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terça-feira, 19 de julho de 2022

Dzi Croquettes: os libertários bailarinos dos anos 70 entre a força do macho e a graça da fêmea


1. “Nem homem. Nem mulher. Gente."

Livres e libertários, vestidos com purpurina, saias e cílios postiços, um conjunto de forças masculinas entrava no palco em pleno regime de ditadura militar no Brasil. Dzi Croquettes, grupo de teatro que surgiu na década de 70, no Rio de Janeiro, montava espetáculos musicais com uma enorme dose de ousadia, humor e irreverência.

O grupo foi resgatado recentemente pelo documentário Dzi Croquettes (ver abaixo), realizado por Raphael Alvarez e Tatiana Issa, em 2009, e pelo livro “A Palavra Mágica: a vida cotidiana do Dzi Croquettes”, de Rosemary Lobert, lançado em 2010 (publicação de sua dissertação de mestrado em antropologia social, 1979). Apesar de inúmeras apresentações no Rio de Janeiro, São Paulo e Paris, os únicos registros encontrados para a elaboração do filme foram de uma TV pública alemã e algumas cenas de entrevistas da rede Globo, no Brasil. A iniciativa de levantar a pesquisa e a recuperação desse material salva o grupo do esquecimento e denota a grande importância que os Dzi Croquettes tiveram para a arte, o teatro e a vida de toda uma geração.

Dzi Croquettes eram “As Internacionais”. Treze homens fortes, másculos e peludos entravam no palco com figurinos glamourosos: saias, sapatos altos, maquiagem carregada e corpos quase nus. Eram eles: Lennie Dale, Wagner Ribeiro de Souza, Cláudio Gaya, Cláudio Tovar, Ciro Barcelos, Reginaldo de Poli, Bayard Tonelli, Rogério de Poli, Paulo Bacellar, Benedictus Lacerda, Carlinhos Machado, Eloy Simões e Roberto de Rodriguez. Em poucos anos, foram responsáveis por uma revolução de comportamento, libertando-se de valores morais com relação à masculinidade e feminilidade, em um momento político em que “toda nudez era castigada”.

Eram homens vestidos de mulher, mas ninguém queria ser mulher” diz o cantor Ney Matogrosso em seu depoimento, presente no documentário. A questão era justamente essa: jogar com uma sexualidade dúbia fugindo de qualquer tipo de classificação. “Qual é essa mania de classificar?”, dizia um dos integrantes.

Criou-se então uma confusão de estereótipos sexuais confundindo inclusive a própria ditadura que não conseguia detectar onde estava exatamente a ameaça do grupo, além dos corpos nus. Negando os rótulos e assumindo a multiplicidade de caracteres, eles mesmos diziam:
Os Dzi Croquettes não são representantes do gay-power, nem dos andróginos, nem dos homens, nem das mulheres, nem dos brancos, nem dos pretos, mas de todos. Porque ou a gente representa todos ou não representa nada.”
Em 1973 Dzi Croquettes é censurado, mas depois de 30 dias é liberado por falta de argumentos consistentes, com a condição imposta de cobrirem seus corpos. Vale lembrar a tradição do carnaval brasileiro onde, durante os dias de festa, muitos homens se vestem de mulher. O grupo assim era político na maneira de ser e criticava as instituições nas entrelinhas da comédia musical.

Os espetáculos misturavam jazz, musicais da Broadway, cabaré, samba, teatro de revista, macumba, bossa-nova, improvisação, num exercício de pura antropofagia, evocando o manifesto de Oswald de Andrade: “Só a antropofagia nos une.” Devorando todas as culturas e falando várias línguas, os Dzi Croquettes alcançavam todo o tipo de público e levando ao extremo a própria noção de espetáculo.

 

2. Breve história do grupo

Com o espetáculo “Gente Computada Igual a Você”, de 1972, o grupo fez enorme sucesso no Rio de Janeiro e em São Paulo. Apresentando números cantados e dançados assim como monólogos e paródias, os Dzi abusavam da ironia e do duplo sentido. Os textos eram de autoria de Wagner Ribeiro e o preparo técnico do grupo ficava por conta de Lennie Dale, coreógrafo norte-americano naturalizado brasileiro. Eles se auto-denominavam “as internacionais” pela multiplicidade de línguas que compunham o espetáculo: português, inglês e francês eram as mais utilizadas. E o humor escrachado permeava todas elas num exercício de extrema liberdade de linguagem teatral.

