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terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Lista da BBC Culture dos 100 melhores filmes realizados por mulheres

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O Piano (1003) de Jane Campion, primeiro lugar entre os 100 filmes de diretoras (ver abaixo)
A BBC Culture lançou uma lista dos 100 melhores filmes realizados por mulheres. Desta lista resultou uma análise internacional de especialistas em cinema onde participaram 368 críticos, académicos, figuras da indústria e programadores de cinema de 84 países diferentes.

“Cléo das 5 às 7” – [Cléo de 5 à 7, França, 1962]
O filme mais votado por “The Piano” (1993), de Jane Campion, que obteve 43,5% dos votos dos críticos.
Os críticos votaram em 761 filmes diferentes no total. Agnès Varda foi a realizadora mais popular em termos de número de filmes, com 6 filmes entre os 100 melhores, seguida por Kathryn Bigelow, Claire Denis, Lynne Ramsay e Sofia Coppola.
É com satisfação que apresentamos a maior e mais internacional lista de críticos de cinema da BBC Culture”, disse Rebecca Laurence, editora da BBC Culture. “Ficámos impressionados com a enorme resposta: 368 críticos, académicos, figuras da indústria e programadores de filmes de 84 países diferentes. E temos o prazer de informar que o número de votantes é equilibrado em termos de sexo, com um número ligeiramente maior de mulheres do que homens. Esperamos, como sempre, que esta lista provoque debates e inspire a descoberta da maravilhosa e diversificada coleção de filmes criados por mulheres ao longo da história do cinema.”, acrescentou a editora.
A análise mostra ainda que a maioria dos 100 melhores filmes são das décadas de 1990 e 2000. Os anos mais populares são 1999, 2008 e 2017, com cinco filmes cada. Estados Unidos, França, Reino Unido, Alemanha, Itália, Bélgica, Canadá, Japão foram os países mais populares.

Lista completa:

100. The Kids are All Right (Lisa Cholodenko, 2010)
99. The Souvenir (Joanna Hogg, 2019)
98. Somewhere (Sofia Coppola, 2010)
97. Adoption (Márta Mészáros, 1975)
96. The Meetings of Anna (Chantal Akerman, 1977)
95. Ritual in Transfigured Time (Maya Deren, 1946)
94. News From Home (Chantal Akerman, 1977)
93. Red Road (Andrea Arnold, 2006)
92. Raw (Julia Ducournau, 2016)
91. White Material (Claire Denis, 2009)
90. Fast Times at Ridgemont High (Amy Heckerling, 1982)
89. The Beaches of Agnes (Agnès Varda, 2008)
88. The Silences of the Palace (Moufida Tlatli, 1994)
87. 35 Shots of Rum (Claire Denis, 2008)
86. Wadjda (Haifaa Al-Mansour, 2012)
85. One Sings, The Other Doesn’t (Agnès Varda, 1977)
84. Portrait of Jason (Shirley Clarke, 1967)
83. Sleepless in Seattle (Nora Ephron, 1993)
82. At Land (Maya Deren, 1944)
81. A Girl Walks Home Alone at Night (Ana Lily Amirpour, 2014)
80. Big (Penny Marshall, 1988)
79. Shoes (Lois Weber, 1916)
78. The Apple (Samira Makhmalbaf, 1998)
77. Tomboy (Céline Sciamma, 2011)
76. Girlhood (Céline Sciamma, 2014)
75. Meek’s Cutoff (Kelly Reichardt, 2010)
74. Chocolat (Claire Denis, 1988)
73. On Body and Soul (Ildikó Enyedi, 2017)
72. Europa Europa (Agnieszka Holland, 1980)
71. The Seashell and the Clergyman (Germaine Dulac, 1928)
70. Whale Rider (Niki Caro, 2002)
69. The Connection (Shirley Clarke, 1961)
68. Eve’s Bayou (Kasi Lemmons, 1997)
67. The German Sisters (Margarethe von Trotta, 1981)
66. Ratcatcher (Lynne Ramsay, 1999)
65. Leave no Trace (Debra Granik, 2018)
64. The Rider (Chloe Zhao, 2017)
63. Marie Antoinette (Sofia Coppola, 2006)
62. Strange Days (Kathryn Bigelow, 1995)
61. India Song (Marguerite Duras, 1975)
60. A League of their Own (Penny Marshall, 1992)
59. The Long Farewell (Kira Muratova, 1971)
58. Desperately Seeking Susan (Susan Seidelman, 1985)
57. The Babadook (Jennifer Kent, 2014)
56. 13th (Ava DuVernay, 2016)
55. Monster (Patty Jenkins, 2003)
54. Bright Star (Jane Campion, 2009)
53. The Headless Woman (Lucrecia Martel, 2008)
52. Happy as Lazzaro (Alice Rohrwacher, 2018)
51. Harlan County, USA (Barbara Kopple, 1976)
50. Outrage (Ida Lupino, 1950)
49. Salaam Bombay! (Mira Nair, 1988)
48. The Asthenic Syndrome (Kira Muratova, 1989)
47. An Angel at my Table (Jane Campion, 1990)
46. Near Dark (Kathryn Bigelow, 1987)
45. Triumph of the Will (Leni Riefenstahl, 1935)
44. American Honey (Andrea Arnold, 2016)
43. The Virgin Suicides (Sofia Coppola, 1999)
42. The Adventures of Prince Achmed (Lotte Reiniger, 1926)
41. Capernaum (Nadine Labaki, 2018)
40. Boys Don’t Cry (Kimberly Peirce, 1999)
39. Portrait of a Lady on Fire (Céline Sciamma, 2019)
38. Paris is Burning (Jennie Livingston, 1990)
37. Olympia (Leni Riefenstahl, 1938)
36. Wendy and Lucy (Kelly Reichardt, 2008)
35. The Matrix (Lana and Lilly Wachowski, 1999)
34. Morvern Callar (Lynne Ramsay, 2002)
33. You Were Never Really Here (Lynne Ramsay, 2017)
32. The Night Porter (Liliana Cavani, 1974)
31. The Gleaners and I (Agnès Varda, 2000)
30. Zama (Lucrecia Martel, 2017)
29. Monsoon Wedding (Mira Nair, 2001)
28. Le Bonheur (Agnès Varda, 1965)
27. Selma (Ava DuVernay, 2014)
26. Stories we Tell (Sarah Polley, 2012)
25. The House is Black (Forugh Farrokhzad, 1963)
24. Lady Bird (Greta Gerwig, 2017)
23. The Hitch-Hiker (Ida Lupino, 1953)
23. We Need to Talk About Kevin (Lynne Ramsay, 2011)
21. Winter’s Bone (Debra Granik, 2010)
20. Clueless (Amy Heckerling, 1995)
19. Orlando (Sally Potter, 1992)
18. American Psycho (Mary Harron, 2000)
17. Seven Beauties (Lina Wertmüller, 1975)
16. Wanda (Barbara Loden, 1970)
15. The Swamp (Lucrecia Martel, 2001)
14. Point Break (Kathryn Bigelow, 1991)
13. Vagabond (Agnès Varda, 1985)
12. Zero Dark Thirty (Kathryn Bigelow, 2012)
11. The Ascent (Larisa Shepitko, 1977)
10. Daughters of the Dust (Julie Dash, 1991)
9. Fish Tank (Andrea Arnold, 2009)
8. Toni Erdmann (Maren Ade, 2016)
7. The Hurt Locker (Kathryn Bigelow, 2008)
6. Daisies (Věra Chytilová, 1966)
5. Lost in Translation (Sofia Coppola, 2003)
4. Beau Travail (Claire Denis, 1999)
3. Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles (Chantal Akerman, 1975)
2. Cléo from 5 to 7 (Agnès Varda, 1962)
1. The Piano (Jane Campion, 1993)

Clipping BBC divulga lista dos 100 melhores filmes realizados por mulheres, Comunidade Cultura e Arte, 01/12/2019

terça-feira, 13 de agosto de 2019

Oito filmes protagonizados por mulheres para ver na Netflix


Dicas de filmes no Netflix onde as mulheres são as protagonistas. Vale conferir.

