça-chave para a astrofísica

"Até minha empregada faria um trabalho melhor!", mas o professor Pickering jogava com cartas marcadas quando dirigiu essas palavras de encorajamento a seus assistentes em Harvard. Diante deles acumulavam-se chapas fotográficas com os espectros estelares mais detalhados até aquele momento. As primeiras chapas de uma enorme série que, posteriormente, seriam a chave com a qual a antiga astronomia daria lugar a uma nova ciência: a astrofísica.

Como é a vida; um dia você tem 19 anos e sente o tempo voar. Começa a correr sem rumo, provocando o destino, decide se casar, vai para longe e, em menos de dois anos, está sozinha, na rua, grávida e a 5.000 quilômetros de casa. Esses pensamentos deviam rodopiar na mente de Mina Fleming na primavera de 1879, enquanto se adaptava aos imprevistos da vida e deixava de lado seus seis anos de magistério para procurar um trabalho urgente como empregada doméstica. Sua velha cidade natal, Dundee, não era, claro, lugar para uma mente inquieta, oferecendo apenas um difícil, mas estável futuro na crescente indústria têxtil de juta ou nas fábricas de geleia. Nem seu marido, James Fleming, um contador bancário, viúvo e 15 anos mais velho, era, provavelmente, seu companheiro de viagem ideal. De qualquer forma, a Mrs. Fleming encontrou refúgio e trabalho como empregada doméstica na casa do diretor do Observatório da Universidade Harvard, o professor Edward Charles Pickering.

Williamina Paton Stevens Fleming tinha uma personalidade magnética e um rosto atraente, com olhos brilhantes e vivos que aumentavam o efeito encantador, e que, ao entrar, deixava no ar uma saudação alegre, embalada com sotaque escocês. Pickering, cujas habilidades incluíam a de identificar talentos, não duvidou em nenhum momento que, além de todas as outras qualidades, a nova empregada tinha uma educação e inteligência claramente superiores. Por isso, esperou que ela voltasse da Escócia, para onde Williamina havia retornado para dar à luz a seu filho, e, assim que pisou novamente em Boston, em abril de 1881, ofereceu-lhe um emprego no Observatório. No início, como assistente em tarefas administrativas e para fazer cálculos de rotina para os quais, em sua visão na época, uma mulher teria uma habilidade especial. Pelo menos, mais do que seus assistentes do sexo masculino.

Pickering era um professor de Física no comando de um observatório astronômico, o que não foi facilmente aceito pela velha guarda de Harvard. Acreditava que era hora de introduzir novos métodos. Deixar para trás a antiga astronomia de posição e movimentos e abrir caminho para a fotometria e estudos espectrais. E, embora ainda sem a base física que permitisse compreender a natureza dos objetos, estava certo de que o caminho era a coleta e classificação da maior quantidade de dados. Para isso, assim como fez Piazzi Smyth em sua campanha pioneira em Tenerife, na Espanha, colocou a técnica à frente do carro da ciência. Com o apoio de seu irmão mais novo, William Henry, começou a adotar o método de obtenção de espectros estelares colocando um prisma na lente do telescópio, para então continuar aperfeiçoando as técnicas espectroscópicas ao longo da década de 1880.

Como sempre na ciência, Pickering foi precedido por gigantes em sua empreitada. Antes dele, as primeiras descrições dos espectros de Sirius e Arturo foram reveladas por William Herschel (1798); a classificação das linhas espectrais do Sol, por Joseph von Fraunhofer (1814); a identificação de elementos químicos na atmosfera solar, por Gustav Kirchhoff e Robert Bunsen (1861); as primeiras chapas e classificações de espectros estelares, por Lewis Rutherfurd (1862); e, finalmente, o trabalho meticuloso do Padre Angelo Secchi (outro jesuíta) durante a década de sessenta (sempre no século XIX), que resultou na primeira classificação de estrelas por sua distribuição de linhas espectrais, ou seja, pelos componentes químicos de suas atmosferas (1867).

Em 1886, chegou o dinheiro da viúva de Henry Draper, um pioneiro na obtenção de fotografias de espectros de estrelas. Em memória de seu marido e para a realização de seu sonho de criar um grande catálogo, interrompido por uma morte prematura, Mary Draper decidiu financiar os trabalhos de Pickering. Fiel ao seu pragmatismo e sem complicar as coisas diante das novidades, Pickering não perdeu tempo. Sua experiência com Williamina Fleming não poderia ter sido melhor, por isso contratou outras nove mulheres para realizar os cálculos de rotina e a classificação dos espectros nas chapas fotográficas.

Edward Pickering e suas assistentes, conhecidas como "computadores de Harvard .”
Image: Harvard-Smithsonian Center for Astrophysics.
Era uma equipe de calculadoras humanas que ficariam conhecidas como "computadores de Harvard" ou "o harém de Pickering", dependendo das intenções. Um grupo de mulheres que continuaria aumentando nos anos seguintes e do qual surgiram algumas representantes da astrofísica mais importantes da história. E, no final das contas, foi uma verdadeira pechincha para o pragmático Pickering, que conseguiu uma brilhante equipe de 10 especialistas ao preço de cinco assistentes homens. Como responsável nomeou Nettie Farrar, que poucos meses depois abandonaria a carreira para se casar. Uma decisão tomada há 130 anos e cujas consequências no presente nos levam a refletir. Pickering não teve dúvidas: Mrs. Fleming iria substituí-la.
Trabalhadora, incansável e corajosa o suficiente para defender seus resultados, Williamina Fleming identificou e classificou os espectros de mais de 10.000 estrelas. Ampliou a classificação de quatro grupos de Secchi e introduziu um novo esquema baseado em 16 tipos, usando como referência as linhas de absorção do hidrogênio, identificados alfabeticamente de A a N (pulando a letra J), mais as letras O para estrelas com linhas brilhantes de emissão, P para nebulosas planetárias, e Q para as estrelas que não se encaixam nos grupos anteriores. Essa primeira parte do catálogo Draper, em compensação pelo financiamento recebido, foi publicada por Pickering em 1890, sem citar Fleming como autora (embora seja citada na parte interna e, posteriormente, não tenha hesitado em reconhecer publicamente sua autoria), e é a base da classificação espectral utilizada atualmente (classificação de Harvard).
Annie Jump Cannon at her desk at the Harvard Observatory.
Foto: The Smithsonian Institution Archives.
A chegada de espectros de resolução cada vez maior e a instalação de um telescópio em Arequipa, no Peru, no Hemisfério Sul, permitiram que a equipe liderada por Fleming e Pickering avançasse a classificação, especialmente com as importantes contribuições de duas outras "calculadoras", Antonia C. Maury e Annie J. Cannon, que reorganizaram os grupos espectrais e aumentaram o número de estrelas classificadas. Na publicação das ampliações do catálogo Draper lideradas por Maury (1897) e Cannon (em 1901 e várias outras até sua morte, em 1941) seus nomes já constam como autoras do trabalho. No total, as classificações de estrelas realizadas por essas mulheres somaram mais de 400.000.

