quinta-feira, 28 de março de 2019

Vícios de linguagem politicamente correta: nem tudo é preto ou branco

Eduardo Afonso, colunista do jornal O Globo, questiona o politicamente correto na linguagem, mostrando que termos, hoje considerados ofensivos, como "mulato", não têm, em sua etimologia, conotação pejorativa.

O preto no branco na linguagem

Palavras são armas poderosas. Talvez por isso haja tanta gente empenhada num estatuto do desarmamento do vocabulário, e a treta (sobre quem pode falar sobre o quê e quais termos estão autorizados) não dá trégua.

Todos, todas e todxs já devem ter ouvido que uma linguagem neutra ajudaria a criar uma sociedade mais justa — mesmo que para isto brasileiros, brasileiras e brasileirxs tenham que ser redundantes e pronunciar coisas impronunciáveis como todxs e brasileirxs .

Claro que para neutralizar a linguagem será preciso rever a concepção de que claro queira dizer exato, correto, inequívoco, luminoso, e que escuro seja sinistro, sombrio, suspeito. Será preciso revogar a dicotomia entre luzes e trevas que nos acompanha desde o big bang bíblico, e reparar a injustiça de o branco ser a soma de todas as cores e o preto, a ausência de luz. Tarefa complicada — mas não para quem acredita que branco e preto , claro e escuro, onde quer que apareçam, estejam a serviço da opressão racial.

Por isso não se deveria mais falar em magia negra, mercado negro, buraco negro, lista negra ou ovelha negra, que têm tanto a ver com afrodescendência quanto amarelar tem com os asiáticos ou vermelho de raivacom os apaches. (Sem contar a caixa-preta dos aviões, da qual só se tem notícia quando acontece uma tragédia, e a inveja branca, uma improvável inveja do bem.)

Dois milênios antes de haver tráfico humano da África para as Américas, a palavra grega mélas já significava não só negro, escuro, mas também triste, funesto. E esta acepção não tinha qualquer vínculo com cor de pele: era uma metáfora, uma construção cultural. Se o verbo denegrir é um insulto e merece ser eliminado, a eugenia linguística deveria atingir também a palavra “melancolia”, que vem de melanós (negro) + kholé (bílis, veneno). E levar junto a “Aquarela do Brasil” com sua merencória (variação de melancólica) luz da lua e o mulato inzoneiro.
O mulato é objeto (ou sujeito) de outra falsa polêmica. Venha do latim mulus (ser híbrido, não necessariamente uma mula), ou de muladi (mestiço de árabe com não árabe), a palavra não evoca animais de carga, mas miscigenação. Negar palavras que definam as nuances étnicas (pardo, moreno, mulato, mameluco) é ter em mente um mundo em preto e branco, uma espécie de apartheid lexical.
Quanto a judiar (outro termo teoricamente a ser proscrito), é o rabino Henry Sobel quem diz:
O significado está claro: não há nada de pejorativo. Não fomos nós que maltratamos. Nós, os judeus, fomos maltratados. (...) O termo não deve ser eliminado. Pelo contrário, é bom que o mundo se lembre do preconceito do passado, para que não o permita no presente e no futuro.”
Mesmo não tendo originalmente cunho racista, muitas palavras podem vir a ferir suscetibilidades. Evitar usá-las com quem se sinta ofendido é uma questão de empatia. Uma espécie de “não falar de corda em casa de enforcado” — o que não implica banir corda, cordão e cordel dos dicionários.

Haveria motivos de sobra para qualquer um de nós se magoar ao ser chamado de brasileiro (e brasileira e brasileirx). Os nascidos nesta terra eram conhecidos como brasis, brasílicos ou brasilienses. Brasileiro não era nacionalidade; era profissão. Ser brasileiro era depreciativo, sinônimo de gente xucra, incivilizada, que vivia da exploração do pau-brasil. O que fazer se parte da população entrar nessa vaibe e resolver que não é mais brasileiro com muito orgulho, com muito amor, exigindo a abolição de termos que evoquem desmatamento ou cor de brasa?

Era melhor focar no combate às atitudes discriminatórias concretas e em expressões como “serviço de preto”, “programa de índio” ou “coisa de mulherzinha”. Aí, sim, há discriminação, etnocentrismo, misoginia — e se está falando de gente de carne e osso, não de metáforas cromáticas. Por aí se perpetuam o racismo e o machismo estruturais. Mas parece que os justiceiros (e justiceiras e justiceirxs) do vernáculo estão mais focados em nos salvar dos monstros que eles mesmos inventaram.

Fonte: O Globo,  por Eduardo Afonso, 14/03/2019

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