The Girl on the Train

Emily Blunt em “A Garota no Trem” (Imagem: reprodução)
Emily Blunt estrela esse thriller baseado em obra homônima que acompanha a vida de uma alcoólatra recém-divorciada que não lida muito bem com a própria vida após a separação, caindo numa espiral depressiva, incapaz de manter um emprego ou lidar com a solidão. Pouco a pouco, vamos descobrindo mais sobre seu passado, o de seu marido e das pessoas que compõem o novo núcleo familiar, tanto do ex quanto da personagem principal. Este é um filme para aquelas que amaram “Gone Girl” (“Garota Exemplar”) e que amam um bom suspense psicológico e mulheres representadas de maneira excepcionalmente em suas falhas e vulnerabilidades.

Gone Girl
Rosamund Pike em “Garota Exemplar” (Imagem: reprodução/Netflix)
“Garota Exemplar“, título com o qual chegou ao Brasil, retrata o desaparecimento de Amy Dunne e a busca pelo seu paradeiro liderada por seu marido, com a investigação tomando rumos inesperados. Dirigido por David Fincher, esse filme é muito popular e vale a audiência. Se já o assistiu, vale muito a repetição.

Rosamund Pike carrega a película do começo ao fim, numa atuação pela qual foi indicada ao Oscar, Globo de Ouro e Critics Choice Awards, além de várias outras premiações no ano de 2015.

Annihilation
Gina Rodriguez, Tessa Thompson, Tuva Novotny, Natalie Portman e Jennifer Jason Leigh
(Imagem: divulgação/Paramount Pictures/Netflix)
Outro filme extraído das páginas de um livro, “Annihilation” (“Aniquilação”) segue a trilogia de Jeff Vandermeer, que conta sobre a descoberta de uma área protegida pelo governo: quem vai lá explorar, nunca retorna, e quem consegue, sempre deixa uma parte de si para trás. O filme faz algumas modificações no material do livro, mas não fica aquém dele.

É uma ficção científica bem elaborada, com protagonismo feminino em peso e um elenco notável: Natalie Portman é a protagonista e a equipe que lhe acompanha para a área desconhecida é composta por Tessa Mae Thompson, Jennifer Lason Leigh e Gina Rodriguez. Oscar Isaac faz o ex-marido de Portman. Quem gosta de elementos de ficção científica e reflexões sobre a humanidade e o que significa ser humano não pode perder esse filme.

RAW
Garance Marillier em “Raw” (Imagem: reprodução)
Não é para quem tem estômago fraco. “RAW” celebra o horror contando a história de Justine, uma estudante de veterinária que começa a mudar seu comportamento após o ingresso na faculdade, onde se envolve numa espiral canibalista e de vampirismo. Além de protagonizado por uma mulher, o filme também é dirigido por outra, Julia Ducournau, em estreia eficiente atrás da câmara.

“RAW” pode ser visto como um filme de horror gore ou metáfora sobre um dos períodos mais transformadores na vida de alguém, destoando da postura rudimentar normalmente agregada ao gênero. Um filme repleto de simbologia e feito de forma bem competente.

Loja de Unicórnios
Brie Larson em “Loja de Unicórnios” (Imagem: divulgação/Netflix)
Brie Larson nos leva ao seu coming of age, mas para aqueles perto dos seus 30 anos: um drama com adições de romance, mas cujo coração mora no cerne dramático mesmo. Idealizado e dirigido por Larson, ela também dá vida à protagonista, uma mulher expulsa da Academia de Artes que precisa retornar para a casa dos pais, sentindo-se descrente na própria capacidade e sem rumo algum na vida.

A obra dialoga perfeitamente com os apaixonados por criação, amantes da escrita, das artes e do meio cultural, mas também fala a qualquer pessoa que tenha tido um sonho e foi derrubada pela vida. Vemos a saga da protagonista e sua vida indo do multicolorido ao cinza. Também assistimos a abordagem de temas como  a descoberta do amor, o assédio em ambiente de trabalho, o sexismo e reconexão com a própria família.

I Am Mother
Cena de “I Am Mother” (Imagem: divulgação/Netflix)
“I Am Mother” é protagonizado por figuras femininas e envolve elementos de tecnologia, humanidade, ciência e inteligência artificial. Tudo se mistura num cenário pós-apocalíptico onde ninguém tem nome. Mesmo a protagonista tem apenas o nome de “Filha”. Os outros personagens também levam alcunhas não personalizadas.

No resumo da Netflix, vemos que “a humanidade foi dizimada e o futuro recomeça com uma garota e um robô que ela chama de mãe”. A relação entre mãe e filha é abordada conforme vamos descobrindo mais sobre o universo, o que levou ao fim da sociedade, como ela era e as possibilidades de reconstrução. As atrizes Clara Rugaard-Larsen e Hilary Swank conseguem manter a atenção dos expectadores, apesar do isolamento do cenário.

A Gente Se Vê Ontem

Eden Duncan Smith e Danté Crichlow em cena de “A Gente Se Vê Ontem”
 (Imagem: divulgação/Netflix)
Produzido por Spike Lee e dirigido por Stefon Bristol, "A gente se vê ontem" apresenta dois pré-adolescentes de inteligência superaguçada tentando provar que viagem no tempo é possível. Eles conseguem o feito, mas a princípio, o avanço é pouco – voltam apenas 24 horas no passado. A história se desenrola de fato quando o irmão da protagonista acaba sendo morto por dois policiais brancos, e ela convence seu amigo a voltar no tempo para tentar salvar o parente amado. Ambos embarcam nessa jornada mesmo cientes de que mudar os acontecimentos pode acabar afetando o presente de modo inesperado.

Durante o longa, as diversas tentativas frustradas da dupla refletem sobre escolhas, consequências, num misto de ficção científica e drama emocional. A mensagem principal é sobre resistir contra as adversidades, mesmo contra tudo. Existe também crítica à violência policial e contra o racismo. “A Gente Se Vê Ontem” funciona bem para quem gosta da temática de ficção científica e quer assistir o protagonismo de jovens negros, com destaque para a atriz principal.

February
Kiernan Shipka em cena de “February”, título em português (Imagem: divulgação/Netflix)
Estrelado por Kiernan Shipka, Emma Roberts e Lucy Boynton, “Enviada do Mal” se passa num instituto exclusivo para garotas e garante um clima mórbido e frio do começo ao fim do filme. Trata-se de um terror sem sustos e reações forçadas, levado por sua narrativa de suspense, com foco nas atuações das protagonistas.

Típico terror psicológico, de ar sombrio e  estilo fragmentado, criando um cenário de quebra-cabeças com perguntas provocativas até o final da projeção. “February” mantém o mistério até o terceiro ato, sendo muito indicado para os amantes do terror ou de apenas contos misteriosos cujas respostas podem ou não ser respondidas.

Com informações de Delirium Nerd, por Nathalia de Morais,  09/08/2019

segunda-feira, 8 de maio de 2017

As sufragistas: de como as mulheres tiveram que verter sangue, suor e lágrimas pelo simples direito de votar

Cena do filme 'As Sufragistas', que aborda a luta das mulheres
por igualdade de direitos no Reino Unido. Divulgação

Nenhuma conquista social foi obtida de mão beijada. Mulheres, negros, homossexuais e tantos outros segmentos marginalizados tiveram que verter muito sangue, suor e lágrimas para conseguir os direitos mais básicos (vale assistir também o filme Selma sobre a luta dos negros americanos para poder votar). Importante ressaltar isso atualmente. Hoje, vemos, com tristeza, mulheres, negros e gays reproduzindo o discurso cínico dos conservadores, muito interessados em jogar fora o bebê junto com a água suja da bacia, de que os movimentos sociais não são mais necessários porque instrumentalizados por partidos de extrema-esquerda e outras falácias do gênero. A instrumentalização dos movimentos sociais realmente precisa acabar, mas não os movimentos sociais porque ainda falta muito o que fazer.