Foi criado ainda todo um vocabulário “croquette”, com algumas palavras tão utilizadas que chegaram a entrar para dicionário da língua portuguesa como, por exemplo, “tiete”. O nome Dzi Croquettes foi também escolhido pela via do humor. Inspirado no grupo americano The Cockettes, fez-se uma alusão aos croquetes que eles estavam comendo no momento e a sonoridade do artigo the (zê - dzi). Dzi Croquettes. Afinal, como os croquetes, diziam, somos todos feitos de carne.

Essencialmente coletivo, o processo de criação dos Dzi Croquettes era do Teatro de Grupo, em sua versão mais radical. Além de atuarem juntos e acreditarem na mesma concepção estética e ideológica de linguagem, os Dzi Croquettes viviam juntos, como uma família, estabelecendo funções e papeis para cada membro: pai, mãe, filhas, tias, governanta, camareira, enfim; fazendo da própria vida um teatro e do teatro a vida. Em casa ou no palco, o que os Dzi Croquettes estavam propondo era uma forma de vida.

Pouco depois de censurados no Brasil, os Dzi Croquettes decidem embarcar para a Europa apenas com o dinheiro dos espetáculos e quase duas toneladas de cenário e figurinos. Uma sessão especial em Paris feita para Lisa Minelli e seus convidados lotou o teatro e eles alcançaram sucesso e reconhecimento. A atriz, tida como a madrinha do grupo, não esconde a grande admiração: “Eles se expressavam com todo o corpo e nós sentíamos essa energia em volta deles. Como se tivesse fumaça.”

 
Josephine Baker            

A cantora e bailarina Josephine Baker, que na ocasião estava entre os convidados de Liza Minelli, havia dito ao diretor do Teatro Bobino que quando ela morresse gostaria que os Dzi Croquettes fossem os próximos a se apresentar. O que de fato aconteceu quando, depois de uma semana de apresentações, em abril de 1975, Josephine Baker falece e o diretor, atendendo ao seu ultimo pedido, chama os Dzi Croquettes para ocupar o palco. Com o sucesso novamente e a presença de convidados ilustres na platéia como Jeane Moreau, Mick Jagger, Maurice Bejart, entre outros, o grupo alcança fama na Europa, mas decidem voltar para o Brasil em seguida.

No entanto, no inicio dos 80, com o aparecimento da Aids, o grupo perdeu quatro integrantes, sendo que na sequência três morreram assassinados e um de aneurisma. Dos treze restaram cinco: Ciro Barcellos - ator; Benedictus Lacerda - guia turístico; Rogério de Poly - ator; Bayard Tonelli - ator, diretor de arte e coreógrafo; e Cláudio Tovar - ator, cenógrafo e figurinista.

  

3. Contaminações e influências

Os figurinos incorporavam o lixo com glamour internacional. Feitos com restos de carnaval, roupas encontradas, collants desfiados, lantejoulas, meias de futebol, vestidos e fraques, a composição do vestuário era uma mistura de tons, cores e texturas onde o lixo virava luxo. Na cena em que eles dançavam “Assim Falou Zaratustra”, de Strauss, por exemplo, tecidos esvoaçantes ganhavam movimento como asas de Loïe Fuller, como se fossem mariposas voando pelo palco. O humor estava presente em todo momento, seja na escolha das músicas, na combinação de movimentos ou nos textos.

A rigidez técnica e o preparo físico, exigido por Lennie Dale, no entanto, fazia do grupo bailarinos profissionais. O trabalho de corpo com base em aulas de jazz e sapateado – ritmos adotados pelos musicais da Broadway – possibilitava a execução de movimentos limpos e precisos, o que dava contraponto ao excesso de liberdade corporal e textual. Visível, por exemplo, no bolero “Dois pra lá dois pra cá”, na voz de Elis Regina, dançado com rigor técnico e atrevimento.

No rosto, a maquiagem criava um disfarce. Eram como máscaras que ocultam e revelam ao mesmo tempo. Onde é possível ver sem ser visto. Um mural cênico composto de objetos e símbolos astronômicos, plataformas móveis e intensos focos de luz compunham uma capa de excessos. O olhar não abarcava o conjunto e o movimento era acelerado. No entanto tudo funcionava. Em acúmulos, desvios ou dribles de risos, moviam certezas na convicção de seus passos.

