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quinta-feira, 10 de março de 2022

Guerra da Ucrânia aproximou a esquerda jurássica da direita bolsonarista no apoio ao ditador Putin


Invasão da Ucrânia pela Rússia lembra o discurso e a política insana de Hitler

No texto abaixo, originalmente intitulado A esquerda da Guerra Fria e a invasão da Ucrânia, Wilson Gomes, doutor em Filosofia e professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA, tenta explicar porque boa parte da esquerda brasileira apoia, lado a lado com Bolsonaro & Cia, a infame guerra do autocrata Putin contra a soberana vizinha Ucrânia.

Com esse objetivo, ele salienta o fato de que parte expressiva da esquerda é profundamente autoritária e, na mesma medida, dogmática. Que a contragosto "aceitou" a democracia liberal porque sua "revolução" naufragou pelas mãos dos socialismos reais fracassados, mas  que permanece presa à ideia dimperialismo capitalista como o grande inimigo geopolítico da humanidade. Essa ideia não deixa de ser gozada, pois a Rússia atual é um país capitalista governado por um sujeito que, embora tenha sido da polícia política da URSS comunista, a sinisttra KGB, tem um perfil de direitista conservador.

Pessoalmente, acho que a esquerda brasileira é majoritariamente anacrônica, retrógrada, mofada,  autoritária e brega. Mesmo os movimentos sociais que, nos idos dos anos 70 e 80, como o feminista, gay e negro, tinham um caráter libertário e destoavam dessa esquerda "Guerra Fria", descambaram para a patrulha ideológica da sociedade, sempre buscando cancelar quem discorda de sua agenda, impor uma espécie de novilíngua e a reescritura da História. Parecem mais um capítulo perdido da obra-prima de George Orwell, 1984, que foi encontrado recentemente e anexado ao original.

Então, hoje é a esquerda democrática que ocupa a periferia do conjunto da esquerda local e subsiste na base da honrosa exceção que apenas confirma a regra do autoritarismo como parte do DNA da turma.

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várias esquerdas e cada vez mais diversas entre si. É um fato, não um juízo de valor. Afinal, o que faz alguém se colocar à esquerda no espectro ideológico não uniformiza cada compreensão do mundo, cada valor ou cada princípio.

Como já disse outras vezes, a esquerda é aquela posição em um regime republicano que responde a duas decisões fundamentais:
  • A igualdade política, base da democracia, precisa produzir também (mais) igualdade social;
  • A forma institucional da comunidade política, o Estado, é um instrumento básico para a promoção da justiça social.
Se você defende a todo custo a liberdade e a igualdade políticas, é um democrata. Se você, além disso, não abre mão de direitos e garantias fundamentais, nem de viver em um Estado de Direito, então é um liberal-democrata. Mas se, enfim, considera que uma sociedade justa é aquela em que, além disso, a igualdade social é uma meta essencial, você é de esquerda. Quanta igualdade social é imprescindível haver, quanto o Estado precisa considerar isso a sua prioridade, se afinal se trata de igualdade de bens ou igualdade de oportunidades, é discutível, e daí decorrem variações, mas ninguém é de esquerda se achar que as desigualdades fazem parte da paisagem ou não podem ou devem ser resolvidas.

Fora esse combinado social, o resto são diferenças. E enganos. Há quem ache, por exemplo, que uma vez que a esquerda, por definição, é a favor da mudança social e contra qualquer tipo de injustiça, todo indivíduo de esquerda é progressista. Não é. Uma fração da esquerda é muito conservadora do ponto de vista moral. Outros gostam de pensar que, posto que a esquerda é uma posição que naturalmente atrai os intelectuais e descende do Iluminismo, todo mundo na esquerda tem mente aberta, é flexível e confia na força dos argumentos como forma de persuasão. Nada mais falso. Uma parte expressiva da esquerda é profundamente autoritária e, na mesma medida, dogmática.

Por fim, dado que a esquerda em geral está sempre pronta para defender liberdades civis e políticas, ou para se bater pela igualdade entre as pessoas, nos acostumamos a imaginar que as pessoas que se dizem de esquerda sejam todas convictamente democráticas. Um constrangedor engano, pois uma franja da esquerda, se tiver que escolher a igualdade econômica e a democracia, escolherá sempre pelo socialismo. Muitos são democratas relutantes, na espera de uma “coisa melhor” que nunca chegou, outros abrem facilmente mão da democracia, de alguns ou vários dos princípios que a constituem, desde que alguns dos valores da própria esquerda se materializem.

Isso é particularmente notável na esquerda de 2ª geração (2G) marxista, que acrescentou aos dois combinados fundamentais da esquerda pré-maxista mais um par de convicções. Esta esquerda, nascida no século 19, mas cujo imaginário foi lapidado no século 20, entre a Revolução Bolchevique e a Guerra Fria, é mais socialista que republicana. É uma esquerda que só aceitou com resignação e relutância a democracia liberal quando a Revolução não veio e/ou quando os socialismos reais fracassaram.

Pois na esquerda 2G toda democracia autêntica tem que ser direta (contra o Governo Representativo); todas as genuínas forças da sociedade estão na base social (basismo); propriedade e lucro são anátemas, vez que são frutos do sangue do trabalhador (anticapitalismo); tem que haver alinhamento e simpatia automáticos com as formas de luta dos trabalhadores (trabalhismo); a igualdade política e as liberdades são menos importantes do que a igualdade social; o imperialismo capitalista é o grande inimigo geopolítico do homem (anti-imperialismo seletivo).

Claro, a esquerda gosta de pensar que a direita é um campo fértil para o conservadorismo. E é verdade. Ou que a direita é que facilmente descamba para a autocracia, que acolhe as posições mais autoritárias e mais dogmáticas e coisas do gênero. Também é verdade. Mas é só aparecer uma oportunidade e as tendências conservadoras, autoritárias, dogmáticas e até autocráticas que também estão presentes na esquerda vão escorrer pela esfera pública, à vista de todos.

A guerra na Ucrânia tem sido um bom experimento para isso, e uma parte da esquerda, justamente a esquerda 2G, está penosamente mostrando as suas dificuldades. Anos e anos em que foi lavrada a convicção de que o capitalismo e o imperialismo são os problemas políticos centrais da humanidade, tornou uma geração da esquerda incapaz de condenar com nitidez e decisão a invasão da Ucrânia pela Rússia.

E quando falo “geração de esquerda”, me refiro ao software em funcionamento no aparelho mental das pessoas, não à idade dos envolvidos. Nesse sentido, Lula e Leonardo Boff são da mesma geração que Guilherme Boulos e Manuela D’Ávila, por exemplo.

Pois bem, a esquerda 2G acha que invadir um país é uma coisa deplorável, todos fizeram questão de afirmar isso. Isto posto, alguma coisa no seu DNA lembra que os russos estão associados ao bem e os norte-americanos ao mal, que a Otan é o imperialismo ocidental, que o capitalismo do Ocidente quer só explorar os povos.

Aí, pronto, como condenar a Rússia, coitada, espremida em seu espaço vital, sob constante avanço e provocação do Oeste Europeu e dos Estados Unidos? Como aceitar embargos contra a Rússia sem que a memória ative automática e inconscientemente os sentimentos e convicções sobre o embargo a Cuba? Então, dá-lhe racionalizações para evitar a dissonância cognitiva entre algumas das suas mais arraigadas crenças – pelas quais, inclusive, orientam o seu afeto – e os fatos desconcertantes de uma invasão brutal e moralmente injustificada, que Putin levou a termo como parte de um sombrio projeto de poder.