'As Sufragistas': metade da humanidade (no mínimo)

'As Sufragistas' é um filme que cospe na nossa cara a vergonha com verdade, raiva e paixão

por Javier Ocaña


Que duas democracias supostamente gloriosas do mundo ocidental mais avançado como o Reino Unido e a França não deram o direito de voto às mulheres, nem que fossem eleitas, até 1928 e 1944, respectivamente, deveria nos enraivecer a tal ponto que o melhor resultado seria, sem dúvida, um verdadeiro exame de consciência. E não sobre o passado, mas sobre o presente. Metade da humanidade, pelo menos, ficava à margem das decisões, e As Sufragistas, filme britânico composto principalmente por mulheres, cospe na nossa cara essa vergonha. Com raiva, com delicadeza, com elegância, com justiça, com verdade, com paixão. Porque ainda resta muito a ser feito.

Sarah Gavron é a diretora, Abi Morgan, renomada dramaturga, a roteirista, enquanto um grupo de sensacionais intérpretes, liderada pela sempre perfeita Carey Mulligan, coloca rosto naquelas mulheres com coragem suficiente para enfrentar o pior vilão, e não de quadrinhos: o homem que se acredita superior.

Gavron e Morgan relatam o processo de conversão ideológica e política de uma mulher comum. Comum? Aparentemente comum, porque essas trabalhadoras do ativismo arriscaram tudo até as últimas consequências. Até o martírio, a morte, até perder seus filhos. A imprescindível mão de obra de uma revolução que tinha seus rostos brilhantes, e necessários, em mulheres que passaram para a história por seus discursos, e que claro que se arriscaram, mas precisavam das imprescindíveis ações das que estavam na base. 

Com excelente produção, música de Alexandre Desplat, fotografia de Eduard Grau de Barcelona, já instalado confortavelmente no cinema internacional, As Sufragistas é mais do que um filme: é a configuração de uma vitória esmagadora. A encenação sem fissuras, mas sem alardes, de Gavron, entre os tons amarelados, de névoa física e tempestade moral da fotografia de Grau, que pode parecer um pouco fria em alguns momentos, mas nunca chega a rachar pela emoção do tema e das situações. Quem não ficar gelado com as imagens documentais no final, é porque tem problemas.

AS SUFRAGISTAS
Direção: Sarah Gavron.
Elenco: Carey Mulligan, Ben Whishaw, Anne-Marie Duff, Meryl Streep, Helena Bonham Carter.
Gênero: drama. Reino Unido, 2015.
Duração: 106 minutos

Abaixo o filme em baixa definição. Para assistir numa imagem melhorada clique aqui, depois em auto para subir a definição para 360. Dá pra ver legalzinho.

segunda-feira, 10 de abril de 2017

Leni Riefenstahl, a cineasta genial que revolucionou a arte cinematográfica documentando o nazismo

Leni Riefenstahl, a genial cineasta que documentou o nazismo
Há tempos, em uma lista de discussão, criticava-se o autor de novelas Aguinaldo Silva por seu personagem Crô, o estereótipo do gay com seus tiques e trejeitos femininos. Criticava-se Aguinaldo porque o personagem Crô, da novela Fina Estampa, prestaria um desserviço à causa homossexual encarnando uma caricatura dos homens gays e, além de tudo, um capacho. Segundo os críticos de Aguinaldo, principalmente por este ser também homossexual e ter editado o Lampião da Esquina (primeira publicação LGBT de distribuição nacional), seus personagens deveriam representar uma imagem positiva dos homens homossexuais, de acordo com os parâmetros de positividade da militância. Agora, o personagem virou filme, e as críticas continuam bem ácidas.

A discussão levou ao recorrente debate sobre a necessidade ou não do engajamento da arte em lutas políticas, debate que desde fins do séc. XVIII não sai de pauta. Fazendo um aparte, pessoalmente, rejeito  a obrigação de qualquer finalidade moral ou social para a arte, considerando-a válida apenas como expressão estética. Sou da turma da arte pela arte.

Por outro lado, meio imbrincada ao debate sobre arte engajada ou não geralmente surge a discussão sobre o quanto a obra de um artista pode ser avaliada por sua vida pessoal e suas posições políticas. De fato, ética e estética nem sempre andam juntas, a História registrando a obra de artistas que foram inovadores em estética mas bem discutíveis em ética. Muitos artistas geniais mostraram triste apreço por ideias e práticas autoritárias, sexistas, racistas, antissemitas além de por comportamentos delinquentes. 

Então, distinguir a obra de seu autor, embora imprescindível, nem sempre é tarefa fácil. Principalmente para nós, simples distinto público, é dureza mesmo separar o joio do trigo. Penso na objeção emocional que passei a ter quanto à obra de Chico Buarque de Holanda depois de saber de seu apreço pela ditadura cubana. Logo ele que, no período da ditadura militar, posava de paladino da democracia com suas musiquinhas de protesto!? Hoje, sem grandes problemas digestivos, só consigo escutar sua obra lírica.

De qualquer forma, Chico Buarque nunca foi um artista excepcional. Pelo contrário, sua obra sempre foi convencional em termos de estética, sem nada de muito inovador, apesar de ter composições realmente bonitas. Mas e quando se trata de um artista, no caso de uma artista genial, inovadora em sua arte como poucos, mas cuja obra retratou exatamente um dos fenômenos políticos mais lastimáveis da história humana?

Refiro-me a cineasta alemã Leni Riefenstahl que revolucionou a arte cinematográfica tendo como tema nada menos do que o nazismo. Em suas obra-primas, O Triunfo da Vontade e Olympia, Leni filmou respectivamente um encontro do partido nazista, em 1934, e as Olimpíadas, na Alemanha de Hitler, em 1936. Inovou tanto que, segundo Vicente Amorim, cineasta brasileiro (de Um Homem Bom, 2008), falando sobre Olympia:
É a glorificação da perfeição física que até hoje se irradia na propaganda, no design moderno, nos editoriais de moda. Se retirarmos a influência de Leni, provavelmente ainda estaríamos no século 19, do ponto de vista visual.
Verdade. O que salta aos olhos ao ver os dois documentários de Leni é sua atualidade. Parece que estamos assistindo a peças produzidas por algum artista de hoje. Tantos anos passados e as imagens ainda impactam e emocionam por sua beleza. Se a cineasta teve ou não um maior engajamento com o nazismo ou se simplesmente se aproveitou do culto nazista à beleza para produzir uma verdadeira elegia à forma humana, ao corpo humano, continua uma questão em aberto. Uma coisa, contudo, é certa: ela foi uma artista excepcional, uma mulher polêmica e notável.

Seguem texto de 2009 da revista Aventuras na História, sobre a Leni Riefenstahl, dois vídeos com suas obras O Triunfo da Vontade e Olympia. Seguem ainda odocumentário sobre ela: The Wonderful Horrible Life of Leni Riefenstahl (A maravilhosa vida horrível de Leni Riefenstahl). À parte a questão estética, são todos documentos históricos imperdíveis. 


A cineasta de Hitler
Leni Riefenstahl inventou técnicas cinematográficas e produziu imagens com efeitos espetaculares. Além de talentosa, era linda. Nada disso bastou para libertá-la da sombra nazista

No dia 1º de agosto de 1936, eram abertos na Alemanha os XI Jogos Olímpicos da história moderna. Pela primeira vez, a recém-inaugurada televisão transmitia para aparelhos instalados em prédios públicos de Berlim a espetacular cerimônia. Fascinado, o povo alemão viu e ouviu, ao vivo, um orgulhoso Adolf Hitler recebendo do grego Sypiridon Louis (campeão da maratona de Atenas, em 1896) um ramo de oliveira colhido nos montes de Olímpia, ao som de 100 mil vozes bradando "Heil, Hitler! Heil, Fuerher!" Todas as cenas da cerimônia foram registradas em 400 quilômetros de filme pela cineasta alemã Leni Riefenstahl.

A cobertura do evento foi uma encomenda do Comitê Olímpico Internacional, mas teve, claro, a mão de Adolf Hitler, presidente do país-sede dos jogos. Foi dele a palavra final sobre quem seria a responsável pelas imagens que terminaram se tornando um poderoso instrumento de propaganda a favor do regime nazista. Numa época de tecnologias cinematográficas incipientes, Leni soube tirar proveito da megaestrutura colocada à sua disposição. Ela inventou novas formas de olhar pela câmera, revolucionando as imagens de um jeito  que até hoje marcam o que assistimos na televisão ou no fotojornalismo esportivo.