A devoração de elementos estrangeiros em fusão com a cultura brasileira presente também no Tropicalismo e nas idéias do Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade tem a sua máxima expressão com Dzi Croquettes.

Pela contracultura e experimentalismos de vanguarda, o grupo levou ao extremo as tentativas de superar as dicotomias arte/vida, arte/antiarte, fazendo do teatro, afinal, um projeto de vida. Nas palavras de Lennie Dale: “Life is a cabaret”.

Dzi Croquettes existiu entre 1972 e 1976 e exerceu influência em inúmeros artistas como Secos & Molhados, Ney Matogrosso, Frenéticas, entre muitos outros. Nota-se também a importância que tiveram no âmbito teatral, influenciando grupos como o Teatro Vivencial, de Recife, e toda uma corrente que leva adiante os conceitos de teatro de grupo e criação coletiva. Também o gênero pastelão, caricatura, deboche e comédia de costumes, travestismo e o movimento gay se apoiaram no vigor da presença do grupo. As contaminações disseminavam com velocidade em toda a arte dessa época.

Com a “força do macho e a graça da fêmea”, slogan da trupe, os Dzi Croquettes passaram como um vento forte balançando as estruturas. Um lugar onde nada é estático, onde os conceitos se misturam desorientando classificações. Intensos, magnéticos e ousados, deixam o recado:

Já que somos todos ignorantes, enlouqueçamos, pois.”

 

Raphael Alvarez e Tatiana Issa. Dzi Croquettes [Filme] Tria Produçoes. Brasil 2009.
 LOBERT, Rosemary. A palavra mágica: a vida cotidiana dos Dzi Croquettes, ed. Unicamp, Campinas: 2010
 Folha de São Paulo, 2.8.1973 in LOBERT, R., Op. Cit.. p.245

Clipping A força do macho e a graça da fêmea: Dzi Croquettes, por Lucila Vilela, Interartive, 02/2011


A força do macho e a graça da fêmea

Documentário sobre os Dzi Croquettes traz às novas gerações a trajetória do importante grupo teatral brasileiro

Treze homens em um palco. Maquiagens, muita dança, humor escrachado, pernas peludas à mostra pelo uso de vestidos curtos. "A força do macho e a graça da fêmea" era o mote que exemplificava a androginia característica. Isto era um pouco do que representavam os Dzi Croquettes, famoso grupo teatral que impactou o público na década de 70 (inserido no contexto do Ato Institucional nº 5, durante a Ditadura Militar brasileira, no auge da censura). A trajetória destes artistas está sendo contada no documentário Dzi Croquettes, dirigido por Tatiana Issa e Raphael Alvarez, que estreou nos cinemas nacionais em 16/07/2010 (ver abaixo).. Trazendo depoimentos de ex-integrantes e de diversos artistas (de Liza Minnelli a Ney Matogrosso), o longa-metragem busca recuperar estas tão importantes figuras da arte nacional, que infelizmente ficaram esquecidas no baú do passado.

Os Dzi Croquettes surgiram de um produtivo papo em uma mesa de bar, na qual estavam o dramaturgo e ator Wagner Ribeiro, Reginaldo de Poly e Bayard Tonelli.
Eles não sabiam bem como seria, mas tinham como base a ideia de uma coisa irreverente", conta Cláudio Tovar, que fez parte do grupo, em entrevista à Rolling Stone Brasil.
O projeto foi levado a Lennie Dale, nova-iorquino radicado no Brasil (considerado um gênio da dança), por seu aluno Ciro Barcelos, e imediatamente o coreógrafo se apaixonou pela ideia, encabeçando o grupo ao lado de Wagner. O ano do nascimento foi 1972. A partir daí, os Dzi Croquettes passaram a se valer da atuação, do humor e da dança para se expressar de forma livre em um contexto extremamente repressor.