Em um de seus discursos insanos, Putin diz que a guerra é para salvar a Ucrânia
Foi assim que depois das ressalvas que agora são obrigatórias, sobre o erro da invasão russa, Leonardo Boff declarou no Twitter:
A OTAN incorporou a Polônia, os países bálticos e outros da área do Pacto de Varsóvia. É o expansionismo dos USA usando os vassalos europeus. Por trás da crise da Crimeia estão estas traições. Se ela entrar na OTAN os mísseis da OTAN alcançarão a Rússia em segundos. E a segurança?”.
E quando a ONU condenou a invasão e sanções foram aplicadas, Boff protestou e admoestou:
Estimo que o Ocidente (USA/NATO) está exagerando nas sanções c/a Rússia. Cuidado que o autoritário líder russo possa se sentir uma fera acuada e se defenda com todos os meios até com os mais letais para a humanidade. A Rússia não é um Iraque ou Afeganistão, fracos. É uma potência nuclear”.
E mesmo Lula, que retardou o máximo possível um juízo sobre o conflito, provavelmente escutando seus consultores de confiança, foi claro na desaprovação da invasão, mas o fez em nome do pacifismo, dos custos da guerra, da confiança na cooperação. E não esqueceu do essencial doisladismo de quem precisa ao mesmo tempo condenar o imperialismo norte-americano:
É inadmissível que um país se julgue no direito de instalar bases militares em torno de outro país. E é absolutamente inadmissível que um país reaja invadindo outro país”.
Alguém notou que nenhuma palavra foi dita sobre a Ucrânia, apenas geopolítica realista, mas com uma repreensão ao imperialismo que instalou bases “em torno” da pobre Rússia. Mesmo argumento de Boff:
Vocês tolerariam um canhão diante da porta de sua casa?”.
Causa espécie, a este ponto do conflito e do que nós sabemos sobre ele, o esforço de explicar os feitos de Putin como reação, uma vez que estava acossado pela Otan e pelo poder militar do Ocidente Europeu, que chegou ao ponto de colocar mísseis no jardim do pobre homem.

Mas a racionalização alcança também a desqualificação da Ucrânia pelas mais variadas e coloridas razões. Houve quem destacasse o fato de o presidente do país invadido ser um comediante profissional, um ator, um populista, de pouco valor. Houve quem, como Guilherme Boulos, destacasse que a Ucrânia está do outro lado da batalha ideológica:
 Mas é fato que, desde 2014 a Ucrânia tem forças políticas relevantes de extrema-direita. A principal facção delas se chama Movimento Azov, organização paramilitar integrada por células neonazistas acusadas de tortura, saques, estupros e limpeza étnica”.
E houve quem sublinhasse o fato de que o país não podia ter provocado Putin fazendo amizade com a Otan.

Com isso, estava pronto o discurso para uma condenação, relutante, seguida de uma conjunção adversativa: Tudo bem, Putin não devia ter jogado mísseis nem invadido, mas, contudo, porém, todavia… e aí segue a lista do que justifica mísseis sobre criancinhas e tanques varrendo o país. O que que não faltou foi gente da esquerda 2G sublinhando o infame mas, que oferece uma desculpa ao indesculpável, uma atenuante ao que só poderia ser condenado.

Questões relacionadas à contraposição entre a tirania de Putin e a liberdade dos ucranianos, o direito de autodeterminação dos povos, o perigo do aumento das autocracias no Leste Europeu e na Ásia, a expansão da extrema-direita, nada disso entra na conta.

A mola que move o julgamento é o sentimento anticapitalista e adversário do imperialismo norte-americano (o imperialismo russo não cabe na equação). A paixão desta franja da esquerda pela democracia demonstra-se mais uma vez, principalmente, nominal, pois quando se trata de defendê-la concretamente, a convicção fraqueja se há outros valores e outras memórias a que a esquerda da Guerra Fria continua apegada.

Por sorte, nem toda a esquerda se esgota aqui. Mas essa é já uma outra história.

Clipping A esquerda da Guerra Fria e a invasão da Ucrânia, por Wilson Gomes, Cult, 04/03/2022

terça-feira, 1 de março de 2022

Rússia (merecidamente) sitiada na economia

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, se reúne com autoridades da área econômica do país para discutir os efeitos das sanções do Ocidente | Alexey NIKOLSKY / SPUTNIK / AFP

Míriam Leitão
A jornalista Míriam Leitão explica abaixo como as sanções contra a Rússia estão fazendo efeito. Ao final, entrevista da jornalista Renata Lo Prete com a colega Míriam sobre o mesmo assunto.

O ataque do Ocidente à Rússia de Vladimir Putin, na área financeira, foi sem precedentes, e o país foi arremessado de volta à crise de 1998, quando as moedas dos países emergentes sofreram colapsos seriais. Certamente o presidente Vladimir Putin subestimou a reação dos grandes países, nos quais depositou suas reservas. No fim do dia, o quinto da guerra que declarou contra a Ucrânia, seu Exército estava às portas de Kiev, seu Banco Central estava de joelhos, e sua população estava numa corrida contra o rublo. Putin acumulou US$ 630 bilhões de reservas para descobrir que o Manifesto Comunista, que deve ter lido nos tempos de espião soviético, continha o melhor alerta: “Tudo o que era sólido desmancha no ar”.

Mas como desmancham-se as reservas? Dados do próprio Banco Central russo mostram que US$ 463 bilhões das reservas, ou 73% do total, estão em moeda estrangeira, e apenas 14% desse valor estão em moeda chinesa, yuan. Pelo menos 60% das reservas estão em dólar, libra esterlina, euro. Em ouro, ela tem US$ 132 bilhões, mas ainda não está claro como pode transacionar o metal se as principais economias do mundo — à exceção da China — estão fechadas com as sanções contra a Rússia. Há depósitos em papéis do FMI, que foram bloqueados. A decisão de mirar o Banco Central russo e congelar esses ativos deixa o BC sem acesso à artilharia que acumulou para enfrentar este momento. Putin teve êxito nas duas vezes em que atacou países, na Geórgia, em 2008, e na anexação da Crimeia, em 2014, porque, após a desvalorização do rublo, a moeda se estabilizou. Mas agora houve uma mudança quantitativa e, portanto, um salto qualitativo nas sanções. Desta vez atingiram o país.

A reação foi clássica. O BC russo mais que dobrou a taxa de juros e determinou que as empresas exportadoras convertam em rublos 80% de suas receitas. Ou seja, entreguem os dólares. Estão forçadas a aceitar o rublo. Nas ruas, contudo, longas filas se formaram em frente aos bancos e os correntistas tentavam tirar a maior quantidade de dólares possível. Nas crises de confiança que atingem moedas, empresas e famílias querem um porto seguro, em geral, dólar, dinheiro na mão.

Reservas são depósitos em bancos de outros países, em dinheiro ou aplicações em títulos emitidos pelos governos ou por empresas privadas. Os preferidos como reserva de valor são os títulos do Tesouro americano. Quando tantos países grandes impedem o país, dono das reservas, de transacionar com aqueles papéis ou depósitos, o que parecia sólido desmancha-se.

Nas últimas horas houve uma avalanche de decisões. A Suíça aderiu às sanções, a Noruega, que tem o maior fundo soberano do mundo, avisou que sairá de ativos russos, a S&P classificou os papéis como lixo. Sucessivas empresas — Shell, BP, Daimler, Equinor — anunciaram o rompimento de parcerias com empresas russas. O país foi sendo cortado do espaço aéreo, do sistema financeiro, da economia produtiva, dos esportes. Quando Putin ameaçou usar o seu arsenal nuclear, os governos ocidentais superarem suas divisões sobre a suspensão ou não da Rússia do Swift e adotaram algo mais pesado: acertar direto o Banco Central russo. O BCR ainda mantém ferramentas para acalmar o mercado. Pode aumentar mais os juros, fornecer liquidez aos bancos, fazer um controle explícito de capitais, impor feriados bancários.