Os contornos épicos dados ao evento não se limitaram à abertura dos jogos. Seis meses antes, Leni já estava dirigindo os técnicos que cobririam as provas realizadas na piscina. Como a tecnologia ainda não permitia captar imagens ao nível da água, Leni teve a ideia de construir plataformas especiais nas bordas para os operadores de câmera, que também eram posicionados com o atleta nos saltos de trampolim e dentro da água.

Nas provas de corrida, ela também inovou ao mandar cavar buracos e instalar trilhos para poder captar imagens à altura do chão. E equipou de câmeras corredores que acompanharam os atletas. Os planos ousados - focados no esforço e tensão dos competidores - e a fotografia única de Leni geraram imagens consideradas por especialistas uma aula de estética e de hipervalorização do corpo, com efeitos obtidos a partir de closes muito próximos ou de enquadramentos de baixo para cima, que davam aos atletas aspecto de estátuas gregas.
"É a glorificação da perfeição física que até hoje se irradia na propaganda, no design moderno, nos editoriais de moda. Se retirarmos a influência de Leni, provavelmente ainda estaríamos no século 19, do ponto de vista visual", diz Vicente Amorim, cineasta brasileiro que, em 2008, dirigiu o longa-metragem Um Homem Bom.
Triunfo da propaganda

A aproximação de Leni com Hitler aconteceu em 1932, quando ela dirigiu seu primeiro filme, A Luz Azul, juntamente com o húngaro Bela Balázs, um dos críticos mais influentes nos anos 30 e 40. Abordava a história de uma jovem montanhesa, representada pela própria diretora, em busca de uma pedra que projetava luminosidade singular. Antes disso, ela havia atuado como atriz em seis películas do alemão Arnold Fanck, especialista em filmes de montanha, que impressionaram muito a artista. Rodados em penhascos e em meio a avalanches, há quem diga que veio daí "o culto à monumentalidade" de Leni.

Mas foi Balázs quem apresentou a ela O Couraçado Potemkin, obra-prima do russo Sergei Eisenstein, famoso por suas teses sobre a montagem dialética, que dizem que as sensações de um filme podem ser construídas. Conversando sobre essas teorias com Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazista, Leni caiu rapidamente no gosto do chanceler da Alemanha, que, dizem as más línguas, sempre teve uma quedinha por ela - questionada, a diretora afirmou que, para Hitler, fez apenas documentários.

E que documentários. Depois do inexpressivo Vitória da Fé, de 1933, sobre o quinto congresso do partido nazista, ela foi convencida por Hitler a produzir um longa-metragem sobre o sexto congresso. Foi sua obra-prima e sua condenação. O encontro partidário, marcado para setembro de 1934, em Nuremberg, transformou-se no filme O Triunfo da Vontade, extraordinária peça de propaganda. A logística de produção foi apoteótica para a época: mais de 100 técnicos e 30 câmeras. Segundo a própria Leni, no documentário The Wonderful Horrible Life of Leni Riefenstahl ("A maravilhosa vida horrível de Leni Riefenstahl"), de Ray Müller, feito em 1993, Hitler queria "um filme feito por um artista, e não por um diretor de partido".

Para sua realização, ela desenvolveu truques e artifícios até então inéditos. Por exemplo, um elevador construído e encaixado entre os mastros das enormes bandeiras do partido permitiu mover a câmera da esquerda para a direita e de cima para baixo, e fazer longos travellings (quando a câmera se desloca de forma contínua). Outro recurso, diz André Piero Gatti, pesquisador do Centro Cultural São Paulo e professor de História do Cinema na Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), foram "câmeras muito próximas (close-ups) que tornaram agigantados objetos simples e contribuíram para a distorção da escala, para a captação em imagens de uma espécie de místico poder absoluto, escondendo atrás de uma beleza plástica a podridão de um regime".

Para o filósofo Paul Virilio, no livro Guerra e Cinema, "o evento foi organizado de maneira espetacular, não somente do ponto de vista de uma reunião popular, mas de modo a fornecer material para um filme de propaganda". Tudo foi determinado em função da câmera: os rostos voltados para o mesmo lugar, os braços levantados em cumprimento nazista, as ruas apinhadas de gente, que se fundem em um grande corpo, o conceito-chave da unidade alemã.


Dois anos depois é que veio o documentário Olympia, que fez dos jogos uma celebração do corpo e do Terceiro Reich. Leni era linda, talentosa e mulher, numa área dominada por homens. Mas foi a cineasta de Hitler. E a vinculação ao nazismo a perseguiu para sempre. Até a morte, aos 101 anos, em 2003, ela afirmou desconhecer os crimes cometidos por seus patrocinadores.

No fim da Segunda Guerra, a cineasta foi presa por quatro anos. Solta, tentou filmar, mas foi hostilizada pela opinião pública. Trabalhou então como fotógrafa. Nos anos 70, lançou dois livros sobre os nubas, tribo do Sudão com quem passou seis meses nos anos 60, fotografando obsessivamente. Esse material forma o que os críticos consideram seu mais importante ensaio. Cobriu os Jogos Olímpicos de Munique (1972) para a revista Time e fotografou celebridades, como Mick Jagger. Nos anos 80, mergulhou no silêncio da fotografia submarina, que resultou no filme Impressões Subaquáticas (2002).


Receita para fazer voar
Muitas câmeras para seguir o mergulho

Em 1932, houve uma tentativa de filmar os Jogos Olímpicos de Los Angeles. Mas eram poucas câmeras e para poucas modalidades. Em 1936, nos jogos de Berlim, Leni Riefenstahl produz um documentário com uma superestrutura de produção. A imagem dos mergulhadores no ar virou um marco para a foto esportiva. Operadores trocavam lentes embaixo da água para acompanhar a parte final dos saltos, criando uma sequência sem pausas, do início ao fim das provas. Hans Ertl, fotógrafo-chefe, criou uma câmera subaquática e uma plataforma de apoio para filmar ao nível da superfície. Leni subverteu o ponto de vista clássico "de plateia", em troca de ângulos inesperados.

Do trampolim

Saltos filmados em plongée (de cima para baixo) e de baixo para cima, do trampolim, dão impressão de voo. De uma plataforma ao nível da água, a câmera pega a hora do mergulho.

Do céu

Um dirigível levava uma câmera automática, com objetivas de até 600 mm, o limite máximo da época. O resultado eram panorâmicas aéreas do evento e do mergulho.

Dentro d'água

Equipamentos à prova d'água filmam o fim do mergulho. Diferentes lentes captam detalhes do músculo, da respiração e da expressão dos atletas.

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Leni - The Life and Work of Leni Riefensthal, Steven Bach, Knopf, 2007

Biografia que explora as fronteiras éticas entre arte, beleza e verdade, muito crítica às escolhas feitas pela cineasta.

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Fotos, informações sobre a artista, críticas e dados técnicos.

Fonte: Aventuras na História, Bruno Vieira Feijó | 20/07/2009


Publicado originalmente em 11/12/13

segunda-feira, 27 de março de 2017

"Misandria": uma grande zoeira e o sempre renovado ataque à autonomia das mulheres

A misandria só existe mesmo nos dicionários

Em páginas no facebook, onde se discutem tópicos referentes às questões das mulheres em geral, uma palavrinha vem rolando na boca de mulheres e homens, geralmente relacionada ao tema da participação de homens no feminismo (sic). Trata-se da palavra misandria, que fez suas primeiras aparições em língua inglesa em 1878 (para o Webster, 1909) e vem do grego miso= "ódio" + andros= "relativo ao homem, sexo masculino". Posteriormente, ainda em língua inglesa, pipocou em um artigo ou outro até se tornar mais frequente a partir dos anos 50 do século passado, alavancado sobretudo por grupos antifeministas ou masculinistas.