Você possivelmente deve estar pensando: "Se o grupo é tão significativo, como nunca ouvi falar dele?" Pois é. Estes artistas entram na lista de nomes que ficaram esquecidos por não haver quase material registrado, muitas vezes por culpa da ditadura. A princípio, o grupo não foi barrado pelos militares durante o ensaio para a censura, realizado em 1973.
Como tínhamos essa variação no figurino, fizemos praticamente uma peça infantil. Era um bando de retardados, dançando como idiotas, vestidos de ursinhos", conta Tovar. "E eles não entenderam porra nenhuma, claro."
Porém, tempos depois, ao perceber do que tratavam os espetáculos, os generais proibiram definitivamente a exibição. Mas era tarde.
Já havíamos passado por duas boates e dois teatros. Já tínhamos feito a cabeça de milhares de pessoas, que viam naquilo uma possibilidade enorme de uma vida menos careta", explica o ex-integrante.
Pouco tempo depois, o espetáculo foi liberado e entrou em cartaz em São Paulo - posteriormente, com o dinheiro arrecadado, o grupo viajou para o exterior. Com humor e graça, os 13 atores e dançarinos (Lennie Dale, Wagner Ribeiro, Cláudio Tovar, Cláudio Gaia, Rogério de Poly e Reginaldo de Poly, Bayard Tonelli, Paulo Bacellar, Benedictus Lacerda, Carlos Machado, Eloy Simões, Roberto Rodrigues e Ciro Barcelos) davam, nas entrelinhas, verdadeiros safanões na sociedade e na realidade política do período.

Como forma de resgatar esse trecho de grande importância à cultura nacional, Tatiana Issa e Raphael Alvarez, amigos há 25 anos, suaram a camisa para conseguir coletar imagens e adquirir o maior número depoimentos para a elaboração de Dzi Croquettes.
Eu falava com todo mundo da minha geração: 'Isso na peça vem de Dzi Croquettes, aquilo também'. E ninguém nunca tinha ouvido falar deles", conta a diretora.
Sobretudo para Tatiana, o trabalho teve caráter pessoal, já que seu pai, Américo Issa, integrava a equipe técnica do espetáculo - e traçar a trajetória do grupo significava inevitavelmente trazer de volta parte da história de vida de Américo e cenas de sua própria infância.

O projeto começou a ser realizado em 2007, contando com os relatos dos integrantes remanescentes da formação original, bem como de artistas influenciados pelos Dzi - entre eles Liza Minnelli, que era a "madrinha" do grupo e amiga de Dale. Um dos grandes presentes do documentário são as cenas inéditas do espetáculo, gravadas pelo canal televisivo alemão MDR. As imagens foram resgatadas pela dupla de diretores após intensa procura, já que no Brasil não havia registros.
Não fazia sentido trabalhar nisso sem imagens de arquivo", diz Tatiana. "

 A TV alemã filmou e guardou.

 Descobrimos que esta fita existia e negociamos os direitos de exibição."
Segundo Tovar, as filmagens aconteceram durante o período de uma semana, enquanto a equipe estava em cartaz em Paris, e foi ao ar em um especial de fim de ano, em 1975.

Legado

Os Dzi Croquettes são vistos como exemplo de inovação nas artes teatrais. Com olhar muito a frente de seu tempo, uniam na dança, por exemplo, o jazz e o samba, numa representação consistente da antropofagia tão citada por Mário de Andrade, décadas antes. Quando o assunto era a forma com a qual se apresentavam no palco, um senso de liberdade surpreendente se fazia presente. Como se definiam, não eram homens ou mulheres, eram gente.

Muitos sustentam que o chamado besteirol começou ali, com o roteiro de Wagner Ribeiro.
As coisas eram ditas com humor, mas dando porrada. Foi a maneira que encontramos de falar o que a gente queria", lembra Tovar. "Era um musical muito brasileiro."
E é exatamente com relação a essa brasilidade que o ato antropofágico se encaixa. Havia músicas norte-americanas, já que Lennie Dale vinha dos Estados Unidos e trazia na bagagem a carreira como bailarino de jazz, mas as apresentações eram compostas majoritariamente pelo som nacional, como o samba e gafieira.

Pegamos o musical americano, deglutimos e jogamos de novo como se fosse algo nosso", afirma o ex-integrante.

No que diz respeito à postura no palco, os Dzi Croquettes foram os precursores no tratamento da sexualidade de forma aberta. No figurino dos 13 integrantes, tapa-sexo, botas de salto seis e maquiagem forte eram o básico. O resto vinha por cima - trajes doados por grandes estrelas da época, como Leila Diniz, Liza e Elke Maravilha e sobras de fantasias de escolas de samba.
Tudo era muito assumido. A década de 70 foi uma época bastante liberada, foi com a aids depois que a coisa ficou feia", diz Tovar.
Não valia a pena segurar a onda de porra nenhuma. Ainda mais em um período de repressão como aquele. Iria ainda reprimir sua própria sexualidade?"
O diretor Raphael Alvarez completa:
O que eles queriam mostrar era que não importava a sexualidade de cada um, havia coisas mais importantes que isso."
De acordo com os diretores, a princípio, o projeto teve dificuldade em conseguir patrocínio, talvez por ainda existirem certos tabus.

