sexta-feira, 20 de outubro de 2017

50 Anos de Tropicália

Reunião tropicalista. No alto, Caetano, Torquato Neto e Rita Lee; no meio, Tom Zé,
Glauber Rocha, Rogério Duprat e Gil - Arte de André Melo
Tropicália comemora 50 anos: relembre
Movimento rompeu os limites entre vanguarda e tradição, samba e iê-iê-iê, Brasil profundo e superficial

RIO - Quando Caetano Veloso apresentou “Alegria, alegria” e Gilberto Gil cantou “Domingo no parque” no III Festival de Música Popular Brasileira, estavam quebrados para sempre os limites entre vanguarda e tradição, entre samba e iê-iê-iê, entre o Brasil profundo e o superficial. Ainda não existia um nome para o que se viu ali, mas hoje sabemos que aquele festival — cuja grande final completa 50 anos no próximo dia 21 — é um dos principais marcos do nascimento da Tropicália.

Até ali, o cenário da música brasileira era assim:

1) Havia a vanguarda da bossa nova — percebida tanto no choque da gravação de João Gilberto para “Chega de saudade” quanto em sua aceitação internacional (o concerto do Carnegie Hall em 1962, o disco de Sinatra cantando Jobim em 1967, a experiência americana de Sérgio Mendes a partir de 1964).

2) Havia as tradições do samba de morro e da música nordestina, vistos como portadores das verdades de um Brasil profundo.

3) Havia a invasão anglosaxônica do rock, capitaneada pelos Beatles, aportando no Brasil pelos subúrbios como iê-iê-iê.

4) E havia jovens de classe média nos palcos dos festivais assumindo a canção como o território privilegiado para pensar seu tempo — um tempo de profundas transformações. Na política, a ditadura instaurada em 1964 e a polarização entre a esquerda e a direita. Nos costumes, a liberação sexual, os questionamentos à sociedade de consumo.

Aí veio aquela noite em 67. E, no ano seguinte, o álbum-manifesto “Tropicália ou panis et circensis” chegaria para explicar — ou para confundir, como escreveu Tom Zé anos e Chacrinha incorporou em seu programa de TV, que virou modelo da estética tropicalista, num jogo de espelhos típico do movimento.

Na capa do disco, além de Caetano, Gil e Tom Zé, estavam, em carne e osso, Gal Costa, Mutantes, Torquato Neto e Rogério Duprat. Representados em retratos, apareciam Nara Leão e Capinam. O álbum era um desfile alegórico e violento das cores e dores de um Brasil em convulsão: sofisticado e kitsch, litorâneo e interiorano. O painel incluía ainda o cantor Vicente Celestino (“Coração materno”) e o artista plástico Rubens Gerchman (sua tela “Lindoneia” inspirou a canção homônima), jornais populares e Mangueira, “Hino ao Senhor do Bonfim” e “aquela canção do Roberto”, Caribe e concretismo.

Os antecedentes do tropicalismo remontam a Oswald de Andrade (e ao “Rei da vela”, relido pelo Teatro Oficina), ao Cinema Novo, a Hélio Oiticica (sua obra “Tropicália” batizou o movimento), a João Gilberto. E as ondas que se espalharam a partir dele atingiram de volta não só a canção brasileira, mas o cinema, as artes visuais, o teatro — e até a moda e a publicidade. Mas, num país de ânimos quentes, marcado por tensões políticas agravadas pela repressão oficial, a repercussão não foi pacífica. Provocaram reações episódios como o discurso em que Caetano confrontou a plateia do Festival Internacional da Canção de 1968, o tom desafiador do espetáculo que eles montaram na Boate Sucata e a cena do programa “Divino maravilhoso” com Caetano cantando “Boas festas” enquanto apontava uma arma para a cabeça.

Por um lado, parte da esquerda via o grupo como alienado. Por outro, a direita se sentia ameaçada pelo que não entendia ali. Caetano e Gil acabaram na cadeia e, em seguida, no exílio. Para muitos, a aventura tropicalista terminava ali, sob a repressão. Mas os ecos dela se fazem presentes até hoje na música — de forma direta ou indireta — em exemplos como Nação Zumbi e BaianaSystem. Além disso, o pensamento sobre o Brasil hoje é em grande medida influenciado pela leitura que os tropicalistas estabeleceram então.

ARTIGOS E FRAGMENTOS

Essa história de rupturas e embates celebra 50 anos logo agora, quando o Brasil se vê novamente ameaçado pela censura às artes e rediscute questões que pareciam superadas. De olho na construção do futuro sem esquecer as lições do passado, o Segundo Caderno revê o movimento, em artigos e fragmentos, aos moldes das canções “Geleia geral”, “Miserere nobis” e “Tropicália”. Nas páginas seguintes, há tigres e leões soltos nos quintais, apesar das pessoas da sala de jantar, ocupadas em nascer e morrer.

Fonte: O Globo, por Leonardo Lichote, 15/10/2017


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