Em português brasileiro, online ao menos, não aparece em nosso dicionário mais famoso, o Aurélio, nem no Michaelis, nem no Aulette. Encontrei o verbete apenas no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa como: mi·san·dri·a (miso- + grego anér, andrós, homem + -ia), substantivo feminino = Aversão aos ou desprezo pelos indivíduos do sexo masculino. Isso significa que o termo ainda não tem grande circulação fora do âmbito dos movimentos e redes sociais.

De qualquer forma, "misandria" só existe mesmo em dicionários (talvez também agora em glossário psiquiátrico como a misoginia). Fora desse âmbito, ela não tem realidade social, ao contrário de sua equivalente misoginia que possui bastante concretude. Algumas falas iradas que mulheres, indignadas com a sociedade patriarcal, dirigem a homens, genericamente falando, podem, dependendo do contexto, ser realmente caracterizadas como sexistas, mas "misandria" é outra coisa. Mulheres não têm poder para ser "misândricas" como os homens têm para ser misóginos. Estabelecer simetria entre os dois termos ou é ignorância ou má-fé machista.

Misoginia não são apenas falas grosseiras ou depreciativas dirigidas a mulheres, o que poderíamos considerar mais como sexismo, dependendo do grau de depreciação. Misoginia é o ódio à mulher concretizado em inúmeras formas de violência contra o sexo feminino que vão desde restrições civis a atos de barbárie. Sem falar no monopólio masculino de várias áreas profissionais e de conhecimento.

Citando alguns exemplos, misoginia é a negação do direito ao voto e ao estudo que ainda existe em vários países, do direito à propriedade, do direito a transitar sozinha, do direito de trabalhar remuneradamente, do direito de escolher como se vestir, do direito de escolher com quem casar, do direito a participar da política, do direito sobre o próprio corpo (via criminalização do aborto) até a barbárie do estupro, do espancamento doméstico ou público, do açoitamento, da mutilação genital (130 milhões de vítimas no mundo) e de outros partes do corpo, além do assassinato.

A propósito da definição de misoginia: 70% das mulheres sofrem algum tipo de agressão durante suas vidas cometida por homens

Backlash: a acusação de odiar os homens acompanha as feministas desde seus primeiros passos

Por isso mesmo, quando comecei a ouvir essa palavrinha sendo jogada pra lá e pra cá contra ativistas, senti logo o cheiro azedo do velho e manjado backlash antifeminista. Backlash significa reação contrária, contra-ataque, no caso aos direitos das mulheres. A feminista americana Susan Faludi escreveu um clássico sobre o assunto chamado Backlash: o contra-ataque na guerra não declarada contra as mulheres (clique no título para baixar o livro), traduzido para o português em 2001 e que continua bem atual. Vale a leitura.

Os sinais de mais um surto de backlash antifeminista são bem evidentes sobretudo nas redes sociais. São os conservadores com seu feminazismo (comparando feminismo com uma das mais hediondas e antifeministas ideologias da história humana) e suas sabujas amestradas (mulheres conservadoras) culpando o feminismo por "supostamente obrigá-las a trabalhar remuneradamente quando elas queriam mesmo é ficar em casa para cuidar dos seus machos". (Então, anda difícil achar esse tipo de macho que sustenta donas de casa e a culpa é do feminismo!?).

São alguns rapazes "progressistas" que posam de interessados em feminismo e em serem aliados das mulheres em suas causas, mas que ou querem que as mulheres ensinem feminismo pra eles (vamos combinar o preço da hora-aula então) ou, mais cara de pau ainda, leem sobre feminismo, começam a se achar sabichões no assunto e passam - pasmem - a querer dizer para feministas o que é ser feminista ou não, qual o feminismo verdadeiro ou não. E, quando rechaçados em suas pretensões (machistas recicladas como "feministas"), fazem-se de ofendidos e saem choramingando que foram vítimas de "misandria". São as já famosas male tears (lágrimas masculinas), chororô masculino por descobrir que o mundo não gira mais  apenas em torno dos bolinhas.

Uma procissão de sufragistas: o direito ao voto feminino
caracterizado como um rebaixamento dos homens
Entretanto, "misandria" é apenas um novo nome para uma velha mania de acusar as mulheres, que lutam por seus direitos, de odiar os homens. De odiar os homens, de ser feias, mal-amadas, agressivas, amarguradas, masculinizadas, sapatonas, contra a família. Na primeira onda do feminismo, até o início do século passado, as vítimas desse backlash, dessa campanha injuriosa, foram as sufragistas, as ativistas que buscavam conquistar o direito de voto para as mulheres. O que votar tem a ver com odiar os homens? Nada, né? Mulheres e homens de hoje seriam capazes de fazer tal associação? Nem o Bolsonaro. Mas, na época da luta pelo voto, esse backlash voou solto. 

Décadas depois, foi a vez das feministas da segunda onda (anos 60 em diante), da emancipação econômica, do salário igual por trabalho igual, da descriminação do aborto, da liberação da sexualidade feminina, enfrentarem os mesmos ataques. Mais uma vez acusadas de odiar os homens, de ser feias, mal-amadas, agressivas, amarguradas, masculinizadas, sapatonas, contra a família. A diferença, em relação ao backlash dirigido às sufragistas, ficou por conta de se acusar abertamente as feministas de serem lésbicas em vez de falar em mulheres masculinizadas.

Aqui, no Brasil, entrou para a História o episódio de uma fulana do então proscrito Movimento Revolucionário 8 de outubro - MR-8 (e do jornal Hora do Povo) que tentou expulsar as lésbicas do III Congresso da Mulher Paulista (1981) por estas supostamente não serem mulheres e estarem encaminhando as feministas burguesas para o mau caminho. Por causa desse tipo de backlash, o movimento feminista demorou anos (no Brasil, duas décadas) para apoiar oficialmente os direitos da mulheres homossexuais. O apoio foi registrado, graças a minha intervenção, na plataforma feminista resultante dos debates da Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras (junho de 2002)

Agora, na chamada terceira onda do feminismo (anos 90 até hoje), com enfoque nas desigualdades específicas de idade, etnia, orientação sexual, classe, etc. (as tais interseccionalidades,) somadas a uma maior integração com a academia e visibilidade na mídia, novamente se veem as feministas acusadas de odiar os homens, de ser feias, mal-amadas (falta de rola), agressivas, amarguradas, masculinizadas, sapatonas, contra a família. As diferenças, em relação às campanhas antifeministas anteriores, são que:
  • primeiro, agora, conjuraram o suposto ódio aos homens na palavra "misandria", alçada à moda, na última década, por grupos americanos antifeministas (Men’s Rights Activism e Men's Rights Movement), decididos a reverter conquistas das mulheres se fazendo de vítimas do feminismo.
  • Segundo, que, ao contrário de recuar diante de mais esse surto de backlash, como no passado, muitas feministas atuais decidiram assumir que são "misândricas", a maioria para zoar em cima da absurda tentativa masculinista de estabelecer simetria entre "misandria" e misoginia e uma minoria como protesto contra o sistema patriarcal ou para simplesmente desopilar o fígado, doente de tanto engolir machismos nessa vida, dizendo desaforos a homens.

Separando alhos de bugalhos: homens feministos e homens antipatriarcais

Seja como for, trata-se de reação, neste caso realmente necessária, contra o verdadeiro assalto que homens ditos progressistas (com apoio de suas capitãs do mato) vêm fazendo ao feminismo, insistindo em que "eles têm o direito de opinar no movimento feminista (por serem pela igualdade entre os sexos...hã, hã...)", "porque, errando ou acertando, no debate feminista, homem pode 'contribuir' para o movimento e até que "feminismo não é das mulheres". São frases que colhi em redes sociais e que, com algumas variações, são representativas da costumeira falta de senso de limites da mentalidade machista.

Porque, obviamente, esses homens não são aliados da luta das mulheres coisa nenhuma. Estão agindo com base na velha (de)formação machista que receberam, tentando SIM roubar o protagonismo das mulheres no movimento que elas criaram para lutar exatamente contra o machismo. Ou será que ainda restam dúvidas diante de uma frase como "o feminismo não é das mulheres"? Aliás, eu mesma presenciei a fala de um cara dizendo para uma moça, a propósito de um texto que ela escrevera sobre feminismo e capitalismo, que o feminismo dela não era verdadeiro e o dele é que era!!!