Não sei se era por causa da chegada da aids no Brasil, do primeiro movimento gay, da ditadura", diz Raphael Alvarez. "Ou a gente parava ou fazia com a nossa grana."

Obstáculos ultrapassados com a parceria do Canal Brasil, o longa-metragem agora entrou em cartaz nos cinemas nacionais para que os curiosos pudessem conhecer mais desta parte importante da produção cultural brasileira.

Clipping "A Força Do Macho E A Graça Da Fêmea, Por Patrícia Colombo, Rolling Stones, 18/07/2010 

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Contracultura brasileira: o desbunde que desafiou a esquerda e os militares


 Gal Costa, Os Mutantes, Jards Macalé, Gilberto Gil (com Torquato Neto), Novos Baianos, Caetano Veloso, Jorge Mautner, Luiz Melodia, Rogério Duprat, Sérgio Sampaio, Tom Zé e Walter Franco 

A música Sangue Latino é de 73. Os Secos e Molhados existiram de 71 a 74 em sua formação original. Os Dzi Croquettes de 1972 a 1976. O musical Hair foi encenado de 69 a 71. Andróginos e libertários. Em pleno período do regime de exceção. Foram filhos da contracultura que os militares não reprimiram com a contundência que reprimiram a esquerda ortodoxa, mesmo porque a consideravam meio alienada, visão compartilhada pela esquerda da época. Segundo consta, foi a esquerda da luta armada que apelidou os contraculturais no Brasil de desbundados. A contracultura no BR foi o desbunde. 



E a geração que prevalece no país na década de 70 foi exatamente a do desbunde, a do "sexo, drogas e rock'n'roll", da "minha casa no campo, meus amigos, meus discos, meus livros e nada mais" e não a da esquerda que queria nos transformar num Cubão. Aliás, a matriz do movimento homossexual no Brasil e no mundo foi a contracultura, não a esquerda tradicional que era tão homofóbica e machista quanto os conservadores. Ainda hoje, vejo muito mais em comum entre eles do que sonham as vãs filosofias. 

Lembrei disso porque, desde que lançaram uma tese pra lá de discutível que afirma ter o regime militar instituído uma política de Estado contra pessoas homossexuais, volta e meia vem alguém me perguntar dos sofrimentos que passei por ser lésbica sob a ditadura. 

Então, vamos esclarecer, o período 64-84 se deu de fato sob um regime de exceção, mas não sob um regime totalitário. Nós não vivemos uma espécie de Gilead como no "O Conto da Aia," pra citar uma referência atual. Os agentes da repressão não estavam visíveis a cada esquina, não ficavam acompanhando as pessoas até o supermercado, não havia corpos de subversivos pendurados nos muros das cidades ou na frente das casas, não se executava gente a sangue frio em ruas de bairros de classe média. A abdução dos ditos subversivos se dava mais na surdina, na calada da noite ou em blitz pontuais durante o dia. Nós outros vivíamos uma aparente normalidade, com as pessoas levando suas vidas de forma não muito diferente da de hoje.


A juventude daquele período, no Brasil, gastava seu tempo tomando todas e transando muito, indo a teatros (onde se faziam críticas veladas ao regime), aos cinemas (ver Bergman, Pasolini, Fellini, Polansky, Woody Allen) e a Salvador (que virou a Meca dos desbundados). Também gastava seu tempo lendo livros, jornais (cheios de mensagens cifradas) e a imprensa alternativa, assistindo os festivais de música popular e as novelas na TV. Indo ainda a musicais e, no final da década, entre 78 e 79, acabando-se nas baladas dos dancing days.
++++++++

Enfim, esse era o meu cotidiano naquele período. Não sofri repressão da ditadura por ser lésbica. Da ditadura, sofri repressão como estudante, quando fui às ruas em 1977 participar das manifestações promovidas pela UNE que se rearticulava. Fui inclusive presa na tristemente célebre invasão da PUC pelas forças do famigerado coronel Erasmo Dias. Porque manifestação de rua não podia mesmo acontecer, ainda mais contra o governo. 