A contribuição de Fleming poderia ser considerada decisiva e invejável para qualquer astrônomo atualmente, mas também deve ser atribuída a ela a descoberta de 10 supernovas e mais de 300 estrelas variáveis, tendo medido a posição e magnitude de 222 delas (1907), como parte da linha de trabalho que seria conduzida por outro eminente "computador de Harvard", Henrietta Swan Leavitt, que realizaria uma das descobertas fundamentais da astrofísica: a relação período-luminosidade das Cefeidas, com base na medição de distâncias no Universo. Finalmente, 59 nebulosas, entre as quais se encontra um dos objetos mais belos e fotografados do espaço, a nebulosa Cabeça de Cavalo, na constelação de Orion (1888). Apenas uma descoberta dessa importância serviria para compensar os sacrifícios de qualquer astrônomo. Antes de uma pneumonia matar Mina aos 54 anos, ela ainda teve tempo de publicar uma última classificação de um tipo de estrelas com um espectro particularmente especial e de cor branca, que posteriormente seriam chamadas de "anãs brancas".

O sucesso no desempenho de suas tarefas e capacidade de trabalhar acabaram sobrecarregando-a com tarefas mais simples que a afastavam, a contragosto, da ciência. Mrs. Fleming foi nomeada curadora da coleção fotográfica do Observatório, sendo o primeiro cargo organizacional ocupado por uma mulher. Mas também passou inúmeras horas, por exemplo, em trabalhos de edição e revisão dos Relatórios Anuais do Observatório. Seu salário "de mulher", muito inferior ao de seus colegas do sexo masculino, outro motivo de insatisfação e de protesto permanente, pode ser parcialmente compensado, por outro lado, pelo reconhecimento e honras que recebeu de numerosas sociedades astronômicas.

Em alguma tarde de domingo, talvez perto de um estádio de futebol americano depois de ver o Harvard Crimson, com seus pensamentos vagando livremente entre preocupações diárias e cuidados de mãe, pode ser que em sua mente rodopiassem novamente reflexões sobre os meandros da sorte e de como é a vida.

Julio A. Castro Almazán é físico e membro do SkyTeam do Instituto de Astrofísica de Canárias (IAC), especialista em Caracterização de Observatórios Astronômicos e Ótica Atmosférica.

Fonte: El País, 29/10/2015

quinta-feira, 9 de março de 2017

As ‘Mentiras’ Científicas Sobre as Mulheres

Uma mulher com uma camisa de força, diagnosticada com histeria, em uma foto
publicada em 1889. WELLCOME TRUST
Resenha do livro As ‘Mentiras’ Científicas Sobre as Mulheres, escrito por Eulalia Pérez Sedeño e S. García Dauder, fundamental para entender o problema da desigualdade entre os sexos nesse campo. (Fonte e autor da resenha ao fim do texto)

A ciência que discrimina as mulheres

Ao longo da história, a pesquisa tem marginalizado, manipulado, ignorado e até torturado as mulheres

A ciência tem maltratado as mulheres. Jocelyn Bell descobriu os pulsares, mas quem levou o Nobel de Física foi o orientador de sua tese. A atual presidenta da União Astronômica recebeu a ordem para trabalhar no escritório do marido. Durante décadas, as que se desviaram da trajetória do socialmente aceito foram torturadas com a invenção de doenças, como a histeria, e remédios que chegavam a mutilá-las, arrancando órgãos de suas entranhas. As mentes (masculinas) mais “brilhantes” desenvolveram teorias para explicar a inferioridade das mulheres e, assim, justificar sua submissão. Os exemplos do passado são incontáveis.
As mulheres estão mais fortemente marcadas por algumas faculdades que são características das raças inferiores e de um estado passado e inferior de civilização”, escreveu Darwin
Mas não é apenas uma coisa do passado. Hoje, 8 de março, há apenas uma mulher para cada nove homens da elite da ciência europeia. Apenas 25% dos pesquisadores mais bem pagos da maior instituição científica espanhola são mulheres. Nenhuma mulher comanda um órgão público de pesquisa na Espanha. Os estereótipos continuam indicando que ciência é coisa de homens. Continuamos discriminando e humilhando as atletas por seu físico. Incutimos nas meninas a ideia de que não são tão brilhantes como os meninos. O ambiente nos laboratórios continua sendo machista. E John continua tirando melhores notas do que Jennifer embora seu currículo seja o mesmo.