Homens são adestrados para não deixar espaços onde as mulheres possam estar sozinhas (pois ficam fora de seu controle); são adestrados para achar que as mulheres têm que servi-los e amá-los, apesar de eles terem criado um mundo que trata as mulheres a socos e pontapés. É esse adestramento que está por trás dessa historinha de participação masculina no feminismo a fim de contribuir com a luta das mulheres (cavalo de Tróia), da historinha de feminista ensinar feminismo a homens (mulher tem que servir ao homem) e amá-los incondicionalmente (foram adestradas para isso, o que falhou?)

Mas vamos combinar, mulher nenhuma tem obrigação de ensinar homem algum sobre feminismo. No máximo, se tiver, pode passar bibliografia, que isso não configura exploração. O resto ele que se vire no google como qualquer outro mortal. Mulher não tem obrigação de gostar de homem. Então, homens construíram um sistema que exala desprezo e ódio pelas mulheres por todos os poros e as mulheres nem podem expressar seu ódio por ele? Portanto, não tem essa de dizer que as que dizem não gostar de homens não são feministas. Como não? Porque escaparam do adestramento para amar incondicionalmente quem nada faz para ser amável? Se não querem ser odiados, não sejam odiáveis. Se querem ser amados, que sejam por seus méritos, não na base de todo o tipo de coação. Amor de verdade não combina com submissão.

Coletivos de Homens Antipatriarcais (na Argentina)
Por outro lado, existem sim homens pró-feministas, antipatriarcais, mas são aqueles homens que buscam desconstruir em si mesmos os condicionamentos que receberam. Um homem antipatriarcal respeita o direito de mulheres não quererem conversa com ele seja sobre o quer for, incluindo feminismo. Assim como entende que uma mulher pode não querer se relacionar sexualmente com ele. Entende o significado da palavra NÃO.

Em vez de ficar enchendo o saco de quem não tem esse apêndice, se realmente se interessa pelo tema, vai à luta, busca informações sobre o mesmo, constrói sites sobre gênero e feminismo (vi alguns) e cria grupos para discutir com outros homens outros modelos de ser homem em vez de querer forçar presença onde não é bem-vindo. Inclusive porque também sabe que homens e mulheres convivem em muitos outros ambientes onde se pode discutir feminismo sem ser o movimento feminista. Fora os espaços interseccionais que podem ser criados para esse fim COM MULHERES QUE SE DISPONHAM A CONVERSAR. 

O homem antipatriarcal também entende porque algumas mulheres detestam homens, embora pessoalmente isso lhe seja doloroso, e busca desarmar a bomba patriarcal que criou esse sintoma em vez de simplesmente rotular essas mulheres de loucas necessitadas de tratamento. Chamar mulheres que não gostam de homens de loucas é negar a realidade objetiva do mundo em que vivemos. De repente, estão mais é zonzas de dolorosa lucidez. Loucas são as estruturas do sistema que os homens criaram e não as mulheres que as odeiam.

Vale lembrar que, além das próprias ações violentas cometidas por homens contra o sexo feminino, o patriarcado ainda onera as mulheres com o peso de superar o ódio que ele mesmo provoca. Sobretudo para mulheres que experimentaram diretamente a misoginia, há de se convir que não é fácil superar o rancor provocado pela violência sofrida, embora transcendê-lo seja fundamental para seu próprio bem, para sua integridade psicológica.

Tratamento igual para comportamento igual (ou separando alhos de bugalhos)     
                      
Pessoalmente, embora já tenha sido até acusada falsamente de querer levar homens para sacrossantos espaços feministas, sempre considerei o separatismo feminista cláusula pétrea (e não só o feminista). Feminismo é coisa de mulher, como gravidez e menstruação. Sempre fui contra a participação de homens em grupos feministas, encontros feministas, e continuo sendo. O tema desse artigo, aliás, só reitera a minha posição. Os espaços feministas são para mulheres conviverem com outras mulheres, tentar a difícil tarefa de chegarem a denominadores comuns de luta, desconstruírem o adestramento para a rivalidade entre mulheres que recebem desde o berço.

Mulheres têm que priorizar mulheres e não homens, como têm feito nos últimos séculos. Mulheres têm que sobretudo priorizar a si mesmas, ser saudavelmente individualistas em contraposição à educação para a abnegação feminina, esse papo furado de se sacrificar por homens, filhos, as religiões dos homens, as "causas" dos homens ou seja lá por quem for.

Por outro lado, contudo, como sei separar alhos de bugalhos, nunca vi problemas de trabalhar com homens em outros movimentos e em outras instâncias, tendo, com uns, bons momentos de coleguismo e produtividade em ações comuns e, com outros, péssimos momentos. De uma forma geral, encaro os homens primeiro como indivíduos e não como integrantes do patriarcado opressor. Sei que a floresta patriarcal é densa, mas consigo ver que há diferenças entre as árvores. E todo mundo é inocente até prova em contrário.

Além disso, alguns homens também são vítimas desse mesmo sistema que nos aflige (sobretudo gays). Retrospectivamente, vale também lembrar que alguns homens, embora ultraminoritários, levantaram suas vozes pelos direitos das mulheres, quando elas ainda não tinham voz pública. Depois que passaram a ter, continuaram apoiando as bandeiras que as mulheres decidiram levantar sem querer decidir por elas que bandeiras são essas.

Fora ainda que há um bocado de mulher cúmplice da opressão das mulheres. Mulheres conservadoras, mesmo quando não se assumem como tais, têm um papel deletério nas lutas pela autonomia das mulheres. Não se contentam em ser medíocres e subservientes. Querem que todas sejam medíocres  e subservientes como elas. Não dá, portanto, para dividir o mundo em bandidos e mocinhas simplesmente.

Por isso, trato homens como iguais desde que como igual me tratem de forma sincera. Entretanto,
 não banco a Poliana jogando o jogo da contente porque conquistamos algumas igualdades formais. Infelizmente, no cotidiano das inter-relações pessoais, o machismo continua são e salvo e raivoso. É só dar uma olhada nas redes sociais e no atual backlash antifeminista para constatar isso. Na Inglaterra, já apareceu até partido antifeminista. Ser realista não configura nenhuma "misandria".

Dito posto, nesta situação em particular, endosso completamente o escracho que a nova geração de feministas vem fazendo dos caras de paus que querem mandar em mulher até no feminismo, posando de solidários com a luta das mulheres (no caso dos progressistas). Ao contrário das gerações de feministas anteriores, a atual não parece se intimidar com a acusação de "odiadora de homens" que sempre acompanhou a turma. Pelo contrário, parece que quanto mais as chamam de "misândricas" mais elas se assumem como tais e mais desancam uzomi (como dizem).

Me pergunto apenas se a zoação não vai longe demais quando leio um texto sério, desconstruindo objetivamente a suposta misandria, mas que termina com a autora assinando "fulana de tal, devotadamente misândrica". À guisa de comparação, é como se ativistas LGBT decidissem se dizer heterofóbicos de gozação porque um bando de manés conservadores saem até em passeata se dizendo vítimas de uma tal "heterofobia" tão real quanto a tal "misandria".

Parece que as garotas partem do princípio de que, já que vão nos xingar de qualquer forma de qualquer coisa, vamos zoando enquanto der. Mas tenho minhas dúvidas se isso não alimenta ainda mais a falácia da "misandria". Afinal quantas pessoas percebem o sarcasmo desse posicionamento? Não é possível só zoar, com todo o poder corrosivo que o humor tem contra os pequenos e grandes tiranos, sem correr o risco de parecer incoerente?

Esquerda e Direita também são filhas do Patriarcado

Vale lembrar ainda que todo esse backlash e sua correspondente zoeira não têm a ver com a surrada dicotomia esquerda-direita. O sistema patriarcal é o conjunto maior que engloba os outros sistemas político-econômicos e filosóficos criados pelos homens nos últimos milênios. Embora a citada zoeira das feministas se dirija também à direita conservadora e seu feminazismo, seu foco maior são os ditos progressistas, esquerdistas, libertários, que querem ser feministas à fórceps. Vale notar que os chamados esquerdomachos também usam a desqualicação "feminazi" dos conservadores contra as jovens feministas.