Apesar de todo o embargo, a Rússia continua recebendo dólares do canal das exportações de energia e justamente para a Europa, seu principal mercado. Além disso, a Rússia tem a China. Única grande economia a não impor sanções e, em certa medida, a apoiá-la. Mas até que ponto? Economistas e empresários que falam com os chineses avaliam que a China não quer ser o fiador de Vladimir Putin. A visão é a de que “não há nada que a China possa ganhar”. Vai ajudar, vai aliviar o sufoco, mas não resgatá-la.

A elite russa mostrou sinais de fissura. Celebridades, empresários, pessoas ligadas a famílias de assessores de Putin começaram a falar publicamente contra a guerra. O conflito no front econômico não interessa a nenhum dos oligarcas que sustentam Putin, centenas deles diretamente atingidos. A Rússia está sangrando financeiramente. Numa situação assim todos perdem. Mas não fica barato também para quem impõe as sanções. Não há um lugar longe o suficiente desta guerra de Vladimir Putin.

Com Alvaro Gribel (de São Paulo)

Clipping Rússia sitiada na economia, por Míriam Leitão, coluna do Globo, 01/03/2022


quarta-feira, 8 de julho de 2020

Intelectuais lançam manifesto contra cultura do cancelamento da esquerda

Estudante queima faixa com "Liberdade de Expressão" na Universidade de Berkeley
onde a liberdade de expressão foi outrora tão defendida
Que bom ver, enfim, as pessoas se manifestando contra a censura dos guerreiros da justiça social, mais conhecidos como fascistas do bem ou membros da "woke culture", termo que poderia ser traduzido para o português como cultura da lacração. Se alguém tiver melhor tradução para o termo que me informe, please.

Mas, então, trata-se daquele pessoal chatíssimo, cheio de moralismo hipócrita, que, em nome do ofendidismo, faz tempestade em copo d'água por qualquer deslize de fala de qualquer pessoa e luta por criminalizar até o pensamento da população, no melhor estilo 1984. E o pior dessa história é que esse tipo de fascismo não emergiu por imposição de um estado ditatorial, mas sim da própria sociedade e pelas mãos de herdeiros dos paladinos da liberdade no passado, os integrantes de movimentos sociais.

Em nome do ofendidismo e da vitimologia, os outrora libertários movimentos sociais estão corroendo as estruturas do estado democrático de direito como nunca se viu antes. Liberdade de pensamento, de consciência, de expressão, de reunião e de associação estão indo pelo ralo com uma rapidez impressionante.

Na universidade de Berkely (CA/EUA) estudantes pedem liberdade de expressão em 1967 e queimam faixa onde se lê liberdade de expressão em 2017
A sociedade precisa parar de se deixar chantagear por essa gente fascista, travestida de justiceira social, parar de pedir desculpas por preconceitos reais ou imaginários, por qualquer deslize de fala. Ninguém morre por se sentir ofendido vez ou outra. Ninguém tem a obrigação de negar sua própria percepção da realidade para validar visões ou identidades dos outros. Discurso de ódio é só o que incita a violência seja contra quem for ou a perda de direitos civis seja de quem for. No mais, nem injúria é discurso de ódio, quanto mais questionar os dogmas desse bando de insanos que querem apenas impor seu pensamento único e estúpido a todo mundo.

Abaixo texto sobre o manifesto que vários intelectuais subscreveram contra a a cultura do cancelamento da esquerda.
"Woke culture" é literalmente cultura do despertar, onde supostamente
 as pessoas se manteriam alertas todo o tempo contra as discriminações várias
Intelectuais lançam manifesto contra cultura do cancelamento na esquerda

WASHINGTON - Mais de 150 escritores, acadêmicos e intelectuais — incluindo Noam Chomsky, Salman Rushdie, Gloria Steinem, Margaret Atwood e Martin Amis, entre outros — assinaram uma carta aberta denunciando uma crescente “intolerância” por parte do ativismo progressista dos Estados Unidos contra ideias divergentes. Na opinião do grupo, isso está afetando ambientes acadêmicos e culturais, por meio de denúncia e boicote, “punição desproporcional” e uma consequente “aversão ao risco” que empobrece o debate público. “Devemos preservar a possibilidade de discordar de boa fé, sem consequências profissionais terríveis”, destacam.

O texto, publicado nesta terça-feira na revista “Harper’s”, com o título “Uma carta sobre justiça e debate aberto”, aplaude os protestos pela justiça racial e social, por maior igualdade e inclusão, mas alerta que esse “ajuste necessário de contas” também intensificou “um novo conjunto de atitudes morais e compromissos políticos que tendem a enfraquecer nossas normas de debate aberto e tolerância de diferenças em favor da conformidade ideológica”. “As forças do iliberalismo estão ganhando força no mundo e têm um poderoso aliado em Donald Trump, que representa uma ameaça real à democracia, mas não se pode permitir que a resistência imponha seu próprio estilo de dogma e coerção”, afirmam os autores.

Entre os signatários também estão os escritores George Packer, John Banville, J.K. Rowling e Malcolm Gladwell, entre outros, além de acadêmicos importantes como Francis Fukuyama, Michael Ignatieff e Mark Lilla.

Manifestantes atacam estátua do ex-presidente americano Andrew Jackson Foto: Tom Brenner / Reuters
Manifestantes atacam estátua do ex-presidente americano Andrew Jackson
Foto: Tom Brenner / Reuters
O grupo aborda uma crescente controvérsia nos Estados Unidos: se o novo limiar de tolerância zero a desigualdades como racismo, sexismo ou homofobia também estaria alimentando alguns excessos que buscam silenciar qualquer dissidência. É uma tendência que os críticos costumam chamar de “cultura do cancelamento”, em referência ao banimento e à denúncia de criadores ou professores por qualquer desvio da norma; ou de “woke culture” (do inglês, despertar), que se refere a uma atitude de alerta permanente.
A livre troca de informações e ideias, a força vital de uma sociedade liberal, está se tornando cada vez mais limitada. Enquanto esperávamos isso na direita radical, a atitude de censura está também se expandindo em nossa cultura”, diz a carta, que não menciona recentes controvérsias específicas com nomes e sobrenomes, mas descreve situações. “Os líderes institucionais, em uma atitude de pânico e controle de risco, estão aplicando punições duras e desproporcionais em vez de correções ponderadas. Editores são demitidos por publicar materiais controversos; livros são removidos por suposta inautenticidade, jornalistas são impedidos de escrever sobre certos assuntos; professores são investigados por citarem obras literárias durante aulas”, descreve o texto, entre outros exemplos.
Um dos casos controversos recentes foi a demissão de James Bennet, editor do “New York Times” no início deste mês, após a polêmica gerada pela publicação de um artigo de opinião do senador republicano Tom Cotton, no qual o político pedia uma resposta militar aos protestos desencadeados pela morte de George Floyd. A torrente de críticas dentro e fora da redação levou Bennet a pedir demissão e desculpas. Ele admitiu que o texto não deveria ter sido publicado e que não havia sido editado com rigor suficiente.

Ligado à mesma discussão, em 10 de junho, a Poetry Foundation anunciou a demissão de dois de seus líderes após uma carta de protesto de 30 autores que consideraram brando o seu comunicado denunciando a violência policial. Também foi demitida a presidente do Círculo Nacional de Críticos de Livros, e cinco outros membros se demitiram, em meio a uma briga nas redes sociais em relação à sua declaração pública contra o racismo. Ainda, um analista eleitoral, David Shor, foi demitido da plataforma Civis Analytics após a polêmica que surgiu por ter tuitado u estudo acadêmico de um professor de Princeton que alertou sobre os efeitos perversos de protestos violentos. Segundo a “New York Magazine”, alguns funcionários da empresa consideraram que o tuíte de Shor “colocava sua segurança em risco”.