Em última análise, a questão que fica depois desta viagem é se estamos diante de exemplos de má ciência ou de uma ciência de época. Se melhorar a ciência consistiria em eliminar o viés de gênero, se isso for possível, ou se teremos de reconsiderar outras maneiras de fazer ciência.” É com esta contundência que se conclui um livro fundamental para entender o problema da desigualdade neste campo, escrito por Eulalia Pérez Sedeño e S. García Dauder, As ‘Mentiras’ Científicas Sobre as Mulheres, recém-publicado pela editora Catarata. Uma contundência nada exagerada após a análise detalhada que este trabalho faz sobre o machismo que discrimina na ciência, pela ciência e graças à ciência.
A medicina aplica nas mulheres pesquisas realizadas em homens, mesmo se os resultados no diagnóstico, na prevenção e no tratamento não tenham sido estudados de maneira adequada para o caso delas
Para começar, Pérez e García mostram no livro que os cientistas têm estado sempre dispostos a fornecer argumentos para aqueles que desejam que as mulheres sejam classificadas como humanos de segunda classe. “Aceita-se, geralmente, que as mulheres estão mais fortemente marcadas do que os homens com os poderes da intuição, percepção rápida e, talvez, da imitação; mas pelo menos algumas dessas faculdades são características das raças inferiores, e, portanto, de um estado passado e inferior de civilização”, escreveu em 1871 Charles Darwin, cujas teorias ajudaram a cimentar a ideia de que as mulheres eram uma versão menos evoluída do homem, como evidenciado pelo fato de o crânio feminino ser menor, por exemplo. Este corpus ideológico vinha de longe: “Aristóteles foi o primeiro a dar uma explicação biológica e sistemática sobre a mulher, na qual esta aparece como um homem imperfeito, justificando, assim, o papel subordinado que as mulheres deveriam desempenhar social e moralmente na polis”, dizem as autoras. Foi preciso a chegada de um exército de primatólogas e antropólogas de prestígio, defende o livro, para derrubar o mito evolucionário dos caçadores machos que alimentavam as passivas fêmeas.

As mulheres foram colocadas um degrau abaixo dos homens, e isso também se aplica à ciência médica. A saúde das mulheres, o conhecimento de seus corpos e de suas doenças, foi relegada a segundo plano e restrita a um único tema específico: “Durante muito tempo, pensava-se que a ‘saúde das mulheres’ se referia à saúde reprodutiva, o que incluía a assistência ao parto, a contracepção, o aborto, o câncer uterino, a síndrome pré-menstrual e outras doenças especificamente femininas”.
Durante o século XIX e começo do século XX, ‘doenças sociais e psicológicas’ como o feminismo e o lesbianismo também eram associadas à sexualidade do clitóris”, denuncia o livro
Os corpos das mulheres têm sido considerados um desvio da norma masculina, afirmam Pérez e García, e os resultados da pesquisa médica realizada entre homens são aplicados mais tarde nas mulheres, “mesmo se os resultados para as mulheres no diagnóstico, prevenção e tratamento não tenham sido estudados adequadamente”. Durante anos, as mulheres foram sistematicamente excluídas dos ensaios clínicos de novos medicamentos: até 1988, os testes da agência estatal dos Estados Unidos só incluíam homens; portanto, não se sabia se provocariam efeitos colaterais desconhecidos para elas (ou se seriam descobertos remédios que fossem mais eficazes para as mulheres). Atualmente ainda existem grandes lacunas no conhecimento específico sobre a saúde das mulheres, e estas continuam sendo minoria (ou inexistentes) em numerosos estudos de biomedicina.

Talvez o paradigma da ignorância sobre o corpo feminino seja o desconhecimento histórico da anatomia do clitóris, órgão esquecido pela medicina devido à ênfase tendenciosa do aspecto reprodutivo nas pesquisas. Isso fez com que ativistas na década de setenta tenham sido as pioneiras na exploração de seus corpos para aprender mais sobre eles, em oficinas que eram, ao mesmo tempo, atos políticos, de pesquisa e divulgação. “Durante o século XIX e início do século XX, ‘doenças sociais e psicológicas’, como o feminismo e o lesbianismo, também eram associadas à sexualidade do clitóris”, diz o livro, trazendo-nos para um dos capítulos mais importantes do relato: como a ciência transforma a natureza das mulheres em doenças que devem ser curadas, em problemas que devem extirpados, em distúrbios que devem ser tratados.
A fabricação de doenças mentais tem sido um dispositivo muito eficaz de controle e regulação tanto da feminilidade quanto da sexualidade das mulheres”, resumem no texto
“A fabricação de doenças mentais tem sido um dispositivo muito eficaz de controle e regulação tanto da feminilidade quanto da sexualidade das mulheres”, resumem no texto. Por exemplo, o século XIX foi marcado por uma epidemia de histeria, esse suposto distúrbio mental das mulheres que era tratado com torturas psicológicas ou removendo seus ovários ou útero. O livro relata vários casos escabrosos, como quando um proeminente médico explicava: “Decidi remover os ovários na esperança de extirpar seus instintos pervertidos”, porque a paciente estava sofrendo ataques após um aborto e o médico descobriu que ela se masturbava quando jovem. “Não retomou seus hábitos degradantes, desejosa e ansiosa por cuidar de seu lar”, congratulava-se depois o médico. Recentemente, descobriu-se que Constance Lloyd, esposa de Oscar Wilde, morreu após uma operação para remover seus ovários nas mãos de um especialista em “loucura pélvica”, quando na verdade sofria de esclerose.

