segunda-feira, 13 de novembro de 2017

O espantalho da "ideologia de gênero" e a passagem de Judith Butler pelo Brasil


Ideologia de gênero é um espantalho conservador, feito de tudo que os conservadores não gostam,  criado para espantar os pais das crianças quanto à educação sexual nas escolas e à educação igualitária para meninas e meninos. Ironicamente, os ideólogos de gênero são os próprios conservadores, pois são eles que educam as crianças a partir de estereótipos de gênero (modelitos rígidos e únicos de mulher e de homem). Gênero, como a autora do texto abaixo, Mariana Seifert Bazzo, identifica, é: 
"... a categoria analítica que surge a partir da década de 1960 (de fato já em meados da década de 1950), nos estudos de História, Sociologia, Psicologia Social, Direito, entre outros, como forma justamente de diferenciar o sexo biológico dos papéis sociais de homens e mulheres.
De forma geral, gênero é o termo que aponta o comportamento induzido nas crianças pela chamada educação diferenciada, como o nome já diz, educação que adestra meninas e meninos a partir da divisão arbitrária das características humanas em femininas e masculinas. Posteriormente, gênero se torna também parte do comportamento que as pessoas apresentam em sociedade a partir dos modelitos de mulher e de homem que aprenderam.

De forma específica, muita gente já teorizou sobre gênero, incluindo Judith Butler, mas o diferencial dela e dos teóricos queer, em relação à visão anterior, é que, para eles, não apenas gênero (o modelito de homem e de mulher criado por nossa sociedade) mas também o sexo passa a ser visto como construção social. E não se trata de sexo no sentido da visão que cada cultura ou a nossa própria cultura, através do tempo, teve e tem sobre sexo e sexualidade, mas sim sexo no sentido biológico do termo. Como coloca a autora do texto abaixo:
(Na teoria queer) critica-se a anterior diferenciação (sexo # gênero) e concebem-se ambos – sexo e gênero – como construções sociais, discursivas, históricas, alteráveis. Isto pôs em discussão a determinação biológica, genética e anatômica de homens e mulheres. 
Exatamente. Embora negue, com muito discurso pernóstico, Butler e os seus rejeitam sim a materialidade dimórfica da espécie humana. Fora que também, embora se apresente tão crítica da construção social de gênero, não quer abandoná-lo e chega a afirmar que não dá para se viver sem papeis de gênero (sic). No fim das contas, é paradoxalmente conservadora. Essa visão criou a mitologia que quer nos fazer acreditar na existência de mulheres do sexo masculino e homens do sexo feminino e que muito contribuiu para a criação do espantalho conservador da "ideologia de gênero". 

Encontrei o texto abaixo no site conservador Gazeta do Povo, da promotora de justiça Mariana Seifert Bazzo*, que resolvi reproduzir (editado para fins de atualização) porque foi a única abordagem conservadora minimamente honesta que li sobre a conturbada passagem de Butler pelo Brasil. Conturbada porque os conservadores agora deram para querer impedir exposições de arte e a presença de intelectuais em nosso país, um absurdo sem tamanho.


"Ideologia de Gênero'", ensino de gênero e violência contra mulheres e pessoas LGBT
A desigualdade de gênero é uma realidade, mas não é justificativa para atitudes que venham, com base em imposições ideológicas, a ferir direitos daqueles que sequer podem se defender

Com a notícia da vinda da filósofa norte-americana Judith Butler ao Brasil, para palestrar em evento no Sesc Pompeia (dias 7 e 9 de novembro), manifestações públicas de repúdio identificaram a Teoria Queer, criada por Butler, com (o que os conservadores chamam de) "ideologia de gênero" – combatida (por conservadores) nos planos nacionais, estaduais e municipais de educação no país. Essas manifestações partiram de grupos que colocam Butler como porta-voz de ideias que ferem direitos de crianças e adolescentes, fazendo alguns conceitos essenciais se perderem no meio do caminho, o que, não raramente, permite certa falta de senso crítico de quem opta por essa ou aquela posição. 

Primeiramente, é importante ressaltar que "ideologia de gênero" não se confunde com estudos ou ensino de gênero. De fato, a categoria analítica “gênero” surge a partir da década de 1960, nos estudos da História, Sociologia, Psicologia Social, Direito, entre outros, como forma justamente de diferenciar o sexo biológico daquilo que seriam os papéis sociais de homens e mulheres. A partir daí, fundamentalmente, começou a se revelar o que era ser homem e ser mulher na sociedade, em cada época da civilização, e como eram necessárias determinadas transformações sociais para que os dois tipos de sujeitos atingissem igualdade de direitos. 

A importância da categoria gênero a transformou em um termo utilizado por diversas legislações nacionais e internacionais, e isso muito anteriormente à discussão sobre os planos de educação no Brasil. Por exemplo, a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) prevê, em seu art. 8º, VIII e IX, a responsabilidade conjunta entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios na implementação de ações que tenham como diretrizes “programas educacionais com a perspectiva de gênero (...); o destaque, nos currículos escolares à equidade de gênero” (destaque nosso). 

A Teoria Queer, uma entre as diversas teorias sobre gênero hoje existentes, acabou por se projetar com a seguinte marca (explicada aqui de maneira absolutamente simplista): “o sexo como um efeito do gênero”, e não o contrário. Critica-se a anterior diferenciação e concebem-se ambos – sexo e gênero – como construções sociais, discursivas, históricas, alteráveis. Isto pôs em discussão a determinação biológica, genética e anatômica de homens e mulheres. Movimentos em todo o mundo entenderam que o uso dessa teoria, ou o que foi compreendido dela, pode vir a comprometer direitos de crianças, uma vez que a elas estaria sendo imposta, ideologicamente, a não diferenciação entre os sexos. 

A desigualdade de gênero é uma realidade. Os altos índices de violências contra mulheres e integrantes da comunidade LGBT são indiscutíveis, principalmente quando praticadas no âmbito doméstico e familiar, o que fortalece o papel da escola na prevenção desses crimes. Por esse motivo, legislações destinadas à proteção de direitos humanos obrigam a inclusão, nos currículos escolares, de temas de igualdade de gênero entre homens e mulheres e da não discriminação em virtude de orientação sexual ou identidade de gênero (comunidade LGBT). Isso não deve significar a imposição de uma "ideologia de gênero", supostamente baseada na complexa Teoria Queer, e a desconsideração do sexo biológico desde a certidão de nascimento de bebês. Também não deve provocar explicações incorretas a determinadas faixas etárias, gerando mal-estar psicológico em crianças. Finalmente, não é justificativa para atitudes – de pais, professores e outros profissionais que atuam na área da infância e juventude – que venham, com base em imposições ideológicas, a ferir direitos daqueles que ainda sequer podem se defender.

O debate deve ficar em aberto. A filósofa Judith Butler tem direito de proferir suas palestras em ambientes acadêmicos, sem censura ao seu pensamento. Pais, professores, médicos e outros profissionais da saúde, operadores do Direito, todos da sociedade devem estar atentos à boa resolução dessa equação: não inibir o ensino com a perspectiva de igualdade de gênero e respeito às diversidades de grupos minoritários e oprimidos, mas não permitir que determinados discursos sirvam como fundamento para violações de direitos fundamentais de crianças e adolescentes.

*Promotora de Justiça com atuação no Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Proteção aos Direitos Humanos Ministério Público do Paraná

Fonte: Gazeta do Povo,  02/11/2017

0 comentários:

Postar um comentário

Compartilhe

Twitter Delicious Facebook Digg Stumbleupon Favorites