Como lésbica, a repressão que sofri foi da sociedade ultraconservadora da época, tão vigente aqui, sob um regime de exceção, quanto nos EUA, a democracia mais estável da História. Naquele período, a homossexualidade ainda era considerada doença ou crime (nos EUA, a homossexualidade só deixou de ser crime na década de 70), as pessoas homossexuais eram totalmente marginalizadas, como se fossem realmente criminosas, aparecendo na imprensa somente nas páginas policiais. Provavelmente a invasão que promovi, com outras ativistas, em 19 de agosto de 1983, no antológico Ferro's Bar de São Paulo, foi a primeira a inaugurar uma nova abordagem da imprensa sobre o assunto, com artigo da Folha de SP nos tratando de forma positiva. 

Em outras palavras, não vão comprando acriticamente qualquer tese que aparece. Busquem sobre a contracultura no Brasil no oráculo do Google. Há teses e livros sobre o tema que, sem dúvida, vão lhes ampliar o horizonte, abrir uma nova perspectiva sobre a realidade sócio-cultural daquele período paradoxalmente de repressão mas também de grandes mudanças políticas e comportamentais. Aqui uma dica: Contracultura – Alternative Arts and Social Transformation in Authoritarian Brazil, de autoria de Christopher Dunn. Liberdade cabeluda:  O  inusitado caráter político da contracultura brasileira

Por último, naqueles conturbados anos do regime militar e da Guerra Fria (com a bomba atômica pairando sobre nossas cabeças), nós vivemos a contracultura (considerada por muitos como a última grande utopia) e tínhamos aquela coisinha verde que, hoje, a gente procura à esquerda, à direita, no centro, em cima e embaixo, e não encontra. Nós tínhamos esperança. Ao contrário, atualmente, vivemos num clima distópico que parece sobretudo uma mistura do 1984 com O Conto da Aia mas também conta com pitadas do Admirável Mundo Novo e do Fahrenheit 451. Sinto muito!
 😓

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Morre Luiz Carlos Maciel, o principal pensador da contracultura no Brasil



Aos 79 anos, morre Luiz Carlos Maciel, jornalista e pensador da contracultura

Principal ensaísta e pensador da contracultura no Brasil, o jornalista, diretor teatral e roteirista Luiz Carlos Maciel morreu na manhã deste sábado (9), aos 79 anos, no hospital Copa D'Or (Copacabana), no Rio de Janeiro, onde estava internado desde 26 de novembro com um quadro de infecção. Maciel sofria, nos últimos meses, com o agravamento da doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC). Segundo a filha do escritor, Lúcia, o boletim médico apontou falência múltipla dos órgãos. Até o momento, não há informações sobre o velório.

O ensaísmo de Maciel articulou a contracultura brasileira com escritores e agitadores internacionais, anti ou extra-acadêmicos, e contribuiu para torná-la mais consciente de si própria, ao informar sobre ideias insurgentes e movimentos de vanguarda dos anos 60 e 70. Seus textos no "Pasquim", "Flor do Mal", "Última Hora" e "Fairplay" influenciavam adeptos do desbunde, esquerdistas menos ortodoxos e jovens aflitos para "cair fora" e encontrar um novo estilo de vida.

O espírito contracultural se manifestou em Maciel ainda na faculdade de Filosofia, em Porto Alegre (RS), onde nasceu em 15 de março de 1938. Aproximou-se do existencialismo de Sartre e do teatro do absurdo, encenando "Esperando Godot", de Samuel Beckett, com Lineu Dias, Mário de Almeida, Paulo José e Paulo César Pereio, do Teatro de Equipe. Autor do ensaio "Sartre, Vida e Obra" (1967), Maciel destacaria a relevância do filósofo francês em sua transição para a vida adulta, por despertá-lo para a liberdade e a responsabilidade.

Confiante na profecia do amigo Glauber Rocha de que a Bahia lideraria uma revolução cultural, ele decidiu mudar-se para Salvador e assumir uma cadeira de professor da Escola de Teatro, em 1959. Na capital baiana, dirigiu uma montagem elogiada da peça cabralina "Morte e Vida Severina" e foi o protagonista do homoerótico "A Cruz na Praça" (1959), o curta desaparecido de Glauber, que lhe confiaria, perto de morrer, os originais da peça "Jango: Uma Tragedya".