Ainda hoje a ciência permite que situações da natureza feminina sejam transformadas em doenças que necessitam de medicação: a construção social da doença foi transformada em um dispositivo comercial que serve aos interesses da indústria. Só isso pode explicar o lançamento do viagra rosa nas farmácias. “A medicalização dos problemas da vida cotidiana das mulheres ou seus processos naturais ou fisiológicos (como tem acontecido com a menopausa ou com a menstruação); transformar desconfortos, produtos da desigualdade de gênero, em patologias individuais (como aconteceu com a histeria ou com a depressão); ou a medicalização de uma faceta da vida das mulheres (sua sexualidade, por exemplo),” enumeram Pérez e García, antes de analisarem os supostos problemas atuais, como a síndrome pré-menstrual, a menopausa ou a menstruação (“as prioridades das pesquisa têm se concentrado mais na busca de medicamentos anticoncepcionais do que em ajudar na regulação do ciclo e as dores”).
O século XIX foi marcado por uma epidemia de histeria, esse suposto distúrbio mental das mulheres que era tratado com torturas psicológicas ou com a remoção dos ovários
Diante de todos esses graves casos de discriminação, nos quais “longe da neutralidade e assepsia pretendida pela cânone científico, os valores são irremediavelmente” deixados para trás, Pérez e García propõem uma solução muito simples: melhorar o acesso das mulheres aos vários campos de pesquisa. 
Quando a ciência é feita a partir do ponto de vista de grupos tradicionalmente excluídos da comunidade científica são identificados muitos campos de ignorância, segredos são revelados, outras prioridades se tornam visíveis, novas perguntas são formuladas e valores hegemônicos são criticados (às vezes, acontecem até mesmo mudanças genuínas de paradigma).”
Fonte: El País, por Javier Salas, 08/03/2017

Ver também O sequestro do termo "gênero": uma perspectiva feminista do transgenerismo  


segunda-feira, 6 de março de 2017

O sequestro do termo "gênero": uma perspectiva feminista do transgenerismo

Transgenerismo: de volta à medicalização do comportamento humano
Já havia escrito sobre transgenerismo aqui no blog, com o texto Que conservadores e "progressistas" me desculpem, mas não existe criança "trans", ainda não muito consciente das dimensões dessa nova onda. Hoje, melhor informada e mais preocupada, pretendo abordar, sempre que possível,  os vários aspectos que configuram essa moda regressiva. Para começar, traduzi e editei o texto abaixo, da ensaísta americana Terri M. Murray, também mestre em Teologia, com especialização em ética cristã, e doutora em Filosofia, que escreveu o livro "Thinking Straight About Being Gay: Why It Matters If We’re Born That Way," (algo como "Visão hétero sobre ser Gay: Por que importa se nascemos desse jeito?").

Ressalvo que, neste texto, quando a autora fala em "queer", refere-se à comunidade de lésbicas, gays, bissexuais e drags e não aos adeptos da teoria queer.  "Queer" é um termo pejorativo, em inglês, usado contra homossexuais e outros indivíduos sexualmente não normativos. Significa esquisito, estranho, anormal. Já em fins dos anos 80, contudo, ele passou a ser assumido pelos próprios discriminados como identidade política, principalmente no contexto do surgimento da AIDS. A partir da década de 90, sobretudo de 1991 em diante, passa a ser adotado pelos acadêmicos que forjaram a chamada Teoria Queer, entre outros, Teresa de Lauretis, Michael Warner, Judith Butler, Eve Kosofsky Sedgwick, Lee Edelman. 

Por fim, embora tenha alguma divergência com a autora, concordo no geral com sua abordagem que me trouxe inclusive um novo dado sobre o tema. Ela faz um histórico a respeito da mudança do conceito de gênero, da visão progressista, dos tempos dos movimentos pelos direitos civis (meados do século passado até o novo milênio), para a visão regressiva atual. Aponta como o movimento transgênero sequestrou a linguagem e imitou a  postura política dos movimentos libertários anteriores, com intenção, contudo, oposta a desses movimentos (cavalo de Troia de uma política sexual regressiva). Aponta também para o retorno da medicalização do comportamento humano, trazida no bojo do transgenerismo, em particular no que se refere ao possível futuro da biotecnologia como ferramenta para eliminar homossexuais ainda no útero. E termina proclamando a volta ao conceito de gênero anterior como a via para nos livrar do possível futuro distópico que se avizinha. Não é uma leitura rápida, mas para sorver como um bom vinho. Degustem!

Terri M. Murray
O sequestro do termo "gênero":
uma resposta feminista ao transgenerismo 

Gênero costumava ser um conceito legal. Feministas fodonas como Simone de Beauvoir o usaram para distinguir o que você tem no meio das pernas (sexo) do que tem entre  as orelhas (gênero). Você nasceu com o primeiro; o segundo lhe ensinaram. O que colocaram entre suas orelhas (mente) chegou ali via doutrinação cultural patriarcal.

Mas essa concepção libertadora sempre teve variados opositores. Quando as mulheres começaram a ocupar papéis considerados masculinos ou posições consideradas tradicionalmente masculinas, os agentes do patriarcado recorreram à “natureza” para reforçar o sistema. Apelar para a "natureza" funcionava (e funciona) porque a paisagem cultural estava tão saturada de estereótipos (e continua) que eles pareciam (parecem) realmente naturais. Nesse contexto, foi fácil criar uma teoria biologicamente determinista para explicar porque o patriarcado não seria uma questão política mas sim uma necessidade biológica. Sociobiologistas, como E.O. Wilson, insistiram que a persistência do patriarcado se deveria ao suposto fato de a cultura ser assentada nos genes 😲.

Nada de novo nessa abordagem. Freud já havia postulado que as raízes da cultura patriarcal emanavam do pênis e da vagina (principalmente do todo-poderoso pênis). Tradicionalistas cristãos sempre vincularam os arranjos sociais patriarcais às funções reprodutivas, como visto na “Criação”, limitando os papéis sociais das mulheres aos de mãe e esposa. A transgressão e a punição de Eva por "deus" reforçaram mais ainda a subserviência da mulher ao marido. E São Paulo acrescentou uma pitada da autoridade do Novo Testamento a essa receita, declarando que as mulheres “deveriam se submeter aos maridos” assim como ao "senhor". A sagrada instituição do casamento era uma invenção humana, mas continha as intenções de “deus”.