O debate sobre onde termina a tolerância zero ao abuso e onde começa o apagamento da discrepância também se estende à revisão de estátuas e monumentos nacionais. Donald Trump, que adotou a guerra cultural como um de seus argumentos de campanha, se concentrou nessa questão em um longo discurso na noite de sexta-feira passada, na véspera de 4 de julho. “Nas nossas escolas, nossas redações, mesmo em nossos conselhos de administração, há um novo fascismo de extrema-esquerda que exige lealdade absoluta. Se você não fala a língua deles, pratica seus rituais, recita seus mantras e segue seus mandamentos, você será censurado, perseguido e punido”, disse o republicano.

Na carta, os intelectuais descrevem o presidente como uma “ameaça à democracia”, mas alertam: “a restrição do debate, seja por um governo repressivo ou por uma sociedade intolerante, prejudica invariavelmente aqueles que não têm poder e torna todos menos capazes de participação democrática”.”O caminho para derrotar as más idéias é a exposição, a argumentação e a persuasão, não tentando silenciá-las ou querendo expulsá-las. Como escritores, precisamos de uma cultura que nos deixe espaço para experimentação, risco e até erros. Devemos preservar a possibilidade de discordar de boa fé sem terríveis conseqüências profissionais”, concluem.

O texto também é assinado por Jeffrey Eugenides, Anne Applebaum, David Brooks, Enrique Krauze e Sean Wilentz, entre outros nomes.

Clipping Chomsky, Atwood e outros intelectuais lançam manifesto contra cultura do cancelamento na esquerda, O Globo, 07/07/2020

terça-feira, 26 de maio de 2020

Primeira-ministra da Nova Zelândia agita a Internet com suas medidas progressistas

Jacinda Stardust, ilustração criada por Todd Atticus em um café de Madri, deu a volta ao mundo: serigrafiada em camisetas, em cartazes e até impressa em jornais e capas de livros que analisam o fenômeno Jacinda.
As medidas progressistas da primeira-ministra agitam a Internet.
O que aconteceu para que já não sonhemos (tanto) com o modelo escandinavo?
Durante anos vivemos suspirando pela utopia escandinava e de outros países nórdicos. Queríamos ser mães na Finlândia. Sonhávamos com nossos filhos indo a creches a 300 reais por mês, tendo educação pública até o doutorado e com trabalhar no máximo oito horas por dia (mas de verdade). Que em Helsinque, se você perder a carteira e alguém a encontrar, a devolverá. Pois se eles tinham até uma palavra para a glória (pré-coronavírica) de ficar em casa, só de calcinha (kalsarikänni)! E uma sauna cada dois habitantes! Quem não gostaria de viver nesse país honrado que tinha encontrado a fórmula da felicidade? Mas o fato é que, há alguns meses, os progressistas utópicos deixaram de suspirar pela Finlândia. Agora esticam os olhinhos para Jacinda Ardern, novo ícone da utopia social. Todos sonham em se mudar para a Nova Zelândia. Para tomar a temperatura do assunto, basta dar uma olhada nas redes cada vez que Ardern propõe uma medida social:

“Amo você. O que tenho que fazer para morar aí?”, “Como fazemos para que você seja a presidenta de todo o planeta?”, “Como não te amar?”, “Quero uma presidenta como ela!”, “Jacinda fez de novo”, “Eu quero ir para a Nova Zelândia”, “Estou dentro”, “Nova Zelândia é tudo de bom” ou “Me levem pra láááá” são alguns dos entusiasmados comentários que acompanham os retuítes quando o EL PAÍS publicou no Twitter a última proposta de Ardern: estabelecer uma semana de trabalho de quatro dias para reativar a economia depois do impacto do coronavírus e assim poder impulsionar o turismo enquanto se ajuda os cidadãos a conciliarem a vida profissional com a pessoal.

Desde que virou primeira-ministra da Nova Zelândia aos 37 anos, em 2017, Jacinda Ardern, terceira mulher a chefiar o governo em seu país e a dirigente mais jovem desde 1856, tornou-se um ícone político pop da esquerda global. Especialmente entre os que transitam pela bolha da Internet progressista: são aqueles que aplaudiram seu gesto de calar os machistas quando lhe perguntaram por que não era mãe (já foi), ou os que a defenderam frente a uma campanha de desprestígio por parte da direita (#TurnAdern).

Seguindo o rastro de outra política pop, Alexandria Ocasio-Cortez, Ardern faz um uso estratégico das redes e não hesita em aparecer ao vivo no Instagram de moletom para conversar com seus seguidores sobre a crise do coronavírus. Também conta com ajuda externa: a conta do Facebook @NZLPMemes, supostamente sem origem política, aglutina uma comunidade de mais de 40.000 seguidores que curtem e viralizam memes positivos sobre as propostas de Jacinda. Todos a amam. A tal ponto que seu rosto estampa camisetas (que se esgotam). Uma busca no Google indicará 119.000 resultados para “Jacinda merchandise”. Existem bordados à venda por 35 euros (210 reais) que perguntam “WWJD”: What would Jacinda do? (“o que Jacinda faria?”), camisetas do “Team Jacinda” (“time Jacinda) a 42 euros (252 reais), máscaras repletas de mini-Jacindas a 9 euros (54 reais), ilustrações em que ela toma a forma da princesa Leia, da Mulher-Maravilha e até da personagem feminista Rosie the Riveter.

A iconografia feminista se alia, também, com a veneração pop: a ilustração de Jacinda Stardust, ressignificando a capa de Bowie concebida pela mãe da estilista Phoebe Philo para a capa do seu álbum Aladdin Sane, é uma das mais populares e reproduzidas. Foi inventada pelo artista Todd Atticus em um café de Madri em apenas duas horas, depois que o principal rival dela na campanha, Bill English, a tentou menosprezar em um debate televisivo dizendo:
Agora que a poeira de estrelas [stardust, nome também do personagem de Bowie] assentou, podemos ver a fragilidade das suas propostas”.
Como aconteceu com o “Nevertheless she persisted” (“Entretanto, insistiu”) contra Elizabeth Warren, a desqualificação se transformou em lema viral a favor dela. Três anos depois daquela frase, sua fama e a veneração por seu país não diminuíram em nada.

Primeira-ministra da Nova Zelândia comenta terremoto ao vivo na TV ...
Jacinda Ardern anunciou corte de 20% nos salários dos executivos públicos,
ministros e, naturalmente, dela mesma.
Por que a Internet quer se mudar para a Nova Zelândia?

O que tem um pequeno país do sudoeste do Pacífico com menos de cinco milhões de habitantes para que todos o idealizem atualmente? Uma líder carismática que aposta nas políticas sociais. Ardern se somou à lista de líderes mulheres que provaram uma eficaz gestão sanitária e social perante o coronavírus —aprovou uma lei que, sob o lema de “bata firme e bata rápido”, conseguiu achatar a curva da pandemia em apenas três semanas (com apenas 21 mortos até o momento). Embora sejam os programas, as pautas de ação e a ideologia que definam os resultados, e o gênero não seja critério exclusivo para a validade de uma política, Ardern provou que a Nova Zelândia é um país apetecível para viver.

Ardern abriu o caminho a uma política aglutinadora quando disse aquilo de “eles são nós” e soube administrar a crise decorrente de um ataque terrorista do supremacismo branco contra mesquitas, cobrindo-se com um hijab e abraçando os familiares das vítimas em um ato público:
Não foi fraqueza o que Jacinda Ardern mostrou: exibiu, pelo contrário, uma força incomum na classe política dirigente, reconhecendo a vulnerabilidade como o ponto de referência para pensar a política a partir de outro lugar”, escreveu Máriam Martínez-Bascuñán a propósito desse gesto.
Também disse que seu país estava “no lado certo da história” na luta contra a mudança climática quando aprovou a histórica lei do carbono zero e se comprometeu a eliminar as emissões de gases do efeito estufa até 2050, como exige o Acordo de Paris.