Mal fazem 30 anos que a esquerda tradicional deixou de dizer que feminismo é coisa de burguesa desocupada (mais uma desqualificação) e luta divisionista da luta maior, a luta de classes. Ainda hoje se encontram esquerdistas do gênero dizendo essa abóbora. Agora, parece que aderiram a estratégia do "se não pode vencê-las, junte-se a elas". Como a história ensina, sabe-se bem para quê. Pena que tantas ainda botem fé nessa esquerda fóssil e suas ideias arqueológicas.

Os libertários (anarquistas de esquerda) tiveram correntes promotoras da igualdade entre os sexos e a liberdade sexual desde seus primórdios, mas vale salientar que o termo libertário virou uma espécie de palavra-bom-bril que se presta a mil e uma utilidades ideológicas, chegando a ser usada hoje como autodenominação até de alguns conservadores. Basta que o cara se diga contra o boggieman Estado (o bicho-papão Estado) e já passa a se proclamar libertário, embora seja liberticida em vários outros aspectos. 

Esse sequestro do termo libertário até por conservadores tem a ver com a história política americana. Como por lá sociais-democratas passaram a se dizer liberais (desde os anos 30), liberais passaram a se denominar libertários para se diferenciar. Acontece que o liberalismo, ao longo de sua trajetória secular, saiu de sua origem de esquerda, empurrado pelo socialismo, caminhou para o centro do espectro político e acabou sequestrado pelo conservadorismo com quem passou a fazer frente ao comunismo (bem de passagem). 

Essa má companhia de certa forma imantou as tribos liberais (libertários, anarcocapitalistas, austríacos, minarquistas, liberais sociais...) de um ranço conservador que se observa em declarações, por exemplo, contra o casamento LGBT e em apoio a supostas escolhas da mulher entre perspectivas libertárias e conservadoras como se fossem equivalentes.

Contra o casamento LGBT a desculpa é que se deve lutar para o Estado não mais legislar sobre as relações humanas em vez de ampliar seu alcance. Como tal proposta é de remota concretização, na prática significa negar o acesso ao instituto civil do casamento para casais de mesmo sexo. 

Quanto às supostas escolhas da mulher, compara-se ser dona de casa com ser uma profissional remunerada, embora a primeira opção deixe a mulher numa situação de particular hipossuficiência e vulnerabilidade enquanto a outra a habilite a ser sujeito da própria vida dentro dos limites de nossas sociedades. Na mesma perspectiva, afirma-se que a mulher muçulmana tem o direito de andar de burca, no mundo ocidental, desconsiderando a situação de imigrante dessa mulher ainda sob o tacão das sharias da vida, como se estivesse no seu país de origem. 

Desconsidera-se que a burca,  niqabs e congêneres são objetivamente um mal, porque a misoginia é objetivamente errada. E essas vestes são misoginia pura, negação da presença das mulheres na esfera pública que só podem transitar como se não existissem (sem identidade visível). Fora os problemas físicos que esses trajes acarretam. A jornalista norueguesa Asne Seierstad, que escreveu O livreiro de Cabul, assim descreve o uso da burca que experimentou quando de sua passagem pelo Afeganistão:
A burca aperta e dá dor de cabeça. Enxerga-se mal através da rede bordada. É abafada e faz suar. É preciso tomar cuidado o tempo todo onde pisar, porque não podemos ver nossos pés. Era um alívio tirá-la ao chegar em casa.”
Não custa lembrar ainda que, na época da monarquia secular do xá Mohamed Reza Pahlevi (anos 60 e 70), no Irã, quando puderam escolher como se vestir, as mulheres, em geral, optaram por aposentar as burcas, niqabs e outras aberrações. Resumindo, escolhas não se dão num vácuo social e político. Muitas escolhas estão mais para escolhas de Sofia.

Em outras palavras, sob o nome libertário, hoje se observa inclusive sutis incentivos a formas conservadoras de relacionamentos humanos via análises desconectadas do contexto social em que as escolhas individuais se dão. Não deixa de ser lamentável essa regressão, considerando a importância histórica do pensamento liberal e libertário na história das conquistas das mulheres.

Citando o filósofo e economista David Schmidtz, em seu livro Os elementos da Justiça, uma teoria é como um mapa. Mapas não pretendem ser a realidade em si mesma, apenas uma representação adequada da realidade para nos orientar. De forma parecida, as teorias são representações úteis de um terreno (as sociedades em que vivemos). Nada além disso. Mapas não são perfeitos, teorias também não. Não raro, para não se perder no caminho, há que se consultar e comparar mapas diferentes.


E eles veem misandria até na Malévola

Por último, comento o artigo A Misandria de Malévola, de um cara chamado André Forastieri, publicado quando do lançamento do filme em junho do ano passado. Comento porque referenda o que disse sobre a recente circulação do termo "misandria" e porque se constitui num exemplo perfeito da vigarice dos que usam a palavra. Como acho que todos já viram o filme dá pra contar o roteiro sem estragar a festa. E pago o pato de escrevê-lo para ver quem acha a misandria da história. Quem achar leva um doce.
Era uma vez..... 
Um reino de fadas e outras criaturas da floresta sempre ameaçado pelo vizinho rei do reino dos humanos que queria lhes roubar as riquezas. Um menino do reino dos humanos, Stefan, consegue adentrar o reino das fadas onde conhece Malévola menina. Eles ficam amigos,  meio namorados, mas depois de crescidos, adolescentes, não mais se veem, pois o rapaz deixa de visitar a garota. Nesse ínterim, o rei dos humanos finalmente decide invadir o reino das fadas, mas é detido (e ferido) por Malévola, agora uma fada toda poderosa, e seus companheiros da floresta.

De volta ao castelo, no leito de morte, o rei promete o trono e a mão da filha a quem matasse Malévola. Stefan, agora adulto, por ganância, resolve se incumbir da tarefa. Volta ao reino das fadas, chama por Malévola, faz-se de bonzinho e romântico, dá-lhe uma bebida com sonífero, mas não consegue matá-la. Arranca-lhe, contudo, as asas e se vai. Apresenta as asas como prova de que teria matado a fada. Ele se torna rei, casa com a princesa, e Malévola acorda mutilada e sedenta de vingança. Quando sabe que o casal real vai batizar a filha, aparece no batizado e joga uma praga na bebê. Ao fazer 16 anos, ela tocará no fuso de uma roca de tear e cairá num sono mortal do qual só despertará se receber um beijo de amor verdadeiro. 
O pai desesperado manda queimar todos os teares do reino e guardar os pedaços no calabouço do castelo. Encarrega também três fadas benfazejas, mas atrapalhadas, de criar Aurora numa casinha no campo, onde pensa protegê-la da praga. Mas Malévola descobre onde está a menina e acaba acompanhando seu crescimento e se encantando por ela, abençoada que fora para ser cheia de graça e amada por todos. Quando a menina se aproxima dos dezesseis anos, Malévola tenta reverter o feitiço mas não consegue. Quando aparece um garoto, um príncipe, que se apaixona por Aurora, considera-o a chance de salvar a menina do feitiço. Mas a garota descobre quem a enfeitiçou e quem é seu pai. Volta para o palácio pouco antes da hora certa do feitiço funcionar e, hipnotizada, põe o dedo no fuso de uma roca de tear quebrada, que encontrou no calabouço do castelo,  adormecendo em seguida.