Algumas feministas teimosas se recusaram a concordar com essa naturalização do patriarcado e seu concomitante determinismo biológico, em vez disso apontando a dominação masculina como resultado das instituições sociais, culturais, teológicas, acadêmicas e econômicas de nosso mundo. Existencialistas como Beauvoir abominavam ideias que tentavam explicar o comportamento humano como determinado por alguma "essência" fixa. Tanto ela quanto seu companheiro de longa data, Jean-Paul Sartre, insistiam que o caráter dos indivíduos é formado em resposta às circunstâncias que vivenciam e através das escolhas que realizam. Somos jogados nesse mundo, in situ, com nossa capacidade de livre-arbítrio, e nossas escolhas precisam ser tomadas inclusive frente a situações imutáveis como a do sexo biológico com o qual nascemos. Mas como as pessoas reagem a essas situações depende de cada uma particularmente. Embora seja óbvio que apenas mulheres possam engravidar, as implicações dessa capacidade são indeterminadas, e a atual divisão sexual do trabalho é apenas uma possibilidade de arranjo social entre várias outras.

Assim como as feministas de outrora, gays, lésbicas e bissexuais costumavam transgredir os estereótipos de gênero ensinados pela cultura patriarcal. A partir dos amplamente difundidos mitos de gênero heterossexistas, essas pessoas desviantes (queer) foram rotuladas de “sapatões”, “bichas”, "caminhoneiras", “viados” — nomes criados para estigmatizar qualquer indivíduo que se recusasse a agir e se vestir de acordo com os papéis de gênero sexistas e heterossexistas. Mas elas reagiram à intolerância dos criadores desses mitos, apropriando-se desses apelidos pejorativos e transformando-os em bandeiras de luta.
Dzi Croquettes
 Ao tornarem as normas de gênero uma forma de teatro, drag queens e kings mostraram que qualquer pessoa pode adotar e imitar os papéis de gênero independente de sua genitália particular, dessa forma expondo o fato de que o gênero não é algo natural, mas sim uma forma convencional de interpretação, como um figurino que se usa ou se tira (a la Judith Butler). Queers encarnaram o fracasso dos estereótipos de gênero em colar nas pessoas reais. Tudo isso era revolucionário porque desnudava a ficção conservadora de que todos os homens compartilham de uma personalidade heterossexual masculina diferente da das mulheres e vice-versa.
Na esteira das feministas, os queers começaram a apontar que somados aos mitos sociais sobre como meninos e meninas se sentem vem também a noção de que todas as pessoas são atraídas pelo sexo oposto. Boa parte da concepção de gênero é construída com base nos papéis heterossexuais e no heterossexismo. Os papéis sociais femininos e masculinos, culturalmente normativos (quer dizer, papéis de gênero), tornaram-se ritualizados como parte da cultura ocidental cristã que fetichiza e erotiza a diferença sexual.  Exagerar as diferenças entre mulheres e homens, mistificar o sexo oposto e tornar tabu os atos sexuais serve também para elevar a excitação de penetrar os mistérios do "outro" e transpor as barreiras que se opõe à realização sexual. Pressupor que a heterossexualidade é inata facilitou a bifurcação dos humanos em dois tipos opostos que se atraem mutuamente. Da mesma forma que as feministas rejeitaram a definição de “mulher” como ser oposto ao ideal masculino, os homossexuais se recusaram a ver a si mesmos como a versão defeituosa ou perturbada dos heterossexuais.

Tanto para as feministas quanto para os queers de fins do século passado, o natural havia sido reprimido pelo social. Ao mesmo tempo, porém, o "natural" também era produzido pelos pressupostos culturais e teológicos existentes. Ideias sobre gênero não são apenas resultado de observações empíricas; elas são as premissas das "pesquisas". Por isso, quando os indivíduos não se amoldam aos estereótipos de gênero, alegadamente estariam invertendo os papéis de gênero (supostamente fixos, reais) e não expondo-os como as ficções que de fato são. Se os indivíduos, quando observados, não se conformam realmente com as ideias sociais de gênero, então isso deveria valer como evidência de que as ideias sociais sobre gênero são furadas. Em vez disso, os papéis de gênero são pressupostos a priori, e as evidências em conflito com eles são interpretadas como sinais de "anormalidade" ou "desvio", não como uma indicação de que a pressuposta "norma" sempre foi falha. Há um problema de circularidade em toda a moldura conceitual onde as questões de gênero são "pesquisadas". O bestseller de John Gray "Homens são de Marte, Mulheres são de Vênus" é um bom exemplo dessa metodologia anticientífica.
O novo movimento transgênero não é uma extensão dos esforços anteriores para desconstruir a mitologia sexista e heterossexista. Não agrupa feministas e dissidentes de gênero numa frente solidária e unida em oposição à mitologia heterossexista e aos estereótipos sexuais. Ao contrário, divide e conquista o outrora poderoso movimento contracultural, sequestrando sua linguagem e imitando sua postura política para disfarçar intento oposto ao desse movimento. Embora numericamente reduzidos, os ativistas transgênero, promotores desse contra-ataque ao movimento contracultural, são figuras bem posicionadas no establisment e contam com apoio total da mídia na promoção de sua "causa" - outra coisa que os separa dos predecessores libertários dos anos 80 e 90.
Nos últimos anos, o termo "gênero" foi radicalmente redefinido por esse movimento reacionário que o tornou sinônimo de mero estado mental interior em oposição a seu significado original de "série de convenções (e restrições) sobre como mulheres e homens podem ser e o que podem fazer". Chrissie Daz está certa ao afirmar que alguma coisa fundamental se alterou na forma como o termo gênero passou a ser entendido no século XXI, com os novos ativistas transgênero representando uma grande mudança paradigmática em relação à concepção de gênero prevalente nos 40 anos anteriores. A princípio uma ideia empunhada pela esquerda liberal (social-democrata) contra as normas sociais sexistas e heterossexistas conservadoras, o termo "gênero" foi transformado numa arma do arsenal de uma política regressiva que não é somente sexista mas também homofóbica. 
O atual movimento transgênero reforça o mito de que homens e mulheres são espécies diferentes de seres humanos, não apenas reprodutiva mas mentalmente - com diferentes desejos, necessidades, atitudes e mentes distintas. Agora os porta-vozes do transgenerismo apoiam a naturalização conservadora tradicional de "masculinidade" e "feminilidade" como estados psicológicos inatos, intrínsecos ao ser humano desde o nascimento e provenientes de química cerebral ou de outras interações hormonais do corpo. A ideia progressista de que não há um jeito uniforme de meninas e meninos sentirem ou pensarem foi descartada. Em vez de lutar contra o rígido binarismo de gênero heterossexista (como sua retórica, aliás, sugere), os novos guerreiros transgênero assumem que seu inato senso de eu  ("identidade") é inerentemente "masculino" ou "feminino" antes de qualquer socialização. Aparentemente, julgam que a doutrinação cultural é insignificante. O termo "gênero" foi despolitizado, naturalizado e medicalizado de um só golpe.
Gênero agora é um conceito que aparenta fazer o tipo de trabalho político outrora associado ao movimento dos direitos civis. Na verdade, contudo, sua nova versão reverte a lógica que norteou os direitos civis no passado. Os ativistas dos direitos civis  apontavam que a discriminação baseada em diferenças biológicas como cor da pele ou sexo falhava em reconhecer a humanidade comum a todas as pessoas como agentes morais. Agrupar pessoas de acordo com traços físicos comuns negligencia o caráter e a individualidade das mesmas. Grupos humanos eram definidos por referência à cor de pele ou aos genitais, não por seu agenciamento humano, seu caráter ou comportamento. Assim as pessoas eram reduzidas a seus corpos (ou parte deles) enquanto seus atributos mais distintivos de intelecto e vontade (aspectos que deveriam fundamentar qualquer avaliação de caráter) eram negligenciados.