Seu governo de coalizão aprovou um dos pacotes sociais mais aplaudidos contra a epidemia da ansiedade e frente aos elevados índices de violência de gênero detectados ao chegar ao cargo (está entre as piores posições da OCDE). Investiu o equivalente a cerca de seis bilhões de reais ao todo, dos quais uma boa parte se destinará ao chamado “centro perdido”: os neozelandeses que sofrem ansiedade leve a moderada e transtornos depressivos, os que estão num ponto intermediário e não precisam de hospitalização, mas cujo mal-estar afeta significativamente sua qualidade de vida. Também anunciou que investirá outro bilhão de reais em políticas contra a violência contra mulheres, entre as quais se inclui uma rede de refúgios para mulheres que sofrem maus-tratos, assistência às cidadãs maoris e cursos educativos para advogados.

Por causa da crise do coronavírus, anunciou um corte de 20% nos salários dos executivos públicos, ministros e, naturalmente, dela mesma. E tornou a fazer história ao propor estabelecer uma semana trabalhista de quatro dias para reativar a economia depois do impacto do coronavírus. “Ouvi muita gente dizer que deveríamos ter uma semana de trabalho de quatro dias. É um acordo que deve ser feito entre empregador e empregado. Mas aprendemos muito durante a covid-19, a flexibilidade das pessoas que trabalham de casa e a produtividade que se pode tirar disso”, afirmou. Quem poderia assumir seu lugar? Enquanto isso, a Internet continuará sonhando em se mudar para a Nova Zelândia.

Clipping Jacinda Ardern torna a Nova Zelândia a nova utopia para onde todo mundo quer se mudar, Noelia Ramírez, 25/05/2020, El País.

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Governos chefiados por mulheres viram exemplo de combate à pandemia do coronavírus

Angela Merkel
Chanceler alemã, Angela Merkel, chega ao Parlamento Foto: AFP / Bernd von Jutrczenk 
As respostas dos países à crise do coronavírus têm sido variada e de resultados heterogêneos, mas as de maior sucesso têm em comum governos chefiados por mulheres. Em dois exemplos, Alemanha e Nova Zelândia, as estratégias foram diferentes, mas o êxito foi parecido, em comparação a outras grandes economias.

No primeiro caso, na Alemanha, o governo da chanceler Angela Merkel realizou um vasto número de testes, ofereceu milhares de leitos de UTI e equipou seu pessoal de saúde com as proteções necessárias para lidar com a pandemia. O país foi atingido duramente pelo vírus, mas com uma taxa de mortalidade baixa, cerca de 1,6%. Em comparação, na Itália, ela foi de 12%, na Espanha e no Reino Unido, de 10%.

A Nova Zelândia, liderada por Jacinda Ardern, também se destacou com apenas 9 mortes. Muito graças a sua geografia e tamanho: o país tem apenas 5 milhões de habitantes, menos do que a cidade de São Paulo. No entanto, a liderança de Ardern também contribuiu. Ela determinou testes em massa e tomou a rápida decisão de fechar fronteiras e ordenar o isolamento no início da pandemia.

O que é importante não é a questão de gênero do líder, mas a habilidade do país de eleger o melhor candidato, independentemente do sexo”, escreveu a colunista Emma Burnell do jornal Independent.

Jacinda Ardern
A primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, carrega sua filha recém-nascida, Neve Te Aroha Ardern Gayford, ao lado de seu marido, Clarke Gayford, ao deixar o Hospital de Auckland. Foto: REUTERS/Ross Land - 24 de Junho de 2018
Uma das respostas mais rápidas à pandemia foi a da presidente de Taiwan, Tsai Ing-wen. No dia 31 de dezembro, no mesmo dia em que soube do surgimento de um vírus em Wuhan, até então desconhecido, ela determinou que todos os passageiros retornando da cidade deveriam ser investigados. Somente alguns dias depois é que a Organização Mundial da Saúde (OMS), organismo do qual Taiwan não faz parte, viria a declarar que o vírus era transmissível entre humanos.

Em janeiro, dois meses antes de a OMS declarar a pandemia, Tsai apresentou 124 medidas para evitar que o vírus se espalhasse sem ter de recorrer ao isolamento total, que viria a ser adotado em vários países mais tarde. Hoje, Taiwan contabiliza um saldo de 393 casos e apenas 6 mortes.

A presidente de Taiwan, Tsai Ing-wen, recebeu apoio depois de recusar os apelos do presidente da China, Xi Jinping Foto: Billy H.C. Kwok/The New York Times.
Na Finlândia, Sanna Marin, a chefe de Estado mais jovem do mundo, de 34 anos, comanda uma cruzada contra a pandemia usando as redes sociais e influenciadores digitais, que vem ajudando o país a manter números baixíssimos de infectados – apenas 3 mil. O sucesso da premiê finlandesa é tão grande que uma pesquisa recente indicou que seu desempenho durante a crise recebeu a aprovação de 85% dos eleitores.

A jovem Sanna Marin após a eleição que a definiu como primeira-ministra.
Foto: Vesa Moilanen/ Lehtikuva /Reuters
De acordo com reportagem da revista Forbes, a Islândia, sob a liderança da jovem primeira-ministra Katrín Jakobsdóttir, também é um caso à parte. Seu governo está oferecendo testes gratuitos para todos os cidadãos, com ou sem sintomas – o país já testou 10% da população. O país registrou 1,7 mil casos e apenas 8 mortos. O governo islandês instituiu também um sistema completo de rastreamento de casos, permitindo que não fosse necessário o isolamento ou fechamento de escolas.

Clipping Governos liderados por mulheres viram exemplo de combate à pandemia, Estadão, 15/04/2020




terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

“Direito negativo” e “direito positivo” como base da democracia americana



Fernão Lara Mesquita resume muito bem, em artigo no Esatadão, como funciona a democracia americana, baseada nos direitos negativos e positivos, no federalismo, na representação distrital pura e no recall ou retomada de mandatos. Destaco as definições didáticas dos chamados direitos de primeira, segunda e terceira geração (os negativos e os positivos), mas o artigo todo vale a leitura.

Direitos de primeira geração: “Direito negativo” é o de não ser submetido à ação coercitiva de outra pessoa ou do governo. Eles o têm por um direito natural, também dito de primeira geração. Fixa os círculos do espaço individual que as pessoas naturalmente sabem que não devem invadir: o do corpo, o do lar, o dos pertences, o da propriedade. 

Direitos de segunda geração: Decorrem dos primeiros como desdobramentos civis e políticos, ditos de segunda geração, o direito à vida, à liberdade de expressão, à liberdade religiosa, à legítima defesa, ao habeas corpus, a um julgamento justo, etc.

Direitos de terceira geração: Já os “direitos positivos”, ditos de terceira geração, são os que requerem a ação de uma terceira pessoa para serem exercidos por quem vai desfrutá-los. Enquanto um “direito negativo” proíbe alguém ou o governo de agir contra o seu beneficiário, um “direito positivo” obriga outras pessoas ou o governo a agirem em benefício do seu detentor. Incluem-se nesse departamento os direitos sociais e culturais, tais como à comida, à habitação, à educação, a um emprego, à saúde, à seguridade social, ao acesso à internet ou o que mais se quiser incluir na lista, que, no Brasil, por exemplo, é infindável.

A chave da moderna democracia americana
Trata-se da distinção que eles fazem entre ‘direito negativo’ e ‘direito positivo’

A chave para o entendimento do sistema institucional americano é a distinção que eles fazem entre “direito negativo” e “direito positivo”.

