Naturalmente, não apóio tudo que afirmava (mesmo porque algumas visões são datadas), mas concordo no todo com o ideal de liberdade individual que a animava e sua defesa da afirmação das pessoas pela inteligência, a criatividade, o esforço, o mérito. Concordo porque a liberdade me é por demais cara, como na definição de nossa querida Cecília Meirelles: "Liberdade, essa palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda." (Cecília Meireles)
Assim, pelo aniversário da escritora, posto um texto seu sobre o aborto, esse tema tão controverso a respeito do qual ela tinha opinião coerente com sua filosofia de defesa da liberdade dos seres humanos de ambos os sexos, não apenas do masculino. Traduzi e editei o texto, pois o original é formado de trechos de textos dela e ficou meio repetitivo, mas deixo ao final link para a versão integral. Deixo também um vídeo com a voz de Rand falando sobre o tema e legendagem em espanhol.
Aborto
Ayn Rand
Um embrião não tem direitos. Os direitos não pertencem a um ser potencial, somente a um ser real. Potencialidade não é o mesmo que realidade, e o feto não pode adquirir nenhum direito até que nasça. Os que vivem tem precedência sobre os que ainda não vivem (os não-nascidos). Uma definição apropriada, filosoficamente válida, de ser humano como “animal racional”, não permite que se atribua condição de “pessoa” a umas poucas células humanas.
O aborto é um direito moral que cabe exclusivamente à mulher exercer ou não. Moralmente, não há nada, além de sua vontade, que deva ser considerado. Quem poderia racionalmente ter direito de impor a outro o que deve fazer com as funções de seu próprio corpo? Com que direito alguém pode se achar no direito de dispor das vidas de outros e de decretar suas decisões pessoais?
Não importa a ridiculez malvada de se afirmar que um embrião tem “direito à vida”. Um pedaço de protoplasma não tem direitos e não tem vida no sentido humano da palavra. Equiparar algo potencial com algo real é cruel; advogar pelo sacrifício da mulher em prol do feto é abominável. Observem que ao atribuir direitos aos não-nascidos, quer dizer, aos não-vivos, os antiabortistas destroem os direitos dos vivos: o direito dos jovens a determinar o curso de suas próprias vidas.
A tarefa de criar um filho é uma enorme responsabilidade que dura toda a vida e que ninguém deve empreender de forma irresponsável ou contra vontade. A procriação não é um dever: os seres humanos não são animais de cria em uma granja. Para as pessoas responsáveis, uma gravidez indesejada é um desastre. Opor-se ao direito da mulher de interrompê-la é propugnar seu sacrifício não em benefício de alguém mas sim em prol da própria miséria, com o real objetivo de proibir a felicidade e a realização dos efetivamente vivos.
A questão do aborto implica muito mais do que a interrupção de uma gravidez: é uma questão que abrange a vida toda dos pais. Como disse anteriormente, a paternidade é uma enorme responsabilidade, uma responsabilidade impossível para jovens, principalmente pobres que são ambiciosos e estão lutando para se afirmar, porém não querem abandonar o recém-nascido em algum umbral ou dá-lo para adoção. Para estes jovens, a gravidez é uma sentença de morte: a paternidade os obriga a renunciar a seu futuro e os condena a uma vida de trabalho penoso e desolador, de escravidão às necessidades físicas e financeiras da criação de um filho A situação de uma mãe solteira, abandonada por seu amante, é ainda pior.
Não consigo realmente imaginar o estado mental de uma pessoa que deseja condenar outro ser humano à semelhante horror. Não posso conceber o grau de ódio necessário para impulsionar até mulheres a sair por aí fazendo cruzadas contra o aborto. É ódio o que revelam, não amor pelos embriões, algo aliás impossível de se sentir de fato. É um ódio virulento, que, a julgar por seu grau de intensidade, revela problemas de autoestima e um medo metafísico. O ódio dos antiabortistas é dirigido contra os seres humanos como tais, contra a mente, contra a razão, contra a ambição, contra o êxito, contra o amor, contra qualquer valor que traga felicidade à vida humana. Contra a vida, portanto, embora, como reflexo da desonestidade que domina o campo intelectual de hoje, paradoxalmente se autodenominem “pró-vida.”
A capacidade de procriar não passa de um potencial que a humanidade não está obrigada a realizar. A decisão de ter ou não ter filhos é moralmente opcional. A natureza dota os seres humanos com uma gama de possibilidades, mas eles é que devem decidir quais capacidades exercer, de acordo com sua própria hierarquia de objetivos e valores racionais.
O simples fato de o ser humano ter capacidade de matar não quer dizer que seja seu dever converter-se em assassino. Da mesma forma o simples fato de ter a capacidade de procriar não quer dizer que seja seu dever cometer suicídio espiritual e tornar a procriação o objetivo principal da vida, como se fosse um animal de criação.
Para um animal, os cuidados com seus pequenos se dão em ciclos temporais. Para o ser humano, é uma responsabilidade para toda a vida, uma grande responsabilidade que não se deve assumir sem causa, sem pensar, ou por acidente.