A "masculinidade" ou "feminilidade" da psique trans é tratada como uma condição
 inata semelhante à cor do cabelo ou à pigmentação da pele.
Os ativistas de gênero atuais não reivindicam ser tratados como indivíduos nem veem seu caráter como uma escolha. Eles enfatizam que pertencem a uma ‘minoria’ definida pela identidade de gênero ou por uma similar condição biológica que alegadamente teriam com outras pessoas. Enquanto os ativistas de direitos civis tornaram a biologia irrelevante, os ativistas dos direitos de gênero a colocaram num altar. A "masculinidade" ou "feminilidade" de sua psique é tratada como uma condição inata semelhante à cor do cabelo ou à pigmentação da pele. Assim sendo, como categoria de pessoas definidas por referência a uma suposta diferença biológica inata, eles não deveriam sofrer mais discriminação do que mulheres ou minorias étnicas. Entretanto, enquanto mulheres e minorias étnicas dos movimentos civis de meados do século XX estavam ansiosas por se desassociar das referências biológicas reducionistas de suas identidades, reivindicando não ser definidas a partir de sua genitália ou cor da pele, os ativistas transgênero de hoje reivindicam reconhecimento de sua alegada diferença "biológica", acreditando que o pertencimento a um grupo biológico particular os autoriza a ter direitos civis.

Adotar a narrativa biológica determinista da condição trans (uma psique de gênero inata) requer que primeiro aceitemos as premissas conservadoras sobre gênero. Como vimos acima, uma coisa que vem incrustada no conceito de gênero é a heterossexualidade obrigatória de mulheres e homens. Assim, se a ideologia de gênero heterossexista define "mulher" como par erótico do homem, as lésbicas tendem a não se identificar com a ‘feminilidade’ (papel de gênero feminino), já que não se sentem atraídas por homens nem desejam ser objeto da atenção sexual masculina. Da mesma forma, gays acharão difícil se encaixar na masculinidade heterossexual e suas correspondentes suposições eróticas.
Uma vez que o conceito de gênero binário vem sendo renaturalizado e recolocado como um dos dois possíveis estados psicológicos dos seres humanos, as pessoas de sexo feminino que se identificam com o que se convencionou chamar de masculino e seu correspondente objeto de desejo ficam com a única opção de "se tornar" do sexo masculino. Se elas desejam "agir como homens", sendo biologicamente mulheres, é porque estão doentes (disfóricas). O mesmo para as pessoas de sexo masculino que sentem forte afinidade com os papéis normativos de gênero feminino e sua correspondente orientação sexual. Não por menos pessoas homossexuais andam tão confusas diante desse contexto.
Médicos especialistas em transgêneros identificam a disforia (insatisfação) de gênero como uma condição psicossexual anormal. Mas, se a disforia é realmente um efeito ou sintoma do mal-entendido da sociedade a respeito da bioquímica sexual natural, então a doença não é intrínseca ao paciente; ela  resulta do relacionamento entre o paciente e a cultura circundante. De fato, tanto o eugenista liberal Nicholas Agar quanto os bioeticistas cristãos Michael J. Reiss e Roger Straughan interpretam "doença" como um conceito socialmente construído ou “de certo modo, um relacionamento entre a pessoa e a sociedade”.
Os ativistas queer do passado, porém, argumentavam que é a natureza do próprio relacionamento - não a natureza do "paciente" - que faz o mesmo se sentir infeliz. Hoje, todavia, o desconforto social com a diferença foi reconceituado como uma anormalidade psicossexual da constituição do paciente. O "cérebro desordenado" do sujeito é visto como a causa de uma inaceitável interação do indivíduo com as organizações sociais. Como consequência política dessa concepção, desvia-se o foco da crítica das instituições sociais necessitadas de reforma para a reforma do indivíduo supostamente anormal. Ele precisa ser reformulado para se encaixar nas instituições.
Para citar um exemplo de como isso funciona na prática, basta considerar a situação das pessoas homossexuais no Irã. O Irã é uma teocracia sexista, intolerante e homofóbica, onde as leis fundamentalistas religiosas impõe um estrito status quo heteronormativo. A solução estatal para a homossexualidade nesse país se resume a duas possibilidades: (1) punir ou executar quem a pratica abertamente, ou (2) "encorajar" homossexuais a transicionar, cirurgicamente, para o sexo "correto" de modo que a pessoa se encaixe na norma heterossexual, a única norma que o Irã tolera. Consequentemente, o Irã tem o segundo maior número de cirurgias de redesignação sexual do mundo, perdendo apenas para a Tailândia. Tal fato se assemelha ao clareamento químico da pele das pessoas negras para torná-las mais aceitáveis numa sociedade racista, quando o que deveria ser feito é atacar o racismo. Trata-se de uma política regressiva. Em vez de rejeitar ou desconstruir o binarismo heteronormativo, a indústria médica está facilitando a "desconstrução" literal do indivíduo transgênero - literalmente desconstruindo seu próprio corpo -  de modo que ele se refaça na imagem heterossexista desejada. Isso é violência mascarada de compaixão.
Esse tipo de prática não é muito diferente da "medicina" de estilo soviético do início dos anos 70, quando o estado soviético usava de violência física somente como último recurso ao lidar com os dissidentes que começavam a pressionar por mais liberdade política. Investigações psiquiátricas e diagnósticos de doença mental (esquizofrenia geralmente) se tornaram o instrumento preferido para possibilitar o encarceramento dos dissidentes em hospitais psiquiátricos. À luz do relacionamento político conturbado entre o movimento pelos direitos homossexuais e as instituições políticas vigentes, a atual tendência de tratamento transgênero pode ser melhor analisada com base no argumento de Michel Foucault de que toda as categorias de desordens psicológicas são expressões de relacionamentos de poder na sociedade. De forma simplificada, Foucault vê a loucura não como própria do indivíduo mas sim como uma definição social desejada pela sociedade para o segmento não-conformista de sua população.