Malévola leva o príncipe adormecido para o castelo, e as fadas benfazejas o encaminham para beijar Aurora, mas o beijo não desperta a jovem. Malévola que observa a cena se aproxima do leito onde Aurora está deitada, arrepende-se do que fez, e beija a jovem na testa. Ela desperta. As duas tentam sair do castelo, mas são interceptadas pelo pai de Aurora que quer matar Malévola. Aurora encontra as asas de Malévola em uma caixa de vidro que deita ao chão. O vidro se quebra e as asas libertas procuram a dona que está tendo sérios problemas em vencer o rei e seu exército. Com as asas, porém, Malévola derrota o rei, as duas voltam para o reino das fadas, tudo também volta a ser feliz e cor-de-rosa como nos contos de fadas. Aurora é consagrada rainha do local e fica com o namoradinho. Malévola termina o filme voando entre as nuvens acompanhada do corvo Diaval.
E o doce vai para.... Cadê a "misandria" do enredo? O bicho comeu. Qual a mensagem da história? É o amor e o perdão não o ódio e a vingança que de fato fazem as pessoas transcenderem a dor das violências sofridas, das injustiças sofridas, que de fato cicratizam as feridas. Malévola foi traída e violentada por Stefan de quem decidiu se vingar amaldiçoando sua filha. Mas é exatamente essa filha, possuidora dos dons da beleza, da alegria e da amabilidade, que fazem Malévola amar de novo e se arrepender do que fez. Diante de Aurora adormecida, Malévola diz literalmente "eu estava tão perdida em meio ao ódio e a vingança, e, agora, perdi você para sempre" e promete proteger a menina enquanto viver. E a beija com seu beijo de amor verdadeiro que a faz despertar. Liberta do ódio, redimida pelo amor, Malévola volta ser íntegra, recuperando suas asas.

Pro picareta que escreveu o texto A Misandria de Malévola, contudo, a "misandria" é a mensagem de Malévola. É ler para crer:
Todo homem é um bruto traiçoeiro ou um idiota banana. Toda mulher é inocente, e se age mal, é por que um homem a levou a isso. Essa é a mensagem de Malévola. A nova versão da Bela Adormecida parece politicamente correta. É o contrário. O termo técnico é misandria.
O conceito está no dicionário há mais de meio século, mas ainda não faz parte do vocabulário de ninguém. Trabalho com palavras e também não conhecia. Trata-se do ódio ou desprezo ao sexo masculino. Como misoginia é o ódio contra o sexo feminino. Se não conhecia o termo, fiz minha parte para popularizar o conceito. Publicamos na editora Conrad o livro da feminista radical Valerie Solanas, SCUM Manifesto.
E ele cita um trecho do SCUM, de uma das feministas mais hardcore da história, que esculhamba os homens no mesmo nível que inúmeros filósofos esculhambaram mulheres séculos afora. Mas o que a fala radical de Solanas tem a ver com o filme em questão só mesmo a mente perturbada do autor conseguiu perceber. Tanto que acha que o SCUM deve ter inspirado a roteirista do filme, Linda Woolverton, que criou uma Malévola rainha dominadora, de couro negro, que "adota" uma princesinha púbere por quem tem uma obsessão nada maternal. Inclusive garante que, se o filme não fosse pra família, teria rolado um beijo lésbico entre elas. Pior, trata-se de amor correspondido porque é Aurora que resgata as asas de Malévola, tornando-a novamente plenamente poderosa. Então não só as mulheres podem se virar sem homens, mas também homens são supérfluos e perigosos. E termina o textículo, ruminando sobre a visão dos homens que as menininhas iam levar para casa depois de ver o filme.

Ao fim do texto, lamentei não ter lido a resenha na época em que foi escrita para ter podido dar ao autor um lençol onde enxugar tantas lágrimas masculinas de recalque. Porque não passa disso a "misandria" que Forastieri viu em Malévola. Puro recalque  por ter assistido um filme onde homens não são protagonistas e - horror dos horrores para machistas - as mulheres são solidárias na luta contra o vilão da história.

Se a descrição dos vilões das histórias como tudo que há de ruim, em qualquer mídia, fosse sinal de misandria, ia ser difícil achar um filme que não fosse misândrico, mesmo tendo homens protagonistas, como de praxe, e o roteiro e direção também feito por homens. Na quadrilogia Alien, a protagonista é mulher, e os roteiristas e diretores desses filmes passaram uma visão nada positiva do sexo masculino. Seriam então misândricos? Me poupe!!

Não dá pra deixar de observar ainda que o autor deve ser consumidor assíduo de vídeos de pornô "lésbico" e ficou viciado em ver sexo entre mulheres mesmo em relações onde só se enxerga amor materno ou fraterno. Sexualizar a relação entre Malévola e Aurora equivale a ver na relação do treinador de boxe com sua pupila, do filme Menina de Ouro, de Clint Eastwood, algo além de um sentimento paternal e filial.

Moral dessa longa história: toda vez que se ler ou ouvir um cara chamar mulheres, ou obras feitas por ou sobre mulheres, de "misândricas", é bem provável que seja porque, no filme da vida, ele se deu conta de que os homens não são mais os únicos protagonistas e - horror dos horrores pra ele, claro - as mulheres podem ser solidárias umas com as outras e derrotar juntas os vilões das histórias de todo o dia.

Abaixo o beijo de Malévola em Aurora e o resgate das asas de Malévola por Aurora Pruzomi chorarem. Beijim no ombro, guys!

Publicado originalmente em 03/02/2015



quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Vídeo "Faça acontecer" para um futuro sem fábricas de animais (e um pouco sobre West Side Story)

West Side Story (Amor, Sublime Amor) é um filme musical de 1961 que transporta o drama shakespeareano de Romeu e Julieta para o universo das gangues juvenis americanas formadas por imigrantes latinos e outros menos favorecidos. O cenário é a zona oeste de Manhattan em Nova York. Com coreografia inovadora e trilha sonora fantástica (Leonard Bernstein, Saul Chaplin), foi um divisor de águas na concepção dos musicais, tendo suas canções gravadas por inúmeros artistas e sua coreografia inspirado, entre outras, o clipe Beat It, de Michael Jackson.

No fundo, West Side Story trata do preconceito (qualquer deles) que dissemina o ódio e inviabiliza o amor. No filme, Tony, um ex-líder da gangue dos Jets (de brancos pobres), apaixona-se por María, irmã do líder da gangue rival, os Sharks, formada por imigrantes porto-riquenhos. Como no Romeu e Julieta original, entre disputas territoriais e ridículos códigos de honra, misturados no filme ao preconceito racial, o casal apaixonado não consegue sobreviver à estupidez humana.
Tony e Maria em West Side Story
Entre as músicas da trilha sonora (todas incríveis), Somewhere (Em algum lugar) se destaca como uma espécie de hino de esperança dos que vivem enjaulados pelas grades da discriminação e da opressão e sonham com a liberdade. Não por menos alguém teve a brilhante ideia de fazer um libelo pela libertação animal usando a música como tema.

Debulhei litros ao ouvir já o primeiro verso da canção associada às tristes imagens das chamadas fábricas de animais (de fato campos de concentração de bichos). Debulhei porque sempre cantei essa música pensando em todas as discriminações que sofrem os diferentes de todo o tipo e porque, naturalmente, nada me comove mais do que o sofrimento dos animais. O vídeo, de 2012, se chama Faça Acontecer (Make it Possible) e traz a mensagem de esperança de que é possível um futuro sem fábricas de animais, um futuro viável por causa das pessoas que mudam sua alimentação e se engajam na luta para que esse horror sob os céus deixe de existir.

Segue a letra da música, que fala por si mesma, traduzida para o português numa boa versão. E os vídeos Make It Possible e Somewhere do filme West Side Story. Deixo também o link para assistir online, legendada, essa obra-prima que é West Side Story, ganhadora, em 1962, do Oscar (em quase todas as categorias), do Grammy e do Globo de Ouro e, em 1963, do BAFTA britânico. E aqui, a trilha sonora.

Em algum lugar

Há um lugar para nós
Em alguma parte, um lugar para nós.
Paz e tranquilidade e céu aberto
Nos esperam em algum lugar.

Há um tempo para nós
Um dia haverá um tempo para nós
Tempo juntos e tempo de sobra
Tempo de olhar, tempo de amar

Algum dia, em algum lugar

Nós acharemos um novo modo de viver
Nós encontraremos um jeito de perdoar (Conseguiremos?)
Em algum lugar

Há um lugar para nós,
um lugar e um tempo para nós
Segure minha mão e já estaremos quase lá
Segure minha mão e eu lhe levarei até lá
De algum modo, um dia, em algum lugar.

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