“Direito negativo” é o de não ser submetido à ação coercitiva de outra pessoa ou do governo. Eles o têm por um direito natural, também dito de primeira geração. Nasce com e pertence a todas as pessoas, e está garantido enquanto ninguém agir para violá-lo. A common law, o direito baseado na tradição que foi comum a toda a Europa, mas só sobreviveu na Inglaterra depois do advento do absolutismo monárquico que o nosso “direito romano” foi inventado para sustentar, fixa os círculos do espaço individual que as pessoas naturalmente sabem que não devem invadir: o do corpo, o do lar, o dos pertences, o da propriedade. Essa é a base do “direito negativo”. E desses círculos decorrem os seus desdobramentos civis e políticos, ditos de segunda geração, o direito à vida, à liberdade de expressão, à liberdade religiosa, à legítima defesa, ao habeas corpus, a um julgamento justo, etc.

Já os “direitos positivos”, ditos de terceira geração, são os que requerem a ação de uma terceira pessoa para serem exercidos por quem vai desfrutá-los. Enquanto um “direito negativo” proíbe alguém ou o governo de agir contra o seu beneficiário, um “direito positivo” obriga outras pessoas ou o governo a agirem em benefício do seu detentor. Incluem-se nesse departamento os direitos sociais e culturais, tais como à comida, à habitação, à educação, a um emprego, à saúde, à seguridade social, ao acesso à internet ou o que mais se quiser incluir na lista, que, no Brasil, por exemplo, é infindável.

Lá a Constituição da União, elaborada pelos “pais fundadores” iluministas, contempla exclusivamente os “direitos negativos”, o que, na medida em que ela subordina todas as outras leis, estabelece a prevalência destes sobre os “direitos positivos”. Diz, no preâmbulo, que todo o poder emana do povo, que o delega aos seus representantes eleitos por sufrágio universal e define nos seus sete artigos, pela ordem, o Congresso dos representantes do povo, a Presidência, o Judiciário, as relações entre os Estados e deles com a União e as regras para emendar a Constituição. As emendas da 1.ª à 8.ª garantem os já citados direitos de segunda geração que decorrem dos círculos de inviolabilidade do indivíduo. A 9.ª e a 10.ª (para encerrar a disputa de egos entre os convencionais de 1787, que queriam cada um enfiar um direito a mais) declaram que tudo o que não está formalmente proibido até ali “são direitos que pertencem ao povo ou aos Estados”. Todos os temas da alçada do “direito positivo” que recheiam de ponta a ponta a nossa Constituição federal lá ficam, portanto, restritos às Constituições estaduais e municipais.


E aí vem o pulo do gato.

Como todo “direito positivo” (artificialmente criado) implica uma violação do “direito negativo” (inato, natural) de não ser coagido a nada nem ter o que é seu apropriado pelos outros, eles só podem ser criados, nos países de common law, por contrato, isto é, se todas as partes envolvidas concordarem com isso numa votação. E como cada “direito positivo” tem um custo, o projeto que o propõe tem de incluir obrigatoriamente o seu esquema de financiamento: qual será a despesa, quem arcará com ela, como e quando ela será paga.

Ou seja, não existe a hipótese de se fazer caridade com dinheiro alheio. Quem se dispuser a tanto deve usar o seu próprio.

Correndo em paralelo com a diferenciação entre “direito negativo” e “direito positivo” está o princípio do federalismo, a mais forte garantia em países de dimensão continental e ampla diversidade de situações de que o sistema estará sempre voltado para servir ao indivíduo e jamais poderá acumular poder suficiente para voltar-se contra ele. Cada instância de governo - a municipal, a estadual e a federal - é definida em função do seu grau de proximidade do indivíduo e deve ser absolutamente soberana até o limite do alcance dele. Tudo o que diz respeito a uma única comunidade - a escolha do seu modelo de governo, policiamento local, saneamento, vias públicas, educação, saúde, proteção contra incêndios, normas de comércio, etc. - deve ser decidido e custeado por ela própria e mais ninguém, respeitadas as linhas básicas da Constituição. Só o que envolver mais de uma comunidade - estradas, transporte intermunicipal, circulação de bens, repressão ao crime, sistema penal, etc. - deve ficar a cargo dos governos estaduais. E somente o que não pode ser resolvido por um único governo estadual fica a cargo da União.

Acrescenta-se finalmente à fórmula um sistema preciso de representação dos eleitores em cada uma dessas instâncias de governo, o que se consegue com eleições distritais puras, em que cada distrito elege apenas um representante. Tudo começa pela eleição do conselho que vai dirigir cada escola pública entre os moradores de cada bairro do país. E daí vai subindo para os municípios, para os Estados, para a União. Sempre com cada representante, com base no endereço, sabendo exatamente quem é cada um dos seus eleitores. Sempre com cada representado guardando o poder de manter ou não o seu representante até o fim do mandato (recall ou retomada de mandatos), de obrigá-lo a tratar dos assuntos que ele indicar (leis de iniciativa popular), de impedi-lo de impor-lhe o que quer que seja (referendo das leis vindas de cima), de afastar juízes lenientes ou enviesados (com eleições periódicas de retenção ou substituição de juízes).

Com essas liberdade e flexibilidade, aos poucos o sistema foi evoluindo segundo a necessidade e a preferência de cada comunidade. O bairro vota - sim ou não - um melhoramento da escola a ser pago com um aumento temporário só do seu IPTU; a cidade, a contratação de mais policiais ou a construção de um novo hospital mediante um aumento temporário da taxa local de comércio; o Estado, uma nova estrada a ser paga pelos seus usuários mediante pedágio...

E fez-se a luz... sempre na medida e no preço exatamente desejados.

Fonte: O Estado de São Paulo, por Fernão Lara Mesquita, 26/02/2019

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

A origem das ideias do bolsonarismo



As ideias esdrúxulas do bolsonarismo vêm em boa parte do astrólogo-filósofo Olavo de Carvalho que, por sua vez, bebeu na fonte do conservador americano chamado William S. Lind. No documentário chamado The History of Political Correctness (a história do politicamente correto), de 1999 (ver abaixo), Lind apresentou suas teses do "marxismo cultural", a suposta luta da esquerda no campo da cultura para se apropriar das escolas, universidades, editoras, da imprensa e das artes via movimentos sociais, professores, jornalistas e outros agentes esquerdistas. O objetivo dessa articulação toda seria destruir a civilização ocidental, judaico-cristã e a família tradicional.

Na imaginação direitista, o centro irradiador dessa nova forma de tomada de poder teria sido a Escola de Frankfurt, instituto de pesquisa, criado na Alemanha em 1923, por intelectuais neomarxistas, cujo pensamento se baseava na união do materialismo marxista com a psicanálise. Os estudos desses filósofos ficaram conhecidos como Teoria Crítica, teoria que buscava analisar as condições sociopolíticas e econômicas, reinantes em seu tempo, visando aplicá-la à transformação da realidade. Com a ascensão do nazismo, alguns membros da Escola, que eram judeus, como Adorno, Horkheimer, Marcuse e outros, fugiram para os Estados Unidos,  de onde teriam continuado seu trabalho de perverter não só a sociedade americana mas o mundo todo (na teoria conspiratória, claro).

De fato, existe uma tradição de esquerda que critica os valores da sociedade capitalista e defende a disputa das instituições culturais com a direita. Antonio Gramsci, comunista italiano, foi um dos notórios defensores da conquista da hegemonia cultural de esquerda que realmente prevalece na intelectualidade, no meio artístico e na imprensa do Brasil e do mundo ocidental no todo. Igualmente Herbert Marcuse, da Escola de Frankfurt, foi um dos grandes mentores da contracultura (e da libertação sexual) dos anos 60/70, que, por sua vez, gerou os chamados modernos movimentos sociais como o negro, feminista, gay e ambientalista.


Os ativistas destes movimentos, aliás, na teoria do marxismo cultural, seriam agentes destacados da desconstrução da família nuclear patriarcal e da invenção da tal ideologia de gênero, onde crianças poderiam definir seu sexo/gênero à revelia da natureza. Colaboram para essa mistificação, o fato do atual movimento de travestis, transsexuais e transgêneros, um agregado do movimento de gays e lésbicas, ir sim por essa linha com a chamada identidade de gênero. Aliás, há muito mais em comum entre a ideologia de gênero e a identidade de gênero do que sonham as vãs filosofias.