O "reconhecimento" clínico e médico aparentemente progressista e compassivo do "paciente" transgênero está na realidade reforçando o binarismo heteronormativo que por muito tempo causou sofrimento e alienação para uma grande variedade de pessoas homossexuais. Não precisamos nos opor a que adultos bem informados consintam em transicionar cirurgicamente para um corpo com o qual se sintam mais à vontade. Entretanto, progressistas não deveriam correr para abraçar esta opção acriticamente ou como a solução principal para os que sofrem com a chamada disforia de gênero.

Editado de comentários do facebook: cons e trans, farinhas do mesmo saco
Simplesmente não há como testar se a infelicidade de alguns com seu corpo é um subproduto da doutrinação dogmática de gênero ou uma condição inata, já que todas as culturas tem doutrinação de gênero, embora das formas as mais variadas. Não há um grupo de controle contra o qual se possa comparar indivíduos doutrinados pelos estereótipos de gênero. Mas a reivindicação dos transativistas de que algumas pessoas do sexo feminino são inerentemente "masculinas" enquanto outras de sexo masculino são inerentemente "femininas" assume o que precisa provar: a saber, que o gênero é natural e intrínseco à feitura psicossexual dos indivíduos em vez de uma série de ficções culturalmente em circulação que as pessoas internalizam. Embora não haja problema em aceitar a hipótese de que a orientação sexual possa ser inata, tal aceitação não nos compromete a comprar uma teoria essencialista de gênero. De fato, feministas e queers progressistas deram um tiro no pé ao abandonar a distinção natureza-cultura que o conceito de gênero anterior tão bem iluminou.

No contexto da narrativa determinista de gênero, torna-se difícil distinguir a pessoa homossexual da transgênero. Esta última é conceitualizada como alguém que tem uma psique feminina ou masculina presa no corpo "errado". Mas, "errado" de acordo com quem ou com o quê? Não importa se homossexual ou heterossexual, as normas de gênero binárias representam uma série de restrições de atuação para pessoas de sexo feminino e masculino. A própria homossexualidade representa uma boa razão para que algumas pessoas não se sintam à vontade em seus próprios corpos, dadas as expectativas sexuais erigidas junto com as normas de gênero heterossexistas. Mas algumas pessoas heterossexuais também consideram muito difícil se identificar com muitas das expectativas inerentes ao gênero que lhes designaram. Algumas pessoas simplesmente acham os conceitos de gênero muito alienantes e não conseguem se adaptar a suas generalizações sobre "mulheres" e "homens". Não são doentes por isso, apenas apresentam um sintoma de desconforto social. Todos os indivíduos são "encorajados" a acreditar que ficarão melhor e serão mais felizes se suas ideias sobre seus "eus" biológicos se encaixarem com as ideias culturalmente aceitáveis. E elas podem ser ainda mais felizes se transicionarem em vez de virarem crossdressers ou viverem com a constante rejeição que assombra os não-conformistas. Numa sociedade inclusiva, a opção de transicionar não deveria ser descartada, mas, de novo, igualmente não deveria ter precedência sobre a luta por novas reformas sociais. Sobretudo deveria ser uma decisão tomada apenas por  adultos que estão plenamente conscientes do papel que a cultura joga no entendimento que elas têm de si mesmas.