Em 1960, com uma bolsa da Fundação Rockefeller, Maciel partiu para o Carnegie Institute of Technology, em Pittsburgh, nos Estados Unidos. O mergulho na vida americana enriqueceu o repertório de autores e tendências comportamentais da futura e legendária coluna "Underground" no semanário humorístico "Pasquim", do qual tornou-se um dos fundadores a convite do jornalista Tarso de Castro. Entre 1969 e 1972, Maciel era o recordista de cartas da redação, como reconheceu o cartunista Jaguar, e passou a ser chamado de "guru da contracultura", um epíteto aceito a contragosto e fortalecido depois do texto "Conselhos a mim mesmo", em que recomendava: "1. Escuta o canto do ser. Ele tem mais de mil vozes. Olha a dança do ser. Ela tem mais de mil passos".

Na "Underground", e também em artigos para a grande imprensa, Maciel apresentou o zen-budismo de Alan Watts, os testes com LSD do escritor americano Ken Kesey, Timothy Leary e os benefícios terapêuticos das experiências psicodélicas, os odiados Hell's Angels, "Eros e Civilização" de Herbert Marcuse, a ação política do poeta beat Allen Ginsberg e o Gay Liberation Front da Califórnia (em confronto com Ginsberg).

Mais: o hipster segundo Norman Mailer, o Living Theatre, o romancista alemão Hermann Hesse, os Panteras Negras, Wilhelm Reich e a revolução sexual, Carlos Castaneda e os ensinamentos do bruxo Don Juan, as interpretações histórico-psicanalíticas de Norman O. Brown. Assimilou gírias dos desbundados e comentou as religiões orientais, o rock, o jazz, a antipsiquiatria, a anti-universidade, a liberação sexual, o feminismo de Yoko Ono, a maconha e o movimento hippie, além de fazer perfis de artistas como Bob Dylan, Jimi Hendrix, Richie Havens, Santana e —entrevistou-a no Rio, junto com Hélio Oiticica— Janis Joplin. Antecipou-se em décadas às campanhas nacionais contra políticas repressivas a usuários de drogas. Era uma florida revolução dentro da revolução cultural do Pasquim no jornalismo brasileiro.

Em oposição ao machismo confesso de outros membros do "Pasquim", ele simpatizava com os gays, os hippies, as feministas e os tropicalistas. Perto de embarcar para o exílio em Londres, em 1969, o compositor Caetano Veloso recebeu de Maciel a tarefa de enviar artigos para o semanário, uma colaboração bem-vinda para quebrar o gelo político em torno do grupo baiano. Gilberto Gil e Jorge Mautner também seriam acolhidos por suas páginas no período. No final de 1970, o Exército prendeu a equipe do humorístico e Maciel teve a grossa cabeleira cortada na Vila Militar.

Cabelos crescidos, ele deixou o "Pasquim" em 1972, pressionado pelo humorista Millôr Fernandes, inimigo e substituto de Tarso na chefia. Antes da despedida, estimulado por Sérgio Cabral, criou e editou o nanico "Flor do Mal", ao lado de Rogério Duarte, Torquato Mendonça e Tite de Lemos. Imerso de vez no jornalismo, comandou a edição brasileira da revista "Rolling Stone", outra experiência de vida curta, e colaborou com veículos como "Correio da Manhã", "Jornal do Brasil", "O Jornal", "Fatos e Fotos" e "Veja". Na Folha, a pedido de Tarso, escreveu para o caderno "Folhetim". Na "Ilustríssima", em 2015 e 2016, publicou seus últimos textos na imprensa.

NOVA CONSCIÊNCIA

Os ensaios contraculturais de Maciel saltaram dos jornais para duas coletâneas populares nos anos 70: "Nova Consciência" (1972) e "A Morte Organizada" (1975), complementados adiante pelo volume "Negócio Seguinte" (1978). A tensão entre cultura e contracultura, poder e antipoder, liberdade e repressão, atravessa o seu pensamento. "Nunca ninguém defendeu teses irracionalistas em estilo tão calmamente lógico", definiu Caetano Veloso.

No livro "Geração em Transe - Memórias do Tempo do Tropicalismo" (1996), ele repassou a convivência com os três artistas que julgava centrais na contracultura brasileira: Glauber, José Celso Martinez Corrêa e Caetano, independentes entre si mas sincronizados em 1967, quando o filme "Terra em Transe", a montagem de "O Rei da Vela" e a canção "Tropicália" traumatizaram as sensibilidades estéticas.