Agora, com base nesses dados dispersos, os bolsominions, olavetes et caterva fizeram e fazem o samba do conservador doido misturando personagens e eventos desconexos no tempo e no espaço para fomentar a teoria conspiratória do marxismo cultural mundial que existiria na imprensa, em Hollywood ou na Globo, financiado pelo bilionário George Soros (sic). 

Por mais desconjuntada que seja essa teoria, ela pegou no Brasil, culminando com a chegada de Bolsonaro ao poder, e no mundo. Combater o suposto marxismo cultural, em suas respectivas áreas, está na boca dos ministros da Educação, Ricardo Vélez Rodriguez, das Relações Exteriores, Ernesto Araújo (indicados por Olavo de Carvalho) e da Ministra Damares Alves, Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos que não para de dizer bobagens reacionárias. Pelo mundo, outras lideranças conservadoras, em países como a Hungria, a Itália e a Polônia, também embarcaram na teoria conspiratória do marxismo cultural, a ponto da universidade criada na Hungria por George Soros, suposto financiador do marxismo cultural internacional, estar sendo expulsa do país pelo presidente Viktor Orbán.

Na verdade, a teoria conspiratória do marxismo cultural é como uma monumental fofoca, assentada em dados reais mas distorcida no resultado pelas misturas díspares das quais se constitui (na base do "quem conta um conto aumenta um ponto"), e que cresceu para se transformar em simples paranoia e mistificação. Serve mais aos eternos propósitos conservadores de evitar mudanças, ou desfazê-las, a qualquer preço e, sobretudo, de evitar a igualdade de oportunidades perante às leis e perante à vida para todas e todos.


quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Contrariando as previsões e o bom senso, o magnata da vulgaridade ganha a Presidência da República dos EUA

Contrariando todas as previsões e o bom senso, Donald Trump ganhou no colégio eleitoral americano, embora Hillary Clinton até agora venha vencendo no voto popular. Como o processo eleitoral americano é exótico, para dizer o mínimo, quem levou a presidência foi o magnata do absurdo. 

O mundo está em choque com a notícia. Só quem comemora é a extrema-direita. Na prática,  para os americanos, a vitória de Trump representa, nas palavras do jornalista David Remnick, do The New Yorker: "...uma Suprema Corte mais reacionária (Trump deve indicar alguém à sua semelhança), um Congresso mais abertamente direitista e um Presidente que demonstrou repetidamente desprezo pelas mulheres e minorias, as liberdades civis e os fatos científicos, sem falar pela simples decência." Trump será um enorme teste para a conhecida estabilidade da democracia americana, para a solidez de suas instituições. 

Em relação ao mundo, Trump representa uma economia americana mais fechada, protecionista, dificultando o comércio internacional com os EUA. Significa igualmente portas fechadas para os imigrantes em geral, especialmente mexicanos. Do ponto de vista da geopolítica, todos temem o que ele possa aprontar, considerando sua índole belicosa e suas ideias extravagantes. De novo, espera-se que a tão decantada estabilidade da democracia americana consiga segurar esse rojão. Serão anos de muitas incertezas e vulgaridades na Casa Branca.

Para o jornalista Luis Prados do El Pais, os eleitores de Trump não só escolheram um futuro de incertezas como deram as costas ao melhor da América.
O suicídio da democracia
Eleitorado de Trump deu as costas à tradição política que tornou a América grande

A eleição de Donald Trump como 45º presidente dos EUA é uma anomalia na tradição política deste país desde a sua fundação. Ao longo da campanha, o candidato republicano não só desafiou a correção política, tornando aceitáveis todos os seus insultos às mulheres, aos negros, aos mexicanos e aos muçulmanos, como também chegou a desafiar a própria base da democracia, ao anunciar que só aceitaria o resultado se ganhasse. A vitória de Trump coloca em risco uma Constituição que inclusive resistiu a quatro anos de Guerra Civil e que foi concebida pelos Pais Fundadores, há mais de dois séculos, para evitar que a jovem república pudesse algum dia ser sequestrada por um autocrata ou um demagogo. O impossível há apenas alguns meses se tornou provável em questão de semanas, e uma realidade na noite desta terça-feira. Os milhões de norte-americanos eleitores de Trump não só escolheram um futuro de incertezas. Deram as costas ao melhor da América.

Vale a pena, nesta madrugada amarga para os Estados Unidos e para o mundo, recordar a esses eleitores as palavras daqueles presidentes que realmente tornaram a América grande:

George Washington (1732-1799)

“O Governo não é uma razão, tampouco eloquência, é força. Funciona como o fogo; é um serviçal perigoso e um senhor terrível; em hipótese alguma se deve permitir que mãos irresponsáveis o controlem.”

John Adams (1735-1825)

“Lembrem-se, a democracia não dura muito. Logo se desgasta, se esgota e assassina-se a si mesma. Nunca existiu uma democracia que não cometesse suicídio.”

Thomas Jefferson (1743-1828)

“Sustentamos como evidentes estas verdades: que todos os homem são criados iguais; que são dotados por seu criador de certos direitos inalienáveis; que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade.”

“Quando os governos temem as pessoas, há liberdade. Quando as pessoas temem o Governo, há tirania.”

James Madison (1751-1836)

“Os casos nos quais a liberdade das pessoas é limitada por meio do assédio gradual e secreto por parte de quem está no poder são muito mais numerosos que os produzidos por usurpações repentinas.”

Abraham Lincoln (1809-1865)

“É possível enganar a todos por algum tempo. É possível enganar a alguns o tempo todo. Mas não é possível enganar a todos o tempo todo.”

Woodrow Wilson (1856-1924)

“A América não foi criada para gerar riquezas, e sim para tornar realidade uma visão, para tornar realidade um ideal, para defender e manter a liberdade dos homens.”

Franklin D. Roosevelt (1882-1945)

“Não temos nada a temer a não ser o próprio medo.”

“Os homens não são prisioneiros do destino, são prisioneiros apenas das suas próprias mentes.”

“Um radical é alguém com os pés fortemente plantados no ar”.

John F. Kennedy (1917-1963)

“Deve ser possível, num curto prazo, que todo norte-americano possa desfrutar dos privilégios de ser norte-americano sem importar sua raça ou cor.”

“Agora que a América é a potência mais poderosa do mundo, o grande problema consiste na maneira de conservar sua força e ao mesmo tempo suas tradições de liberdade individual. Este é o grande problema do nosso futuro.”

Fonte: El País, 09/11/2016


segunda-feira, 20 de junho de 2016

O atentado à boate gay em Orlando foi um ataque homofóbico de terrorismo islâmico

O fla-flu esquerda-direita não atrofia os cérebros só no Brasil, associado ou não ao politicamente correto, ao multiculturalismo ou ao raio que os parta. O fenômeno é mundial. Por ocasião do horrendo ataque à boate LGBT em Orlando (12/06), nos EUA, esquerdistas e direitistas mundiais passaram a encaixar a complexidade do fenômeno em suas estreitas caixinhas narrativas. Os de esquerda buscaram reduzir o massacre a um ataque homofóbico assim por acaso cometido por um sujeito espiritual e inclusive praticamente (a confirmar) ligado ao famigerado Estado Islâmico. Ah! e, claro, a dissociar mais esse ataque contra ocidentais, em nome de Alá, da religião que o inspira. Tudo seria culpa apenas de extremistas islâmicos que não representam a massa de muçulmanos que é pacífica (até prova em contrário). Sem falar na responsabilização das armas de fogo pela tragédia, como se armas tivessem vida própria e pudessem sair por aí cometendo massacres. O que não quer dizer que concorde com a venda de armas, inclusive pesadas, como se comercializa coca-cola.