Para compreender as implicações políticas iminentes da atual tendência de direitos transgênero, precisamos ter clareza de como seus conceitos centrais funcionam em relação aos direitos da mulheres e da população LGBI assim como em relação à eugenia liberal. Eugenistas transhumanistas/Liberais (Nicholas Agar, Julian Savulescu, James Hughes, Nick Bostrom, David Pearce, Gregory Stock, John Harris, Johann Hari, et al.) combinam biopolítica com economia de livre mercado para alcançar uma política social ostensivamente liberal sobre o uso da biotecnologia. Estes autoproclamados "eugenistas liberais" estão reivindicando o uso ilimitado ou desregulado da reprogenética. Eles diferenciam a reprogenética da eugenia considerando que esta última implica coerção estatal a pretexto de beneficiar pessoas. A primeira (reprogenética) seria voluntariamente buscada por pais com o objetivo de melhorar suas crianças de acordo com suas preferências. Esta seria uma eugenia "privatizada" ou de "livre mercado" (havendo naturalmente um incentivo financeiro para promover seu uso).
Dentro da aparentemente progressista barriga do Cavalo de Troia transgênero se esconde uma política sexual regressiva que está pronta para usar a medicina e a biotecnologia a fim de, primeiro cirurgica e quimicamente - e mais tarde talvez mesmo geneticamente - recolocar-nos nos papéis tradicionais do velho binarismo heterossexual. A engenharia social feita por meio da disciplina e da punição pode logo ser realizada via biotecnologia, tratamentos hormonais pré-natais e/ou edição de genoma.
Considerando a hipótese de uma causa biológica para a atração homossexual, eliminá-la certamente reduzirá o comportamento homossexual. Negar tal fato é fingir que atos sexuais voluntários não têm relação com a atração sexual involuntária. O exato propósito das intervenções reprogenéticas será, através da eliminação da predisposição biológica involuntária para o comportamento homossexual, eliminar o comportamento homossexual voluntário dos indivíduos. Isso acontecerá não por tirar o livre-arbítrio dos indivíduos mas sim por guiar biologicamente a direção para onde suas escolhas se encaminharão, onde serão  mais provavelmente expressas. Mas poderão ainda aquelas pessoas cuja orientação sexual principal é hétero se engajar em atos homoeróticos? Naturalmente. Mas isso passa ao largo da questão central. As intervenções reprogenéticas para proibir o desejo homossexual constituiriam uma forma de engenharia social, que não é terapêutica em qualquer sentido médico, visando restringir o comportamento do indivíduo (sem seu consentimento) aos objetivos de vida que os pais preferem. O futuro poderá trazer pessoas homossexuais que não se rebelem contra a doutrinação homofóbica dos pais nem saiam do armário porque simplesmente não desejarão fazê-lo.

O novo movimento trans (intencionalmente ou não) remove a única barreira que impede pais de serem capazes de presumir o consentimento implícito do paciente para essa espécie de "tratamento" eugenista de sua "condição" psicossexual. Para definir e mirar a orientação homossexual como uma condição médica passível de "tratamento" será necessário primeiro distinguir esse "tratamento" da violência médica homofóbica, que seria muito questionável. O que inviabiliza essa distinção é a suposição de que o paciente alegremente coincidiria com tal "tratamento". Em sua pressa para abraçar os "direitos transgênero", progressistas bem intencionados e pessoas homossexuais estão fomentando exatamente essa suposição. O movimento eugenista homofóbico tem buscado o santo graal da orientação sexual biológica com o objetivo de descobrir como mudá-la. Se algum dia realmente localizarem uma causa ou causas biológicas para a orientação homossexual, só lhes faltará, para poder curá-la, uma moldura conceitual que lhes permita a edição homofóbica do genoma ou o tratamento hormonal  pré-natal a fim de parecerem benevolentes. Como o "tratamento" será feito num feto, os especialistas precisarão patologizar a homossexualidade de tal forma que os pais acreditem que é como se tivessem o consentimento do paciente (prole) para sua "cura".

Mas eles só podem presumir tal coisa se os indivíduos com sexualidades não binárias consentirem em mudar a si mesmos. O movimento transgênero luta pelo reconhecimento de sua condição desviante como condição médica e reivindica o "direito" de seus integrantes, como pacientes, de ter acesso à assistência médica para transicionar de volta à definição de saúde socialmente conservadora.

Mesmo que alguns dos transicionados não venham a se tornar heterossexuais, terão de qualquer forma apoiado a noção heterossexista de que gênero é, para algum subconjunto de indivíduos, uma condição biológica interna que os faz se sentir mal. Como pacientes voluntários que aceitam a medicalização de sua infelicidade, eles terão jogado um importante papel na reformulação teórica de questões políticas como patologias clínicas. Embora os apoiadores dos trans sejam motivados por boas intenções, eles involuntariamente ajudam os conservadores sociais a vender uma agenda eugenista ao público, travestindo-a  de compaixão esclarecida ou tolerância pela diversidade.
Não há razão pela qual não possamos sentir compaixão por pessoas que se sintam presas num corpo biológico "errado". O perturbador não é como esses indivíduos se sentem.  Pelo contrário, a questão é como seus sentimentos estão sendo enquadrados ou interpretados, e isso se deve em parte aos contextos sociopolíticos nos quais seus sentimentos surgiram em primeiro lugar. Como Sarah Ditum argumentou, "a existência do sofrimento não é evidência de que o sofredor tenha clareza inquestionável da origem de seu sofrimento." Se as sociedades fossem organizadas em torno da ideia de que a sexualidade humana natural (atração) inclui tanto as variantes heterossexuais quanto as homossexuais, não somente isso ajudaria a eliminar o estigma associado aos intersexuais, como diminuiria significativamente a homofobia e (em grande medida) o sexismo. E como isso quebraria os mitos sexistas que alienam os que não se sentem "à vontade" com os papéis sociais designados para pessoas de seu sexo, provavelmente haveria também um aumento do bem-estar daqueles que atualmente sentem que estão presos no corpo "errado".
                  
Fonte do original: Culture on offensive: The Hijacking of Gender: A Feminist Take on Transgenderism Tradução: Míriam Martinho, São Paulo, 04/03/2017

Chimamanda Ngozi Adichie é uma escritora nigeriana. Aqui ela afirma o óbvio: "Não acho que seja uma boa coisa falar das questões das mulheres como se fossem as mesmas das questões das transfemininas (ou transmullheres) porque não acho que isso seja verdade. 

Uma transfeminina (ou transmulher) honestíssima afirma que as trans não são mulheres.

Também se opõe aos procedimentos de transição em crianças pelos danos que causam à saúde das mesmas.

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