No ciclo contracultural, o ensaísta conviveu e guardava afinidades com uma lista plural de agitadores: Rogério Duarte, Gilberto Gil, Torquato Neto, Plínio Marcos, Jorge Mautner, José Agrippino de Paula, Leila Diniz, Othon Bastos, Antonio Bivar, Leon Hirszman, Helena Ignez, João Ubaldo Ribeiro, Waly Salomão, Jorge Salomão, Jards Macalé e a trupe dos Novos Baianos. Aprofundou, em tempos recentes, a amizade com o diretor Gerald Thomas.

Em suas memórias, Maciel apresenta um aspecto biográfico pouco conhecido: seu trabalho no Laboratório de Interpretação Crítica do Teatro Oficina, um passo para os atores chegarem ao estilo interpretativo de "O Rei da Vela", a peça de Oswald de Andrade que lhe fora indicada pelo diretor e crítico italiano Ruggero Jacobbi e que ele recomendou ao diretor Zé Celso. Em 1968, Maciel se afastou dos palcos, na sequência do duplo veto da censura à sua direção de "Barrela", de Plínio Marcos, no Teatro Jovem, e "As relações naturais", de Qorpo-Santo, no Teatro Glauce Rocha.

Dizia-se polímata ou homem sem especialização. Chegou a dirigir o longa "Society em Baby-Doll", em 1965. Nos anos 80, enraizou-se na atividade de roteirista na Rede Globo, integrando a equipe do "Globo Repórter" e, dentro do núcleo de Daniel Filho, de especiais como "João Gilberto Prado Pereira de Oliveira" (1980), "Baby Gal" (1983) e "Chico & Caetano" (1986). Ainda trabalharia como roteirista na Rede Record, nos anos 2000. Condensou essa experiência no livro "O Poder do Clímax - Fundamentos do Roteiro de Cinema e TV", reeditado este ano pela Ed. Giostri. Aos 77 anos, viu-se pela primeira vez desempregado. No ano passado, foi convidado para ser consultor da série "Os Dias Eram Assim", da Globo, escrita por Angela Chaves e Alessandra Poggi. "O Sol da Liberdade" (Ed. Vieira & Lent), sua última coletânea, revisitou a vanguarda do Tropicalismo, filósofos como Heráclito, Nietzsche e Heidegger, o escritor americano de ficção científica Philip K. Dick e o filme "Matrix" (1999).

Luiz Carlos Maciel, que dirige a peça "Boca Molhada de Paixão Calada", de Leilah Assunção, que estreia no Teatro Igreja.

Limitado pelo enfisema pulmonar, que se agravou este ano, Maciel sentava-se em posição de lótus, no gabinete, e passava os dias ouvindo Duke Ellington, o ídolo maior. Buscou em vão o raro LP "The Duke In São Paulo", um concerto gravado em 1968 no Teatro Municipal, jamais encontrado em seus garimpos no exterior. Sofreu com a perda de um pedaço de sua coleção de discos de jazz na última mudança de apartamento, mas pacificou-se ao lembrar de uma lição de Norman O. Brown: é preciso saber despedir-se para sempre. Nos últimos anos, publicava seus textos no Facebook e continuava a ler e discutir os mestres Heidegger, Sartre, Castaneda e Philip K. Dick.

Descontente com o impeachment de Dilma Rousseff e a ascensão da direita ao poder —com ela, a caretice, sua velha inimiga—, Maciel lamentou, em casa, duas semanas antes da internação hospitalar: "Conseguiram transformar o Brasil no país mais chato do mundo". Em seu último ensaio, "Memórias do Futuro" (inédito), pensado como introdução a um livro imaginário, o ensaísta defendeu um ponto de vista utópico: "A questão que nos confronta, hoje, é a necessidade de novas lembranças do futuro, de informação sobre nosso destino através de um processo semelhante ao que operou nos anos 60".

Filho de Logunedé, no Candomblé, Maciel aceitou os ensinamentos de Jesus e Buda, conheceu a Umbanda e o Santo Daime, absorveu o gnosticismo e preservou cautelas ateístas.

Ele deixa a viúva, Maria Cláudia, atriz, com quem estava casado desde 1976, os filhos Lúcia Maria e Roberto (do primeiro casamento com Yonne), quatro netos, 13 livros e oito gatos batizados com nomes de filósofos pré-socráticos. Arriscava-se à futurologia ao prever a manchete de sua morte: "Morre Luiz Carlos Maciel, o guru da contracultura".

Fonte: Folha de São Paulo, por Cláudio Leal, 09/12/2017

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