Os de direita passaram a reduzir o atentado a mais um ataque islâmico a ocidentais, onde a homofobia estaria apenas sendo usada como desculpa para desviar a atenção da raiz do problema. As notícias de que o criminoso também poderia ser homossexual, por ter sido visto antes do atentado na boate e por usar aplicativo de encontros para gays, alimentaram o reducionismo. Afinal, se o cara era gay, não se poderia identificar o crime como homofóbico. Não fosse um islâmico o autor do atentado, a versão direitista seria a da "apenas mais uma briguinha sangrenta e desta vez de grandes proporções 'entre eles'."
O crime de homofobia é aquele motivado pelo ódio à homossexualidade real ou presumida da vítima.
Primeiro, cumpre salientar que o cara poderia frequentar a boate exatamente para ver como melhor cometer o atentado. Segundo, mesmo que mantivesse relações sexuais com homens, com certeza tal fato não se dava tranquilamente em sua cabeça, considerando a visão islâmica sobre o tema (ver a propósito fala de um xeique no vídeo abaixo). Terceiro, o crime de homofobia não tem a ver exclusivamente com a orientação sexual do criminoso nem da vítima, embora, em geral, sejam héteros os criminosos e homossexuais as vítimas. O crime de homofobia é aquele motivado pelo ódio à homossexualidade real ou presumida da vítima. Pessoas heterossexuais podem ser vítimas de homofobia, bastando ser confundidas com homossexuais. Deixo dois exemplos, à guisa de ilustração: 'Não pode nem abraçar o filho', diz homem que teve orelha cortada e Mantida prisão preventiva de homem acusado de agredir irmãos gêmeos por considerá-los homossexuais. E pessoas homossexuais podem ser tão mal resolvidas e alienadas a ponto de odiar a si mesmas e a seus pares e apoiar gente como o homofóbico deputado Jair Bolsonaro.

Felizmente, não me senti só desta vez na análise não maniqueísta de mais essa tragédia provocada por um extremista islâmico. Não só aqui no Brasil como em outros países, ainda há aquelas e aqueles entre nós que pensam além das caixinhas de narrativas ideológicas e buscam ver a realidade como de fato se apresenta. Destaco abaixo o texto de uma colunista portuguesa, do site Observador, que vai bem ao encontro dessa perspectiva não reducionista. Como sabemos, o atentado de Orlando foi homofóbico e de terrrorismo islâmico. Ao fim do texto, deixo também o vídeo de um desses clérigos islâmicos, por ocasião de uma palestra que deu em Sanford, Flórida, em 2013, e sua ideia de matar homossexuais por compaixão (sic).  Em recente viagem à Austrália, o famigerado xeique teve que deixar o país pelas absurdas ideias que professa e corre o risco de ter seu visto cancelado. O exemplo australiano precisa ser seguido em todo o mundo civilizado.

Vários níveis de tragédia
Maria João Marques

Subimos mais um patamar de tontice: os atentados terroristas islâmicos já não são atentados terroristas islâmicos. O que significa que subimos também um degrau na ineficácia da contenção do terrorismo.

... impressionou-me particularmente desta vez ( sobre o atentado de Orlando), a tremenda propensão que tantas pessoas têm para catalogar um evento complexo e arrumá-lo numa caixinha pequenina onde fica reduzido a ocorrência monotemática.

O criminoso que matou em Orlando era muçulmano, avisou que fazia o atentado em nome do ISIS, declarou as imbecilidades do costume (estava tão incomodado com as mortes de inocentes provocadas pelo Ocidente no Iraque e na Síria que ia matar mais gente inocente como protesto), vários relatos colocam-no como simpatizante do extremismo islâmico, já tinha ido duas vezes à Arábia Saudita (esse país encantador e moderado). Mas não, o atentado de Orlando não é terrorismo islâmico, onde é que eu fui buscar esta ideia?

Só por acaso aquela criatura que matou gente em Orlando era muçulmano. Tal como só por acaso os atiradores do Charlie Hebdo e do supermercado judaico eram muçulmanos. Ou o casal que matou uma dúzia e picos em San Bernardino. Ou os terroristas do Bataclan. Ou mais outras dezenas de exemplos. Tudo acasos curiosos. Improbabilidades estatísticas a ocorrerem inexplicavelmente. De resto, tenho a certeza que todos comentaram com alguém ‘já sabe que houve um atentado terrorista islâmico em Orlando?’ e receberam de resposta ‘Terrorismo islâmico? A sério? Não estava nada à espera.’

Já era frequente ouvirmos a tontice ‘o islã não tem nada a ver com terrorismo’. Tem. Os muçulmanos não são psicopatas, evidentemente, e a maioria é pacífica. Mas a religião é belicosa e inaceitavelmente bárbara para os padrões civilizados europeus. Agora subimos um patamar de tontice: os atentados terroristas islâmicos já não são atentados terroristas islâmicos. Como combater um problema costuma começar pela identificação do problema, subimos também um degrau na ineficácia da contenção do terrorismo.

A criatura de Orlando – que podia ele próprio ser gay – atacou um bar LGBT. Ora este fato leva a dois tipos de reações. Uns dizem que afinal foi só um ataque homofóbico. O primeiro-ministro Costa, num deplorável tuite – que parecia tirado de um livro de autoajuda para pessoas com QI abaixo de 95 – já veio culpar a ‘homofobia’ pelo atentado. Uma alma da Isquierda Unida de Espanha concluiu que as mortes eram resultantes do ‘heteropatriarcado’. Viram? Afinal era só ódio a gays, nada de terrorismo islâmico. Aquelas tiradas sobre o ISIS foram um momento de humor, daquele afiado e seco, do criminoso antes de matar gente.

Se algum dia um muçulmano, declarando fidelidade a uma qualquer organização terrorista, entrar numa conferência de feministas e matar mulheres, vai ser só um ataque machista – ponto. O extremismo islâmico nem costuma acumular com ódio à igualdade dos sexos. Já a ocupação de uma escola em Beslan, por terroristas tchetchenos, também não teve nada de terrorismo islâmico. Segundo a lógica, foi contra as crianças. Vai-se a ver e era só algum jovem pai revoltado por ter de mudar as fraldas ao seu filho recém-nascido a meio da noite.

Outros recusam que o ataque a um bar LGBT tenha sido um ataque homofóbico. Como se espantasse alguém que o radicalismo islâmico (e o islã moderado, já agora) contenha homofobia. Como se o repúdio pelas liberdades sexuais do Ocidente – sobretudo das mulheres e dos homossexuais – não fosse uma pedra basilar do fundamentalismo muçulmano. Como se não pudesse ser simultaneamente homofobia e terrorismo islâmico. Os mortos de Orlando foram escolhidos por serem gays, não por serem uns americanos ao calhas. Este ataque homofóbico reforça a índole antiocidental do terror islâmico, não a anula.

Mas há espíritos que não aceitam que uma realidade possa ser complexa e multifacetada. Nem um atentado terrorista. Se formos então para manifestações mais insidiosas, como um mayor de Londres muçulmano a proibir anúncios nos transportes públicos com mulheres despidas, prevemos que vários cérebros curto-circuitem. De fato, cada vez mais as rígidas imposições islâmicas às indumentárias femininas se aproximam do puritanismo da esquerda progressista que clama contra a objetivação das mulheres.

Bom, nisto de islã, celebremos uma pequena redenção desta semana: os clérigos do Paquistão decretaram que os assassínios ditos de honra (de mulheres, claro) são anti-islâmicos. Está, assim, desfeita a magna dúvida sobre a bondade de regar de gasolina e a seguir incendiar uma mulher que casou com quem a família não aprovou.

Texto na íntegra aqui. 15/06/2016


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